No exercício do seu poder, a Administração Pública, legitimada pelo Princípio da Autotutela guarda para si a possibilidade de rever seus próprios atos. “Pela autotutela o controle se exerce sobre os próprios atos, com a possibilidade de anular os ilegais e revogar os inconvenientes ou inoportunos, independentemente de recurso ao judiciário.”1
O poder de autotutela da Administração Pública, encontra-se consagrado em duas súmulas do Supremo Tribunal Federal, as quais conferem à Administração Pública o poder de declarar nulos os seus próprios atos, quando da constatação de ilegalidade dos mesmos, ou então de revogá-los sob a égide dos critérios de oportunidade e conveniência do ato. 2
Assim, a legitimidade para praticar o autocontrole, é conferida à própria Administração Pública. Esta prática pode ser exercida ex officio, quando a autoridade competente verificar a ilegalidade de qualquer ato praticado durante o certame ou por provocação.
O fato de anular seus próprios atos, constitui um poder interno conferido à Administração Pública para rever a legalidade de seus atos.
Não se exige formalidade especial e nem há prazo determinado para a anulação do ato, salvo, se houver norma legal que o fixe expressamente. O que se exige, é a demonstração do ato ilegal que ensejou a anulação do procedimento.
A nulidade do ato acarreta efeito ex tunc, vale dizer, retroage desvinculando as partes desde o momento da prática do ato ilegal. Como corolário, desconstitui os efeitos jurídicos produzidos, resguardando, no entanto, os direitos de terceiros de boa-fé.
Em matéria licitacional o art. 49 da lei 8.666/93, consagra o Princípio da Autotutela da Administração Pública licitadora sobre seus atos. Este artigo utiliza a expressão anular para afastar do ordenamento jurídico licitacional o ato ilegal. Por isso, mister uma breve menção do que seja a expressão anulação para o Direito Público e para o Direito Privado.
No Direito Privado, anulação refere-se a anulabilidade do ato e nulidade a ato nulo. Toma-se aqui para justificar esta distinção a lição de Marçal Justen Filho, para quem, “Aplicando a terminologia com rigor técnico, não se ‘anula’ o ato ‘nulo’, mas o ‘anulável’”. 3
No âmbito do Direito Administrativo, a expressão anulado não diverge do sentido da expressão nulidade, vez que, a expressão anular é utilizada em sentido genérico para designar o reconhecimento de um vício e de proclamá-lo. 4
Resta saber portanto, se na esfera administrativa é possível constatar a distinção entre ato nulo e ato anulável.
Sobre o tema, o brilhante jurista Celso Antônio Bandeira de Mello relata que “Para alguns, no Direito Administrativo todo ato ilegítimo é nulo. Para outros, a distinção entre nulos e anuláveis, usual no Direito Privado, aplica-se com as devidas adaptações, ao Direito Administrativo.” 5
Ao tratar deste assunto em pauta, na esfera da licitação, Marçal Justen Filho diz que a consequência produzida pela nulidade do ato é uma sanção. Assim, distingue três formas de vícios possivelmente presentes no procedimento licitatório, que vão se diferenciar entre si de acordo com o grau de sua prejudicialidade, o que implica no fato de que a sanção aplicada ao ato ilegal, será proporcional à sua interferência no certame.
Depreende-se, portanto, que o ato distante do pensamento esculpido no preceito legal, carrega consigo uma pena mensurada e aplicada, na mesma medida em que interferiu na órbita jurídica do certame.
Com as considerações supracitadas, tem-se que, de acordo com o grau de gravidade da sanção atribuída ao ato ilegal, este poderá ser simplesmente irregular, anulável ou nulo.
O ato simplesmente irregular, é aquele que não atinge a regularidade da licitação, vez que não acarreta lesão a interesse público ou particular.
A anulabilidade, aplica-se àquele ato ilegal que fere interesse particular dos licitantes. Deve ser argüida pelo interessado, em tempo hábil, sob pena de preclusão, consoante o que dispõe o art. 41-§2ºda lei 8.666/93.
E por último, lesando diretamente interesse público, tem-se a nulidade, que ao ser constatada deverá ser pronunciada de ofício pela administração. Por ser vício insanável, o direito/dever de argüí-la não preclui.
A distinção aqui tecida sobre o destino do ato ilegal, orienta-se a determinar o grau de proteção necessário para garantir a tutela dos interesses públicos ou privado.
Por mais, depreende-se que, a Administração Pública licitadora impulsionada pelo dever do autocontrole, deve, ao analisar a ilegalidade do ato, pautar-se naqueles que ferem o interesse público.
Ainda no que concerne a legitimidade para anular os atos ilegais, passa-se neste momento, a relatar sobre a legitimidade do Poder Judiciário para apreciar a legalidade do ato.
O Poder Judiciário, assim como a Administração Pública, é parte legítima para julgar acerca da nulidade do ato. Só que diferentemente da Administração Pública, o Poder Judiciário imprescinde de provocação através dos meios processuais cabíveis.
Apesar do poder amplo que a Magna Carta confere ao Judiciário para apreciar os atos administrativos, sejam vinculados ou discricionários, o seu julgamento deve pautar-se tão somente em examinar a legalidade do ato ou analisar o grau de sua lesividade ao patrimônio público. Ao Judiciário não cabe decidir sobre os pronunciamentos privativos da Administração Pública.
Importa, portanto, ao Judiciário analisar tão somente se a Administração Pública licitadora agiu de acordo com a lei e se cumpriu concretamente a finalidade da licitação.
Concluindo o assunto referente à legitimidade para anular os atos ilegais, urge neste contexto, arrolar alguns comentários acerca da legitimidade para revogar a licitação.
Ainda que o procedimento licitatório preencha todos os mandamentos legais, a lei confere exclusivamente à administração licitadora, o poder de revogá-la.
A revogação consiste em retirar do mundo jurídico os efeitos de ato juridicamente válido, perfeito e eficaz, por razões de oportunidade e conveniência. O efeito produzido pelo ato de revogar, é ex nunc, ou seja, começa a surtir a partir da decisão.
Quanto a competência para revogar, expressa-se aqui, a opinião do eminente Miguel Reale “só quem pratica o ato, ou quem tenha poderes, implícitos ou explícitos, para dele conhecer de ofício ou por via de recurso, tem a competência legal para revogá-lo por motivos de oportunidade ou conveniência, competência essa intransferível, a não ser por força de lei, e insuscetível de ser contrasteada em seu exercício por outra autoridade administrativa”. 6
Deste ensinamento, depreende-se portanto, que a competência para revogar o ato administrativo cabe tão somente a quem o praticou. Assim, a competência para analisar os critérios de oportunidade e conveniência do ato, fundamentos para uma possível revogação, é exclusiva da Administração Pública que praticou o ato, excluindo-se, portanto, da esfera do Poder Judiciário a competência para revogar os atos meramente administrativos.
Dando-se fechamento ao tema concernente ao Princípio da Autotutela, por tudo quanto até aqui expressado, tem-se que, a legitimidade para tutelar os direitos lesados, de per si, cabe tão somente à Administração Pública licitadora.
NOTAS
1 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1996. p. 66.
2 Súmula 346 STF: “ A administração pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”.
Súmula 473 STF: “ A administração pode anular os seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.
3 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2001. p. 480.
4 Ibid., mesma página.
5 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 330.
6 REALE, Miguel in: Direito Administrativo. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1996. p. 206.
Informações Sobre o Autor
Ilza Maria Barros Spiazzi
Bacharel em Direito/PR