Resumo: Esse trabalho é direcionado ao estudo da perda superveniente do objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIn, quando a norma impugnada é revogada pelo Poder que a editou, ou quando a mesma deixa de ter validade em decorrência de sua natureza temporária, pois o Supremo Tribunal Federal entende pela extinção da ação abstrata sem julgamento do mérito. Em uma análise crítica sobre o tema, chega-se facilmente a conclusão de que esse posicionamento jurisprudencial acarreta em vários problemas de ordem prática, tais como a continuidade dos efeitos concretos já produzidos pela norma inconstitucional revogada, bem como a possibilidade de repristinação da norma revogada quando a norma que a sucedeu for objeto de nova ADIn, com decisão concessiva de cautelar, devendo-se buscar, primeiramente, a continuidade da ação, com o intuito de combater seus efeitos concretos ou, não logrando êxito essa tese, utilizar outra ação abstrata em substituição da ADIn, ou seja, a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
Palavras-chave: Ação Direta de Inconstitucionalidade – revogação da norma – perda do objeto – continuidade da ação – Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
Résumé: Ce travail étudie la perte survenante de l’objet de l’action directe d’inconstitutionnalité – ADI, quand la norme réfutée est révoquée par le Pouvoir que l’a éditée, ou quand sa validité cesse à cause de sa condition temporaire, donc le Suprême Tribunal Fédéral défend l’extinction de l’action abstraite, sans jugement du mérite.. En faisant une analyse critique du sujet, on arrive facilement à la conclusion que ce positionnement juridique donne quelques problèmes d’ordre pratique, como la continuité de l’effet concret déjà produit par la norme inconstitutionnelle retirée, aussi bien que la possibilité du retour de la norme retirée quand la norme qui l’a substitué sera objet de une nouvelle ADI, raison pour laquelle on doit chercher, premièrement, la continuité de l’action, avec l’intention de combattre ses effets concrets ou, si cette thèse n’ait pas succès, d’employer une autre action abstraite pour substitutuer l’ADI, c’est-à-dire, la Action de Défense de Règle Fondamentale.
Mots-clés: L’Action Directe d’Inconstitutionnalité – révocation de la norme – perte de l’objet – continuité de l’action – Action de Défense de Règle Fondamentale.
Sumário:. Introdução. 1. Breve estudo sobre o objeto da ação direta de inconstitucionalidade e o interesse de agir 1.1 o objeto da ação direta de inconstitucionalidade. 1.2. As condições da ação no sistema processual brasileiro. 1.1.2. Enfoque sobre a ausência de interesse de agir. 2. A extinção sem julgamento do mérito da ação direta de inconstitucionalidade em virtude da perda superveniente do seu objeto. 2.1. A possibilidade de repristinação da norma revogada. 2.2. A Ação Direta de Inscontitucionalidade nº. 1.244/SP e a possibilidade de mudança jurisprudencial 2.3. As medidas provisórias e a perda superveniente do objeto da ação direta de insconstitucionalidade. 3. O combate aos efeitos concretos produzidos pela norma revogada. 3.1. A arguição de descumprimento de preceito fundamental. 3.2. A possibilidade de conversão da ação direta de inconstitucionalidade em arguição de descumprimento de preceito fundamental. 3.3. A problemática do julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental sem declaração de nulidade. Conclusão. Obras consultadas. Referência jurisprudencial.
INTRODUÇÃO
O pensamento jurídico brasileiro, que se revela na busca frenética por meios de facilitar a dinâmica processual, pretende acelerar o processo de administração da Justiça, seja importando técnicas já consagradas em outros países, seja utilizando mecanismos nitidamente nacionais – alguns verdadeiramente econômicos, outros, nem tanto. E essa busca pelo resultado, pela prestação jurisdicional efetiva, pela solução tão mais rápida quanto possível dos conflitos, desviou a atenção das mentes jurídicas para assuntos já então tidos por inquestionáveis ou meramente teóricos.
Desde o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIn nº. 709, da relatoria do Ministro Paulo Brossard, em 20 de maio de 1992, o Supremo Tribunal Federal vem entendendo que a posterior revogação da norma objeto da ação direta acarreta na extinção do processo sem julgamento do mérito, por ausência de interesse de agir, independentemente da produção de efeitos concretos (inconstitucionais), argumentando que os interessados em combater esses efeitos devem recorrer às vias ordinárias.
Sem dúvida, essa mudança jurisprudencial foi motivada pelo excesso de ações na Corte Suprema, contudo, essa atitude produz conseqüências nefastas e não justificáveis, tais como a perpetuação dos efeitos de norma visivelmente inconstitucional, ou mesmo a possibilidade de retorno da norma, por meio do instituto da repristinação, quando o ato normativo que a revogou for objeto de uma nova ADIn, onde for deferida medida cautelar.
Esse trabalho, através de um estudo jurisprudencial, tem o intuito de repensar a tendência das Cortes brasileiras sobre o tema, mormente a do Supremo Tribunal Federal, apontando as novas tendências, e defendendo a continuidade da Ação Direta de Inconstitucionalidade, ou, não sendo possível que essa mudança se opere nos julgados pátrios, que a ADIn possa ser habilmente substituída pela Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, de modo que os efeitos inconstitucionais já produzidos possam ser guerreados com uma ação típica do controle concentrado.
1. BREVE ESTUDO SOBRE O OBJETO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE E O INTERESSE DE AGIR.
1.1 O OBJETO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
O controle de constitucionalidade das leis figura necessário diante do sistema de constituições rígidas, pois este faz resultar a supremacia da Constituição sobre as demais normas (dado que estas são produtos do poder constituído, enquanto aquela é a obra do poder constituinte).
José Afonso da Silva[1] afirma que:
“A constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, a que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos: é vela que se acham as normas fundamentais do Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas.”
De fato, não se pode contestar a supremacia da Constituição sobre as demais normas de direito, estabelecendo-se uma hierarquia de normas, onde a lei constitucional desponta no ápice da pirâmide normativa, daí ser a Constituição chamada Lei Maior, Lei Magna.
As leis infraconstitucionais produzidas pelo Poder Legislativo não podem contrariar a Constituição, sob pena de serem consideradas inválidas e inconsistentes perante a ordem jurídica estabelecida.
O controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, objeto de reflexão, pode se dá tanto pela via de exceção, nos casos concretos, como pela via da ação direta. Na via de exceção, o controle é feito no curso de uma demanda judicial, quando uma das partes alega, como matéria de defesa, a inconstitucionalidade da lei que se lhe quer aplicar. No caso, a parte invoca como questão incidental, para não cumprir a obrigação que lhe está sendo demandada ou para exigir que seja resguardado o direito do qual se julga possuidor, a contrariedade da lei frente ao texto constitucional. Nesse tipo de controle, qualquer juiz, entendendo procedente a alegação, deixará de aplicar a lei (norma ou ato impugnado) ao caso concreto.
Já no chamado controle por via de ação, o que se visa é a norma in abstrato. Trata-se de controle exercido através de ação direta. Por esse meio, como afirma Michel Temer[2], “objetiva-se obter a invalidação da lei, em tese”.
São várias as espécies de controle concentrado contempladas pela Constituição Federal:
a) ação direta de inconstitucionalidade genérica (art. 102, I, “a”);
b) ação direta de inconstitucionalidade interventiva (art. 36, III);
c) ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º);
d) ação declaratória de constitucionalidade (art.102,I, “a”, in fine; EC 03/93); e
e) argüição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, §1º).
Assim, na esfera da ação direta de inconstitucionalidade – ADIn, tema do presente trabalho, não existe caso concreto a ser solucionado, o que se busca é a retirada do sistema jurídico do ato normativo que contrarie o texto constitucional, não se levando em conta interesses pessoais ou materiais de possíveis litigantes.
A ADIn surge no Brasil em 1965, com a Emenda nº. 16 à Constituição de 1946. Até então, tínhamos somente o controle difuso, que esteve presente desde a primeira Constituição da República, de 1891, cujo artífice maior foi Rui Barbosa.
A Constituição Federal de 1988 avançou significativamente em matéria de controle da constitucionalidade das leis. Começou por ampliar o número de legitimados para ingressar com ação direta de inconstitucionalidade, retirando do Procurador-Geral da República a titularidade exclusiva[3] da representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato normativo.
A utilização do controle abstrato se restringe às normas, revestidas de caráter de abstração, generalidade e normatividade. Atos normativos de efeito concreto estão excluídos do controle abstrato.
Em razão da amplitude do sistema normativo, cabe mencionar as principais normas sujeitas ao controle em tela:
Inicialmente, o tratado internacional depende da aprovação pelo Congresso Nacional que, em momento posterior, através de Decreto Legislativo, autoriza o Presidente da República a promulgá-lo. Feito isto, é regularmente incorporado ao direito pátrio, assumindo a mesma hierarquia das leis ordinárias federais. Também é admitida Ação Direta de Inconstitucionalidade para aferir a constitucionalidade do Decreto Legislativo.
As Emendas Constitucionais também estão sujeitas ao controle de constitucionalidade. Isso porque a Constituição pode ser emendada, porém, devem ser atendidas as exigências estabelecidas em seu artigo 60, sob pena de manifesta inconstitucionalidade.
O direito federal, evidentemente, não pode ser invocado como parâmetro do controle abstrato de normas. O único caso que o direito federal poderá ser apontado para aferir a inconstitucionalidade de norma estadual será quando o Estado-Membro, embora haja lei federal sobre a matéria prevista no artigo 24, incisos I a XVI, utilizar a competência plena que lhe é assegurada em caso de “vácuo legislativo.” Nesse caso a inconstitucionalidade será constatada em função da existência da lei federal que, assim, obsta o exercício da competência plena deferida aos Estados Federativos. Portanto, a inconstitucionalidade verificar-se-á pela ofensa ao artigo 24, §3° da CF/88, havendo, em verdade, verdadeira invasão de competência. Jamais pela contrariedade à Lei Federal.
O Supremo Tribunal Federal não admite o exame da constitucionalidade dos atos regulamentares editados para execução das leis, o que se afigura correto, uma vez que a colisão entre leis e regulamentos é questão de ilegalidade, consistindo em inconstitucionalidade indireta ou reflexa.
A doutrina não é pacífica quanto esse entendimento e tem críticas a essa postura. É que, com efeito, o regulamento pode ofender a Constituição, mormente na hipótese de edição de normativa autônoma, que também pode ocorrer quando o exercente da atribuição regulamentar atue inobservando os princípios da reserva legal, da supremacia da lei e, mesmo, o da separação dos poderes.
Os que fazem essa critica, postulam a criação de mecanismo objetivo de fiscalização dessa legitimidade certos que a inexistência de um sistema de controle judicial que permita a aferição da legitimidade da atividade regulamentar pode levar a uma desvalorização dos postulados da supremacia da Constituição, da própria supremacia da lei e da reserva legal.
A Corte Suprema tem decidido que o processo de controle de constitucionalidade “in abstrato” de normas destina-se, fundamentalmente, à aferição da constitucionalidade de normas pós-constitucionais. Na Suprema Corte o conflito estabelecido entre a norma ordinária pré-constitucional e a norma pós-constitucional é resolvido através do direito intertemporal (lex posterior derogat priori).
Assim sendo, não é admitida ação direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato normativo anterior à Constituição vigente, por tratar-se de hipótese de não recepção.
A lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal são considerados, em regra, e independente de qualquer outro ato, nulos ipso jure e ex tunc. A decisão em sede de controle abstrato produz coisa julgada material e formal, com efeitos erga omnes – para além das partes. A decisão no controle concentrado como no difuso é declaratória, isto é, apenas constata ou declara um estado de inconstitucionalidade preexistente.
Enfim, quanto à norma revogada, objeto do presente estudo, se a mesma for revogada anteriormente à propositura da ação direta de inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal já firmou entendimento sobre a impossibilidade manifesta de ser apreciada, no juízo abstrato, a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei revogada. Isso se dá em razão da ação direta ficar sem objeto.
Se, todavia, entre a propositura da ação e a decisão proferida em sede de controle abstrato, houver a revogação da norma jurídica impugnada, há quem defenda, como a seguir exposto, que tal revogação não deveria afetar a pronúncia de inconstitucionalidade, uma vez que esta lei possivelmente teve repercussão concreta enquanto esteve vigente. Esse, infelizmente, não é o entendimento majoritário de nossa Corte Constitucional.
Assim, pode-se dizer que seria cabível ação direta de inconstitucionalidade para declarar a desconformidade com a Carta Magna de lei ou ato normativo federal, estadual ou distrital (este último desde que produzido no exercício de competência equivalente à dos Estados-membros), editados posteriormente à promulgação da Constituição Federal, e que ainda estejam em vigor[4].
1.2 AS CONDIÇÕES DA AÇÃO NO SISTEMA PROCESSUAL BRASILEIRO.
A teoria de Liebman foi, sem dúvida, a que mais influenciou a doutrina processual brasileira. Em verdade, foi a vinda do ilustre professor para o Brasil, na década de 40, que fez com que a ciência processual pátria se desenvolvesse.
Portanto, é fácil deduzir que o pensamento processual brasileiro, quando da sua formação, calcou-se nas idéias de Liebman. Alfredo Buzaid, seu discípulo, ao elaborar o Código de Processo Civil de 1973 revelou enorme influência do Mestre, pois o Código de Processo Civil adotou inteiramente a sua teoria, dispondo em seu art. 267, inciso VI, que o processo se extingue sem o julgamento do mérito quando não ocorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual.
O CPC brasileiro adotou, portanto, a concepção eclética sobre o direito de ação, segundo a qual o direito de ação é o direito ao julgamento do mérito da causa, julgamento esse que fica condicionado ao preenchimento de determinadas condições, aferíveis à luz da relação jurídica material deduzida em juízo.
São três as categorias fundamentais relacionadas ao objeto de cognição do juiz (trinômio de questões), para o nosso ordenamento jurídico: os pressupostos processuais, as condições da ação e o mérito.
Diante do positivado, a maioria dos doutrinadores pátrios endossa a teoria de Liebman, também denominada por alguns de teoria do trinômio (pressupostos processuais/condições da ação e mérito).
Em decorrência do positivado, muitos doutrinadores entendem como fadado ao fracasso qualquer entendimento diverso. Nesse sentido em aguda observação ao inciso VI, do art. 267, prelecionou E. D. Moniz de Aragão[5] aos seguintes termos:
“Esse preceito implica na evidente adesão do legislador brasileiro à teoria da ação que a considera um direito abstrato de agir, subordinando-a, porém, ao tempero que lhe adicionou Liebman em diversos estudos a que Alfredo Buzaid Prestou declarada adesão, em sua monografia sobre o agravo de petição, distinguindo em três círculos concêntricos os pressupostos processuais, as condições da ação e o mérito da causa. (….)
O Código, porém, está firmemente orientado no sentido da teoria da ação que abstrai do julgamento final da lide, de modo a não ser possível interpretá-lo à luz de conceitos e ensinamentos que não assentem nas mesmas premissas, mas em outras correntes de opinião (como a de Chiovenda, por exemplo).”
Dessa feita, pelo entendimento do autor, toda construção diversa do positivado é inaplicável e imprestável à compreensão legal do inciso supracitado, sendo essa observação necessária e inarredável para juízes e intérpretes desavisados.
Para a classe jurídica como um todo, não se pode querer analisar a lei com base em lições de quem está situado em posição antagônica à do legislador. Assim, desde que o Código firmou uma posição, cumpriria ao intérprete aplicá-lo, mesmo que possa discordar da teoria que a lei seguiu.
Ao jurista, no entanto, o campo de especulação é mais extenso. Cabe-lhe apontar, entre outras coisas, os manifestos equívocos legislativos no trato de matéria, interpretando a norma não apenas de acordo com seu código genético, mas em confronto com todo sistema, de forma a dar-lhe o mínimo de coerência e aplicabilidade.
1.2.1 Enfoque sobre a ausência de interesse de agir.
Liebman conceitua interesse de agir como “a relação de utilidade entre a afirmada lesão de um direito e o provimento de tutela jurisdicional pedido” (in Manual de Direito Processual Civil, p.155-156).
Entende ainda o autor que[6]:
“O interesse de agir é representado pela relação entre a situação antijurídica e denunciada e o provimento que se pede para debelá-la mediante a aplicação do direito; deve essa relação consistir na utilidade do provimento, como meio para proporcionar ao interesse lesado a proteção concedida pelo direito”.
Para que haja interesse é preciso que a tutela jurisdicional seja necessária para o autor, ou seja, que ele não possa conseguir o bem da vida sem a tutela requisitada (interesse-utilidade).
Já a existência do interesse-adequação, ao contrário do interesse-utilidade, entretanto, não é reconhecida por todos os processualistas.
Para Cândido Dinamarco[7]:
“Interesse-adequação liga-se à existência de múltiplas espécies de provimentos instituídos pela legislação do país, cada um deles integrando uma técnica e sendo destinado à solução de certas situações da vida indicadas pelo legislador. Em princípio, não é franqueada ao demandante a escolha do provimento e, portanto, da espécie de tutela a receber. Ainda quando a interferência do Estado-juiz seja necessária sob pena de impossibilidade de obter o bem devido (interesse-necessidade), faltar-lhe-á o interesse de agir quando pedir medida jurisdicional que não seja adequada segundo a lei.”
A idéia de interesse está ligada à proibição da autotutela. O interesse do indivíduo em procurar o Estado só surge quando o direito substancial não é mais capaz de eliminar por si a crise existente.
A atuação do Poder Judiciário é necessária a partir do momento em que a prestação se torna exigível e o sujeito passivo se recusa a adimpli-la (interesse-necessidade), pois, uma vez vedada a autotutela, o indivíduo terá interesse em buscar nos órgãos jurisdicionais a satisfação da sua pretensão.
Difere o interesse primário ou substancial, que tem por objeto a própria prestação de direito material do interesse secundário ou processual, que busca um provimento jurisdicional que possibilite a consecução daquela prestação ou seu equivalente, uma vez que, por alguma razão, o autor não a alcançou e o ordenamento jurídico veda a autotutela.
Alguns doutrinadores consideram o interesse de agir como a única condição da ação. Tanto a legitimidade para agir[8] quanto a possibilidade jurídica do pedido[9] seriam aspectos do exame do interesse processual[10]. Essa postura, contudo, não é conveniente.
As três condições da ação, se bem examinadas, referem-se a cada um dos três elementos da ação (demanda): legitimidade ad causam (partes); possibilidade jurídica do pedido (pedido); interesse de agir (causa de pedir).
Utilidade e necessidade da tutela jurisdicional não podem ser examinadas em tese, independentemente das circunstâncias do caso concreto.
Obviamente, não se quer dizer que sempre haverá interesse de agir em razão do direito fundamental de acesso ao Judiciário. É possível que essa condição da ação não se apresente em certas postulações, feitas sem a prévia provocação extrajudicial do adversário. Caberá ao demandante expor a razão pela qual não pôde esperar a decisão administrativa demonstrando a utilidade e a necessidade da intervenção judicial.
O interesse de agir poderia perfeitamente se dividir em duas ordens de interesse: o “interesse processual” e o “interesse substancial”.
Enquanto a falta de interesse processual leva ao juízo de inadmissibilidade, revelando-se nada mais do que um pressuposto processual, a falta de interesse substancial leva ao juízo de improcedência.
Para Fredie Didier Júnior[11], é por isso que se afirma, com razão, que há falta de interesse processual quando não mais for possível a obtenção daquele resultado almejado – fala-se em “perda do objeto” da causa. É o que acontece, por exemplo, quando o cumprimento da obrigação se deu antes da citação do réu – se o adimplemento se deu após a citação, o caso não seria de perda do objeto (falta de interesse), mas de reconhecimento da procedência do pedido (art. 269, II, do CPC-73).
Já em relação à adequação do provimento (do pedido) ao fim almejado, é possível vislumbrar quatro hipóteses que a justifiquem:
“a) A de impossibilidade jurídica do pedido;
b) As em que o próprio sistema admite a fungibilidade (arts. 805 e 920 do CPC, por exemplo), como de resto deveria ser a regra;
c) A de erro de nome, corrigível pelo próprio magistrado;
d) Ou, não sendo possível a correção pelo magistrado, deverá ele determinar a alteração do pedido, conforme, aliás, autoriza o art. 264 do CPC”[12].
A situação é semelhante em relação à escolha do procedimento adequado.
O procedimento é a espinha dorsal da relação jurídica processual. O processo, em seu aspecto formal, é procedimento. O exame do procedimento concerne, pois, aos requisitos processuais objetivos intrínsecos de validade[13]. Nada diz respeito ao exercício do direito de ação.
O presente trabalho monográfico, contudo, não ousa se aprofundar sobre a natureza jurídica das condições da ação, ou seja, se elas seriam questões de mérito ou não. O que aqui se pretende é bem mais simples, sendo suficiente conceituar o interesse de agir como ele é hoje aceito pela jurisprudência e doutrina pátria dominante, pois é esse conceito que irá influenciar nos julgamentos das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, cujo objeto foi revogado após o ajuizamento da ação abstrata.
Com efeito, ignorando as discussões teóricas acima expostas, o interesse de agir constituiria, como atualmente previsto, a par da legitimatio ad causam e da possibilidade jurídica do pedido, uma das condições genéricas da ação, cujo atendimento, em conjunto com eventuais condições específicas, creditam ao respectivo titular direito ao exercício da ação.
Dispõe o art. 3º do CPC que “para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade”, entretanto, em linhas mais claras, o que vem a ser o interesse de agir, em um sentido jurídico-processual?
A noção mais assentada é a da necessidade do provimento jurisdicional, ou seja, há interesse se a intervenção do Poder Judiciário é indispensável para evitar-se um dano. Nas palavras de Chiovenda “o interesse de agir consiste em que, sem a intervenção dos órgãos jurisdicionais, o autor sofreria um dano” (apud BARBI, 1998, p. 25).
Humberto Theodoro Júnior[14], por sua vez, preceitua que:
“Localiza-se o interesse processual não apenas na utilidade, mas especificamente na necessidade do processo como remédio apto à aplicação do direito objetivo no caso concreto, pois a tutela jurisdicional não é jamais outorgada sem uma necessidade, como adverte Allorio. Essa necessidade se encontra naquela situação ‘que nos leva a procurar uma solução jurídica, sob pena de, se não fizermos, vermo-nos na contingência de não podermos ter satisfeita uma pretensão (o direito de que nos afirmamos titulares)’. Vale dizer: o processo jamais será utilizável como instrumento de consulta acadêmica. Só o dano ou o perigo de dano jurídico, representado pela efetiva existência de uma lide, é que autoriza o exercício de ação.”
Por outro lado, se é correto dizer que a parte só pode bater às portas do Poder Judiciário diante de “dano ou o perigo de dano jurídico, representado pela efetiva existência de uma lide”, não menos certo é que tal lide, a pretensão resistida — aí a necessidade da intervenção jurisdicional — pode deixar de existir no curso do processo. A tutela estatal, em princípio necessária, com o passar do tempo deixa de sê-lo e a ação perde seu objeto.
É o que ocorre com a Ação Direta de Inconstitucionalidade, que tem como objeto a invalidação da norma questionada. No entendimento de nossas Cortes, como será a seguir demonstrado, se o objeto da ação foi revogado, não há mais que se falar em invalidação da norma e, consequentemente, estaria caracterizada a ausência do interesse de agir em razão da perda superveniente de seu objeto.
2. A EXTINÇÃO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE EM VIRTUDE DA PERDA SUPERVENIENTE DO SEU OBJETO.
Como já estudado, uma das formas de extinção do processo sem julgamento do mérito, em decorrência da ausência do interesse de agir (condição da ação), é a perda superveniente de objeto.
A ação direta de inconstitucionalidade, por sua vez, tem por objeto a exclusão do ordenamento jurídico de uma determinada norma que esteja em descompasso com o sistema constitucional vigente, seja por vício formal em sua criação, seja por incompatibilidade material do conteúdo.
Não se confunde a ação em exame com a modalidade de controle difuso de constitucionalidade, em que a declaração incidental de inconstitucionalidade é um meio para a proteção de direito subjetivo do autor da demanda. No controle concentrado, limita-se o âmbito de discussão à constitucionalidade do ato normativo impugnado, independentemente do eventual dano concreto infligido.
É utilizando esse enfoque que se firmou a jurisprudência no sentido de que, revogado o ato impugnado por norma superveniente, falece o interesse jurídico da ação direta de inconstitucionalidade, afinal, expulso o ato do sistema jurídico por meio da revogação, não mais subsistiria uma norma a ser excluída.
Sob a égide da Constituição de 1967/69 entendia-se que, se a revogação ocorresse após a propositura da ação, era possível que o Tribunal procedesse à aferição da constitucionalidade da lei questionada, desde que a norma tivesse produzido algum efeito no passado. Caso contrário, proceder-se-ia à extinção do processo por falta de objeto[15]. Dessa forma, afastava-se a possibilidade do legislador prejudicar o exame da questão pelo Tribunal através da simples revogação.
Esse entendimento subsistiu, ainda, sob o regime da Constituição de 1988. Tal orientação, contudo, foi modificada quando do julgamento da ADIn nº. 709 (Questão de Ordem), onde o Supremo Tribunal Federal passou a admitir que a posterior revogação da norma impugnada, independentemente da existência ou não de efeitos residuais e concretos, prejudica o andamento da ação direta[16]. Assim dispõe a decisão em comento:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. OBJETO DA AÇÃO. REVOGAÇÃO SUPERVENIENTE DA LEI ARGUIDA DE INCONSTITUCIONAL. PREJUDICIALIDADE DA AÇÃO. CONTROVERSIA. Objeto da ação direta previsto no art. 102, I, a e 103 da Constituição Federal, e a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em tese, logo o interesse de agir só existe se a lei estiver em vigor. REVOGAÇÃO DA LEI ARGUIDA DE INCONSTITUCIONAL. Prejudicialidade da ação por perda do objeto. A revogação ulterior da lei questionada realiza, em si, a função jurídica constitucional reservada a ação direta de expungir do sistema jurídico a norma inquinada de inconstitucionalidade. EFEITOS concretos da lei revogada, durante sua vigência. Matéria que, por não constituir objeto da ação direta, deve ser remetida as vias ordinárias. A declaração em tese de lei que não mais existe transformaria a ação direta, em instrumento processual de proteção de situações jurídicas pessoais e concretas. Ação direta que, tendo por objeto a Lei 9.048/89 do Estado do Paraná, revogada no curso da ação, se julga prejudicada.”
Segundo o novo entendimento, as pessoas cujos direitos subjetivos tenham eventualmente sido lesados por conseqüências advindas da vigência da norma devem, em regra, buscar a reparação em ação própria, pois, como referido, o controle concentrado não tem por escopo a satisfação de direito subjetivo individual ou coletivo.
Sobre o tema, disserta Alexandre de Moraes[17]:
“O Supremo Tribunal Federal não admite ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo já revogado ou cuja eficácia já se tenha exaurido (por exemplo: medida provisória não convertida em lei) entendendo, ainda, a prejudicialidade da ação, por perda do objeto, na hipótese de a lei ou ato normativo impugnados vierem a ser revogados antes do julgamento final da mesma, pois, conforme entende o Pretório excelso, a declaração em tese de ato normativo que não mais existe transformaria a ação direta em instrumento processual de proteção de situações jurídicas pessoais e concreta.”
Esse foi o entendimento seguido por quase a totalidade da jurisprudência pátria, como se passa a demonstrar:
“A revogação superveniente do ato estatal impugnado faz instaurar situação de prejudicialidade que provoca a extinção anômala do processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade, eis que a ab-rogação do diploma normativo questionado opera, quanto a este, a sua exclusão do sistema de direito positivo, causando, desse modo, a perda ulterior de objeto da própria ação direta, independentemente da ocorrência, ou não, de efeitos residuais concretos”. (STF, 2004).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTS. 96 E 100, I E III, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO AMAZONAS. INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL DOS PROCURADORES ESTADUAIS. Perda do objeto do feito em relação ao art. 96 e ao inciso III do art. 100 da Carta amazonense, tendo em vista posteriores modificações nos textos normativos impugnados. O inciso I do mencionado art. 100, por sua vez, ao atribuir independência funcional aos Procuradores do Estado do Amazonas, desvirtua a configuração jurídica fixada pelo texto constitucional federal para as Procuradorias estaduais, desrespeitando o art. 132 da Carta da República. Ação julgada procedente, tão-somente, para declarar a inconstitucionalidade do inciso I do art. 100 da Constituição do Amazonas.” (STF, 2002).
“CONSTITUCIONAL – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: PERDA DE OBJETO. I – Regimento Interno do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, acoimado de inconstitucional por vício formal e argüida a inconstitucionalidade material de dispositivos seus: perda do objeto da ação, dado que o citado Regimento Interno foi substituído por novo Regimento elaborado pelo Tribunal de Justiça do Estado, revogados os dispositivos acoimados de inconstitucionalidade material. II – Ocorrendo a revogação superveniente da norma atacada em ação direta, esta perde o seu objeto, independentemente de a referida norma ter, ou não, produzido efeitos concretos. III – Precedentes do STF: ADIn nº 2.097-PR, Moreira Alves, Plen., 4.5.2000; ADIN nº 1.203-PI, Celso de Mello, Plenário, 19.4.1995. IV – ADIn julgada prejudicada.” (STF, 2002, p. 31).
“Tendo em vista a jurisprudência do STF no sentido do não cabimento de ação direta de inconstitucionalidade quando a norma atacada tiver perdido sua eficácia ou tiver sido revogada, o Tribunal julgou prejudicada ação direta ajuizada pelo Governador do Estado do Amapá contra a Emenda Constitucional 5/96 à Constituição do Estado do Amapá, que disciplina o provimento de cargo de Conselheiro do Tribunal de Contas nos dez primeiros anos de existência do Estado, por tratar-se de dispositivo de caráter temporário cujo prazo de vigência já se exauriu” (STF, 2002).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI N. 2.508/99 DO MUNICÍPIO DE CAMPOS NOVOS – NORMA QUE INSTITUIU A TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA – REVOGAÇÃO TÁCITA PELA LEI COMPLEMENTAR N. 06/01 – PERDA DO OBJETO. A Lei Complementar n. 06/01 do Município de Campos Novos instituiu a Contribuição para o Custeio dos Serviços de Iluminação Pública – COSIP, naquela Municipalidade, revogando tacitamente a Lei n. 2.508/99, objeto da ação direta de inconstitucionalidade. Por conseguinte, como o propósito do controle concentrado de constitucionalidade somente pode ser exercido quanto ao conteúdo de norma em plena vigência, a extinção da actio é medida que se impõe, por falta de interesse de agir, diante da perda de objeto. Vistos, relatados e discutidos estes autos de ação direta de inconstitucionalidade n. 01.021944-1, da Comarca de Campos Novos, em que é requerente O REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO e requeridos MUNICÍPIO DE CAMPOS NOVOS e outro: ACORDAM, em Tribunal Pleno, por votação unânime, julgar prejudicado o pedido, em face da perda do objeto.” (TJSC, 2004).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI COMPLEMENTAR MUNICIPAL N. 2.293/90 – NORMA QUE REGULOU INTERINAMENTE A SITUAÇÃO DOS SERVIDORES MUNICIPAIS – REVOGAÇÃO PELA LEI COMPLEMENTAR N. 01/91 – LEGISLAÇÃO QUE INSTITUIU O REGIME JURÍDICO ÚNICO – PERDA DO OBJETO. A Lei Complementar n. 01/91 do Município de Rio do Sul disciplinou sobre o novo regime jurídico para os servidores daquela Municipalidade, revogando expressamente, pelo art. 285, a Lei Complementar n. 2.293/90 objeto da ação direta de inconstitucionalidade. Logo, como o propósito do controle concentrado de constitucionalidade somente pode ser conteúdo norma em plena vigência, a extinção da actio é medida que se impõe por falta de interesse de agir, diante da perda de objeto.” (TJSC, 2003).
Portanto, tendo-se presente que o propósito positivado do controle concentrado de constitucionalidade somente pode ser o conteúdo normativo em regime de plena vigência, não há como dar prosseguimento a processo em que falece o interesse de agir, seja porque a norma foi revogada, seja pelo advento de seu termo (quando norma de caráter temporário). Assim, nossas Cortes julgam extinto o feito, sem julgamento de mérito, de acordo com o art. 267, VI, do Código de Processo Civil.
Há quem, todavia, discorde do acima preceituado. Sendo esse o caso de Gilmar Ferreira Mendes[18], que assim leciona:
“A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal considera inadmissível a propositura da ação direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato normativo já revogado (…) Esse entendimento do Tribunal impôs-se contra a resistência de algumas vozes. Sustentou-se a opinião de que se a lei não está mais em vigor, isto é, se ela não mais existe, não haveria razão para que se aferisse a sua validade no âmbito do controle de constitucionalidade (…) o Supremo Tribunal Federal passou a admitir que a revogação superveniente da norma impugnada, independentemente da existência, ou não, de efeitos residuais e concretos, prejudica o andamento da ação direta.
Por outro lado, a renúncia a uma aferição de constitucionalidade da lei revogada não se deixa compatibilizar facilmente com a natureza e os objetivos do controle abstrato de normas, que se destina, fundamentalmente, à defesa da Constituição e ao estabelecimento de segurança jurídica.” (grifo não constante no original).
A razão do posicionamento do ilustre doutrinador decorre do fato de que as normas que perderam a sua vigência produziram, via de regra, efeitos concretos, ou seja, geraram situações inconstitucionais, mas que pelo atual entendimento, não podem ser objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade.
Se o Tribunal não examina a constitucionalidade das leis já revogadas, é permitido ao legislador a isenção do controle abstrato da lei de constitucionalidade duvidosa, sem estar obrigado a dizimar as conseqüências inconstitucionais dela originadas. Isso porque a lei revogada serve de parâmetro e base legal para os atos de execução praticados durante o período de sua vigência.
Para aqueles que fazem objeção a esse entendimento, afirmando que a existência de um amplo controle incidente de normas possibilita que se conteste a constitucionalidade de uma lei no caso concreto, sendo dispensável a utilização do controle abstrato, Ives Gandra Martins assim responde[19]:
“Evidentemente, não se pode afirmar, com segurança, que qualquer indivíduo dispõe de condições de provocar o exame da matéria no controle incidental, uma vez que esse sistema pressupõe sempre a defesa de um interesse jurídico específico, que nem sempre pode ser demonstrado.”
Diversos são os fundamentos apontados pelos juristas para embasar tal posicionamento, tais como:
a) Segurança Jurídica: o prosseguimento da ação direta se faz necessário para dar solução global aos casos pendentes;
b) Utilidade do reconhecimento: uma vez que a revogação pura e simples de uma norma produz somente efeitos ex nunc, isto é, a lei somente deixará de integrar a ordem jurídica dali para frente, é de se observar a obviedade da relevância de uma declaração de inconstitucionalidade, que, como já visto, tem eficácia ex tunc, desfazendo os efeitos por ela determinados. Desta forma, considerando-se que a lei revogada pertenceu invalidamente ao ordenamento jurídico podendo ter produzido efeitos vinculativos inconstitucionais, o controle abstrato sobre ela é pertinente, cabível e até necessário.
Como bem demonstrado por Zeno Veloso[20]:
“Revogação e nulidade são figuras inconfundíveis, a primeira se relacionando com a vigência e a segunda com a validade. Independentemente de estar a norma revogada, a fiscalização de constitucionalidade a respeito da mesma vai dizer se ela vigeu válida ou invalidamente. A certeza e a segurança jurídicas lucram com isto. Além do mais, a declaração de inconstitucionalidade, por sua projeção retrooperante, vai desconstituir os efeitos que a norma impugnada produziu, bem como impedir que produza efeitos retardados, remanescentes.”
Dessa forma, há quem se posicione contrariamente à idéia da extinção do processo abstrato em razão da posterior revogação da norma objeto.
2.1 – A POSSIBILIDADE DE REPRISTINAÇÃO DA NORMA REVOGADA.
O entendimento hoje adotado, de que a Ação Direta de Inconstitucionalidade deve ser extinta em razão da revogação da norma constitucional sofre outro problema de ordem prática[21]: a possibilidade de repristinação da norma inconstitucional revogada, quando a norma que a revogou é objeto de nova ADIn.
No controle concentrado, a decisão concessiva de medida cautelar, em regra, ao contrário da decisão definitiva, tem efeito ex nunc, “salvo se o Tribunal entender que deva conceder-lhe eficácia retroativa” (Lei 9868/99, art. 11, §1º, in fine).
A possibilidade de concessão de medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade é prevista pela Carta Magna em seu art. 102, I, alínea “p”, que determina competir ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar originariamente o pedido de medida cautelar das ações diretas de inconstitucionalidade. Sabe-se que a liminar é uma antecipação provisória da tutela jurisdicional definitiva. Assim sendo, preenchidos os requisitos que legitimam a concessão da liminar (fumus boni iuris e o periculum in mora), esta será conferida ficando suspensa a vigência do ato normativo impugnado, até ulterior decisão definitiva.
Como visto acima, de acordo com o que dispõe o
§1º do art. 11 da Lei 9868/99, a medida cautelar é dotada de eficácia erga omnes e, em regra é concedida com efeito ex nunc.
Destaca-se ainda, outro relevante efeito proveniente da concessão da medida cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade, é aquele previsto no §2º do mesmo art.11 da citada lei:
“§ 2º. A concessão de medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário.” (grifo não constante no original).
Diante da simples leitura da norma acima transcrita, temos que, uma vez concedida a medida cautelar, esta, em regra, produzirá efeito repristinatório em relação à lei anterior, revogada pela lei que agora está sendo objeto da ação direta. Isto significa que, a norma anterior, passa a ter vigência novamente, ainda que temporária, até que se prolate decisão definitiva sobre a questão da inconstitucionalidade.
Entretanto, excepcionalmente, poderá a Corte Suprema não conferir tal efeito repristinatório, caso em que, a lei anteriormente revogada não voltará a viger.
Há algum tempo o entendimento que prevalece no STF acerca da revogação superveniente do ato normativo impugnado via ação direta de , como já explanado, é o da perda do objeto da referida ação, pois faltaria interesse de agir, devendo o processo ser extinto sem julgamento do mérito, o mesmo devendo ocorrer em se tratando de lei temporária (medida provisória por exemplo), quando sua eficácia tiver se exaurido.
Entende o STF que, uma vez revogada a norma impugnada, a revogação, por si só, atingiria o objetivo reservado ao controle abstrato através de ação direta de inconstitucionalidade, extirpando do ordenamento jurídico a norma viciada. A ação direta de inconstitucionalidade ficaria prejudicada por perda do objeto. Restaria, portanto, ao eventual prejudicado pelo vício constante da lei revogada no curso da ação direta de inconstitucionalidade, recorrer ao método difuso, buscando a declaração de inconstitucionalidade via incidental.
Esse é o posicionamento atual do Pretório Excelso sobre o tema, do qual, na esteira de Zeno Veloso[22], discorda-se. O ilustre jurista, até por motivos de ordem pragmática, entende que “há interesse e utilidade na declaração de inconstitucionalidade de lei já revogada, que produziu efeitos na ordem jurídica e pode continuar produzindo efeitos (remanescentes, sobejantes)”.
Ao lado dos diversos argumentos explicitados neste trabalho pelos ilustres autores mencionados, acrescenta-se outro, ou seja, mais um fundamento em favor da possibilidade de prosseguimento da ação direta de inconstitucionalidade que tenha por objeto norma revogada em seu curso: a concessão de medida cautelar que torna aplicável a legislação anterior acaso existente (salvo expressa manifestação em sentido contrário). Trata-se na espécie de efeito repristinatório conferido à norma anterior àquela que está sendo impugnada por meio de ação direta.
Desta forma, uma vez concedida a liminar, fica suspensa a vigência da lei ou ato normativo objeto da ação, até decisão final, enquanto a legislação anterior, se existente, passa a viger temporariamente, a partir da data da concessão da medida cautelar, pois esta, em regra, tem efeito ex nunc.
Decidindo-se, no final do processo, que a norma impugnada é constitucional, portanto válida, julgando-se improcedente a ação, a liminar, antes concedida, é cassada, obviamente, considerando-se definitivamente revogada a norma que tinha voltado a vigorar.
Vislumbrando, pois, tal efeito repristinatório conferido pela lei quando da concessão de medida cautelar, surge mais um fundamento para que se dê continuidade à ação direta de inconstitucionalidade que tem por objeto lei ou ato normativo posteriormente revogado.
Torna mais fácil vislumbrar a situação, analisando a seguinte hipótese: uma lei “X” está sendo impugnada por meio de ação direta, e acaba sendo revogada no curso da ADIn por determinada lei “Y”.
Seguindo-se a orientação firmada pelo Supremo, a ação direta de inconstitucionalidade que tem por objeto a lei “X”, neste caso, deve ser extinta, pois perdeu seu objeto, uma vez que, tendo sido revogada, o objetivo buscado pela ação direta de inconstitucionalidade já teria sido atingido com a revogação.
Supondo-se também, que algum tempo depois, a própria lei “Y” venha a ser impugnada através do controle concentrado, e ainda que a medida cautelar venha a ser conferida.
Na hipótese ventilada, a lei “X” voltaria a viger (apesar de manifestamente inconstitucional), mesmo que temporariamente, por força do efeito repristinatório, produzindo normalmente seus efeitos.
Verifica-se, pois, o perigo da orientação em que se apóia a Corte Constitucional: uma vez que esta lei “X” volta a produzir efeitos, imensa insegurança jurídica se instaura e ainda, enorme potencialidade de gravame para as relações jurídicas originadas com base em uma lei duvidosa, que por não ter sido declarada constitucional ou inconstitucional, não pode servir de parâmetro para orientação e aplicação geral. Seria mesmo absurdo que, o próprio STF autorizasse que uma lei de validade incerta pudesse voltar a participar da vida dos jurisdicionados.
Portanto, extinguir uma ação direta de inconstitucionalidade em razão da revogação da norma atacada não é a solução mais acertada, vez que não estão os ilustres seguidores desta orientação com os olhos voltados para as conseqüências futuras, mas talvez apenas buscando mais um mecanismo célere e eficiente, mas, não seguro, de extirpar o problema do acúmulo de processos existentes no Supremo Tribunal.
Talvez haja quem defenda que, na questão em tela, bastaria ao STF utilizar a parte final do §2.º, do art.11 da lei em questão, caso em que o Tribunal ao conceder a medida cautelar, ressalvaria que a legislação anterior acaso existente não se tornaria aplicável, ou seja, da liminar conferida, não decorreria o efeito repristinatório.
Tal solução também se afigura inadequada, pois tal decisão ficaria a cargo de um poder absolutamente discricionário, sem que tenha havido a discussão necessária sobre a validade da norma.
Deste modo, muito mais seguro e adequado seria que, conforme o exemplo exposto, a ação direta de inconstitucionalidade, tivesse prosseguimento para que, se a lei revogadora viesse a tornar-se também objeto de futura ação direta de inconstitucionalidade, ao ser concedida medida cautelar, pudesse o Pretório Excelso com absoluta lucidez conceder à legislação anterior efeito repristinatório (se a ação direta de inconstitucionalidade tivesse sido julgada improcedente) ou não (se a ação direta de inconstitucionalidade tivesse sido julgada procedente), não comprometendo com isso a ordem social e a segurança das relações jurídicas.
2.2 – A AÇÃO DIRETA DE INSCONTITUCIONALIDADE Nº. 1.244/SP E A POSSIBILIDADE DE MUDANÇA JURISPRUDENCIAL.
Em razão das críticas acima delineadas, tramita no Supremo Tribunal Federal a ADIn nº. 1.244/SP, que diz respeito a reajuste concedido aos magistrados trabalhistas, e cujo julgamento pode mudar o entendimento da Corte.
A mudança pode ocorrer em razão de proposta feita pelo Ministro Gilmar Mendes, de revisão na jurisprudência da Corte para que seja admitido o prosseguimento de processos em que a norma atacada tenha perdido a vigência após o ajuizamento da ação — seja pela revogação, seja em razão do caráter temporário da norma.
O ministro sugeriu, que a revisão seja restrita às ações diretas de inconstitucionalidade “pendentes de julgamento e às que vierem a ser ajuizadas”. Discordando do novo posicionamento adotado, ele expõe que as peculiaridades do processo em questão devem conduzir à conclusão de que não está prejudicada a ação direta de inconstitucionalidade, sob pena de permitir verdadeira fraude à jurisdição constitucional do Colendo Supremo Tribunal Federal.
O douto ministro argumenta ser preciso saber que o controle jurisdicional de constitucionalidade, desde a sua criação pretoriana pela Suprema Corte Americana, não significa apenas invalidar uma norma por incompatibilidade com a Constituição. Significa, sobretudo, interpretar a Constituição, formando jurisprudência sobre o conteúdo e extensão das normas e princípios constitucionais. Na ação em questão, sendo o ato normativo impugnado resolução de Tribunal, tendo como interessados dentre outros os próprios Juízes da Corte Regional do Trabalho, e tendo o Colendo Supremo Tribunal Federal ordenado a sustação do pagamento e a suspensão prejudicial da ação ordinária perante a Justiça Federal de 1ª instância sobre a mesma matéria, não pareceria possível que a ação direta de inconstitucionalidade fosse considerada prejudicada.
Continuando a sua exposição, ele lembra que as decisões definitivas que declaram a inconstitucionalidade de uma norma nas ações diretas de inconstitucionalidade, segundo a jurisprudência pacífica da Colenda Corte, têm efeitos ex tunc. O Acórdão que declara a inconstitucionalidade da norma não apenas atinge a norma jurídica abstrata, invalidando-a e retirando-a do mundo jurídico, mas alcança também, ab initio, os atos e efeitos fundados na norma impugnada.
Sob essa ótica, não poderia o TRT da 15ª Região – diretamente interessado na causa – revogar o seu ato normativo provocando efeito de verdadeira desistência, inadmissível nas ações diretas de inconstitucionalidade, quando a questão já se encontrava indisponível para as partes, submetida a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. E verifica-se ainda que, logo após ter revogado o ato normativo impugnado, aquela Corte Regional do Trabalho editou nova resolução administrativa, em novembro de 1997, de conteúdo praticamente idêntico sobre a mesma matéria, afrontando, assim, a autoridade das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. Tal resolução é objeto de nova ação direta de inconstitucionalidade, o que torna explícito, portanto, o propósito do Procurador-Geral (autor da ação) de ver revisto o entendimento da Corte no sentido da prejudicialidade das ações diretas em hipóteses de revogação do ato impugnado, razão pela qual foi suscitada questão de ordem.
Em seguida, o Ministro profere seu voto na questão de ordem levantada, afirmando que se tornou remansoso no Supremo, o entendimento no sentido de que a revogação de ato normativo objeto de ação direta implica a prejudicialidade desta. Como o marco inicial dessa jurisprudência está na ADIn nº. 709, da relatoria do Ministro Paulo Brossard, o pronunciamento da referida ação acabou sendo transcrito, o que se repete no presente trabalho.
Em seu voto, explicitara Brossard a posição atualmente adotada pela Corte, in verbis:
“1. Se ação direta tem por objeto específico a declaração em tese de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, com a finalidade de expungir do sistema jurídico vigente aqueles atos que se não harmonizam com a Constituição, é de concluir-se que a revogação do ato normativo, objeto da declaração, traz como conseqüência a prejudicialidade da ação, por perda de objeto.
2. Na ação direta de inconstitucionalidade o interesse de agir existe se e enquanto a lei estiver em vigor. Não se pode admitir ação direta contra ato normativo revogado, porque o interesse de extirpar do ordenamento jurídico o ato normativo maculado pela inconstitucionalidade, já não existe porque a própria autoridade ou órgão requerido se incumbiu de fazê-lo. O plenário da Corte assentou, quando do julgamento da ADIN 2-1 do Distrito Federal, que lei anterior à Constituição, que a contrarie, não pode ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade, porque a Constituição superveniente não torna inconstitucionais as leis anteriores com ela conflitantes, mas as revoga. Deste modo, tanto a lei revogada como a que venha a ser revogada, no curso da ação direta, não pode constituir seu objeto.
3. Quanto aos eventuais efeitos que a lei revogada possa ter produzido no período de sua vigência, não pode ser ele abarcado pelo específico interesse de agir, reservado exclusivamente às pessoas e entidades arroladas no artigo 103 da Constituição, que é a declaração ‘in abstrato’ da inconstitucionalidade da lei ou ato normativo federal ou estadual.
4. A discussão dos efeitos concretos da lei revogada, no período em que esteve vigente, por não condizer com a via excepcional da ação direta, deve ser remetida às vias ordinárias por ser esta a adequada à discussão das situações jurídicas individuais e concretas.”
Contudo, os argumentos acima não foram suficientes para convencer o ilustre Ministro – e constitucionalista, entendendo o mesmo que tal posicionamento merece ser revisto.
Fundamenta a sua crítica afirmando que a posição firmada a partir da ADI nº. 709 partira de um pressuposto que se afigura equivocado, qual seja a concepção de que o pronunciamento da Corte, nas ações diretas, alcança os atos normativos tão-somente no plano da vigência. E, segundo ele, “é a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que evidencia tal equívoco, bastando lembrar as hipóteses em que o Tribunal concede liminares em ação direta, em que se atinge, especialmente, a dimensão de eficácia da lei impugnada”.
Ao dar continuidade em seu voto, o Ministro faz uma brilhante comparação com o Direito Alemão, que, por sua vez, é objeto constante de seus estudos, e onde a utilização do controle de constitucionalidade para a fiscalização dos efeitos concretos de atos normativos também não é estranha. Em verdade, o Direito alemão reconhece o cabimento da ação do controle abstrato em relação a direito revogado, tendo em vista especificamente a circunstância de que a lei revogada pode ser aplicada além do tempo de sua revogação. Entende-se que a aferição de sua constitucionalidade, na hipótese, não violenta a natureza do controle abstrato de normas.
É em razão da excelência dos estudos e argumentos levantados pelo Min. Gilmar Ferreira Mendes, que seu voto merece ser parcialmente transcrito:
“A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal considera inadmissível a propositura da ação direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato normativo já revogado (Rp. 1.034, Relator: Ministro Soares Muñoz, RTJ n. 111, p. 546; Rp. 1.120, Relator: Ministro Decio Miranda, RTJ n. 107, p. 928-30; Rp. 1.110, Relator: Ministro Néri da Silveira, DJ, 25 mar. 1983). Todavia, sob o império da Constituição de 1967/69 entendia-se que, se a revogação ocorresse após a propositura da ação, era possível que o Tribunal procedesse à aferição da constitucionalidade da lei questionada, desde que a norma tivesse produzido algum efeito no passado. Caso contrário, proceder-se-ia à extinção do processo por falta de objeto (Rp. 876, Relator: Ministro Bilac Pinto, DJ, 15 jun. 1973; Rp. 974, Relator: Ministro Cunha Peixoto, RTJ n. 84, p. 39; Rp. 1.161, Relator: Ministro Néri da Silveira, RTJ n. 115, p. 576-89). Elidia-se, assim, a possibilidade de que o legislador viesse a prejudicar o exame da questão pelo Tribunal mediante a simples revogação. (…)
Essa orientação sofreu mudança a partir do julgamento da já referida ADI no 709 (Questão de Ordem), quando o Supremo Tribunal Federal passou a admitir que a revogação superveniente da norma impugnada, independentemente da existência, ou não, de efeitos residuais e concretos, prejudica o andamento da ação direta (ADIn 709, Relator: Ministro Paulo Brossard, DJ, 20 maio 1992, p. 12248; ADIn 262, Relator: Ministro Celso de Mello, DJ, 8 mar. 1993; ADIn 712, Relator: Ministro Celso de Mello, DJ, 25 fev. 1993, p. 2287).
Mas o fato é que a extinção de uma ação direta, por prejudicialidade, nem sempre significa a eliminação de todas as controvérsias de índole constitucional relacionadas à aplicação do ato normativo que perdeu vigência. No plano da eficácia, pode-se verificar que determinada norma que não mais vige produziu e, eventualmente, continua a produzir efeitos inconstitucionais.
E não parece adequado que essas eventuais controvérsias, que poderiam de imediato ser solvidas em sede de controle abstrato, sejam encaminhadas ao sistema de controle difuso. Não está demonstrada nenhuma razão, de base constitucional, a evidenciar que tão-somente no âmbito do controle difuso é possível aferir a constitucionalidade dos efeitos concretos de uma lei. Em sentido contrário, conforme exposto, não é difícil encontrar na praxe desta Corte a utilização das ações diretas para suspender especificamente a eficácia de atos normativos.
Contra essa renúncia em favor do sistema de controle difuso há um argumento, a meu ver decisivo, que decorre do sistema adotado pela Constituição de 1988.
Como já tive oportunidade de salientar, se a intensa discussão sobre o monopólio da ação por parte do Procurador-Geral da República não levou a uma mudança na jurisprudência consolidada sobre o assunto, é fácil constatar que ela foi decisiva para a alteração introduzida pelo constituinte de 1988, com a significativa ampliação do direito de propositura da ação direta. (…)
Tal fato fortalece a impressão de que, com a introdução desse sistema de controle abstrato de normas, com ampla legitimação e, particularmente, a outorga do direito de propositura a diferentes órgãos da sociedade, pretendeu o constituinte reforçar o controle abstrato de normas no ordenamento jurídico brasileiro como peculiar instrumento de correção do sistema geral incidente. (…)
Portanto, parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade.
Assim, se se cogitava, no período anterior a 1988, de um modelo misto de controle de constitucionalidade, é certo que o forte acento residia, ainda, no amplo e dominante sistema difuso de controle. O controle direto continuava a ser algo acidental e episódico dentro do sistema difuso.
A Constituição de 1988 alterou, de maneira radical, essa situação, conferindo ênfase não mais ao sistema difuso ou incidente, mas ao modelo concentrado, uma vez que as questões constitucionais passam a ser veiculadas, fundamentalmente, mediante ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.
Ressalte-se que essa alteração não se operou de forma ainda profunda porque o Supremo Tribunal manteve a orientação anterior, que considerava inadmissível o ajuizamento de ação direta contra direito pré-constitucional em face da nova Constituição.
A ampla legitimação, a presteza e celeridade desse modelo processual, dotado inclusive da possibilidade de se suspender imediatamente a eficácia do ato normativo questionado, mediante pedido de cautelar, fazem com que as grandes questões constitucionais sejam solvidas, na sua maioria, mediante a utilização da ação direta, típico instrumento do controle concentrado. Assim, se continuamos a ter um modelo misto de controle de constitucionalidade, a ênfase passa residir não mais no sistema difuso, mas no sistema de perfil concentrado. (…)
Esta convivência não se faz sem uma permanente tensão dialética na qual, a meu ver, a experiência tem demonstrado que será inevitável o reforço do sistema concentrado, sobretudo nos processos de massa; na multiplicidade de processos que inevitavelmente, a cada ano, na dinâmica da legislação, sobretudo da legislação tributária e matérias próximas, levará, se não se criam mecanismos eficazes de decisão relativamente rápida e uniforme, ao estrangulamento da máquina judiciária, acima de qualquer possibilidade de sua ampliação e, progressivamente, ao maior descrédito da Justiça, pela sua total incapacidade de responder à demanda de centenas de milhares de processos rigorosamente idênticos, porque reduzidos a uma só questão de direito. (…)
Cabe anotar, ainda, que a referida jurisprudência restritiva firmada pelo Tribunal, justificável em uma perspectiva de viabilização funcional da própria Corte, tem permitido, em alguns casos, autênticas fraudes contra o exercício da jurisdição constitucional. É essa a legítima preocupação do Procurador-Geral da República, que já havia sido externada pelo Chefe do Ministério Público nos autos da ADI no 1.661. (…)
A questão colocada por iniciativa do Procurador-Geral afigura-se legítima. Admitindo-se, conforme já exposto, que o exercício da jurisdição constitucional abstrata não se volta exclusivamente ao plano da vigência, e evidenciado o propósito da Constituição de 1988 no sentido do reforço do sistema de controle abstrato de constitucionalidade, parece evidente que a linha jurisprudencial inaugurada com a ADI no 709 implica inaceitável limitação ao amplo exercício da competência constitucional do STF.
Por fim, é necessário não esquecer da consolidação da argüição de descumprimento de preceito fundamental como mecanismo subsidiário às ações diretas. Admitindo-se a utilização da ADPF para o exame da constitucionalidade de atos revogados, não é difícil imaginar que a extinção de uma ação direta por prejudicialidade, nos termos ora colocados, daria espaço ao uso imediato da argüição. Assim, sob uma perspectiva de economia processual, já não faria sentido a manutenção daquela idéia de prejudicialidade.
Meu voto, portanto, é no sentido da revisão da jurisprudência desta Corte – restrita, obviamente, às ações diretas pendentes de julgamento e às que vierem a ser ajuizadas – para o fim de admitir o prosseguimento dos processos de controle abstrato nas hipóteses em que a norma atacada tenha perdido a vigência após o ajuizamento da ação, seja pela revogação, seja em razão do caráter temporário da norma.”
O julgamento dessa ação, portanto, assume grande importância para a jurisprudência pátria, no entanto, a matéria ainda pende de definição pelo Plenário da Corte, em razão de pedido de vista da Ministra Ellen Grace.
2.3 – AS MEDIDAS PROVISÓRIAS E A PERDA SUPERVENIENTE DO OBJETO DA AÇÃO DIRETA DE INSCONSTITUCIONALIDADE.
Dentre o rol de normas que podem ser objeto do controle de concentrado de constitucionalidade, se encontra inserida a medida provisória. A jurisprudência não a admite como objeto, contudo, quando a mesma for expressamente rejeitada, ou quando decorrido o seu prazo de vigência sem que tenha sido transformada em lei.
Assim, quando a medida é aprovada em sua integralidade (sem mudanças em seu texto), é admitida a continuidade da ADIn contra ela intentada, uma vez que idêntico o seu objeto, apesar de diferente a sua denominação. De outro lado, restam dúvidas quando a medida é aprovada com modificações em seu texto. Isso porque se deve verificar, nesses casos, não o fato da medida ter sido aprovada com alterações, mas sim se as alterações a modificaram de forma substancial, a ponto de afetar o próprio objeto da demanda. E mesmo quando modificada em sua substancia, ainda assim deve-se perguntar se o dispositivo guerreado subsiste ou não.
Gilmar Ferreira Mendes assim se manifestou sobre o tema[23]:
“É fácil ver que a aprovação de medida provisória com simples alteração formal do texto originário não deveria suscitar maiores problemas no juízo abstrato de normas, uma vez que restaria íntegro e plenamente válido o pedido formulado, sendo facultado ao tribunal, se entender devido, requerer novas informações junto ao Poder Executivo, bem como solicitar as informações junto ao Congresso Nacional. As manifestações da Advocacia-Geral da União e do procurador-Geral da República, se já verificadas, poderiam ser, igualmente, aditadas sem nenhum prejuízo para a ordem processual.
Evidentemente, se a medida provisória for aprovada com alterações de tal monta que importem mesmo na derrogação da disposição normativa impugnada, nada mais resta senão proceder à extinção do processo.
Ao contrário, subsistente, na sua essência, a disposição que deu ensejo à propositura da ação, não deve o feito ser extinto, porque resta íntegra a pretensão formulada legitimamente por um dos titulares do direito da propositura, inexistindo solução de continuidade no plano de vigência das normas.
Assim, se o art. 1º. Da medida provisória x continua a vigorar, na sua essência, como art.1º ou art.2º da lei y, não há que se cogitar de derrogação ou ab-rogação.”
O que fazer, assim, com a Ação Direta de Inconstitucionalidade que tem como objeto medida provisória convertida em lei? Nesses casos, o Supremo Tribunal Federal tem entendimento firmado em relação à possibilidade ou não de aditamento ao pedido inicial. Dessa feita, nos casos de conversão de medida provisória em lei, sem que haja qualquer alteração, não restaria prejudicada, segundo o entendimento da Corte, a análise da questão de cunho material da ação direta de inconstitucionalidade, um vez que permanece preservado o seu conteúdo normativo (ADIN n° 691-6/TO[24], Relator Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ 19.06.1992). Neste caso, simples aditamento do pedido inicial é suficiente para assegurar o regular curso da ação direta de inconstitucionalidade.
Por outro lado, se a medida provisória for convertida em lei com alterações significativas de fundo e de forma, a ação direta de inconstitucionalidade restaria invariavelmente prejudicada, por superveniente perda de objeto (ADIN n° 258-9/DF[25], Relator Ministro CELSO DE MELLO, DJ 28.02.1992). Com efeito, o Excelso pretório entende que simples aditamentos não permitirão que a ação direta siga seu curso. Portanto, nesses casos, deverá o requerente propor nova ação direta de inconstitucionalidade para impugnar a lei de conversão.
Para alguns doutrinadores[26], contrariando o entendimento jurisprudencial acima esposado, a conversão da medida em lei sem mudanças significativas não exigiria o aditamento da inicial, pois idêntica a matéria impugnada. Tal aditamento só seria necessário caso a mudança fosse substancial, sendo necessária a exposição e convencimento da continuidade normativa. Sem dúvida, essa parece a opção mais lógica, pois inócuo o aditamento quando indiscutível a continuidade da norma.
3. O COMBATE AOS EFEITOS CONCRETOS PRODUZIDOS PELA NORMA REVOGADA.
Como já exposto, até que o Supremo Tribunal Federal modifique o seu posicionamento, quiçá quando do julgamento da Questão de Ordem proposta na ADIn nº. 1.244, a Ação Direta de Inconstitucionalidade, cujo objeto foi posteriormente revogado, deve ser extinta em decorrência de ausência do interesse de agir, o que leva o jurista a procurar outros meios de combater os efeitos concretos dessa norma.
Não restam dúvidas acerca da possibilidade de utilização das vias ordinárias (do controle incidental). Contudo, como já explanado, essa não seria a melhor solução, uma vez que só quem tem interesse direto na causa poderia propor a ação ordinária, o que, via de regra, permite a perpetuação de situações jurídicas inconstitucionais, em decorrência da inércia dos interessados.
Importante, assim, buscar um meio de controle abstrato, que possa atacar a norma revogada, e que possibilite os mesmos efeitos da ação extinta sem julgamento do mérito. Por isso, passamos a estudar a única ação abstrata possível: a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
3.1 – A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL.
A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF foi prevista pelo constituinte originário no artigo 102, § 1º, cuja eficácia era limitada, sendo considerada como preceito institutivo. Após uma inércia de 11 anos, foi regulamentada pela Lei nº. 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Tal ação é julgada pelo Supremo Tribunal Federal e tem como objetivo evitar ou reparar lesão a um preceito fundamental da Constituição Federal decorrente de ato do Poder Público.
Os efeitos da ADPF são, em regra, idênticos ao da ADIn, ou seja, erga omnes, ex tunc e vinculante.
Muitas são as dúvidas doutrinárias acerca do conceito de “preceito fundamental”. Para alguns juristas, seria toda regra constante da Constituição Federal; para outros, são somente os princípios fundamentais dos artigos 1º ao 4º. Porém, para a maior parte dos estudiosos da matéria, preceitos fundamentais são as cláusulas pétreas e os princípios fundamentais – explícitos ou implícitos (decorrentes) – esculpidos na Carta bem, como todas as normas constitucionais de conteúdo principiológico.
No entendimento de JOSÉ AFONSO DA SILVA[27]:
“Preceitos fundamentais não é expressão sinônima de princípios fundamentais. É mais ampla, abrange estas e todas prescrições que dão o sentido básico do regime constitucional, como são, por exemplo, as que apontam para a autonomia dos Estados, do Distrito Federal e especialmente as designativas de direitos e garantias fundamentais.”
Tem um caráter subsidiário (princípio do exaurimento das instâncias), o que significa dizer que não será a ADPF conhecida se a lesão puder ser reparada ou evitada por qualquer outro meio eficaz. Contudo, essa subsidiariedade deve ser interpretada dentro do controle abstrato, ou seja, não havendo outro meio de controle abstrato possível, utiliza-se a ADPF.
Foi o entendimento esposado na ADPF nº. 33[28] que reforçou o caráter da argüição de descumprimento de preceito fundamental como ação de natureza objetiva de controle de constitucionalidade e, por essa razão, a sua subsidiariedade há que ser sempre interpretada de acordo com o sistema objetivo de controle. Somente os instrumentos do controle objetivo servem de parâmetro para a análise do atendimento ao princípio da subsidiariedade. Caso contrário, sempre existiriam, em tese, meios de salvaguardar preceito fundamental afastando, dessa forma, a aplicação da argüição de descumprimento de preceito fundamental.
Por ocasião desse julgamento, assentou-se que uma leitura excessivamente literal da disposição contida no parágrafo 1º, do artigo 4º conduziria à retirada de qualquer significado prático do instituto da ADPF.
Tendo em vista o caráter acentuadamente objetivo da argüição de descumprimento, o juízo de subsidiariedade há de ter em vista, especialmente, os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional. Nesse caso, cabível a ação direta de inconstitucionalidade ou declaratória de constitucionalidade, ou, ainda, a ação direta por omissão, não será admissível a argüição de descumprimento. Em sentido contrário, não se verificando a existência de meio apto para solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata, há de se entender possível a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental.
É o que ocorre, fundamentalmente, nos casos relativos ao controle de legitimidade do direito pré-constitucional, do direito municipal em face da Constituição Federal e nas controvérsias sobre direito pós-constitucional já revogado ou cujos efeitos já se exauriram. Nesses casos, em face do não-cabimento da ação direta de inconstitucionalidade, não há como deixar de reconhecer a admissibilidade da argüição de descumprimento.
O STF ainda não decidiu de forma definitiva sobre o tema, ainda não tendo delimitado o alcance da ADPF. Em decorrência dessa pendência, a CONSIF — Confederação Nacional do Sistema Financeiro, levou ao Supremo Tribunal Federal a discussão sobre o cabimento de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental para declarar a constitucionalidade de normas já revogadas ou de eficácia exaurida. A questão suscitada deverá ser apreciada pelos ministros para delinear o alcance da ADPF.
A ação pretende sanar o vazio deixado pela Ação Direta de Inconstitucionalidade, que só pode ser proposta contra lei em vigor. A CONSIF alega que o Supremo já sinalizou que o mesmo vale para a Ação Declaratória de Constitucionalidade, citando decisões relativas a ações que foram julgadas prejudicadas porque a norma questionada na ação já havia sido revogada.
A discussão sobre o meio adequado para tratar da constitucionalidade de dispositivos que já não estão mais em vigor foi levantada pela Confederação ao pedir solução para controvérsia sobre dispositivo criado na época do Plano Real. O artigo 38 da Lei nº. 8.890/94 fixou a base para o cálculo dos índices de correção monetária no mês anterior à efetiva implementação do Plano Real e para o mês seguinte, já com a moeda nova.
A CONSIF alega que há necessidade de o Supremo se manifestar, já que existem três correntes diversas nos tribunais brasileiros: duas que consideram o dispositivo constitucional e uma que considera inconstitucional. Pede, portanto, que o Supremo declare a constitucionalidade da norma para sanar as controvérsias.
O relator, ministro Sepúlveda Pertence, concedeu, no dia 21 de agosto de 2006, liminar para suspender todos os processos que tramitam no Judiciário brasileiro questionando a validade da norma até que o mérito da ação seja analisado pelo STF. Ele reconheceu a necessidade da Corte delinear os alcances da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e da Ação Declaratória de Constitucionalidade, nos seguintes termos:
“(…)III – CABIMENTO DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL NA ESPÉCIE. 9. A conclusão pelo cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental na espécie é alcançada à vista da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o qual há muito pacificou o entendimento de que não cabe ação direta de inconstitucionalidade contra lei revogada ou de eficácia exaurida. Apesar do reduzido número de decisões em sede de ação declaratória de constitucionalidade, é seguro afirmar que o Supremo Tribunal Federal, considerando a similitude entre a ação declaratória de constitucionalidade e a ação direta de inconstitucionalidade, estenderá, para a ação declaratória, o entendimento aplicável em sede de ação direta, qual seja, o do seu não cabimento quando em jogo norma revogada ou de eficácia exaurida. Indicativa dessa extensão é a decisão tomada pelo Ministro Celso de Mello na ADC nº 8, decisão essa mediante a qual aquela ação foi julgada prejudicada pela circunstância de a norma dela objeto ter sido revogada. 10. Com efeito, a apreensão da orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal conduz à conclusão de que não seria cabível ação declaratória de constitucionalidade cujo objeto fosse o artigo 38 da Lei nº 8.880/94. Isso porque o referido artigo de lei, por determinar a unidade de conta – a referência – a ser observada nos cálculos dos índices de preços dos meses de julho e agosto de 1994, cálculos esses ultimados no final do mês de agosto, teve sua eficácia exaurida no final de agosto de 1994. 11. Afigura-se indisputável que o único instrumento de controle concentrado passível de ser manejado em face do artigo 38 é a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Nesse sentido, cumpre destacar que o Supremo Tribunal Federal, no tocante à cláusula de subsidiariedade instalada no artigo 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, tem seguido a orientação segundo a qual “o juízo de subisidiariedade há de ter em vista, especialmente, os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional.” (STF, 2006).
Assim, mantendo o Supremo Tribunal Federal, o entendimento acima exposto, a ADPF vai ser a medida mais eficaz para substituir a Ação Direta de Inconstitucionalidade, quando o objeto dessa tiver sua eficácia exaurida, inclusive nos casos das medidas provisórias, já mencionados no presente trabalho.
Importante mencionar que, em ralação às MP’s, que o STF está na iminência de estabelecer um posicionamento sobre a possibilidade do ajuizamento da Argüição, após a extinção da Ação Direta (julgamento da ADPF 84).
O Partido da Frente Liberal – PFL ajuizou a supracitada ação contra medida provisória rejeitada (leia-se, não aprovada em lei), que gerou efeitos inconstitucionais. A referida medida era objeto de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, que foram, por sua vez, extintas sem julgamento de mérito.
Inicialmente, a ADPF não foi admitida pelo Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de que essa ação de natureza objetiva não poderia ser utilizada para combater efeitos concretos de uma norma[29]. Tal decisão motivou a interposição de Agravo Regimental, que, por unanimidade, foi julgado procedente[30], sendo admitido o processamento da ADPF 84.
3.2 – A POSSIBILIDADE DE CONVERSÃO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE EM ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL.
Considerando a hipótese de nosso Excelso Pretório entender que a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental é meio hábil a substituir a Ação Direta de Inconstitucionalidade, quando o objeto dessa não mais existir, e pensando sob a ótica do princípio da economia processual, torna-se conveniente analisar a possibilidade de conversão da extinta ADIn em ADPF, quando presentes no objeto daquela os requisitos necessários para configuração da última[31], aproveitando-se assim todos os atos processuais comuns.
No que se refere às medidas provisórias, o STF já entendeu que a transformação não é cabível quando se tratar de medida convertida em lei com profundas alterações[32], hipótese em que o ajuizamento de nova ADIN seria indispensável, em razão de modificação do próprio objeto da norma. Contudo, se o dispositivo inconstitucional da MP não constar da nova lei, em razão das profundas transformações sofridas no processo de conversão, não há que se falar em nova Ação Direta contra a lei, pois a disposição não mais existe, sendo necessário atacar a extinta MP através da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
Ademais, quanto à questão da fungibilidade das ações em sede de controle concentrado, o Supremo já entendeu no sentido de sua possibilidade, como se depreende do Informativo nº. 390:
“Informativo nº. 390: ADPF e Conhecimento como ADIN.
Tendo em conta o caráter subsidiário da ação de descumprimento de preceito fundamental – ADPF, consubstanciado no § 1º do art. 4º da Lei 9.882/99, o Tribunal resolveu questão de ordem no sentido de conhecer, como ação direta de inconstitucionalidade – ADI, a ADPF ajuizada pelo Governador do Estado do Maranhão, em que se impugna a Portaria 156/2005, editada pela Secretária Executiva de Estado da Fazenda do Pará, que estabeleceu, para fins de arrecadação do ICMS, novo boletim de preços mínimos de mercado para os produtos que elenca em seu anexo único. Entendeu-se demonstrada a impossibilidade de se conhecer da ação como ADPF, em razão da existência de outro meio eficaz para impugnação da norma, qual seja, a ADI, porquanto o objeto do pedido principal é a declaração de inconstitucionalidade de preceito autônomo por ofensa a dispositivos constitucionais, restando observados os demais requisitos necessários à propositura da ação direta. Precedente citado: ADI 349 MC/DF” (DJU de 24.9.90). ADPF 72 QO/PA, rel. Min. Ellen Gracie, 1º.6.2005. (ADPF-72).
Assim, tornar-se-ia desnecessário o ajuizamento de uma nova ação, bastando a conversão da Ação Direta de Inconstitucionalidade em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
3.3 – A PROBLEMÁTICA DO JULGAMENTO DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL SEM DECLARAÇÃO DE NULIDADE.
Um ponto importante a ser enfrentado diz respeito aos efeitos das decisões em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental, relativa ao art.11 da Lei n. 9.882/99, que assim dispõe:
“Art. 11 – Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”
Em decorrência desse dispositivo o Supremo Tribunal Federal pode dispor sobre os efeitos da decisão de argüição de descumprimento de preceito fundamental no sentido de restringir os seus efeitos ou de decidir que os mesmos só tenham eficácia a partir do trânsito em julgado da decisão, ou seja, ex nunc ou de outro momento que venha a ser estabelecido. Cumpre deixar consignado que em se tratando de controle de constitucionalidade abstrato ou concentrado a tradição do Direito Brasileiro é de que as decisões tenham efeito ex tunc.
Assim, poder-se-ia pensar, prima facie, que nenhuma utilidade teria o ajuizamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, com o intuito de combater os efeitos inconstitucionais já produzidos, pois a decisão da mesma poderia ter efeito ex nunc, não satisfazendo o interesse almejado.
Ao contrário do que se pode pensar, o presente trabalho não busca minar a possibilidade inconstitucionalidade sem declaração de nulidade, pois se sabe que a mesma é, muitas vezes, necessária. Contudo, não se pode usar essa possibilidade como desestimulo ao ajuizamento da ADPF[33], uma vez que excepcional essa decisão.
O art.11 da Lei n. 9.882/99 se inspirou na jurisprudência da Corte Constitucional alemã[34], onde se reconhece a possibilidade de que a lei ou ato normativo sob exame, que se encontra eivado de inconstitucionalidade, possa ser aplicada por determinado período de tempo. Em outras palavras, admite-se que a decisão em sede de argüição possa ter eficácia ex nunc ou ainda que seja fixado um período de tempo no qual a aplicação da norma inconstitucional seja válida.
Trata-se, na verdade, de uma das modernas formas de interpretação constitucional, qual seja, a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade.
Como dito acima, esse método de interpretação tem a sua origem no Direito Alemão, que a partir do ano de 1969, absteve-se de em alguns casos pronunciar a nulidade da lei[35].
A Corte Constitucional alemã faz uso desse método de interpretação quando a declaração de nulidade da lei ou ato normativo ocasionar um vácuo jurídico extremamente gravoso para a ordem constitucional. Com o emprego desse método de interpretação a norma impugnada mantém–se no ordenamento jurídico, pois apesar de reconhecer-se a sua inconstitucionalidade, não se declara a sua nulidade.
Assim, aquela Corte Constitucional reconhece que a norma examinada encontra-se eivada de inconstitucionalidade, mas, por razões de segurança jurídica, não aplica a sanção, qual seja, a declaração de sua nulidade. Contudo, adverte que a mesma não pode mais ser aplicada. Isso significa que a norma impugnada permanece no sistema normativo com a finalidade de evitar o surgimento do vácuo normativo, ou até mesmo, para obstar a repristinação da lei antiga que não se coaduna com o momento atual.
A declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade apresenta-se como uma técnica de interpretação que tem por finalidade a manutenção da norma impugnada no ordenamento jurídico até a elaboração de uma outra lei capaz de substituí-la, quando de sua nulidade advier um prejuízo maior para o ordenamento jurídico e para a sociedade do que a sua conservação no sistema normativo. Convém registrar que muitos doutrinadores a consideram, não como um método de interpretação, mas sim como uma verdadeira técnica de decisão a ser utilizada pelo Tribunal Constitucional quando do controle abstrato dos atos normativos.
É imperioso deixar certo que a aplicação desta técnica de interpretação acarreta algumas conseqüências. A primeira delas consiste no dever de legislar, ou seja, busca-se como meio para sanar a inconstitucionalidade da lei, a edição de uma outra, de modo a evitar o surgimento de um vácuo normativo. A segunda implica na suspensão da eficácia da lei, por mostrar-se a mesma inconstitucional. A terceira, e a mais importante delas, é a manutenção da norma impugnada no ordenamento jurídico. Tal manutenção justifica-se em nome do princípio da segurança jurídica e tem por finalidade precípua evitar o vazio normativo, causador de enormes prejuízos tanto para o sistema normativo, quanto para a sociedade.
Deve-se fazer uso desta técnica de interpretação toda vez que o surgimento do vácuo normativo mostrar-se mais danoso ao sistema normativo e violador do Texto Constitucional do que a manutenção da norma impugnada no ordenamento. De igual modo deve a mesma ser utilizada quando a pretensão do autor da demanda não se satisfizer com a simples declaração de nulidade da lei tida por inconstitucional.
Em outras palavras, em certos casos a pretensão do autor consiste justamente em fazer jus a um determinado benefício conferido pela norma jurídica, de sorte que a declaração de sua nulidade, além de não solucionar o conflito, gera conseqüências ainda maiores, quais sejam, declara nulo um benefício que era perfeitamente válido e legítimo para aqueles que se encontravam abarcados pela lei.
Manoel Jorge e Silva Neto assim dispõe sobre o tema[36]:
“O princípio da correção funcional vem sendo utilizado pela Corte Constitucional Federal Alemã à medida em que se abstém quanto à retirada e espécie normativa declarada incompatível com a Constituição, isto é, ainda que ofenda a norma-vértice não se declara a sua nulidade.
Embora a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade da lei (Invereinbarkitser Klärung) gere insegurança na doutrina constitucional alemã, pode-se observar a utilização do princípio enquanto evita que o Judiciário modifique o modelo normativo originariamente engendrado pelo legislador.”
Não se pode negar que o emprego da declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade no Direito Brasileiro encontra certas barreiras. Estas se justificam na medida em que nesta técnica o não pronunciamento da nulidade, mostra-se, num primeiro momento, incompatível com os efeitos da decisão de declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle abstrato de constitucionalidade. Neste a declaração de inconstitucionalidade da lei acarreta, justamente, a sua expulsão do ordenamento jurídico.
Entretanto entende Gilmar Mendes que a Constituição de 1988 abriu a possibilidade de utilização da declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, ao passo em que conferiu uma atenção especial à inconstitucionalidade em virtude de omissão do legislador e ao Mandado de injunção[37]. Isso porque a finalidade destes remédios constitucionais não é outra senão a de declarar a mora inconstitucional do poder ou ao órgão que desfruta de competência para elaborar a lei.
Dessa feita, entende o doutrinador ser possível a aplicação continuada da lei declarada inconstitucional, naqueles casos específicos em que a própria Constituição exige, é dizer, em nome do princípio da segurança jurídica ou de excepcional interesse social.
É imperioso salientar também que a Lei n. 9.868/98, que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, também faz alusão à declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade ao estabelecer em seu art. 27, a seguir transcrito:
“Art. 27 – ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”
Tem-se, pois, que a possibilidade de restrição dos efeitos da decisão de declaração de inconstitucionalidade também foi conferida à ação declaratória de constitucionalidade e à ação direta de inconstitucionalidade.
Destarte, observa-se que no tocante à argüição de descumprimento de preceito fundamental a possibilidade de restrição dos efeitos da decisão vem precedida do cumprimento de determinados requisitos. O primeiro requisito imposto pela Lei n. 9.882/99 diz respeito ao aspecto formal consistente na exigência da maioria de dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal. O segundo requisito é de natureza material e consubstancia-se na presença de razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.
Percebe-se, assim, a cautela tomada pelo legislador pátrio no sentido de exigir o cumprimento de requisitos tanto de índole formal, quanto material, para que seja possível ao Supremo Tribunal Federal, em sede de argüição, restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. Deste modo, resulta evidente, que tal restrição não será permitida a toda e qualquer decisão de inconstitucionalidade, mas somente naqueles casos em que os requisitos legais forem preenchidos e que a própria Constituição assim exigir.
Nesse particular, Ives Gandra da Silva Martins atenta para o fato de que não se trata na hipótese de se questionar os efeitos ex nunc das decisões em medidas cautelares nas ações diretas de inconstitucionalidade. Escreve o autor que[38]:
“Nessas liminares, que veiculam um juízo provisório da Suprema Corte, a eficácia ex nunc, na maioria das vezes, exterioriza o fato de, a partir daquele momento e até a decisão final, a norma ter a sua eficácia suspensa. A própria suspensão da eficácia não se confunde com supressão da eficácia, que ocorre só ao final.”
Há que se reconhecer que em determinados casos a mera declaração de nulidade da lei não se mostra apta a solucionar o conflito constitucional instaurado. Muitas vezes a fixação dos efeitos da decisão ex nunc ou partir de uma data fixada no tempo apresenta-se como uma exigência da própria Constituição e dos princípios por ela adotados.
Deve-se usar como exemplo do acima dito o caso da lei orçamentária de um determinado estado ser considerada inconstitucional. Se o Supremo Tribunal Federal ao reconhecer a inconstitucionalidade da lei também declarar os seus efeitos ex tunc, ou seja, declarar a nulidade da lei desde a sua promulgação, enfrentar-se-á o dilema de como proceder com as despesas já realizadas com base na aludida lei orçamentária inconstitucional. Serão igualmente nulas? Sem dúvida alguma, tem-se que a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade afigura-se como um método de interpretação capaz de solucionar essas questões.
Ante todo o exposto, percebe-se que, apesar de perfeitamente plausível a ausência de declaração de nulidade, ela só ocorrerá se preenchidos certos requisitos legais, o que confere uma natureza excepcional.
CONCLUSÃO
A construção realizada nesse trabalho pretendeu repensar a jurisprudência pátria, defendendo a continuidade da Ação Direta de Inconstitucionalidade após a revogação ou perda da eficácia da norma objeto dessa ação, como verdadeiro meio de combate a fraudes contra o sistema jurídico brasileiro, e contra a perpetuação dos efeitos inconstitucionais já produzidos.
Não sendo possível que essa mudança se opere nos julgados pátrios, conclui-se que o meio hábil ao combate dos efeitos viciados pela inconstitucionalidade seria a utilização da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, por ser igualmente eficaz, sendo permitido não só o seu ajuizamento (atuando como substituta da ADIn), como a própria conversão da ação direta em argüição de descumprimento, quando, óbvio, presentes e configurados os seus requisitos, emprestando verdadeira e justa celeridade processual.
Nesse sentido, mostra-se imprescindível que se confira uma interpretação extensiva à argüição de descumprimento de preceito fundamental de maneira que o mencionado instituto possa ser dotado de maior amplitude e efetividade para que, deste modo, possa cumprir a sua função precípua, consistente numa valoração e respeito da Constituição da República e do Estado Democrático de Direito, além de apresentar-se como um valioso instrumento de defesa da própria cidadania.
Já no tocante à possibilidade de o Supremo Tribunal Federal restringir os efeitos da declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado também, conclui-se que isso em nada prejudica a sua utilização, pois essa restrição aos seus efeitos só pode ocorrer com a condição de que sejam respeitados os requisitos formais e materiais exigidos pela Lei nº. 9.882/99 e, ainda, que sejam aplicados somente naquelas situações que a próprio sistema constitucional está a exigir a manutenção da lei declarada inconstitucional no ordenamento jurídico por um determinado espaço de tempo.
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