Resumo: O presente artigo tem por objetivo aferir se a Lei nº 11.343/2006 descriminalizou ou não a conduta de porte de drogas para consumo pessoal. Para tanto, faz-se mister estudar o conceito legal de infração penal e, por conseguinte, de suas duas espécies – crime e contravenção penal – a fim de atestar se o usuário de drogas pratica crime, infração penal “sui generis” ou um indiferente penal.
Palavras-chave: Usuário de drogas. Infração penal. Crime. Contravenção penal. Descriminalização. Infração penal “sui generis”. Despenalização.
Sumário: Introdução. 1. A suposta descriminalização do uso de drogas. 2. A ofensa ao princípio da lesividade: inconstitucionalidade da criminalização. 3. A despenalização do uso de drogas. Conclusão.
INTRODUÇÃO
A conduta do usuário de drogas, durante o período de vigência da Lei nº. 6368/1976, sempre foi enquadrada como um ilícito penal. Não havia qualquer discussão quanto a este entendimento, tendo em vista que era estipulada pena de detenção de seis meses a dois anos, bem como pena de multa.
O Decreto-Lei nº. 3.914/1941, conhecido como Lei de Introdução ao Código Penal, dispõe, em seu art. 1º, que “considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente, com a pena de multa”. Deste modo, havendo previsão de pena de detenção de multa para o usuário de drogas, dúvidas não havia quanto à natureza da conduta.
Sucede que, com a Lei nº. 11.343/2006, que revogou totalmente a Lei nº. 6368/1976, a conduta do usuário de drogas passou a ser passível de sanção pelas seguintes penas: advertência, prestação de serviços à comunidade e medida educativa. Ou seja, não há mais previsão das penas de reclusão, detenção ou multa, em razão do que não se enquadra no conceito legal de crime da Lei de Introdução ao Código Penal.
A natureza jurídica da conduta do usuário de drogas constitui tema deveras polêmico no cenário jurídico atual. O cotejo da Lei nº 6.368/1976 com a Lei nº. 11.343/2006, doravante denominada Nova Lei Antidrogas, tem suscitado, sobretudo em sede doutrinária, forte discussão acerca do enquadramento do porte de drogas para consumo pessoal.
A abordagem do tema foi realizada por intermédio do método analítico. A pesquisa bibliográfica se concentrou na consulta de textos, obras e regramentos, nacionais e estrangeiros, encontrados em acervos públicos e privados. Ademais, utilizou-se, ainda, o método eletrônico, via internet, como fonte de pesquisa de artigos e decisões judiciais.
Cumpre, pois, examinar o tema criticamente, com amparo nos diversos entendimentos doutrinários existentes acerca do tema, cotejando-os com o posicionamento adotado no âmbito dos Tribunais Superiores.
DESENVOLVIMENTO
I. A SUPOSTA DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO DE DROGAS.
O art. 28 da lei nº 11.343/2006 prevê as seguintes sanções para o usuário de drogas: advertência verbal, prestação de serviços à comunidade e freqüência a programas de desintoxicação. Essas penas podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, sendo que, em se tratando das duas últimas, o prazo máximo poderá ser de dez meses em caso de reincidência.
O § 6º do art. 28 estabelece que, para garantia do cumprimento de tais medidas educativas, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente, a admoestação verbal e multa. Observe-se que o descumprimento dessas medidas enseja aplicação sucessiva (e não simultânea) dessas medidas. Ou seja, ao primeiro descumprimento, corresponderá uma admoestação, ao passo que, ao segundo, uma multa.
É difícil vislumbrar o descumprimento de uma advertência verbal. Essas medidas de reforço servem, inegavelmente, para as penas de prestação de serviços a comunidade e freqüência em programa de desintoxicação. Ressalte-se que essas medidas não são penas, uma vez que não constituem preceito secundário de norma penal incriminadora.
Impende observar que não há previsão de pena privativa de liberdade. Segundo Guilherme de Souza Nucci, com o advento do novel legislação, ao usuário de drogas “jamais será aplicada pena privativa de liberdade”. Ademais, acrescenta o autor que “nem a contravenção penal recebeu tratamento tão benigno do legislador”.[1]
Por conta disto, surgiu forte discussão a respeito do uso de entorpecente: teria havido descriminalização desta conduta?
O art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal define infração penal como sendo conduta apenada com prisão simples, reclusão, detenção e/ou multa. Ora, da leitura do supracitado art. 28 da Lei nº 11.343/2006, pode-se perceber que as penas cominadas ao uso de entorpecente não se enquadram nesse rol.
Diante desta perplexidade, Luiz Flávio Gomes sustentou que teria havido, em relação ao uso de entorpecente, descriminalização. O autor leciona que:
“Não há dúvida que a posse de droga para consumo pessoal (com a nova lei) deixou de ser “crime” porque as sanções impostas para essa conduta (advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programas educativos – art. 28) não conduzem a nenhum tipo de prisão. Aliás, justamente por isso, tampouco essa conduta passou a ser contravenção penal (que se caracteriza pela imposição de prisão simples ou multa). Em outras palavras: a nova Lei de Drogas, no art. 28, descriminalizou a conduta da posse de droga para consumo pessoal. Retirou-lhe a etiqueta de “infração penal” porque de modo algum permite a pena de prisão. E sem pena de prisão não se pode admitir a existência de infração “penal” no nosso País.”[2]
O uso de entorpecente, assim, teria se tornado uma infração sui generis, o que acarreta, do ponto de vista penal, diversas conseqüências, senão vejamos.
Se perfilharmos o entendimento da descriminalização, uma condenação por uso de entorpecente não mais caracterizaria maus antecedentes e reincidência. Então, o usuário continuaria primário e portador de bons antecedentes (o seu estado de inocência não estaria, sequer, arranhado), o que assume extrema relevância para uma série de benefícios, tais como as reduções dos lapsos temporais para a obtenção da progressão de regime e o livramento condicional em crime hediondo e equiparado, bem como o livramento condicional em crime não hediondo.
Além disso, a transação penal e suspensão condicional do processo para o usuário tornar-se-iam instrumentos totalmente inócuos. Esses institutos servem para evitar que o autor do fato venha a ser efetivamente condenado e, assim, preservar o seu estado de inocência. A partir do momento em que afirmamos que o uso de entorpecente foi descriminalizado, a transação penal e a suspensão condicional do processo perdem a utilidade.
Essa posição, contudo, é minoritária, uma vez que a doutrina majoritária[3] e o próprio Supremo Tribunal Federal acolherem, acertadamente, a tese da despenalização. Vale conferir o teor do voto do Ministro Sepúlveda Pertence no julgamento que elucidou o caso na Suprema Corte:
“O art. 1º da LICP – que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção – não obsta a que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime – como o fez o art. 28 da Lei 11.343/06 – pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). Não se pode, na interpretação da Lei 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo “rigor técnico”, que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado “Dos Crimes e das Penas”, só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30).
Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30). (STF, 1º Turma, RE 430105 QO/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 13.2.2007. Informativo n. 456. Brasília, 12 a 23 de fevereiro de 2007).”[4]
O raciocínio em prol da descriminalização estaria perfeito se a Lei de Introdução ao Código Penal tivesse status constitucional. Ocorre que este diploma legal não passa de uma lei ordinária, tal qual a Lei nº. 11.343/2006, a qual, por ser lei especial, pode dispor de maneira diversa de uma lei geral. Não se está afirmando que houve revogação da Lei de Introdução ao Código Penal; o art. 1º deste diploma legal continua vigente e aplicável a todos os demais crimes do ordenamento jurídico.
A nova lei antidrogas pretendeu dar um tratamento mais benéfico ao usuário de drogas, eis que não previu como sanção a pena privativa de liberdade. É, portanto, inquestionavelmente, uma lei penal mais benéfica (uma novatio legis in mellius).
Nesse sentido, Fernando Capez sustenta que “o fato continua a ter natureza de crime, na medida em que a própria lei o inseriu no capítulo relativo aos crimes e às penas (Capítulo III)”. No tocante à incompatibilidade para com a Lei de Introdução ao Código Penal, o autor ressalta que a mesma “está ultrapassada nesse aspecto e não pode ditar os parâmetros para a nova tipificação legal do século XXI”.[5]
No entanto, é preciso reconhecer que se o uso de drogas, malgrado não seja apenado com reclusão, detenção, prisão simples ou multa, continua sendo considerado crime, operou-se uma mudança no conceito legal de crime em nosso ordenamento jurídico.
O conceito legal é aquele que se baseia na definição fornecida pelo legislador e, no caso do ordenamento jurídico, sempre se considerou que tal conceito estaria previsto no art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal. Este dispositivo consagrou o sistema dicotômico, pois estabeleceu duas espécies de infração penal, quais sejam, o crime e a contravenção penal.
Pois bem, até o advento da nova lei de drogas, ao abordar o conceito legal de crime, a doutrina pátria sempre menciona que era o fato em relação ao qual a lei previa as penas de reclusão, detenção e/ou multa. A partir da nova lei de drogas, se o uso de drogas, embora não possua tais penas, é crime, outra saída não resta senão concluir que houve uma mudança no conceito legal de crime.
De fato, ao tratar do conceito legal de crime, será imperioso mencionar a questão do uso de drogas, destacando que se trata de um crime peculiar, pois possui preceitos secundários distintos de todos os demais crimes do ordenamento jurídico.
II. A OFENSA AO PRINCÍPIO DA LESIVIDADE: INCONSTITUCIONALIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO
Conforme se demonstrou anteriormente, do ponto de vista dogmático, não houve descriminalização da conduta do usuário de drogas. No entanto, a nosso sentir, o legislador perdeu uma boa oportunidade de fazê-lo de modo expresso e definitivo. Isto porque tal criminalização não se harmoniza com o princípio da lesividade.
O princípio da lesividade ou da ofensividade que, consoante a doutrina mais abalizada, está, implicitamente, consagrado na Constituição Federal, determina que apenas se possa incriminar uma conduta que provoque lesão ou ameaça de lesão a bem jurídico alheio.
Trata-se, sem duvida, de princípio constitucional implícito, podendo o seu conteúdo ser extraído dos seguintes dispositivos constitucionais: art. 5º, incisos IV, VI, VIII, IX e X. Ademais, o princípio da lesividade também tem sede na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, Constituição Federal). Nesse diapasão, Sebástian Mello leciona que:
“Na verdade, o princípio da lesividade é um corolário, dos mais importantes, do princípio da liberdade e do princípio da igualdade. Como sustenta Smanio, o direito à liberdade de ser e de pensar, a obrigatoriedade da tolerância ideológica, da igualdade, bem como o próprio princípio da dignidade da pessoa humana veda a consideração do fato criminoso como mero indício da personalidade ou da periculosidade do sujeito.”[6]
Nilo Batista afirma que o princípio da lesividade possui quatro funções principais, as quais consistem, basicamente, na impossibilidade de se incriminar: atitudes internas, condutas que não ultrapassem o âmbito do próprio autor, meros estados ou condições existenciais e condutas desviadas que não afetem bens jurídicos.[7]
A primeira função impede que alguém seja punido por meros pensamentos ou sentimentos.
A segunda função, por sua vez, se relaciona com a impossibilidade de se punir a autolesão, isto é, condutas que não acarretem qualquer lesão ou perigo de lesão a bens jurídicos de terceiros, como é o caso da tentativa de suicídio.
A terceira função, em verdade, é corolário da negação de um Direito Penal do autor, haja vista que rechaça a possibilidade de se punir uma determinada pessoa pelo que ela é.
Por fim, a quarta função proíbe a incriminação de condutas que, malgrado sejam consideradas desviadas ou anormais pelo corpo social, não ofendem bens jurídicos alheios.[8]
Uma breve análise destas funções permite-nos concluir que a criminalização da conduta do usuário de drogas afronta tanto a segunda quanto a quarta função. Com efeito, o uso de drogas não representa perigo de lesão a bem jurídico de quem quer que seja. Além disso, o fato de se considerar o usuário de drogas um ser “diferente”, cujos comportamentos destoam daqueles que a sociedade moderna considera “normal”, não autoriza a criminalização.
Poder-se-ia afirmar que, ao usar drogas, o sujeito estaria violando a saúde pública, haja vista que poderia, futuramente, necessitar de tratamento a ser fornecido pelo Poder Público. Ora, o que dizer, então, dos sujeitos alcoólatras? A permanecer esse raciocínio, o lógico seria criminalizar o consumo de bebidas alcoólicos, pois as mesmas também podem afetar a saúde pública. De igual modo, como justificar a não criminalização do uso de cigarros?
Em essência, a distinção traçada entre drogas lícitas e ilícitas envolve mais aspectos políticos e econômicos do que jurídicos. Tais questionamentos objetivam esclarecer que não é a proteção da saúde pública que se pretende tutelar com a criminalização da conduta do usuário de drogas. Destarte, inexiste ofensa a bem jurídico alheio, em razão do que é patente a inconstitucionalidade da criminalização.
Destarte, não temos dúvidas de que a criminalização do uso de drogas não é a melhor solução “de lege ferenda”. Não obstante, tal entendimento não nos permite afirmar que a nova lei de drogas descriminalizou o uso de drogas. À luz do direito posto, usar drogas, infelizmente, ainda é crime, embora não seja mais cabível pena privativa de liberdade.
II. A DESPENALIZAÇÃO DO USO DE DROGAS
Em que pese a expressão “despenalização” já esteja consagrada na doutrina[9] e na jurisprudência, a nosso sentir, mais correto seria utilizar o termo “descarcerização”, o qual melhor reflete a impossibilidade de se aplicar pena de prisão para o usuário de drogas. Nessa linha de intelecção, isto é, no sentido de que, tecnicamente, não houve despenalização, manifestam-se Vicente Greco Filho e João Daniel Rassi:
“É indispensável uma observação preliminar de suma importância. A lei NÃO DESCRIMINALIZOU, NEM DESPENALIZOU (grifo do autor) a conduta de trazer consigo ou adquirir para uso pessoal, nem a transformou em contravenção. Houve alterações, abrandamentos, como adiante se comentará, mas a conduta continua incriminada. A denominação do capítulo é expressa. As penas são próprias e específicas, mas são penas criminais […].”[10]
Segundo esses autores, a decisão supracitada do Supremo Tribunal não implicou despenalização, mas apenas despenalização no sentido de exclusão das penas privativas de liberdade.
Todavia, não se pode negar que prepondera, em sede doutrinária, ter ocorrido despenalização. Na realidade, a doutrina associa o termo despenalização à inexistência de pena privativa de liberdade. Vale conferir, por exemplo, as lições de Alexandre Bizzotto e Andréia de Brito Rodrigues:
“É preciso deixar claro, então, que não houve descriminalização legislativa, mas sim uma despenalização das condutas ligadas ao consumo de drogas. A Constituição, em seu art. 5º, XLVI, previu uma série de penas. Sob a égide constitucional, não é necessário existir uma pena privativa de liberdade para que exista crime. A prisão é somente uma das modalidades de penas permitidas constitucionalmente e a opção de não se cominar prisão não significa a inexistência de crime. Não obstante não tenha ocorrida descriminalização legislativa, nada impede que seja dada vida à descriminalização judicial […].”[11]
Em suma, esses autores consideram que não houve descriminalização legislativa, mas que seria possível o magistrado, em sede de controle difuso, reconhecer a inconstitucionalidade da criminalização da conduta do usuário de drogas, ao argumento de que tal tipo penal não condiz com um Estado Democrático de Direito, pois viola o princípio constitucional da intimidade e desrespeito aquele que é diferente em nossa sociedade.
Em nosso entendimento, conforme salientado anteriormente, a criminalização do uso de drogas ofende o princípio da lesividade, sendo, pois, inconstitucional. Assim, é salutar que os magistrados, em sede de controle difuso, reconheçam tal inconstitucionalidade e deixem de aplicar qualquer tipo de pena ao usuário de drogas.
Sídio Rosa de Mesquita Júnior, a seu turno, assinala que:
“No art. 28 em comento, há crime e pena, mas a lei está mais adequada ao DCrim mundial, que refuta a pena privativa de liberdade, optando por penas não privativas de liberdade, mas sem perderem o aspecto de sanção criminal. Aliás, a própria CF prevê a cominação de várias espécies de penas e a prisão é apenas uma entre as autorizadas por ela (art. 5º, XLVI).”[12]
A certeza quanto à impossibilidade de cerceamento do direito ambulatorial do usuário de entorpecente pode ser obtida a partir da análise do art. 48, §§ 2º e 3º da Lei nº 11.343/2006:
§2º Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.
§ 3º Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente (grifo nosso).
É nítida a diferença entre esse dispositivo e o art. 69, parágrafo único, da Lei nº 9.099/95, o qual dispõe que “ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante nem se exigirá fiança”.
Este último dispositivo deixa claro, a contrario sensu, que se o autor do crime de menor potencial ofensivo se recusar a comparecer ao Juizado ou a assumir o compromisso de fazê-lo, poderá ser preso em flagrante, o que jamais poderá ocorrer com o usuário de drogas.
O fato de ter ocorrido despenalização (ou melhor, descarcerização) também gera uma importante conseqüência processual. É forçoso reconhecer que o habeas corpus deixará de ser uma via impugnativa à disposição do usuário de entorpecente (não mais poderá utilizar tal remédio caso pretenda, por exemplo, o “trancamento” de um termo circunstanciado).
É cediço que, para o cabimento do habeas corpus, é fundamental que haja, no mínimo, um risco longínquo ao direito ambulatorial, isto é, tal risco não precisa ser iminente, mas deve, de fato, haver algum risco.[13] Ora, não sofre mais qualquer risco de ter a sua liberdade cerceada e, por isto, não poderá se valer do remédio heróico do habeas corpus.
Por conseguinte, amplia-se o campo de emprego do mandado de segurança no processo penal, de modo que este será o remédio utilizado para, por exemplo, trancar um termo circunstanciado ou uma ação penal porventura instaurados, sem qualquer justa causa, contra o usuário de entorpecente.
A outro giro, como se considera que como houve apenas despenalização, os institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo continuam úteis. Nesse aspecto, é salutar que, em havendo justa causa, o usuário aceite tais benefícios, pois poderá vir a sofrer uma condenação criminal por uso de entorpecentes, o que maculará o seu estado de inocência, podendo consubstanciar, futuramente, maus antecedentes e reincidência.
CONCLUSÃO
Diante de tais constatações, conclui-se que o uso de drogas continua a ser considerado um crime em nosso ordenamento jurídico. É certo que a novel legislação foi extremamente favorável ao usuário, impossibilitando o seu recolhimento ao cárcere, mas não teve o condão de descriminalizar a sua conduta.
A doutrina e a jurisprudência pátrias continuam entendendo que há crime na conduta do usuário de drogas, não obstante não seja mais possível a imposição de pena privativa de liberdade. Do ponto de vista dogmático, esse entendimento está correto, pois a nova lei de drogas, na condição de lei especial, previu penas distintas daquelas já consignadas na Lei de Introdução ao Código Penal, mas ambos os diplomas legais coexistem no ordenamento jurídico.
Todavia, faltou ao legislador coragem para descriminalizar a conduta do usuário de drogas. Não há dúvidas de que, malgrado o uso de drogas possa, em alguma medida, afetar a saúde pública, no fundo, não chega a causar uma lesão a bem jurídico alheio. Ou seja, em outras palavras, a criminalização da conduta do uso de drogas ofende, frontalmente, o princípio da lesividade, revelando-se, pois, inconstitucional.
Assim, deve o operador do direito pugnar pela inconstitucionalidade da criminalização. O reconhecimento da inconstitucionalidade pode e deve ser efetivado no controle difuso de constitucionalidade.
Ademais, considerou-se, no presente trabalho, que a nova de lei de drogas modificou o conceito legal de crime em nosso ordenamento, pois, a partir dela, passou a existir um crime (o cometido pelo usuário de drogas) ao qual não se aplica reclusão, detenção e/ou multa. Assim, tal ressalva deve ser mencionada pela doutrina pátria ao abordar o conceito legal de crime.
Destacou-se, ainda, que a impossibilidade de cerceamento da liberdade do usuário de drogas acarreta uma importante conseqüência processual penal, qual seja, a impossibilidade de manejo do habeas corpus para trancar o termo circunstancia ou eventual ação penal.
Informações Sobre o Autor
Guilherme Costa Macedo
Advogado, Especializando em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Salvador