Resumo: Esse texto trata da proteção jurídico-constitucional à identidade homoafetiva. Ressaltando a importância de decisões judiciais no sentido de afirmar o seu reconhecimento, focaliza a complexidade como paradigma para orientar o tratamento social e cultural destinado aos sujeitos que abrigam tal identidade. O texto trata também de pressupor que o constitucionalismo acolhe todas as dimensões do humano, permitindo aos sujeitos, quaisquer que sejam, o sentimento de pertencimento a um Estado promitente de direitos de proteção. Afirma também o fato de que não efetivados os direitos prometidos, determinados sujeitos recorrem à visibilidade da identidade prejudicada com o objetivo de serem reconhecidos e assim superarem a discriminação e o preconceito.
Palavras-chaves: constitucionalismo; direitos humanos; homoafetividade; identidade do sujeito constitucional.
Abstract: This paper covers the legal and constitutional protection to the identity homo. Emphasizing the importance of legal decisions in order to affirm its recognition, it focuses on the complexity as a paradigm to guide treatment for social and cultural subjects that are home to such identity. The text is also assumed that constitutionalism welcomes all human dimensions, enabling individuals, whatever, the feeling of belonging to a prospective state of rights protection. It also affirms the fact that the rights promised uncommitted, certain subjects resort to impaired visibility of identity with the goal of being recognized and thus overcome the discrimination and preconception.
Keywords: constitutionalism; human rights; homo-affection; constitutional identity of the subject.
1. IINTRODUÇÃO
Uma análise sobre o lugar ao qual pertencem os sujeitos orientados pela homoafeição, passa, necessariamente, pela compreensão sobre a forma como vêm sendo historicamente tratados os sujeitos que se trocam dessa maneira. Tema tão largo comporta as várias dimensões que habitam tanto o humano quanto a vida social. Complexo demais, retira-nos o fôlego, especialmente se, de alguma maneira isso nos habita. Mas para viabilizar uma “nova imagem do pensamento”: do homoafetivo-sexual a partir da sua identidade de sujeito constitucional, pensamos que se deve matizar o tema sob o viés de que “é possível melhorar o mundo” (MAFFESOLI, 2009, p. 82), e, mais ainda pelo que disse Walter Benjamin (1995, p. 231) “ao lado das dolorosas decepções, há os achados felizes”.
Situá-lo nesse contexto valida e engata a discussão. Isso porque o direito, fazendo parte desse caldo cultural inovado e, por vezes, requentado pela globalização ou pelo que Edgar Morin (1997) chama de era planetária, tem-se deslocado fortemente para as garantias sociais. Eduardo Thompson (1987) concebeu assim o direito quando o definiu dotado de conteúdo universal. E como bem dito por Andrieu Assier (2000, p. 13), o direito não se resume “a uma série taxativa de normas, de regras, de princípios e de proibições. É muito mais um modo incessantemente renovado de imaginar o real”.
As pessoas homoafetivas-sexuais têm cada vez mais participado desse processo que George Gurvitch ( 2003) com acerto, chamou de “a experiência jurídica”. Essa participação é manifesta, inclusive, no sentido de que, embora ainda haja muitas resistências sociais e culturais à penetração de tais sujeitos em determinados contextos, cujo valor que se presta como requisito é a conformação a uma ordem socialmente ditada pela repressão, desenham-se cada vez mais no nosso cotidiano uma reinvenção do modo de ser baseado na premissa de Nietzsche (2003) de que as morais também não passam de uma linguagem simbólica. Na perspectiva aqui manifesta, tal concepção aparece como pressuposto da constituição da vida em todos os seus contornos.
É por isso que não dá mais para disfarçar que os indivíduos, todos eles, movidos por afetos/afetações, tem disto o lugar por excelência da edificação ou construção dos seus céus e dos seus infernos que se traduzem na sua relação com o outro e o mundo. E, no caso do homossexual, cujo destino é aceso por ecos alumiados por um outro genitalmente “igual”? Céu e inferno, ambos tão verbais: céu e inferno, inevitáveis, nem maiores nem menores, nem mais límpidos nem menos dolorosos, nem mais e nem menos vitais, diferentes, por isto, sempre iguais?
2. A CONTRIBUIÇÃO DAS VOZES JUDICIAIS
Nos tempos atuais de hedonismo em que segundo Maffesoli (2009) a internet, representa para os indivíduos o que a ágora representava para os gregos; a criação tendendo a ser mais importante do que o trabalho; de confusão de sentimentos e de valores; da produção de fatos reais desencarnados de moral, porém servindo-se dela e provocando reações que indicam uma tendência, especialmente dos jovens, de já não mais se deixarem iludir inautenticidade; tempos em que as hierarquias sociais, embora ainda resvalem cruelmente sobre os indivíduos, produzindo desigualdades, porém não o suficiente para alhear-se da carnavalização que regenera a autenticidade no sentido de Bakhtin (1987), as instituições sentem-se compelidas a ouvir as vozes da realidade.
Então, declarar em sede de processo civil que um casal homossexual pode adotar uma criança; que o seu companheiro deve herdar ou, no mínimo, que entre eles havia uma relação contratual; que a dependência econômica como princípio para assegurar a cobertura previdenciária e de saúde se aplica ao companheirismo, cunhado de uma relação homoafetiva, representa não só o reconhecimento da repercussão jurídica desse relacionamento como também a pedagogização para o acolhimento social e cultural desses indivíduos.
O argumento imediatamente acima se fundamenta na premissa de que as instituições que julgam e aplicam o direito tendem, necessariamente, a interagir com o que já está posto na esfera privada deles, que, por sua vez, se reflete na praça, pois tais, assim como a sociedade, estão sendo compelidas a ouvir que as pessoas se relacionam da maneira como os seus afetos o determinam e isso inclui os apetites sexuais; que a identidade se expressa e se constrói também pelo caminho traçado pelo desejo. E que tanto isto é verdade que a interpelação dos sujeitos pelo outro também ocorre movida pelos sinais apontados pelo primeiro. Ou alguém duvida que os desejos de alguém sirvam para ressaltar o olhar do outro em sua direção, determinando a forma de tratamento que lhe será destinada, social e culturalmente?
Nesse sentido a discussão em torno da autonomia sobre o próprio corpo é um direito repercutido da dignidade no sentido Kantiano. E as normas, antes submetidas tão somente à publicização para saciar a validade formal, já não mais se contentam com isso. Agora têm até a sua interpretação submetida à das ruas (HABERLE, 2003), pois é neste lugar que a vida autêntica se realiza (MAFFESOLI, 2000). Valendo observar que, evidentemente, tal autonomia não é absoluta. O direito brasileiro, por exemplo, regula a doação de órgãos como substrato de um princípio anterior: o respeito à vida, em todos os aspectos. No que diz respeito a autonomia que se reflete na vida sexual da pessoa, aquecer-se, ser tocado, sentir o cheiro, agasalhar-se, enfim …. enroscar-se num outro genitalmente igual não nos parece significar desrespeito à vida e sim uma ampliação das possibilidades culturais e sociais dos afetos vitais.
Vale esclarecer que o alargamento da interpretação do direito para a praça, fenômeno que é chamado por Peter Haberle (2003) de interpretação aberta, reflete o processo que desfigurou o modelo positivista que compreendia o direito submetido para a sua validade tão somente à publicização da norma e, cuja legitimidade se reduzia à simples positivação desta. Assim legalidade e legitimidade coincidiam.
A participação dos sujeitos sociais tanto na validade e legitimidade por meio do assentimento dos interessados direta ou indiretamente nas lides, exigindo até mesmo das decisões que aplicam a norma, a noção de “única resposta correta”, (DWORKIN, 2003), perseguindo o rastro dos direitos fundamentais, reflete um movimento chamado de pós- positivismo ou constitucionalismo democrático que, noutras palavras, representa um aprendizado social que espera ver refletido no direito, em todos os momentos que o constituem, inclusive o da sua aplicação, a presença do tripé, igualdade, dignidade e liberdade como chaves interpretativas.
Essa perspectiva tem de Peter Haberle (2003) a compreensão de que a interpretação do direito se dá no interior do tecido social, num movimento incessante e complexo e que, por exemplo, os procedimentos da audiência pública e do amicus curiae (amigos da corte) este adotado pelo Tribunal Constitucional Brasileiro, significam a institucionalização, entre nós, do que antes era só uma premissa. Isso quer dizer que a sociedade não delegou plenamente a interpretação do direito aos “outros” (às instituições), destituindo-se de tal papel. Antes guardou também para si a mesma função.
Os juízes, os administradores, os advogados e outras figuras que compõem o mundo dos que dizem sobre o direito, não o fazem deslocados do social e do cultural, pois parecem compelidos a, no mínimo, imaginar o que estes mundos pensam e realizam. Isto quando não os chamam para opinar, assemelhando-os ao papel do Ministério Público nas causas judiciais em que deve intervir.
Então, todos os mundos estão cada vez mais associados no atual modelo constitucional conduzido pelo pós-positivismo. E no que se refere ao dizer judicial em sede de causas em que os interesses se originam das relações homoafetivas, tal dizer não se resume ao mandamento em si proferido pelo juiz, como já foi dito. Tem repercussões fortíssimas fora das partes interessadas imediatamente no processo, pois, indiretamente, significa dizer, também, por exemplo, em caso de adoção por casais homoafetivos, que a criança tem direito a dois pais ou duas mães e que não ter nenhum é o que não tem justificativa para ser admitido, pois significa um desrespeito ao princípio da proteção integral (artigo 127 da Constituição Federal). E que tal compreensão deve prevalecer sobre quaisquer outras que inviabilizem o direito ao amparo e ao acolhimento por parte do infante ou do adolescente.
Na verdade, o direito parece atualmente tender ao “chamamento à ordem” aquelas ações alinhadas com a eclipzação e a estigmatização dos sujeitos, cuja identidade que os diferencia dos demais não ouviu ainda as vozes sociais ou institucionais, dizendo-lhes sim. Nessa perspectiva, o direito revela-se, portanto, um poderoso aliado dos que pretendem fundar a sua existência social e cultural, pautando a a própria identidade “desregrada” como suporte. Nesse caso, a afirmação das suas próprias diferenças tende a servir como referência e ponto de partida e a exposição de tal identidade “diferenciadora” aparece como instrumento cujo fim é resistir à determinação histórica da única destinação permitida às diferenças: a “escuridão social”, enfim a inexistência perante o outro.
Na perspectiva acima, tanto o direito quanto a sua aplicação, afirmando a identidade de sujeito constitucional do homossexual, assim como de todos os outros indivíduos que de algum modo são prejudicados pela ausência de democracia social (DAGNINO, 1999), constitui-se do paradigma que deve ter ascendência sobre a mesquinhez, a hipocrisia, enfim, sobre os preconceitos que nada mais representam do que a adesão ao ordinário (MAFFESOLI, 2009).
A identidade constitucional dos homoafetivos segue, então, alinhada à resistência em face do que o autor acima chama de “cheiro de matilha”. Maffesoli (2009) utiliza esta expressão para caracterizar a adesão das pessoas que pretendem manter o velho, fingindo que as coisas novas ainda não foram inventadas. Ele chama isso de república dos bons sentimentos, ironizando a cegueira, inclusive de alguns intelectuais que teimam em repetir velhas fórmulas que já não servem mais à vida real e autêntica, substanciada no cotidiano, na transitoriedade, no tribalismo, este que ressalta as emoções e a vitalidade que não combinam com negação, mas com positividade de tudo que refere ao humano e não amarga, ao contrário, adoça a vida e o mundo.
Então pensar a homoafetividade partindo do paradigma de que todos são sujeitos constitucionais, corrobora para engendrar a discussão, justamente porque conceitualmente esta se revela, como toda identidade, na tensão entre a sua própria afirmação e na indeterminação, sugerindo que é constituída processualmente, alinhando-se à transitoriedade, própria dos tempos atuais. Vale ressaltar que o processo de afirmação identitária alinha-se, também, ao esforço pela superação ou pelo menos resistência, à repressão e à estigmatização que tendem a culminar em exclusão no caso dos sujeitos homoafetivos ou outros tantos, pois como bem afirma Evelina Dagnino (1994), o autoritarismo social se revela no tratamento desrespeitoso destinado aos “diferentes”
Essa perspectiva supõe o vínculo da luta dos homoafetivos por reconhecimento ao modelo democrático pretendido pelos Estados que constitucionalizaram os direitos humanos, uma vez que a confirmação da democracia, requer o empenho pela afirmação dos direitos de todos à luz do que vai sendo construído autenticamente no mundo da vida. A mesma autora imediatamente acima diz que a redefinição da idéia de direitos, pautando uma nova sociabilidade e a incorporação conjunta entre igualdade e diferença, dentre outros elementos conceituais, são indeclináveis para a construção do que ela chama de nova cidadania.
Então, como já não é mais possível fingir que não há uma variedade enorme de formatos sexuais, dentre eles a homossexualidade, esta deve ser compreendida como parte do tecido social. E, talvez, por isso mesmo, inúmeras decisões judiciais já reconheceram repercussão jurídica desse modo de relacionar-se, como foi mencionado. Há decisões também, cujo mandamento se constitui de impedir eventual prejuízo aos direitos de homoafetivos, referido da resistência social ou cultural a tal forma manifesta de afeto. Isso tende a demonstrar que a tomada do corpo pelo sujeito de forma menos alinhada ao “grosseiro social”[1] tende a se fortalecer.
Não obstante tantos sinais de reconhecimento de tais sujeitos como categoria social, há resistências ainda bastantes pungentes, é claro, e que, por vezes, se fazem sentir literalmente na carne: as estatísticas mostram que a violência, especialmente, contra travestis, é alarmante. Não pretendemos aqui tratar dos contornos sócio-culturais específicos que se apresentam como determinantes deste fato. Contudo, é importante tal alusão para ficar nítido que, embora a constitucionalização dos direitos humanos seja uma forma de reinvenção do real no sentido de manejar um processo social que supere a estranheza do indivíduo em face do outro, o direito, meramente, como programa ou paradigma para tal, não se faz suficiente para a efetivação ou consolidação disso. Pensar o contrário seria, no mínimo, ingênuo.
3. A CONTRIBUIÇÃO DAS “PARADAS”
Na perspectiva acima, as “paradas” talvez sejam muito importantes para que o eco ressoado delas sirva não só para dá visibilidade da existência numerosa de tais sujeitos, mas, especialmente, para que homossexuais dêem o seguinte recado: a singularidade marcada pelo desejo afetivo-sexual por um mais igual do que está culturalmente autorizado e por uma estética que os faz presentes mais do que outros, já não parecem mais ter força para que o cultural concebendo-os como “estranhos”, os exclua.
A visibilidade que as “paradas” garantem, concretizando o direito à existência por parte dos homoafetivos, revela o próprio direito como um elemento que de fato tem ascendência sobre a realidade cultural e social e, por conseguinte, o traduz como fonte de emancipação do sujeito, não só porque repercute sobre a sua interpretação e aplicação por conta dos mecanismos reflexivos[2] (LUHMANN, 2003) que disso ressoam, mas também porque significa a materialização do que Benevides (1994) chama de educação para a cidadania ativa.
Nesse caso, o direito reinventa-se a si mesmo, deslocando-se mais ainda para suporte e garantia de liberdade, igualdade e dignidade. Esta que parece ser a marca do pós-positivismo, justamente porque impõe como valor ascendente a pessoa humana em detrimento de um modelo de direito indiferente aos processos sociais, marcado pelo narcisismo que o positivismo Kelseniano pretendeu inscrever na horda da interpretação, por sua vez, marcada pelo jurisdicismo. Agora, que a mera subsunção do fato à norma já não mais parece suficiente para conceber a aplicação adequada desta, a identidade do homoafetivo pode deixar-se revelar com expectativas menores quanto aos riscos sociais que outrora estavam expostos os mais corajosos.
Porém, a despeito dessa nova imagem do pensamento (SILVA, 2007) que parece desenhado inclusive no campo institucional-burocrático, importante também questionar porque, apesar de um processo que tende a consolidar os direitos civis e, até sociais desses sujeitos, pautados pela afirmação da identidade homoafetiva, pelo desejo de visibilidade sobre a sua orientação sexual, muitos tendem ainda a recolherem-se.
A questão acima não será, por óbvio, respondida aqui, mas levantá-la entendi importante para desenhar o quadro de resistência que ainda existe por parte de muitas pessoas à visibilidade acima. Entretanto, embora não se pretenda analisar tal quadro, vale pelo menos imaginar que o fato de muitos resistirem a tal visibilidade pode resultar do receio da estigmatização ainda muito contundente. E quanto aos que, a despeito disso, “se mostram” é seguro supor que o fazem impulsionados pelo desejo de pertencimento que toda parte evoca na direção da unidade. Unidade esta aqui representada pelo signo da raça humana.
É claro que o argumento acima não pretende desconsiderar a importância dos reflexos políticos, sociais e culturais que tem as “paradas”. É exatamente o contrário, pois entendemos que elas ajudam a esculpir ou são emblemáticas do que Boaventura (2008) denomina atos políticos contra hegemônicos. E, considerando que muitas pessoas que saboreiam o mesmo gosto afetivo-sexual, recusam-se ou nem cogitam participar das “paradas”, parece seguro conceber que tal encolhimento perante a platéia social parece uma deliberação do homoafetivo, determinada pelos riscos de ser concebido como “mal”, pois isto é o que resulta do fenômeno da estigmatização.
Paradoxalmente, isso tende a nos sugerir que as passeatas se constituem de uma amostra do ponto de vista do que a estatística considera como tal. E se assim o for, a premissa acima de que a homossexualidade já se constitui como algo que não surpreende, pois que cada vez mais tece o cotidiano de todos, torna-se não só plausível como válida, em especial, se considerarmos que dois milhões ou mais de pessoas se apresentando na praça é mais do que revelador dessa colorida realidade.
Repetimos que a motivação que nos parece mais sublime das “paradas” e que se mostra como a raiz de todas as outras é aquela que não se apresenta visivelmente – uma luta que está por trás do “palco” e que já vem sendo apontada aqui: a luta por acolhimento, a luta por uma imagem que revele o homossexual como sujeito cuja disposição psíquica e cultural se resume ao partilhamento de um destino comum – a humanidade.
Isso significa que o homossexual, pelo menos aquele que, além de não se importar com a visibilidade dessa atribuição, usa-a como instrumento de reafirmação de sua dignidade, parece pretender que o reconhecimento dessa identidade represente um sintoma da complexidade que compõe o humano e o que ele toca. E acolhê-lo significa, por assim dizer, simplesmente que ele não será excluído, reduzido ou minorizado por meio da fragmentação dele como sujeito potencialmente praticante de todos os verbos promovidos pela criação, especialmente, o verbo sentir. Este “sentir” que faz a pessoa, ou até mesmo um outro animal qualquer, pertencente ao mundo, posto que destinatário de proteção.
No caso da pessoa humana, destinatária de direitos de proteção constitucionalizados, o sentimento de pertencer faz operar, como qualquer outro sentimento, a sua individualidade e uma estética que a faz única, exclusiva e especial e, ao mesmo tempo, peça de uma engrenagem universal e indivisível: a humanidade. Edgar Morin (1994) mediante a sua proposta metodológica da complexidade como paradigma para a vida e para a transformação do pensamento simplificado para um pensamento acolhedor, substancia os argumentos acima quando dispõe que o humano é, ao mesmo tempo, indivíduo, parte da sociedade, parte da espécie.
Julga o mesmo autor que todo desenvolvimento pautado concretamente na concepção acima, deve compreender o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e de pertencimento à humanidade, pois que a finalidade ética do novo milênio é conceber a humanidade como “comunidade planetária”. Não porque todos são iguais, mas porque o sentido das diferenças é justamente matizar o social de um todo complexo que nunca se esgota nessa construção e que por isso podemos sempre nos surpreender por que o inesperado sempre vem (MORIN, 1994).
E se não é inesperada a conduta afetivo-sexual dos sujeitos aqui sob discussão, entretanto, era, até pouco tempo, no mínimo, difícil imaginar que o homossexual que foi retraído pela historia, essa mesma historia, privilegiando a função emocional e os mecanismos de identificação, por conta de um retorno ao arcaísmo, a uma “tendência orgástica e dionísica”, fluida e, por vezes, afetual, como diz Maffezoli (2000), revitalizasse a tomada pelo indivíduo da soberania (HABERMAS, 2002) sobre o seu corpo, tendendo a reverter o processo histórico a que Foucault (1998, p. 19) denominou “hipótese repressiva” e até nos fazendo crer que a premissa de Herbert Marcuse (2009) de juntar o político e o erótico já não parece assim tão utópica.
Isso porque o sistema edificado sob a ordem da repressão, do sacrifício dos prazeres, da subordinação à engrenagem produtiva parece já ter começado a morder o próprio rabo. E sendo assim parece que o “canto das sereias” tende a prescindir de cuidados, pois a escravização à racionalidade técnica, instrumental e psíquica a que fomos submetidos, como assim pensou Adorno (1998), foi de fato o que expôs a humanidade ao risco de afogamento.
Esse olhar parece que realmente nos autoriza a pensar uma nova soberania que se desenha sobre o corpo, ilustrando a possibilidade, ou, no mínimo, uma tendência à emancipação, consubstanciada, inclusive, no direito como invenção, para além de instrumento repressor como muitos pensaram. Assim está sendo possível, porque o direito, como substrato humano, portanto histórico, também está incessantemente em movimento sendo filho e pai da história.
4.O SENTIMENTO CONSTITUCIONAL PAUTANDO A INCLUSÃO E OS TEMPOS DIONÍSICOS?
A constitucionalização dos direitos humanos e a permanente abertura do canal de significação exposto à atribuição da identidade de sujeito constitucional a todas as pessoas, especialmente, por conta das suas diferenças e não pela metafísica da igualdade, aparece como suporte garantista de que já não precisamos mais nos comportar como gado ou como heróis, bem ao gosto da civilização ocidental.
O pensamento de Herbert Marcuse (2009) sobre a compatibilidade entre a política e o erotismo parece cada vez mais atual se considerarmos que a luta por reconhecimento travada pelos homoafetivos, cuja força cosmológica tende a se deslocar do individual para o tribal, alimenta-se cada vez mais da construção de um “sentimento constitucional” calcado na dimensão humana.
A propósito, Herbert Marcuse (2009, 19-23), afirmando sobre a tendência a uma “solidariedade instintiva” da civilização ocidental diz que aquela sempre glorificou o herói, o sacrifício da vida pela cidade, pelo Estado, pela nação, mas raramente indagou se a cidade estabelecida, o Estado, a nação eram dignos do sacrifício (…) a verdadeira necessidade de mão de obra produtiva declina, e o sistema para fazer face a essa eventualidade, tem de prover a criação de ocupações sem trabalho; tem de desenvolver necessidades que transcendem a economia de mercado e que podem até ser incompatíveis com ele (…) hoje, a luta pela vida, a luta por Eros, é a luta pela política.
O desencantamento do mundo que fez a linguagem da ciência e da matemática substituir-se aos discursos da filosofia e da divindade, deslocando até mesmo o papel da constituição da vida pela própria vida para a sua reprodução in vitro, tendo de conviver, paradoxalmente, com o reaparecimento do corpo que a razão moderna, vitoriosa por algum tempo, havia feito desaparecer, serve para afirmar a proeminência da dimensão humana e, por conseguinte, o retorno do encanto e da vida. Esta que sempre se consubstanciou, segundo Marcuse (2009, p. 60) “na multiplicação das questões mais que das respostas, à identificação de possíveis, mais que a capacidade de formular uma explicação verdadeira”.
Não se está com isso valorando mais o conjuntural em detrimento do estrutural, pois a ordem continua sendo a busca mais vislumbrada. E, considerando que a proporção desta está diretamente relacionada ao nível do caos, certamente a busca por ela está cada vez mais gulosa. Entretanto, não se vê cara de susto nas pessoas quando constatam, por exemplo, que o mundo novo e virtual funciona cada vez mais sem os corpos (MILOVIC, 2004); que, paradoxalmente, os corpos se afirmam justamente na ausência, pois que o fato de duas ou mais pessoas poderem fazer sexo a milhares de quilômetros de distância, representa o retorno talvez sempre desejado aos tempos dionísicos, estes mais coerentes com a ordem primária do mundo.
Assim, a emancipação tanto individual quanto social vislumbrada pela valorização da convivência entre razão e emoção; da aproximação ou embrincamento da política e do Eros, desenhada, por exemplo, nas paradas gays, “nos impõe pensar sobre o novo, pois não pensá-lo já é condição do mal, do qual, hoje, somos testemunhas, conforme Hannah Arendt” (MILOVIC, 2004. p. 47). Saber discernir a profunda mutação societal em curso ( MAFFESOLI, 2009), impondo a renovação, inclusive dos questionamentos, apresenta-se como pressuposto da “nova cidadania”.
Para os homossexuais, participar desta compreende a adesão ou até a superação de estratégias das quais, historicamente, não tiveram participação ativa. As “paradas” são exemplos disso na medida em que em forma de carnavalização pautam a vida privada, menos como rompimento com o oficial e, mais como afirmação, inclusive perante as instituições da identidade homoafetiva, demonstrando que os homossexuais não “fazem mal a ninguém”. Embutido nisso há um sentimento de que pertencem, politicamente, a uma determinada comunidade política e, sendo assim, merecem tratamento respeitoso como quaisquer outros. Esse é o sentimento constitucional do qual todos devem partilhar e os homoafetivos parecem ter despertado para isso.
A normatividade dos princípios jurídicos tem sido muito importante como instrumento para a realização desse projeto de emancipação e partilhamento: a elevação dos princípios de liberdade igualdade ao topo do nível hierárquico-juridico tem colaborado de maneira importante para a consolidação cada vez mais contundente dos direitos civis das pessoas identificáveis como homoafetivas.
E não só no campo dos direitos ditados pelo interesse de cunho econômico, pois a concepção da identidade do homossexual como sujeito constitucional, identidade esta que só encontra sua razão de existir, exclusivamente, em face de um fato desrespeitoso e prejudicial aos direitos humanos, no que diz respeito aos homoafetivos, tem como característica ou impedir a exclusão ou reverter esta se já consolidada pela estigmatização.
Então o que anima essa identidade de sujeito constitucional, portanto, não é só o gozo de direitos civis-econômicos. O que a anima, verdadeiramente, é o impulso de usufruir em liberdade, igualdade e dignidade da sua orientação sexual sem ser por isso incomodado, minorizado, reduzido, retraído, invisibilizado, enfim excluído, como já foi dito, pois a identidade constitucional das pessoas, individuadas pelas diferenças e nunca pela igualdade, deve representar um cordão de isolamento de todo e qualquer obstáculo à sua passagem acompanhada exatamente por tais diferenças.
No caso do homoafetivo, o ânimo acima deve representar, evidentemente, o direito à passagem da própria identidade homoafetiva e de assim orientar-se, incluindo até mesmo o direito à visibilidade da sua orientação sexual sem que por isso seja social e culturalmente marcado ou estigmatizado pelas vozes estridentes da repressão (BACILA, 2008). Estigmatização esta que historicamente aparece como a forma manifesta de vingança pública sobre comportamentos, não criminalizados, porém não assentidos por não cheirarem a matilha.
No que se refere aos homossexuais como os sujeitos de um modo geral, a estigmatização ainda “se constitui de uma trama que se transforma num conto de terror que faz, com o passar do tempo, as pessoas acreditarem nessa história” (BACILA, 2008, p. 21). Isso talvez colabore para a compreensão sobre a mencionada resistência à exposição ou visibilidade de sua orientação sexual por parte de muitos homossexuais. Portanto, não achamos que convenha criticas a eles por isso. Por outro lado, a pulsação tribal de boa parte deles, organizando-se politicamente pela visibilidade, pela significação para a realidade que querem representar como pulsão de vida e não de morte, é não só evidente como também merece louvor.
Hoje muitas dessas pessoas estão no pelotão da frente em várias batalhas que confirmam não só a identidade constitucional delas projetada pela homoafeição, como também de todos aqueles que preferem não aparecer. Suas ações são eminentemente criativas do ponto de vista dos reflexos que tendem a produzir, pois inventam ou produzem uma engenharia que fortalece o acolhimento, a inclusão, enfim, a proximidade de todos com o partilhamento do projeto geral humanitário.
A luta não só pelos direitos civis de cunho econômico, quais sejam os direitos de conteúdo sucessório, previdenciário, contratual e obrigacional, como também pelos direitos de personalidade, como, por exemplo, o direito de adotar e o esforço político dos homoafetivos pelo direito de formalizar a união delas pelo casamento, demonstram que a identidade homoafetiva tatuou o projeto humanitário, definitivamente.
No caso específico do casamento, sugere tal luta que o fazem movidos pela compreensão que isso significaria muito politicamente para o grupo porque representaria um aceno de que não são menos iguais do que os “outros” e que, apesar das diferenças, das marcas pessoais e de tudo que a realidade inventa para implementar o projeto de humanidade, todos, sem exceção, fazem parte de tal projeto. Este que tem mais das diferenças e menos da igualdade entre as pessoas a sua substância, esculpindo uma humanidade, cujo suporte para sua validade como tal deve ser a não estranheza e o respeito ao “outro”.
5. A IMPORTÂNCIA DO OUTRO
Discutir sobre os contornos da visibilidade, ou não, dos homoafetivos, partindo da idéia de direito de serem identificados como tal e não serem por causa disso prejudicados e estigmatizados, nos impõe refletir sobre a complexidade do tecido social. O mundo da vida é composto por varias partes que se agregam, se resistem, se repelem, se contradizem e outros tantos verbos que se realizam por força, especialmente, do primeiro verbo: o verbo sentir. O verbo sentir tem ascendência sobre todas as ações humanas como bem compreende um dos heterônimos de Fernando Pessoa (1998).
Essa também é a linha de pensamento de Ivan Correia (2007) quando diz que toda demanda é uma demanda de amor. Noutras palavras, pode ser dito: toda demanda individual carrega em si o desejo de ser reconhecido no e pelo outro porque o significante é o rastro da pessoa no mundo, projetado para o outro, pois nunca estamos satisfeitos sozinhos.
Aliás, para ilustrar o quanto somos eminentemente relacionais, Renato Menzan (2003, p. 120) ao discutir “a trama dos conceitos” de Freud levanta uma questão sobre o espírito enquanto processo social dizendo: “porque é imperioso comunicar a alguém a frase espirituosa que elaboramos? Porque não podemos, em geral, nos satisfazermos como o nosso próprio humor? São estas as questões que se colocam a partir da “intervenção do terceiro homem” no ciclo do prazer, observando, também, que “a necessidade da presença do terceiro é o que diferencia o cômico do espirituoso, mas mesmo no cômico, se precisa de pelo menos dois: o que ri e aquele de quem se ri”
O disposto acima ilustra genealogicamente o porquê do insucesso do projeto positivista no campo das ciências sociais, tentando de toda maneira separar sujeito e objeto. A natureza do ser, especialmente consubstanciada por flechadas de significados assentadas por emoções, não permitiu que as disjunções promovidas por tal método prevalecessem.
A realidade é soberana, por isso o todo que lhe dá conteúdo é indivisível, não permitindo, portanto, a dissolução da complexidade que a tece. Diz Edgar Morin (1994, p. 38)) sobre o tema que “complexo significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade quando elementos são inseparáveis, constitutivos do todo. Por isso a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade”.
A aventura humana entre o sim e o não na base de qualquer representação, segundo Maffesoli (2000) se nutre, evidentemente, do politeísmo de valores, lembrando que existe uma soberania que resulta dessa conjugação triunfante do sentimento de pertencer e cada vez mais integrar-se aos “outros”. Isso nos tempos atuais está cada vez mais intenso porque a liquidez da modernidade, como bem compreende Baumann (2000) não permite a estabilidade.
No que diz respeito à formulação ou construção das identidades, isso não se realiza linearmente, mas ciclicamente, engrenando as significações sempre que as circunstâncias culturais, políticas, sociais e, porque não dizer, psíquicas, as engendram. Pois, como bem diz Benedict Anderson (2008, p. 53), a verticalidade, matriz da concepção sobre a linearidade dos acontecimentos, é uma invenção que só pode ser planejada pela providência divina. E, considerando que a imaginação tem o seu papel na construção de identidades, tudo dela se pode esperar, pois que ela tem ascendência, inclusive sobre o conhecimento.
Não é a todo tempo que o sujeito homossexual se pretende focalizado pelo canal que o interpela como afetivo-homossexual. Há momentos em que ele é o professor, o médico, o vendedor ambulante, o juiz, a mulher, a negra, o estrangeiro…. O homoafetivo, que pode abrigar uma ou mais dessas outras citadas identidades, o que ele não quer mesmo, é permitir que o seu direito de agir, de sonhar, de imaginar, de existir, enfim de sentir ou afetar-se, seja prejudicado por que se orienta sexualmente de modo minoritário, pelo menos manifestamente, vale observar. E para cercar-se da garantia de que será reconhecido, “a despeito” de seu gosto pela homoafeição, tem desenvolvido o sentimento de que pode para tanto usar o direito como instrumento. Esse sentimento constitucional se apresenta como bastante útil para a realização de tal pretensão
6. SOBRE A REPRESSÃO
As formulações de uma moral austera ou a repressão formulada em nome da sustentabilidade social em matéria de conduta sexual (MARCUSE, 2009) não são objeto dessa discussão. Entretanto, nunca é demais lembrar que para discutir sobre qualquer tema de interesse humano é necessário tentar decifrar os procedimentos morais que lhe servem de moldura. E, em se tratando de sexualidade, mais ainda porque a historicidade que a contem parece ser determinada, como diz Focault (2009), pelo empenho das instituições e da sociedade em conter as pulsões que se revelam eroticamente.
Segundo Marcuse (2009), tal repressão ocorreu por que disso parecia depender o sucesso do próprio projeto civilizatório. Embora o autor discorde desta formulação de Freud, ao discutir o conceito de homem, descreve a concepção deste com as seguintes palavras: “A historia do homem é a historia de sua repressão. A cultura coage tanto a sua existência social como biológica não só partes do ser humano, mas também sua própria estrutura”.
E, seguindo a mesma analise sobre importância da repressão para a civilização e o “progresso” aos olhos de Freud, diz o mesmo autor: “se tivesse liberdade de perseguir seus objetivos naturais, os institutos básicos do homem seriam incompatíveis com toda a associação e preservação duradoura:… O Eros incontrolado é tão funesto quanto a sua replica fatal, o instituto de morte” (MARCUSE, 2009, p. 33).
Essa concepção parecia caber segundo Freud, olhado por Marcuse (2009), num projeto de modernidade cujo fim era a estabilidade, a segurança, a certeza, herdadas da tradição anterior e assentadas pela “iluminação” que o uso da razão poderia proporcionar. A marcha da humanidade andaria progressivamente nesse sentido. Porém, tal projeto, parece ter-se esgotado talvez porque a equação para realizá-lo não se resolveu por aquele resultado.
Na verdade, a equação continua a ser operada com a inevitável inclusão de elementos novos, que não só exigem participar dela, como também já a compunham, porém, ou não tinham visibilidade e reconhecimento, ou tal era cortinado por que não serviam ao propósito do projeto acima. A homoafetividade como identidade que pauta o sujeito abarcado pelo projeto de humanidade atual é um deles. Esses novos ingredientes ensopados pela historia se constituem do elemento seminal que dão formato e conteúdo novos ao projeto humano.
O “sentimento constitucional” (MAGALHÃES, 2003) resultado da identificação dos sujeitos com a Constituição, tem mitigado a ação estratégica em face da ação comunicativa (HABERMAS, 2003). No Brasil isso se mostra, inclusive, pelo protagonismo de determinadas pessoas ou grupos que até bem pouco tempo pareciam absurdo pensá-los, politicamente, nesse lugar: um metalúrgico-presidente, os negros, dando voz aos seus históricos dissabores; as mulheres, não mais precisando tirar ou queimar seus sutiãs para se fazerem politicamente visíveis e, tantos outros.
O discurso sob rito do político agora parece se fazer cada vez mais instrumento de todos os sujeitos tanto porque fazem a constituição, convertendo esta em objeto de seus discursos no cotidiano, quanto porque a ela se submetem. No caso dos homoafetivos, além do discurso ter ganhado a esfera pública, a depuração sexual, essa “injunção tão peculiar ao ocidente moderno em forma de constrição geral, paradoxalmente, não permitindo ao sexo nem obscuridade nem sossego” (FOCAULT, 1998, p. 24) parece não mais estar prevalecendo à medida que estar “de acordo com o rebanho” (NIETZSCHE, 2003, p. 21) já não mais parece ser o objetivo das massas (MAFFESOLI, 2000).
Os indivíduos cada vez mais resistem ao encolhimento e à retração. Esta continua, é claro, mas a crise desse paradigma, no que diz respeito aos hmoafetivos se instalou no sentido sugerido por Habermas (2002) que, partindo tanto do conceito mítico e dramático, quanto sob a sua definição pelas ciências sociais, concebe que a crise se instala pelo conflito. Segundo o autor, ela significa a encruzilhada num processo fatal que, apesar de toda a objetividade, não se impõe de fora e não permanece externa à identidade das pessoas colhidas por ele, pois a contradição expressa na combinação catastrófica do conflito é inerente à estrutura da ação sistêmica (LHUMANN, 2003)
Para Habermas (2002, p. 13) “nas ciências sociais, em especial, as crises são vistas como distúrbios persistentes da integração do sistema (…) na historiografia a tradição serve como indicativo do colapso dos sistemas sociais”. Não se quer aqui conjecturar sobre a crise da modernidade no sentido de rompimento ou não do sistema que a adotou. Na verdade, parece-nos indispensável falar disso mais como apontamento de que “a tempestade parece soprar mais forte quanto mais se afasta do paraíso” (ANDERSON, 2008, p..19). Pelo menos é nesse sentido que se apresenta, salvo engano, a imaginação de quem formulou o projeto de “progresso”, baseado no paraíso montado na idéia da “razão instrumental” e no controle dos corpos.
A “força racional” parece já não mais funcionar com tanta eficácia para o adestramento dos corpos num mundo em que o sexo pode ser feito à distância ou na ausência física destes. As regras de sexualidade e da política onde a grade da interdição do discurso era mais cerrada têm-se diluído cada vez mais por praticas cujo teor é a liberdade de fazer, inclusive sexo, sugerindo, por conseguinte, que há mais do que duas formas apenas de constituí-las: uma boa e outra má ou perversa. É por isso que no dizer de Maffezoli (2009, p. 60-61) a sintonia com o cotidiano é o que pode provocar um contato mais autentico com a realidade. E, atualmente, esta se consubstancia mais no senso comum que tende a reivindicar seus direitos o que não deixa de ser subversivo. E subversão é a ordem do cotidiano importada de um hedonismo latente.
O autor reconhece que a marca do espírito que ele chama de pos-moderno é a horizontalidade e que é difícil admitir essa (im)postura intelectual; que “é preciso superar a abstração e a rigidez moral de todos os que falam e agem em nome dos outros”. Ação esta própria do “republicanismo dos bons sentimentos”. E que os tempos tribais que desenham o cotidiano atual estão “para além da tagarelice do pensamento oficial”, pois “a língua social fala por si mesma (…) a retórica social, para quem sabe ouvir, fala por si só.” (MAFEFSOLI, 2009, p.65)
Progresso, razão e ciência foram palavras que serviram ao discurso oficial e que de certo modo deram por muito tempo fundamento à minoridade de alguns sujeitos historicamente escolhidos para serem dirigidos por outrem. A tutela, muito bem vislumbrada por Dostoievsky em sua obra “Os irmãos Karamazov” (2003, p. 65-66), parecia ser um instrumento de segurança e “irresponsabilidade” para o individuo não só nas sociedades tradicionais, pois tal forma de substituir-se a outrem também faz parte do projeto de modernidade de diversas maneiras já que o imaginário moderno incluiu “a pose grandiloquente daquele que sabe e daquele que age (… ) determinado pela transcendência vertical. Aquele do Deus único; do Pai eterno e que sabe, de fonte segura, o que é bom para a sua criação”. (MAFFESOLI, 2009).
No quadro atual, a minoridade mostrou a sua faceta até então escondida: a de que na verdade segregava os corpos, incluindo a privação do acesso à esfera publica e da visibilidade de vários sujeitos. Os homoafetivos, por muito tempo, foram recolhidos a tal condição, hoje já não mais parecendo aceita com “naturalidade”. Ser visto, ser lembrado, enfim, ser reconhecido, inclusive como sujeito histórico-constitucional, demanda de todo e qualquer sujeito, parece manifestada pelos homossexuais em moldes espetaculosos e divertidos, cuja catalização, as “paradas”, dão conta de fazê-lo.
O movimento dos homoafetivos pela sua admissão na “praça” soma-se à onda matriz da “globalização contrahegemônica” (BOAVENTURA, 2008) que fomenta a diluição de toda e qualquer rigidez e que tem como pressuposto a emancipação da vida social calcada na idéia de igualdade, liberdade e cidadania. Esse movimento, segundo o mesmo autor, tem como conseqüência a necessidade de justificação política da desigualdade e da exclusão como exceções ou incidentes de um processo societal que não lhe reconhece legitimidade, em principio. A primeira, ele afirma ser um fenômeno de conteúdo sócio-economico e a segunda, para ele, “é sobretudo um fenômeno cultural e social; um fenômeno de civilização” (SANTOS, 2008, p.279-280).
O interdito e a rejeição criados pelo discurso da verdade, ilustrado em tempos remotos pela estigmatização de leprosos, por exemplo, e, em tempos mais recentes, de loucos, homossexuais, pobres e outros, criou dispositivos de normatização que procuram justificar a exclusão. Esse mecanismo tende a já não mais servir a tapear os grupos excluídos, como já vem sendo apontado pelos motivos expostos. Por isso, a pertença ou a superação do esfacelamento social se apresenta cada vez mais realizável sob o transporte do direito como procedimento para tal. Pois, se por um lado o direito serve ao reforço e legitimação das hierarquias sociais, por outro, especialmente no momento atual da pós-modernidade, modernidade, tardia ou não, a lei (o direito), como diz Edwardo Thompson (1987, p. 356-357), impõe continuamente restrições às ações dominantes, pois restringe o exercício da força direta, além de ser lugar onde se travam certos tipos de conflitos de classe, pois a retórica e as regras de uma sociedade são muito mais do que meras imposturas. O domínio da lei não é uma mera farsa, pelo contrário, as restrições ao poder impostas pela lei parecem um legado tão considerável quanto qualquer herança cultural autêntica, pois que a noção de regulação e reconciliação dos conflitos através do domínio da lei parece uma ligação cultural de significado universal
7. CONCLUSÃO
A citação acima representa nesse texto não só a indicação sobre o porquê da plausibilidade de conceber o direito como instrumento de emancipação, como também pode ser suporte da idéia de que os homoafetivos tendem a se afirmar como categoria político-cultural na medida do esforço que têm feito por reconhecimento construído sob a identidade de sujeitos constitucionais (ROSENFELD, 2003). Aponta também para uma postura teórico-epistemológica que substancia a idéia de que, em não sendo possível transformar radicalmente a sociedade para torná-la definitivamente justa, o uso do direito pode ser uma forma eficiente de fazê-lo, especialmente nos tempos atuais em que o grande drama do direito moderno por si só já revela sua vocação.
E qual seria esse drama? Para tentar responder, embora de modo simplificado, devemos lembrar que a modernidade proclamou direitos, criou instrumentos de garantia e hoje vive sob a expectativa de que a constitucionalização dos direitos assentados no tripé igualdade, liberdade e dignidade se realize. Eis o “grande drama”. É sob tal atmosfera que as “paradas” repercutem os anseios daqueles que minorizados, especialmente pela invisibilidade, já não mais querem ser tratados como iguais aos heteroerotizados como meio de reconhecimento.
Hoje o que parecem pretender os homoafetivos é o reconhecimento pela diferença sem que por isso sofram os males da estigmatização. Então, para tanto, já não parecem dispostos a aceitar abrir mão nem mesmo da identidade que se lhes atribuem o social por força da orientação sexual sob a qual se alinham, uma vez que esta os constituiu, junto com as outras identidades que abrigam, a marcha pela plenitude e pela participação no projeto divino original: a humanidade.
Portanto, ser interpelado como homossexual! Porque não? Esse dado os diferencia? Sim. E daí? Lembremos-nos: o que tende a igualar os sujeitos, de um modo geral, a despeito das várias identidades que abrigam, diferenciando-os entre si, é a identidade de sujeitos constitucionais. Isso, evidentemente nas sociedades que constitucionalizaram os direitos humanos. Ah! o sexo que lhes deita à cama tende a ser cada vez mais apenas e tão somente um detalhe, porém por ser representativo da soberania do indivíduo sobre o seu corpo, fundamental para denotar os contornos e a intensidade da democracia social ou da nova democracia (DAGNINO, 1999).
Informações Sobre os Autores
Maria Jeanete Fortes Silva
Defensora Pública, especialista em direito público e direito constitucional, mestranda em políticas públicas na Universidade Federal do Piauí
Solimar Oliveira Lima
Doutor em História, professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas/UFPI