A Revisão de Acordo Judicial em Virtude da Pandemia – Teoria da Onerosidade Excessiva e Consequencialismo

Renato da Fonseca Janon – Juiz Titular da 1a. Vara do Trabalho de Lençois Paulista/SP

Resumo: A revisão de acordo judicial em virtude da pandemia de coronavírus é autorizada pela Teoria da Onerosidade Excessiva (artigo 478 do Código Civil) e pela Interpretação Consequencialista do Direito,  desde que demonstradas  circunstâncias excepcionais  imprevisíveis  e quando o devedor comprovar que a insuficiência de recursos para honrar os termos da conciliação foi provocada pela crise pandêmica. O primeiro argumento consiste na  cláusula “rebus sic stantibus”, garantia  implícita em qualquer forma de contrato bilateral e sinalagmático, devendo ser aplicada, inclusive, nos  acordos homologados pelo Poder Judiciário. O segundo argumento consiste na Interpretação Sinépica, a técnica da ponderação das consequências e da conformação dos resultados.

Palavras-chave: Revisão de Acordo Judicial. Teoria da Imprevisão. Onerosidade Excessiva. Interpretação Sinépica. Pragmatismo Jurídico. Ponderação das Consequências.

 

Abstract: The revision of a judicial agreement due to the coronavirus pandemic is authorized by the Theory of Excessive Onerosity (article 478 of the Civil Code) and by the consequentialist interpretation of Law, provided that unpredictable exceptional circumstances are demonstrated and when the debtor proves that the insufficiency of resources to honor the terms of the conciliation was caused by the pandemic crisis. The first argument consists in the “rebus sic stantibus” clause, an implicit guarantee in any form of bilateral and signagmatic contract, which must also be applied in agreements ratified by the Judiciary. The second argument consists of the Syneptic Interpretation, the technique of weighing up the consequences and shaping the results.

Keywords:Review of Judicial Agreement. Theory of Unpredictability. Excessive burden. Synépic Interpretation. Legal pragmatism. Weighting of Consequences.

 

Sumário: Introdução. 1. A Cláusula “Rebus Sic Stantibus” e as Teorias da Revisão Contratual. 1.1. O Direito Alemão (Pressuposição e Quebra da Base do Contrato). 1.2. O Direito Francês (Imprevisão). 1.3. O Direito Italiano (Onerosidade Excessiva – A Vontade Marginal) 1.4. O Direito Português (Conceito de “Alteração Anormal”). 1.5. O Direito Britânico (Doutrina da Frustração). 1.6. O Direito Argentino e 1.7 O Direito Brasileiro. 2.A Interpretação Sinépica e a Ponderação das Consequências. 2.1. A Base Doutrinária do Consequencialismo. 2.2. A Base Jurisprudencial do Consequencialismo. 3. Proposta de Teste de Consequencialidade. Conclusão. Referências

 

Índice do artigo

INTRODUÇÃO – APRESENTAÇÃO DO CASO

O presente artigo tentará responder à pergunta acima  a  partir do exame de um caso hipotético, inspirado em fatos reais, no qual uma associação filantrópica  postulou a revisão das parcelas de um acordo e a exclusão da cláusula penal em virtude do atraso no pagamento, alegando que o fluxo de doações que abastecia o seu caixa foi interrompido durante a pandemia de Covid-19. O reclamante discordou com veemência e alegou que deveriam ser rigorosamente observados os termos do ajuste homologado pelo Juízo.

De início, observo que a solução ideal, obviamente, seria uma nova conciliação, que substituísse o acordo anterior. No entanto, a despeito das insistentes tentativas, as partes não conseguiram chegar a um consenso e coube ao Juízo o dever de resolver o impasse.

À primeira vista, se fôssemos olhar somente para  a literalidade do texto legal, enfatizando os PRINCÍPIOS, seria possível sustentar que o autor tem razão, haja vista que, em condições normais, o acordo homologado em Juízo faz coisa julgada, sendo irrecorrível e irretratável (artigo.831, parágrafo único, da CLT). Assim, em tese, somente poderia ser desconstituído por ação rescisória (Súmula 259/TST) ou por uma novação.

Todavia, se, por outro lado, focarmos nas CONSEQUÊNCIAS,  veremos que a solução não é tão simples como parecia na leitura inicial, uma vez que a aplicação fria da letra da lei poderia levar a consequências desastrosas para todos os litigantes.

Ninguém ignora que a crise mundial provocada pela pandemia de coronavírus (Covid 19) afetou a todos, indistintamente, sejam empregados ou empregadores, principalmente no caso da reclamada, uma instituição sem fins lucrativos voltada para a assistência e inclusão de pessoas com deficiência. Assim, temos que sopesar os interesses conflitantes e conciliar necessidades antagônicas: de um lado, devemos assegurar ao reclamante o direito de receber o seu crédito; do outro, não podemos ser inflexíveis a ponto de inviabilizar a continuidade das atividades da instituição, prejudicando as pessoas assistidas e, quiçá, provocar a dispensa de outros trabalhadores que ainda laboram na entidade.

Estamos atravessando uma das maiores crises econômicas e humanitárias de toda a história, fato que só encontra paralelo recente na chamada “Gripe Espanhola” de 1918. Daí por que precisamos interpretar a lei e a jurisprudência com o devido bom senso, recorrendo, se necessário, a alternativas que transcendem à dogmática tradicional para atender a uma situação EXCEPCIONAL, que não foi nem poderia ser prevista quando da celebração do acordo original. É o que o Ministro Gilmar Mendes chamou de JURISPRUDÊNCIA DA CRISE, a partir da experiência coligida do Tribunal Constitucional de Portugal, que reinterpretou o conceito de “proibição do retrocesso” para adaptá-lo às circunstâncias da situação econômica do País  -Acórdão nº 353 de 2012:

 

“Em meio a esse complexo quadro, parece evidente que as normas jurídicas soam, em um ponto de vista estritamente pragmático, um mero detalhe no debate sobre a aprovação de medidas essenciais ao combate a uma epidemia que se alastra em progressão geométrica e vem vitimando milhares de pessoas pelo mundo. Entretanto, mesmo nesses momentos, as normas jurídicas — em especial a Constituição — não podem ser encaradas como um obstáculo, mas como um caminho necessário e seguro para a solução da crise. É fundamental prezar pela compatibilização de aparentes contradições e abertura à busca por alternativas a uma leitura fria e seca da lei, distante de uma realidade que, muitas vezes, não poderia sequer ser imaginada pelo legislador ou pelo constituinte. “ (artigo publicado no Conjur, 11.04.2020)

 

Portanto, diante dessa situação absolutamente EXCEPCIONAL E IMPREVISÍVEL, cuja gravidade foi reconhecida na Lei Federal 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, e no Decreto Legislativo no.06/2020 (que decretou o estado de calamidade), tornou-se inevitável (embora não desejável) rever os termos do acordo inicial  com fundamento no art. 393 do Código Civil (força maior) e no artigo 478 do Código Civil (onerosidade excessiva por fato imprevisível), flexibilizando as datas para pagamento da avença, sem, no entanto, alterar o valor estabelecido no pacto original. Detalharei, a seguir, os fundamentos jurídicos que me fizeram transcender à literalidade do artigo 831/CLT para  chegar a esta conclusão.

1– A CLÁUSULA “REBUS SIC STANTIBUS”  E AS TEORIAS DA REVISÃO

A origem da cláusula de revisão contratual remonta há, aproximadamente, 2.700 a.c, quando a lei 48 do CÓDIGO DE HAMURABI determinava que “se alguém tem um débito a juros e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta d´água não cresce o trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao credor” .

Na idade média, em virtude das sucessivas pestes que assolaram a Europa central, houve o  desdobramento da aplicação da  cláusula “rebus sic stantibus”, expressão que significa “permanecendo as coisas como estão” e  que tem origem no Direito Canônico,  sendo originalmente codificada pelos glosadores medievais (Glosa Ordinária, de Acúrsio), embora já fosse adotada pelos pretores romanos desde veneranda antiguidade, precedendo às Institutas de Justiniano (Digesto, D. 12, 4, 8, de Neratio).

No direito moderno, a cláusula “rebus sic stantibus” encontra fundamento doutrinário  em quatro teorias principais, a partir das quais foram elaboradas várias outras vertentes:

 

  1. a) Teoria da Pressuposição – direito alemão do século XIX – Bernhard Windscheid;
  2. b) Teoria da Base do Negócio – direito alemão do século XX – Paul Oertmann e Karl Larenz.
  3. c) Teoria da Imprevisão – direito francês – George Ripert;
  4. d) Teoria da Onerosidade Excessiva – direito italiano – Guiseppe Osti;

 

1.1. – O DIREITO ALEMÃO – AS TEORIAS DA PRESSUPOSIÇÃO E DA BASE DO NEGÓCIO

Na ALEMANHA, a possibilidade de revisão contratual por circunstâncias extraordinárias já era prevista no §377 do Código da Prússia de 1794. No século seguinte, com o ressurgimento do prestígio da cláusula rebus sic stantibus na doutrina germânica, Bernhard Windscheid construiu,  em 1850, sua conhecida TEORIA DA PRESSUPOSIÇÃO. Segundo ele, quem manifestasse sua vontade sob uma determinada pressuposição, quereria que o efeito jurídico daquela vontade somente existisse dentro de certo estado de coisas, ou seja, caso viesse a ocorrer o fato que havia pressuposto. A pressuposição, segundo o autor, poderia se manifestar de modo expresso, ao lado da declaração de vontade, ou ser inferida a partir do próprio conteúdo da declaração (Renato José de Moraes, Cláusula “rebus sic stantibus”, Saraiva, SP, 2001, p. 69-70).

Segundo Bernhard WINDSCHEID, “a pressuposição corresponderia a uma condição não desenvolvida, isto é, não expressa, mas da qual os contratantes fariam depender a validade da sua estipulação.”  (Die Lehre des römischen Rechts von der Voraussetzung. Düsseldorf: Julius Buddeus, 1850, p. 3). Em outras palavras, se mudassem os pressupostos que levaram a uma determinada manifestação de vontade, o negócio jurídico subjacente também deveria ser revisto ou revisado. Trata-se, portanto, de uma doutrina baseada na declaração volitiva.

Embora o  Código Civil de 1900  não tratasse, explicitamente, da possibilidade de revisão dos contratos por fato imprevisível superveniente,  a doutrina e a jurisprudência germânicas do século XX desenvolveram a Teoria da Quebra da Base do Negócio, a qual, ao contrário da antiga Teoria da Pressuposição, passou a concentrar ênfase nas circunstâncias fundamentais que levaram à celebração do pacto contratual.

De um lado,  PAUL OERTMANN desenvolveu a TEORIA DA BASE SUBJETIVA, declarando que “a base do negócio denota a representação de uma das partes, reconhecida e não contestada pela outra, ou a representação comum às partes, sobre a presença de certas circunstâncias tidas como fundamentais para a formação da vontade” .

De outro, KARL LARENZ sustentou a TEORIA DA BASE OBJETIVA, estabelecendo a  distinção conceitual entre as duas proposições. Enquanto a base subjetiva abrange as representações mentais sobre as quais as partes concluíram o acordo, a objetiva traduz as circunstâncias pressupostas, mesmo sem que delas tenham as partes consciência, tais como a manutenção da legislação ou de determinado sistema econômico. Dissipa-se a base objetiva do negócio quando há uma perturbação na equivalência das prestações ou uma frustração do escopo do contrato que o torne inexequível nas condições originais.

A TEORIA DA QUEBRA DA BASE OBJETIVA DO NEGÓCIO ganhou força, na Alemanha,  no período do  pós-guerra, quando houve a desvalorização do marco devido à hiperinflação. Ocorreram alterações das circunstâncias em muitos casos, como nos contratos de fornecimento no qual uma parte era obrigada a entregar as mercadorias de acordo com o preço combinado à época da celebração do pacto. Entretanto, esse valor não era mais compatível com o período pós-guerra. Caso o valor fosse mantido haveria o enriquecimento de uns e o empobrecimento de outros, podendo resultar até mesmo em um novo colapso econômico, ou seja, o princípio pacta sunt servanda se transformou num obstáculo para o processo de reconstrução nacional. Daí por que, apesar de não constar expressamente no Código Civil, os Tribunais alemães passaram a  admitir a revisão.

Mais adiante, em uma evolução da Teoria da Quebra da Base Objetiva, a doutrina teutônica passou a defender a Teoria  da “Perturbação da Base do Negócio” (Störung der Geschäftsgrundlage), sobretudo após as mudanças no conjunto de normas que disciplinam o Direito das Obrigações  por meio da lei “Schuldrechtsmodernisierungsgesetz”, em vigor a partir de janeiro/2002. Essa reforma legislativa teve ampla repercussão na possibilidade de revisão dos contratos ao introduzir o § 313 no BGB (Código Civil Alemão):

 

  • 313 (Perturbação da base do negócio) – Código Civil Alemão:

(1) Se circunstâncias, tornadas base do contrato, alteraram-se profundamente depois da

sua celebração, de modo que as partes não o teriam celebrado ou o teriam com outro conteúdo, se houvessem previsto essa alteração, então pode ser exigida a revisão do contrato, na medida em que for inexigível para a parte a manutenção do contrato não modificado, considerando todas as circunstâncias do caso concreto, especialmente a repartição contratual ou legal do risco.

 

(2) Da mesma forma de uma alteração das circunstâncias se regula quando representações essenciais, tornadas base do contrato, se demonstrem falsas.

.

(3) Se não é possível a revisão ou se ela não for exigível de uma das partes, então pode

a parte prejudicada resolver o contrato. No lugar do direito de resolução dá-se o direito à denúncia, nos casos de relações duradouras.

 

Portanto, embora já fosse aplicada antes, a partir de janeiro de 2002, a possibilidade de revisão contratual por fato superveniente passou a ser devidamente positivada no Direito Civil alemão.

 

1.2. – O DIREITO FRANCÊS – A TEORIA DA IMPREVISÃO

Na FRANÇA, o artigo 1.134 do Código Civil de 1804 (chamado “Código Napoleônico”) estabeleceu que “o contrato tem força de lei entre as partes” (“Art. 1.134: Les conventions légalement formées tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faites”). No entanto, mesmo assim,  a jurisprudência  civil passou a admitir, em certos julgados, que os contratos fossem modificados ou resilidos devido à mudança de circunstâncias a que foram submetidos. Essa construção pretoriana, que transcendia a literalidade do artigo.1134 do Código Civil de 1804,  inspirou o que, mais tarde, viria a ser a hoje consagrada Teoria da Imprevisão.

 

No contexto da primeira guerra mundial, quando a economia europeia entrou em colapso, a LEI FAILLIOT, de 21 de janeiro de 1918,  passou a positivar a  possibilidade de revisão ou mesmo de resolução dos contratos, estabelecendo, em seu artigo segundo, que:

 

Artigo Segundo. Independentemente de causas de resolução oriundas do direito comum (direito civil) ou de convenções particulares, os negócios e contratos mencionados no artigo precedente podem ser resolvidos a pedido de qualquer uma das partes, se provado que, por razão do estado de guerra, a execução das obrigações de um dos contratantes envolver encargos que lhe causam um prejuízo de uma importância que ultrapassa e muito as previsões razoavelmente feitas à época da convenção.

O juiz, quando estabelecer indenizações por perdas e danos, deverá reduzir seu montante se constatar que, em virtude do estado de guerra, o prejuízo ultrapassou demasiadamente aquele que os contratantes puderam prever. Se, conforme as condições e os usos do comércio, a compra foi feita por conta e risco do vendedor, e as mercadorias não foram entregues, o montante da indenização deve ser reduzido na forma da terceira alínea acima. O juiz poderá também, a pedido de uma das partes, determinar suspensão da execução do contrato durante um período que estabelecer.”

As décadas seguintes consagraram  a TEORIA DA IMPREVISÃO, para a qual a razão de ser da revisão contratual está em fatores externos à vontade das partes, ou seja, na ocorrência de fatos supervenientes, imprevistos e imprevisíveis, que tornaram desproporcional o negócio jurídico original, nos termos inicialmente previstos.

Dessarte, segundo a Teoria da Imprevisão, o contrato deveria ser revisto não apenas porque a vontade original teria sido desvirtuada, mas porque fatores externos  assim o determinariam, tais como a moral (Georges Ripert, “La règle morale dans les obligations civiles”, pp. 132 –157), a boa-fé, a equidade, a justiça e a própria noção do direito (Paulo Carneiro Maia, Da cláusula rebus sic stantibus, pp. 197-210).

A  reforma do Direito dos Contratos, que entrou em vigor em  01.10.2016,  incorporou, definitivamente, a Teoria da Imprevisão ao ordenamento jurídico da França.  Segundo o novo artigo 1.195 do Código Civil Francês, “se uma alteração de circunstâncias imprevisíveis quando da conclusão do contrato torna a execução excessivamente onerosa para uma das partes, que não tinha concordado em assumir o risco, ela pode solicitar a renegociação do contrato à outra parte. Ela continua a executar as suas obrigações durante a renegociação. Em caso de recusa ou insucesso da renegociação, as partes podem concordar em rescindir o contrato, na data e segundo as condições por elas determinadas, ou pedir em comum acordo para que o juiz faça as adaptações do contrato. Na falta de acordo dentro de um prazo razoável, o juiz pode, a pedido de uma das partes, revisar ou dar fim ao contrato na data e nas condições por ele determinadas. “

 

1.3. – O DIREITO ITALIANO – A TEORIA DA ONEROSIDADE EXCESSIVA

Na ITÁLIA, como se fora uma espécie de síntese eclética entre as duas doutrinas que a precederam, a Teoria  da “Onerosidade Excessiva Superveniente”  teve origem em estudos realizados pelo professor Giuseppe Osti, o qual desenvolveu uma das mais sólidas e influentes fundamentações para a revisão contratual, a partir da análise da vontade dos contratantes. De acordo com Osti, é necessário analisar a vontade com que os contratantes se obrigaram, qual seja a vontade concreta deduzida daquela contratação singular. OSTI elaborou o conceito de “vontade marginal”,  dividindo as manifestações volitivas em dois tempos. O primeiro seria a vontade contratual, expressa no ato da celebração. O  segundo seria a vontade marginal, atribuída  no momento da execução do contrato.

Daí por que, de acordo com a “TEORIA DA SUPERVENIÊNCIA” ou da “ONEROSIDADE EXCESSIVA”, é preciso considerar a vontade geralmente incluída em cada tipo contratual específico; assim, é possível saber a que álea as partes se obrigaram, dentro da qual são efetivamente responsáveis perante o outro contratante. Caso mudanças supervenientes tivessem ultrapassado os limites dessa álea, poder-se-ia dizer que isso estaria colidindo com a vontade das partes de executar o contrato de maneira estrita.

Em 1942, o Código Civil Italiano, nos artigos 1.467, 1.468 e 1.469, adotou a Teoria da Onerosidade Excessiva para justificar a resolução de contratos. Merece especial destaque o artigo 1.467 do Código Civil Italiano, segundo o qual: “nos contratos com execução contínua ou periódica ou com execução diferida, caso a execução de uma das partes tenha se tornado excessivamente onerosa pela ocorrência de eventos extraordinários e imprevisíveis, a parte que deve essa execução poderá requerer a rescisão do contrato, com os efeitos previstos pelo artigo 1458 (ato 168).”

Como se vê, o Código Italiano, que ainda está em vigor, previu que, em contratos de execução continuada, periódica ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornasse excessivamente onerosa, devido a eventos extraordinários e imprevistos, a parte prejudicada poderia demandar a resolução do contrato. Nesse contexto, rica é a contribuição de Alberto Buffa, que, ao comentar acórdãos sobre onerosidade excessiva, arguiu que esta deveria se pautar no conceito de equilíbrio objetivo das prestações, marca característica do chamado sinalagma funcional, que deveria presidir as relações contratuais.

 

1.4. – O DIREITO PORTUGUÊS – O CONCEITO DE  “ALTERAÇÃO ANORMAL”

Em PORTUGAL, o artigo 437 do Código Civil Lusitano fala em “alteração anormal” e estabelece que: “1. Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. 2. Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior. “

O conceito de “alteração anormal”, pressuposto para a revisão de contratos segundo o Código Civil Português, é bem explicado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (Processo n.º 1097/12.6TBMGR.C1, de 13.05.2014, ver em www.dgsi.pt):

“A resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias depende da verificação dos seguintes requisitos: (i) que haja alteração relevante das circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar, ou seja, que essas circunstâncias se hajam modificado de forma anormal, e que  (ii) a exigência da obrigação à parte lesada afecte gravemente os princípios da boa fé contratual, não estando coberta pelos riscos do negócio.

A alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram o contrato pode resultar da alteração da legislação existente à data do negócio, como pode resultar de acontecimentos políticos ou da modificação repentina do sistema econômico vigente. Essas situações são aquelas sobre as quais as partes não construíram quaisquer representações mentais (não pensaram nelas, pura e simplesmente), mas que são de qualquer modo imprescindíveis para que, através do contrato, se atinjam os fins visados pelas partes.”

 

1.5. – O DIREITO BRITÂNICO – “A DOUTRINA DA FRUSTRAÇÃO”

Em princípio, o direito anglo-saxão, baseado na imperatividade dos contratos, era refratário à ideia de revisão de cláusulas por fatos supervenientes. No entanto, as circunstâncias históricas se impuseram, e, desde o início do século XX, os Tribunais ingleses passaram a admitir a possibilidade de se discutir a tese denominada  “FRUSTRATION OF CONTRACT”, embora em condições bem específicas e extraordinárias. A Teoria da Frustração “é uma doutrina do direito contratual inglês que atua como um dispositivo para anular contratos nos quais um evento imprevisto torna as obrigações pactuadas impossíveis ou muda radicalmente o objetivo principal da parte para celebrar o contrato.

No sistema da  Common Law, muitas decisões judiciais são baseadas em  precedentes, que servem de paradigmas para casos futuros. Em geral, quando um tema é de ampla repercussão, os Tribunais criam “Testes”, definindo parâmetros para serem adotados em processos semelhantes, a fim de balizar a futura atuação jurisdicional. O teste para se saber se um contrato foi “frustrado” por fatores supervenientes imprevisíveis  foi definido por Lord Radcliffe, no caso Davis Contractors Ltd v Fareham Urban District Council  [1956] AC 696 , em julgamento proferido na Câmara dos Lordes:

“A frustração ocorre sempre que a lei reconhece que, sem o inadimplemento de qualquer das partes, uma obrigação contratual se tornou incapaz de ser cumprida porque as circunstâncias em que a execução é exigida tornariam a coisa radicalmente diferente daquela assumida pelo contrato.  (…) “

 

No Direito Britânico, a chave para se compreender a DOUTRINA DA  FRUSTRAÇÃO está na expressão  “radicalmente diferente“, a qual significa que o fato superveniente deve resultar em uma “uma mudança significativa nas circunstâncias de cumprimento do contrato” em decorrência de elementos exógenos que não foram objeto de previsão das partes. Na maioria dos casos, as controvérsias serão resolvidas de acordo com Lei da Reforma dos Contratos Frustrdos de 1943 The 1943 Law Reform (Frustrated Contracts), mas sempre tendo como referência  o teste definido por  Lord Radcliffe.

Uma descrição mais  detalhada do “TESTE DA FRUSTRAÇÃO” foi apresentada em Paal Wilson & Co A / S v Partenreederei Hannah Blumenthal, por Lord Brandon:

 

Existem dois fatos essenciaisque devem estar presentes para que um contrato seja frustrado.

O primeiro  fator essencial é que deve haver alguma mudança externa ou alheia de situação, não prevista ou previsível pelas partes no momento da contratação, que impossibilite a execução do contrato ou, pelo menos,  torne o seu cumprimento algo radicalmente diferente do que as partes contemplaram quando o celebraram. O segundo fator essencial é que o evento externo ao u mudança estranha de situação em questão, e as consequências de ambos em relação à execução do contrato, devem ter ocorrido sem culpa ou inadimplemento de qualquer uma das partes do contrato”([1983] 1 AC 854, 909)

 

Recentemente, no Reino Unido, a DOUTRINA DA FRUSTRAÇÃO passou a ser invocada nas relações de trabalho, em virtude da pandemia de Coronavírus. Embora, no passado, essa doutrina raramente fosse  trazida para um contrato de trabalho, ela passou a ser  objeto de foco renovado após a entrada em vigor dos Regulamentos de Proteção à Saúde  (“Regulamento do Coronavirus”), de  26 de março de 2020. Entre outras restrições que afetam a atividade econômica, o Regulamento do Coronavirus exige que restaurantes, cafés, bares e pubs fechem durante o“ período de emergência ”, além de prever lockdowns temporários , levantando a possibilidade de frustração do contrato de trabalho pela absoluta impossibilidade de desempenho do serviço contratado.

 

Conquanto não existam julgamentos recentes sobre esse tema (até porque o governo britânico fez um portentoso programa de 38 bilhões de libras para pagar 80% dos salários dos trabalhadores afastados durante a pandemia de Covid), há um precedente histórico do “Employment Appeal Tribunal (EAT)” (Tribunal de Recurso do Emprego), no caso The Egg Stores (Stamford Hill) Ltd v Leibovici [1976] IRLR 376 (EAT), no qual, com base na Teoria da Frustração, foi considerado rescindido o contrato  de um empregado que ficou afastado do serviço por um longo período, por circunstâncias alheias à relação de trabalho e sem culpa do empregador – vide artigo de Mark Greaves, 17-04-2020- https://www.matrixlaw.co.uk/resource/coronavirus-and-the-frustration-of-employment-contracts-by-mark-greaves/.

 

1.6. – O DIREITO ARGENTINO – “ONEROSIDADE EXCESSIVA”

Na ARGENTINA,  o artigo 1.198 do Código Civil menciona a “onerosidade excessiva” ao estabelecer que: ”Los contratos deben celebrarse, interpretarse y ejecutarse de buena fe y de acuerdo con lo que verosímilmente las partes entendieron o pudieron entender, obrando con cuidado y previsión. En los contratos bilaterales conmutativos y en los unilaterales onerosos y conmutativos de ejecución diferida o continuada, si la prestación a cargo de una de las partes se tornara excesivamente onerosa, por acontecimientos extraordinarios e imprevisibles, la parte perjudicada podrá demandar la resolución del contrato. El mismo principio se aplicará a los contratos aleatorios cuando la excesiva onerosidad se produzca por causas extrañas al riesgo propio del contrato. En los contratos de ejecución continuada la resolución no alcanzará a los efectos ya cumplidos. No procederá la resolución, si el perjudicado hubiese obrado con culpa o estuviese en mora. La otra parte podrá impedir la resolución ofreciendo mejorar equitativamente los efectos del contrato.”

 

1.7. – O DIREITO BRASILEIRO – “ONEROSIDADE EXCESSIVA” E  “IMPREVISÃO”

No BRASIL, a possibilidade de revisão contratual em circunstâncias extraordinárias e imprevisíveis está prevista nos artigos  478 a 480 do Código Civil Brasileiro:

 

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.

Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

 

O artigo  317 do Código Civil também dispõe que ”quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.”. Na mesma senda, o artigo 421 do CC preceitua que “a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”.

 

Por sua vez, o artigo 6º, inciso V, do Código de Direito do Consumidor prevê que:

São direitos do consumidor:

(…)

V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.

 

No caso específico da Justiça do Trabalho, merece especial destaque um acórdão proferido pelo TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO da 3a. Região, no qual foi autorizada a revisão das datas de pagamento de um acordo porque o Estado de Minas Gerais alterou, unilateralmente, as datas de pagamento da aposentadoria do devedor, que contava com esse dinheiro para honrar o termo de conciliação homologado em Juízo. A fundamentação do acórdão invoca a Teoria da Onerosidade Excessiva e a Teoria da  Imprevisão:

ACORDO JUDICIAL – TRANSAÇÃO – DATA DE VENCIMENTO QUE SE TORNOU EXCESSIVAMENTE ONEROSA PARA O DEVEDOR – TEORIA DA IMPREVISÃO – A transação, muito embora tenha sido homologada judicialmente, não perde a sua natureza contratual, sempre defendida pela doutrina civilista, e agora encampada no Novo Código Civil (art. 840 e ss.). As partes acordam direitos e obrigações recíprocos e estipulam cláusula penal, caracteres típicos de qualquer negócio jurídico. Outra questão também que sempre foi objeto de apreciação doutrinária no que concerne aos contratos é a chamada “teoria da imprevisão”. Segundo autorizadas vozes preceituam, todos os contratos são celebrados com a cláusula “rebus sic stantibus” implicitamente. Isto é, permanecerão as disposições contratuais na forma avençada (“pacta sunt servanda”) se as condições existentes ao tempo da celebração permanecerem. Se, no curso da execução do contrato, surgir evento imprevisível capaz de tornar a obrigação excessivamente onerosa para a parte, poderá ela pedir a revisão contratual em juízo, conforme está expresso nos arts. 478/480 do Novo Código Civil. Nesse contexto, avençada época de pagamento das parcelas constantes do acordo judicial em função da data em que o devedor percebe benefício previdenciário, e vindo este a ser alterado unilateralmente pelo Estado (“fato do príncipe”), aquela disposição torna-se excessivamente onerosa, podendo ser modificada pelo juízo para adequar-se à nova situação das partes, restabelecendo-se o equilíbrio contratual. (TRT da 3.ª Região; Processo: 00106-2002-036-03-00 -7 AP; Data de Publicação: 23/08/2003; Disponibilização: 22/08/2003, DJMG, Página 3; Órgão Julgador: Terceira Turma  – citado pelo MM. Juiz Luiz Augusto Fortuna, em decisão proferida no processo 0010897-96.2015.5.15.0106) ;

De forma semelhante, no caso narrado como exemplo no início deste artigo também não resta a menor sombra de dúvida de que a superveniência da Pandemia de Covid 19  constitui fato grave, absolutamente imprevisível, que não foi nem poderia ser inicialmente considerado pelas partes, e que tornou excessivamente oneroso o cumprimento do acordo nas datas previamente combinadas, justificando a sua revisão.

 

2 – INTERPRETAÇÃO SINÉPICA – PONDERAÇÃO DAS CONSEQUÊNCIAS

Se não bastassem os argumentos anteriores, há um outro que considero ainda mais relevante: ao interpretar a lei (ou os termos de um acordo), o juiz deve levar em conta a ponderação das suas consequências práticas, conforme estabelece o artigo 5o. da LINDB: Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.” No caso em discussão, diante do atual cenário de pandemia, manter o acordo nos termos originalmente pactuados, poderia levar à  insolvência da reclamada e, em última instância, diante de um eventual bloqueio de valores, até mesmo ao fechamento da instituição, provocando um dano ainda maior do que aquele que se pretende evitar.

Afinal, se a entidade tiver suas atividades encerradas ou suspensas, todos os trabalhadores que ainda laboram na instituição serão prejudicados, assim como as dezenas de pessoas  assistidas pela instituição filantrópica que presta serviço de utilidade pública.

Ademais, o próprio reclamante poderá ser prejudicado, na medida em que, sem um fluxo de recursos ou sem um patrimônio disponível, eventual execução poderá vir a ser frustrada e o autor demorará muito mais tempo para receber o que tem direito. É melhor para o próprio autor manter a instituição funcionando e receber o montante do acordo, ainda que de forma diferida, do que iniciar uma execução que não se sabe quanto tempo durará nem se, ao final, terá êxito. Os pretores romanos, cientes da máxima “summus jus, summa juria”, já evocavam, em suas decisões, a sabedoria de JANUS, a divindade latina das Escolhas e das Decisões, sugerindo que o Magistrado deve ter um rosto olhando para o passado, voltado para os princípios, e o outro mirando o futuro, tentando vislumbrar os possíveis resultados. Tanto é assim que, nos termos do artigo 25 do Código de Ética da Magistratura, “especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às consequências que pode provocar. “ (g.n.)

Vamos, portanto, falar de CONSEQUENCIALISMO, termo filosófico criado por Elizabeth Anscombem, em “Modern Moral Philosophy” (1958), para defender a tese de que um agente é responsável tanto pelas consequências intencionais de um ato quanto pelas não intencionais, quando previstas e não evitadas. Portanto, as consequências deveriam ser levadas em consideração quando se faz juízos sobre o correto e o incorreto.

Interessa-nos, mais precisamente, o CONSEQUENCIALISMO JURÍDICO, conceito incorporado ao ordenamento pátrio a partir da lei 13.655, de 25.04.2018, que inseriu os artigos 20 e 21 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB:

Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”

 

 

“ Art.21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.

 

O consequencialismo jurídico pode ser definido, então,  como a técnica de ponderação que  examina as  possíveis consequências práticas da decisão judicial antes de implementá-la, levando em conta o  impacto humanitário, social e econômico nas razões de decidir.

 

2.1. – A BASE DOUTRINÁRIA  DO  CONSEQUENCIALISMO

O Direito não pode ignorar a realidade porque, quando isto ocorre, a realidade se vinga, ignorando o Direito (Georges Ripert). Logo, nenhum juiz pode ignorar as consequências práticas das decisões que profere. Daí por que a “ponderação das consequências” foi incluída dentre os elementos estruturantes do conceito de Justiça na magistral obra do polímata indiano AMARTYA SEN, prêmio Nobel de Economia e professor de Harvard, Oxford, Cambridge e da London School of Economics. Além de brilhante economista e sociólogo, Amartya Sen também é um dos maiores filósofos do Direito da atualidade e suas lições são estudadas nas melhores faculdades do mundo.

No capítulo 10 do livro “A IDEIA DA JUSTIÇA”, ele analisa o que é “ser justo” a partir do clássico “Bhaghavad Ghita”, um texto sagrado hindu que faz parte do épico MAHABHARATA. O texto, escrito em sânscrito, relata o diálogo de Krishna, considerado como a suprema personalidade de Deus – verdade absoluta e inconcebível -, com Arjuna (seu discípulo guerreiro), em pleno campo de batalha. Arjuna representa o papel de uma alma confusa sobre seu dever e recebe iluminação diretamente de Krishna, que o instrui na ciência da autorrealização ao lhe explicar o sustentáculo do Reto Agir (o dharma, o karma-yoga, o serviço desinteressado). No desenrolar da conversa são colocados pontos importantes da filosofia védica, que incluía, já na época, elementos do bramanismo.

AMARTYA SEN chama a atenção para a discussão entre Arjuna e Krishna. É um debate clássico entre uma deontologia independente das consequências, representada por Krishna, e uma avaliação sensível aos resultados, por Arjuna. Este não vê só se as suas ações são corretas ou adequadas com base em acontecimentos passados, regras e normas existentes, mas também tendo em conta o que acontecerá no futuro. Arjuna não está só preocupado com o que acontecerá ao mundo mas também com o que ele próprio vai fazer para provocar essa mudança. O pensamento de Arjuna é um bom exemplo de consequencialismo responsável (raciocínio sensível às consequências, e que, assim sendo, a escolha racional deve considerar as consequências de um certo ato).

 

Significa dizer que, na tradição hindu, a tomada de decisão não deve levar em conta apenas os seus benefícios próprios, mas também o efeito sobre os outros ao seu redor. O equilíbrio entre Krishna (o deontologista apegado aos dogmas) e Arjuna (o consequencialista preocupado com os resultados), típico da filosofia oriental, tal como o equilíbrio entre o Yin e o Yang, no Taoismo, remete à necessidade de harmonizarmos a moralidade dos princípios com a moralidade dos resultados, ou, na definição de Max Weber, balancearmos a ética da convicção com a ética da responsabilidade. A concepção de Justiça sugerida por Amartya Sen propõe um meio-termo entre o dogmatismo inconsequente e o consequencialismo alienado, um equilíbrio entre os dogmas e as consequências.

Então, ao proferir uma sentença – ou qualquer decisão judicial, o juiz deve levar em conta tanto a ética da convicção (a moralidade dos princípios) quanto a ética da responsabilidade (a moralidade dos resultados), buscando o que ARISTÓTELES chamava de “justo meio”.

A harmonização dessa dicotomia nem sempre é fácil e requer do intérprete um juízo de ponderação caso a caso, levando em conta tanto os direitos individuais quanto o interesse público, tal como no conhecido DILEMA DO BONDE, experimento de ética proposto pela filósofa britânica PHILIPPA FOOT e sempre usado como exemplo nos embates entre deontologia e utilitarismo. Vejamos a explicação do Professor Michael J.Sandel:

“Um bonde está fora de controle em uma estrada. Em seu caminho, cinco pessoas amarradas no trilho estão na iminência de morrer. Felizmente, é possível apertar um botão que encaminhará o bonde para um percurso diferente, mas ali, por desgraça,  encontra-se outra pessoa também amarrada. A pergunta para a qual não há uma resposta simplista é: devemos apertar o botão?”  (“Justiça: o que é fazer a coisa certa?”, página 30-33, Michael J. Sandel – professor da Universidade de Harvard).

Não há resposta óbvia ou sem efeitos colaterais. Não fazer nada é uma das opções, mas custaria a morte de 5 pessoas que poderiam continuar vivas. Por outro lado, agir implicaria em matar uma pessoa que não morreria se o bonde continuasse em seu percurso original. É uma escolha difícil, mas necessária. Um deontologista puro argumentaria que ninguém tem o direito de escolher quem vai viver ou morrer e que deveríamos deixar o bonde seguir o seu caminho. Talvez invocasse os “desígnios de Deus”. Um consequencialista ponderaria que, já que a tragédia é inevitável, deveríamos optar pela solução menos danosa, poupando-se o maior número de vidas. Diria que a omissão é irresponsável.

Como lembra o filósofo Jean-Paul SARTRE, “a escolha é possível, em certo sentido, porém, o que não é possível é não escolher. Eu posso sempre escolher, mas devo estar ciente de que, se não escolher, assim mesmo estarei escolhendo. Contudo, viver é isso: ficar se equilibrando, o tempo todo, entre escolhas e consequências.” .

 

O Dilema do Bonde é um modelo recorrente na Filosofia do Direito e pode ser traduzido para outras situações mais tangíveis, como a de um paciente com morte cerebral, mas que ainda não teve o óbito formalizado, a despeito de seu quadro irreversível. Seus órgãos podem salvar cinco pessoas que irão morrer se não receberem o transplante imediatamente. Se não conseguir falar com algum familiar para obter o consentimento expresso, o que o médico deveria fazer? Aguardar ou Transplantar? Stuart MILL, em sua lógica utilitarista, diria para fazer o transplante o mais rápido possível e salvar o maior número de pacientes. Imannuel KANT, com seu idealismo transcendental, responderia que a coisa certa fazer é esperar a autorização dos responsáveis e que não podemos relativizar as regras  imperativas, por melhores que sejam as nossas intenções.

É claro que, do ponto de vista estritamente legal, o médico não poderia fazer o transplante sem autorização prévia do paciente ou de seu responsável. A questão proposta é outra: na perspectiva exclusivamente moral, qual seria a medida mais correta: transplantar os órgãos e salvar as 5 pessoas ou aguardar, ainda que isso implique em deixá-las morrer? Por outro lado, salvar essas vidas agora, sem autorização da família do doador, poderia inibir outras doações  no futuro? Como se vê, toda resposta tem um custo elevado, sem maniqueísmos.

Percebe-se, portanto, que a ideia de Justiça requer EQUILÍBRIO AXIOLÓGICO, na medida em que se, de um lado, não podemos abrir mão dos princípios que estruturam nosso sistema moral, por outro, também não podemos ignorar as consequências. Dogmas x resultados. Eis nosso desafio: encontrar a harmonia   entre o ser e o dever ser.

Nos Estados Unidos, Richard Posner, professor da Universidade de Chicago e de Stanford, um dos precursores do movimento “Law and Economics” (Análise Econômica do Direito), também defende essa abordagem consequencialista por meio do PRAGMATISMO JURÍDICO, sugerindo que “as decisões judiciais devem levar em conta suas consequências na realidade social, postura decisória que, de um lado, repudia a tomada de decisões ad hoc e livre das amarras legais, máxime porque geraria instabilidade e insegurança jurídica aos jurisdicionados, mas, por outro, exige atenção e ponderação das cognominadas consequências sistêmicas das soluções alvitradas” (POSNER, Richard – Law, Pragmatism and Democracy, Cambridge: Harvard University Press, 2003, p.59-60).

Diversos acórdãos do Tribunal Superior Eleitoral (por exemplo, no REspe nº 85911, publicado em 24.11.2015, rel. Min. Luiz Fux.) e do Supremo Tribunal Federal (vide RE 574706- PR, que tratava da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/COFINS) já evocaram o conceito de “pragmatismo jurídico”, ponderando os efeitos da decisão judicial.

Extrai-se daí que o juiz também tem o dever de fazer um CONTROLE DE CONSEQUENCIALIDADE, ou, em termos mais técnicos, uma análise SINÉPICA, na definição do jurista e antropólogo legal alemão Wolfgang Fikentscher, professor da Escola de Direito da Universidade de Munique. Vejamos o conceito doutrinário:

 

Synepeik” ou SINÉPICA é a parte da ciência do direito que propõe o reconhecimento e o estudo da “ponderação das consequências”, operação que habilita ao intérprete-aplicador a pensar através da conformação de resultados, isto é, das consequências que sua decisão possa produzir, concretamente, extra autos, no mundo real, inclusive os seus efeitos indiretos não almejados “.

De acordo com o magistério de Wolfgang Fikentscher,  a palavra SINÉPICA  “é derivada do grego SYNÉPEIA = consequência lógica, coerência. O método proposto poderia assim também ser denominado de consequencialismo ou coerencialismo” . A ideia assemelha-se ao conceito de adequação da proporcionalidade, ou seja, cuida-se de saber se determinado meio pode contribuir para a obtenção do resultado pretendido. (“A ideia de proporcionalidade no direito: uma análise sinepeica” – Odim Brandão Ferreira, UNB).

O Professor MENEZES CORDEIRO observa que a ponderação das consequências da decisão constitui um fator relevante de realização do direito, chamando a atenção para “as regras da “interpretação sinépica, que, habilitando o intérprete-aplicador a pensar através de consequências, permite, pelo conhecimento e ponderação dos efeitos das decisões, combater os estereótipos conceituais, de modo a garantir a concretude da Justiça”

 

2.2. – A BASE  JURISPRUDENCIAL  DO  CONSEQUENCIALISMO

A interpretação sinépica transcende a literalidade da lei para ponderar sobre as consequências práticas que a aplicação de uma norma produzirá na vida das pessoas, analisando tanto o impacto sobre as partes do processo quanto a repercussão em toda a sociedade. Toda decisão judicial tem um efeito que vai muito além do julgamento do caso concreto, de modo que o magistrado deve estar aos efeitos extraprocessuais.

Em PORTUGAL, o método hermenêutico da “interpretação sinépica” (como ficou conhecido o consequencialismo na terra de Camões), vem sendo, há muito, utilizado pelos Tribunais Lusitanos, como, por exemplo, no Acórdão 0623005 do Tribunal da Relação do Porto e no Acórdão n.º236/2000 do Tribunal Constitucional Português, sendo, por vezes, focado na constatação de efeitos práticos já ocorridos e, em outras ocasiões, baseado apenas na prognose de resultados futuros previsíveis a partir de uma dedução racional. É a analise dedutiva das consequências mais prováveis.

Na ALEMANHA, o Tribunal Constitucional Federal (“Bundesverfassungsgericht“) recorre com frequência à hermenêutica consequencialista, como, por exemplo, no julgamento do chamado “Kassenzahnarzt-Urteil“, no qual se discutiu a legitimidade de norma que estabelecia um processo de admissão, com numerus clausus, para os dentistas das caixas de assistência, o que equivaleria, praticamente, a uma proibição de exercício profissional para os dentistas que ficavam de fora do sistema. Com esse fundamento, entendeu a Corte que a restrição era incompatível com o princípio da liberdade de exercício profissional. Prevaleceu, então, a inferência de que a aferição das consequências de uma norma jurídica pelo Poder Judiciário é um CONTROLE DE RESULTADO (Ergebniskontrolle) e não um controle do processo (Verfahrenskontrolle), permitindo que as decisões judiciais sejam racionalmente mais fundamentadas que as do legislador (Gilmar Ferreira Mendes, em “Controle de Constitucionalidade” – páginas 8/11).

Em outra decisão muito conhecida do Tribunal Constitucional Federal Alemão, proferida em 18 de julho de 1972, no famoso caso BVerfGE 33, 303, foi discutido o direito de acesso ao ensino superior e a limitação do número de vagas nas universidades públicas alemãs. Alguns estudantes que não foram admitidos em universidades de medicina de Hamburgo e Munique em razão da política de limitação de vagas em cursos superiores, ingressaram com ações judiciais, invocando o art. 12 da Lei Fundamental Alemã, segundo o qual “todos os alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de formação”. Reconheceu a Corte Alemã que o direito de escolha de profissão (art. 12), associado aos princípios da igualdade (art. 3º) e do Estado Social (art. 20), conduz inegavelmente ao direito de acesso às instituições de ensino

Entretanto, não obstante o reconhecimento da existência do direito de acesso ao ensino superior, decidiu o Tribunal que “a pretensão dos estudantes não se mostrava razoável perante a sociedade”. Construindo a teoria da reserva do possível, o Tribunal Alemão firmou o entendimento de que o cidadão só poderia exigir do Estado e, por consequência, da sociedade, aquilo que razoavelmente se pudesse esperar, tendo em vista que os recursos públicos, financiados pelos contribuintes, sempre serão escassos e insuficientes para cobrir todas as despesas e atendar a todos os interesses dos particulares.

No BRASIL, essa ponderação sobre as consequências já foi levada em conta pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) ao editar a Súmula no 363, que reconheceu o direito à contraprestação pactuada em relação ao número de horas trabalhadas e ao FGTS, a despeito de o  art. 37, inciso II, da Carta Magna indicar, de forma inequívoca, que é nulo o contrato de trabalho do servidor que não se submeteu a concurso público.

 

Raciocínio semelhante foi usado pelo Supremo Tribunal Federal  ao estimular os poupadores  a aderirem ao acordo com os bancos na ADPF 165, sobre Planos Econômicos, bem como a fazer a modulação no julgamento das ADI’s 3.237 e  3.649  (contratações temporárias nos estados da Federação) e  do RE 631.240  (condições da ação e acesso à justiça para a concessão de benefício previdenciário), levando em conta tanto as consequências econômicas quanto os efeitos  político-sociais.

 

Aliás, na ementa do acórdão prolatado na ADI  3.649, o Supremo Tribunal Federal, transcendendo à literalidade da própria Constituição,  fez uma “ponderação das consequências” para estabelecer uma modulação a fim  de evitar a descontinuidade de serviços públicos essenciais no Estado do Rio de Janeiro, a despeito de declarar inconstitucional a lei fluminense que, violando a regra do concurso público, autorizou contratações temporárias fora das hipóteses previstas no art.37, inciso IX, da CF:

 

“ EMENTA DA  ADI 3.649 (…)  8) A hermenêutica consequencialista indicia que a eventual declaração de inconstitucionalidade da lei fluminense com efeitos ex tunc faria exsurgir um vácuo jurídico no ordenamento estadual, inviabilizando, ainda que temporariamente, a manutenção de qualquer tipo de contratação temporária, o que carrearia um periculum in mora inverso daquele que leis como essa, preventivas, destinadas às tragédias abruptas da natureza e às epidemias procuram minimizar, violando o princípio da proporcionalidade – razoabilidade. 9) Ex positis, e ressalvada a posição do relator, julgou-se procedente a ação declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Estadual do Rio de Janeiro nº 4.599, de 27 de setembro de 2005. 10) Reconhecida a necessidade de modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade para preservar os contratos celebrados até a data desta sessão (28/05/2014), improrrogáveis após 12 (doze) meses a partir do termo a quo acima.” (g.n.)

 

Em outras palavras, no julgamento da  ADI 3.649, mesmo declarando a lei estadual inconstitucional, o Supremo Tribunal Federal fixou um prazo razoável para a transição, levando em conta a “hermenêutica consequencialista” ao ponderar sobre os efeitos que a dispensa abrupta dos contratados teria sobre o serviço público e sobre a população do Estado do Rio. Veja-se que não havia nenhum outro fundamento jurídico, a não ser a ponderação das consequências (o impacto sobre a sociedade),  para se fixar um prazo de transição e modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

 

Recentemente, tivemos, no Brasil, outro exemplo prático da hermenêutica consequencialista (ou interpretação sinépica) no âmbito do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento que afastou a possibilidade da DESAPOSENTAÇÃO ou REAPOSENTAÇÃO (RE.636553, 827.833, 381.367 e 661.256).

O raciocínio que acabou prevalecendo foi um caso típico de pragmatismo jurídico, inspirado na “Análise Econômica do Direito” de Posner. Ao decidir que os aposentados não podem se “reaposentar” ou seja, renunciar à sua aposentadoria e trocar por outra mais vantajosa, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu com olhos voltados para o equilíbrio financeiro das contas públicas, particularmente as da Previdência Social. Tanto que, ao proferir seu voto, o ministro LUIZ FUX mencionou, de forma aberta e explícita, que seu principal argumento era que “a nossa Previdência Social não poderia estar mais falida do que está e não comporta esses institutos, nem da reaposentação, nem da desaposentação. Hoje, o cenário jurídico gravita em torno do binômio direito e economia”.

Em seguida, emendou: “estamos vivendo crise tão expressiva que nós, magistrados, temos que antever os resultados de nossas decisões.” No dia seguinte, ao discursar em um congresso sobre segurança jurídica no INSPER, o Ministro Luiz FUX reconheceu que “foram os influxos da economia que levaram o Supremo Tribunal Federal a vetar essa possibilidade diante do que hoje a economia exige do magistrado uma postura pragmático-consequencialista”. Enfim, a própria jurisprudência do STF ressalta que devemos levar em conta as CONSEQUÊNCIAS práticas das decisões proferidas pelo Judiciário, mesmo quando outros fundamentos teóricos sinalizam em sentido contrário.

Extrai-se desse entendimento da Suprema Corte, no julgamento dos RE.636553, 827.833, 381.367 e 661.256, que, além de analisar os critérios jurídicos e dogmáticos, o juiz também deve ponderar as consequências socioeconômicas das suas decisões.

 

3 – DA PROPOSTA DE TESTE DE CONSEQUENCIALIDADE

Em síntese, para sistematizar o raciocínio aqui desenvolvido, defendemos que, sempre que for interpretar uma lei, o juiz deve ponderar se as consequências de sua aplicação literal serão adequadas, razoáveis e proporcionais diante do bem jurídico que se pretende tutelar. Para tanto, propomos que o intérprete deve refletir sobre  05 (cinco) singelas perguntas, elencadas no seguinte TESTE DE CONSEQUENCIALIDADE:

 

1) As consequências da aplicação literal da lei violarão algum direito existencial, princípio fundamental ou garantia constitucional?

2) As consequências da aplicação literal da lei produzirão um resultado contrário ao interesse público e ao bem-estar social?

3) As consequências da aplicação literal da lei respeitarão o pressuposto da boa-fé?

4) As consequências da aplicação literal da lei atenderão à finalidade original para a qual a norma foi criada pelo legislador?

5) As consequências  da aplicação literal da lei são passíveis de efetivo cumprimento, ou seja, é possível, na prática,  cumprir a decisão judicial?

 

Para ilustrar o teste acima proposto sugerimos uma reflexão sobre um caso real apreciado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (apelação 1004359-64.2015.8.26.0320, Relatora: Maria Laura Tavares,  13/07/2016 ).  A concessionária resolveu suspender o fornecimento de energia elétrica para uma residência em virtude da falta de pagamento, invocando o artigo 6o, §3o, inciso II, da Lei 8.987/1995. Houve notificação prévia e prevalece o entendimento de que esse preceito é constitucional. Os Tribunais, em sua maioria, não aplicam os artigos 22 e 42 do CDC sob o fundamento de que a Lei 8.987/95 é especial e posterior, além de argumentarem que a continuidade do serviço  pressupõe o pagamento pelo consumidor, sob pena de prejudicar  todos  os demais usuários.

Significa dizer que, em tese, o corte de energia por falta de pagamento seria possível, nos exatos termos do artigo 6o, §3o, inciso II, da Lei 8.987/95, sobretudo em se tratando de uma residência (e não de um hospital). No caso concreto, havia,  porém, uma circunstância extraordinária: na casa, morava um paciente com paralisia cerebral, que necessitava da energia elétrica para manter  ligado um respirador artificial. Ele dependia do equipamento médico para sobreviver e sua família não tinha dinheiro para pagar a conta. Esse paciente estava em “home care” (tratamento domiciliar) em virtude do seu quadro ser permanente e irreversível. Diante desse cenário, seria razoável aplicar a lei 8.987/95 de forma literal, desconsiderando as trágicas consequências que adviriam?

Parece evidente que NÃO. Seguindo o itinerário proposto no teste de consequencialidade, é fácil perceber, já na resposta à primeira pergunta, que a aplicação literal da Lei 8.987 (Lei das Concessões) violaria o direito existencial à vida, desrespeitaria o princípio da dignidade da pessoa humana e desprezaria a garantia de acesso à saúde (artigo 196/CF).

 

CONCLUSÃO

Retornando ao caso do acordo entabulado pela associação filantrópica,  narrado na introdução deste artigo, é fácil perceber que a aplicação literal do artigo.831, parágrafo único, da CLT também seria contrária ao interesse público, desprezaria a boa-fé dos convenentes e produziria um resultado oposto à finalidade original da norma, sem contar o elevado risco de a decisão judicial se tornar inexequível pela insolvência da devedora.

Por conseguinte, não resta a menor dúvida de que manter os termos originais do acordo diante do cenário extraordinário e imprevisível decorrente da pandemia de coronavírus seria a solução que produziria as consequências mais nefastas para todos os litigantes, prejudicando não apenas a reclamada, mas também o reclamante e as pessoas que se beneficiam dos serviços prestados pela Instituição.

De  tudo quanto exposto se extrai a conclusão de que a melhor solução para resolver o impasse é autorizar o reparcelamento da dívida, excluindo a incidência da cláusula penal pelo atraso no pagamento, sem contudo, alterar o montante do valor pactuado.

Esse raciocínio não significa que a revisão do contrato ou do termo de um acordo deva ser autorizada quando não houver circunstâncias excepcionais imprevisíveis ou quando o devedor não comprovar a alegada carência de recursos para honrar o combinado. Não se trata de ignorar o passado (os princípios) nem de desconsiderar o futuro (consequências), mas sim de buscar um ponto de equilíbrio que nos permita renovar as folhas sempre que a ventania derrubá-las sem, contudo,  abrir mão das raízes que nos sustentam.  Como diz a música do inigualável poeta Paulinho da Viola:  “ Meu pai sempre me dizia: meu filho, tome cuidado. Quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado”.

 

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AUTOR: RENATO DA FONSECA JANON (Juiz Titular da 1a. VT de Lençois Paulista).

 

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