Resumo: A preocupação com a promoção de justiça ambiental começa aos poucos a ganhar espaço nas discussões sociais. A desigualdade na distribuição dos danos ambientais é cada vez mais perceptível, sendo a sua ocorrência mais eloquente nas comunidades negras e pobres e, principalmente, nos países subdesenvolvidos. Esse cenário evidencia a relação entre a questão social e a questão ambiental. Objetivou-se neste trabalho demonstrar que a alocação desproporcional dos riscos ambientais deve ser combatida de forma articulada pela sociedade. Abordaram-se, nesse escopo, as modalidades de riscos ambientais, o panorama atual do Estado, o Estado Exceção moderno e a relação entre a ciência e a economia. Vislumbrou-se que a concretização da justiça ambiental depende do fortalecimento do Estado e de uma atuação coesa entre o este e a comunidade. Deve-se buscar a conscientização da população acerca dos riscos ambientais e primar pelo desenvolvimento sustentável, tendo-se como objetivo a garantia de acesso aos recursos naturais pelas gerações futuras. A construção da cidadania ambiental e da gestão compartilhada são fatores que podem auxiliar na obtenção da justiça ambiental.
Palavras-chave: Justiça Ambiental. Riscos Ambientais. Desigualdade ambiental.
Abstract: The environmental justice began to be discussed. We may observe that the environmental inequality has increased. It is concentrated in locations where population is black and poor, mainly in underdeveloped countries. The aim of this work was to demonstrate that the environmental inequality must be countered in a coordinated way by society. Therefore, we discoursed about environmental risks, current perspective of State, modern State of Exception and the connexion between science and economy. We could conclude that environmental justice depends on the strengthening of the State and on a shared action The awareness of population should be promoted and sustainable development must be sought in a way to preserve the natural resources. The construction of environmental citizenship and shared management are factors that could help to reach environmental justice.
Keywords: Environmental Justice. Environmental Risks. Environmental Inequality.
Sumário: Introdução. 1. A incidência dos riscos ambientais. 1.1. A alocação desigual dos riscos ambientais. 2. A questão de fundo da desigualdade ambiental. 3. Construção da justiça ambiental. 4. Considerações finais. Referências.
Introdução
A questão da injustiça ambiental não se restringe à simples relação entre os riscos ambientais e suas vítimas. A análise das causas da distribuição desigual desses riscos é de suma importância para o desenvolvimento de soluções para esse problema. Só será possível a obtenção da justiça ambiental se as causas da problemática forem identificadas, interpretadas e, então, efetivamente combatidas. Para tanto, faz-se necessária a articulação entre a sociedade, o governo e os controladores do mercado, além de cooperação a nível mundial.
A alocação desproporcional dos riscos ambientais é perceptível, verificando-se a maior incidência de riscos sobre as populações negras e com menos recursos econômicos. Dessa forma, renda e raça são os principais critérios para a definição da distribuição dos riscos ambientais. Percebe-se, a partir disso, a interrelação entre a questão social e a questão ambiental. Ambas andam de mãos dadas, não sendo possível resolver uma delas sem tutelar também a outra.
Dessarte, visa-se a uma abordagem social e econômica do panorama ambiental que se apresenta em nosso país – e também no restante do planeta –, a fim de que possam ser identificadas as causas da injustiça ambiental. Com isso, busca-se evidenciar a imprescindibilidade da atuação social e estatal na tomada de decisões para a obtenção de justiça ambiental.
1 A incidência dos riscos ambientais
Na atualidade, propaga-se a ideia de que todos são igualmente atingidos pelos danos ambientais, assim como de que somos igualmente responsáveis pela causação desses danos. Entretanto, uma análise um pouco mais aprofundada do assunto permite perceber que essa afirmação não se mostra – ao menos totalmente – correta. Acselrad, Mello e Bezerra afirmam que essa visão considera o meio ambiente como escasso, uno e homogêneo, sendo que “[…] é possível constatar que sobre os mais pobres e os grupos étnicos desprovidos de poder recai, desproporcionalmente, a maior parte dos riscos ambientais socialmente induzidos, seja no processo de extração dos recursos naturais, seja na disposição de resíduos no ambiente” (2009, p. 12).
No intuito de melhor compreender o tema, faz-se relevante elencar e distinguir as modalidades de risco ambiental. Isso porque, considerando-se os riscos abstratos, é possível compreender a afirmação apontada acima sobre a distribuição igualitária dos riscos ambientais.
Leite e Belchior (2012, p. 16) esclarecem os tipos de riscos ambientais elencados por Ulrich Beck, referindo que os riscos podem ser concretos (também chamados de potenciais ou de primeira geração) ou abstratos (de segunda geração). Esses são invisíveis e a ocorrência é imprevisível; aqueles são perceptíveis pelo ser humano e previsíveis diante do conhecimento científico atingido. Os riscos concretos estão relacionados com o princípio da prevenção e os abstratos com o da precaução. Segundo o princípio da prevenção, sendo conhecidos os danos decorrentes de determinada atividade, deve-se atuar para impedir a sua ocorrência. De outro lado, deve-se agir com precaução quando não se conhecem os danos que advirão da atividade produtiva, visando a evitá-los.
Nessa linha, os riscos abstratos (invisíveis e insensíveis de imediato) são percebidos a longo prazo (como, por exemplo, a poluição do ar e o efeito estufa), representando os danos que se propagam para além das fronteiras territoriais e que são suportados por toda a humanidade, de forma mais uniforme. Tendo em vista que todos os países contribuem para a proliferação desses danos, ainda que uns de forma mais eloquente do que outros, todos são responsáveis pela sua ocorrência. Com base nisso, a afirmação referida acima poderia ser considerada correta.
Contudo, ao se tratar da temática dos problemas ambientais, não podem apenas os riscos abstratos ser considerados. E é quando se fala dos riscos concretos que a injustiça ambiental torna-se mais evidente.
Além disso, até mesmo a escassez dos recursos naturais gera impactos desuniformes sobre as pessoas. Há injustiça também na disputa pelos bens ambientais escassos, prevalecendo o acesso àqueles que detém poder econômico e riqueza.
1.1 A alocação desigual dos riscos ambientais
Os movimentos sociais por justiça ambiental, cujo expoente foi o Movimento de Justiça Ambiental (organizado nos EUA em meados dos anos 1980), foram os primeiros a identificar e a combater a distribuição desigual dos danos ambientais. Sustentavam a necessidade de participação igualitária na tomada de decisões sobre as questões ambientais, a fim de que certos grupos sociais não fossem alvo de consequências ambientais desproporcionais.
Esses movimentos visavam a garantir um meio ambiente seguro, sadio e produtivo para todos, sem distinção, bem como um meio ambiente de trabalho sadio e seguro. Nesse entendimento, “meio ambiente” deve ser compreendido na sua “[…] totalidade, incluindo suas dimensões ecológicas, físicas construídas, sociais, políticas, estéticas e econômicas” (ACSELRAD; MELLO, BEZERRA, 2009, p.16).
Desde então vêm sendo realizados estudos que evidenciam a existência de injustiça ambiental, caracterizada pela “[…] imposição desproporcional dos riscos ambientais às populações menos dotadas de recursos financeiros, políticos e informacionais” (ACSELRAD; MELLO, BEZERRA, 2009, p. 9). Esses estudos demonstram que os riscos ambientais (como desmoronamento, alagamento, carência de abastecimento de água, falta de rede de saneamento básico e coleta de lixo) concentram-se em áreas carentes, onde a renda é inferior e a população é em maior parte negra.
Torres e Marques, citados por Acselrad, Mello e Bezerra (2009, p. 48-49), realizaram estudo em Mauá/SP, relacionando a sobreposição entre pobreza e três tipos de riscos urbanos (risco por ocupação de áreas inundáveis, risco por ocupação de áreas de alta declividade e risco de desabastecimento de água). Os resultados apontaram que as “periferias dentro das periferias” são as localidades mais atingidas pela desigualdade social e ambiental, sendo também as que mais crescem demograficamente.
Os pesquisadores desenvolveram o conceito de hiperperiferias, sendo um fenômeno social que decorre da sobreposição espacial entre a ocorrência de danos ambientais e de más condições socioeconômicas em contextos intra-urbanos. Hiperperiferias são as áreas de periferia (caracterizadas pela questão da desigualdade social e econômica) em que se agregam fatores de risco ambiental. Há o acúmulo (ou sobreposição) dos fatores de exclusão e de desigualdade social. Torres e Marques quiseram demonstrar que um estudo baseado em médias suaviza os problemas sociais, porém, não reflete a realidade. A existência de periferias dentro das periferias é desprezada nessa forma de estudo, que trata a todos por igual.
O que foi exposto deixa claro que a questão social é indissociável da questão ambiental. Se as condições de vida das populações periféricas não forem melhoradas, será inviável resolver os problemas ambientais que recaem sobre elas. Nisso se inclui a questão econômica, ligada ao poder aquisitivo e à renda familiar dessas comunidades. O Estado deve intervir para fornecer mecanismos que viabilizem a ascensão econômica das famílias carentes (instrução, capacitação intelectual e oportunidades de trabalho), bem como para lhes proporcionar condições de uma vida digna (asfaltamento, saneamento básico, hospitais e postos de saúde, meios de locomoção acessíveis, escolas, creches etc.).
O fortalecimento da sociedade, que implicará também em fortalecimento do próprio Estado, se reflete num aumento da capacidade de resistência à alocação desigual dos riscos ambientais. E nisso a atuação da economia – vista como os controladores do mercado – exerce grande influência. Os países pobres e subdesenvolvidos estão mais suscetíveis aos riscos ambientais porque têm menos poder de resistência, tendo em vista que dependem desses controladores para subsistência e para alavancar o seu desenvolvimento.
Uma questão importante a ser respondida consiste no que deve ser feito para aumentar o grau de sensibilização dessas populações. Isto é, elevar o conhecimento sobre os riscos ambientais aos quais estão submetidas e a conscientização acerca das atividades poluidoras. Paralelamente às sensibilidades, Acselrad, Mello e Bezerra (2009, p. 111) tratam das insensibilidades como sendo os mecanismos que determinam a ausência de oposição das comunidades frente às atividades poluidoras. Argumentam que a estratégia principal utilizada é a omissão de informações acerca da natureza e dos riscos da atividade produtiva. Além disso, fornecem informações deturpadas para torná-los – aos olhos da população – socialmente desejáveis. Tornando as comunidades sensíveis aos danos ambientais e fortalecendo-as (social, econômica e educacionalmente), poder-se-á buscar a justiça ambiental.
2 A questão de fundo da desigualdade ambiental
A desigualdade ambiental resulta da apropriação e do uso desigual das partes do meio ambiente (microbens) e dos recursos naturais. Esse fenômeno expressa-se através de proteção ambiental desigual (implementação de políticas ambientais que geram riscos ambientais desproporcionais) e de acesso desigual aos recursos ambientais (produção e consumo). Esses mecanismos estão relacionados a interesses econômicos, que exportam os riscos ambientais decorrentes de atividades produtivas para as camadas menos favorecidas (são as chamadas “externalidades”).
A economia exerce papel importante na distribuição do acesso aos recursos ambientais e dos riscos ambientais decorrentes das suas atividades. A força do mercado, calcada no capitalismo, determina a aceitação dos danos ambientais e direciona àqueles que podem adquirir os bens de consumo a fruição dos recursos ambientais. A mobilidade dos capitais é um fator que define a submissão dos países periféricos aos riscos ambientais, diante da promessa de alguma melhoria para a economia interna e para a sociedade.
A ausência de poder de enfrentamento e de barganha dos países pobres frente aos controladores do mercado, aliada à mobilidade dos capitais, enseja a aceitação dos riscos. Isso porque a promessa de benefícios e de melhorias sociais é tão atraente que a sujeição aos riscos se torna satisfatória. A criação de empregos, a implementação de escolas, de hospitais e de transporte e outros benefícios são necessidades dessas populações, cujos efeitos deverão ser sentidos rapidamente (ainda que se revelem posteriormente uma ilusão), sendo que os riscos ambientais aparecerão de forma mediata.
Então, para não perder essas supostas oportunidades, as comunidades acabam aceitando a vinda das atividades poluidoras, sob pena de elas se encaminharem a outras localidades que aceitem as suas condições. Acselrad, Mello e Bezerra denominam esse processo de “alternativas infernais”, segundo o qual “o risco socioambiental ampliado é assim sistematicamente alocado às populações mais destituídas ou a governos com maiores índices de desemprego e ameaça da crise social, com base na lógica da “livre escolha” – “infernal” – entre condições precárias e arriscadas de trabalho ou nenhum trabalho, entre algum dinamismo econômico – mesmo predatório – ou nenhum crescimento, ou taxas medíocres de crescimento” (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, 2009, p. 137).
Apesar desse panorama, não se pode desconsiderar a sugestão de Beck (2013, p. 27) sobre o “efeito bumerangue”, como efeito a ser vivenciado pela sociedade de risco. Entende o sociólogo alemão que, ainda que os controladores do mercado (países mais ricos e desenvolvidos) “empurrem” os riscos ambientais para os países periféricos, em algum momento sofrerão os efeitos danosos decorrentes de suas atividades, dadas as características dos riscos ambientais de segunda geração. Esses países são os responsáveis pela produção dos riscos ou, ao menos, beneficiam-se deles. A poluição do ar e dos oceanos, por exemplo, e o efeito estufa não conhecem fronteiras, propagando-se por todo o planeta.
Em meados dos anos 1970, começaram a surgir as políticas ambientais explícitas, tendo o meio ambiente como objeto de proteção explícita. Isso se deve à articulação social contra as práticas até então desenvolvidas. A primeira expressão dessas políticas no Brasil foi a criação da SEMA – Secretaria Especial de Meio Ambiente. Posteriormente, foi editada a Lei nº 6.938/81 e, em 1989, foi criado o IBAMA, hoje vinculado ao Ministério do Meio Ambiente.
Essas políticas começaram a surgir como forma de enfrentamento àquelas até então existentes: as políticas ambientais implícitas. Essas políticas foram adotadas a fim de conferir, aos olhos da população, alguma proteção ao meio ambiente. Entretanto, essas práticas favorecem os processos de acumulação e camuflam ou desarmam a degradação ambiental provocada pelas práticas capitalistas.
Uma das táticas empregadas pela economia e pela política para alavancar a aceitação dos riscos pela sociedade consiste no desenvolvimento de níveis de tolerância para os danos ambientais. Propaga-se, através dessa prática, a ideia de que os riscos podem ser controlados e minimizados, reduzindo-os a um nível de ausência de ofensividade. Logo, a atuação dentro desses níveis torna-se socialmente aceitável.
Valendo-se da ciência para estabelecer esses patamares de tolerância, a economia domina a sociedade e diminui a sua capacidade de oposição, eis que lhe faltam argumentos técnicos para combater os níveis estabelecidos como inofensivos à saúde. Questiona-se, em razão desse cenário, a serviço de quem e para que está atuando a ciência nos dias atuais.
Ocorre que as descobertas científicas da atualidade tornam-se obsoletas e são substituídas por novas descobertas em um curto espaço de tempo. A ciência baseia-se, em grande parte dos casos, em probabilidades; isto é, naquilo que pode vir a acontecer em caso de atuação no sentido A ou no sentido B. Diante disso, não há mais uma certeza científica, mas sim incerteza generalizada e respaldada naqueles que supostamente possuem o conhecimento técnico para fazer afirmativas a respeito do objeto de estudo.
A falta de certeza acerca da ocorrência de dano ambiental motiva a permissão da exploração de determinada atividade em determinado local, geralmente um espaço em que se salientam as injustiças sociais. Escolhe-se o lugar onde serão depositados os riscos advindos da atividade e aqueles que dela poderão advir. O Estado legitima a instalação da atividade econômica diante da inexistência de evidências científicas que apontem para a ocorrência de danos ambientais graves. Prefere-se receber o benefício econômico e arriscar o suporte de eventual dano que possa vir a ser constatado futuramente.
Divulgam-se os benefícios que serão produzidos à comunidade local e escondem-se os riscos que serão distribuídos e os que poderão vir a ocorrer por causa da atividade. Posteriormente, a própria ciência vem a identificar a causação de danos ambientais em razão da exploração da atividade econômica que foi permitida pelo Estado e legitimamente assentada no local.
Então, o Estado é obrigado a atuar para sanar ou, ao menos, suavizar os efeitos danosos que foram gerados. Há uma reversão constante das decisões e das medidas tomadas anteriormente.
José Esteve Pardo (2009) aponta que o Estado (alcunhado de Leviatã por Thomas Hobbes no livro publicado em 1642) está fragilizado pela ciência; ela o está deslegitimando, desconcertando. A garantia da credibilidade dos apontamentos da ciência, em razão de suportar o conhecimento técnico, deixa o Estado à mercê das suas decisões.
O autor faz uma alusão ao Estado de Exceção, apresentando uma visão moderna do que seria essa situação de exceção, de não direito. Segundo a visão clássica, cujo expoente é Carl Schmitt, o Estado (na posição de soberano, daquele a quem cabe decidir) instaura o Estado de Exceção de forma autoritária, deixando de aplicar as leis vigentes em razão de situação concreta em que se encontra o país. Paulo Corval (2010, p. 13) afirma que, de acordo com a concepção de Carl Schmitt, “[…] o Estado se sobrepõe ao direito, à validade da norma jurídica. O Estado, na exceção, suspende o direito por fazer jus à autoconservação”.
Diz-se que há uma situação de não direito porque se suprimem os direitos e as leis, impondo-se à sociedade um quadro de exceção. Pode-se citar como exemplo o caso de guerra e o estado de sítio (arts. 137 e 138, CFRB/88), em que os direitos fundamentais podem ser suspensos temporariamente.
Na concepção de Pardo (2009), o Estado de Exceção moderno é imposto pela ciência, mais precisamente pela incerteza científica. Essa incerteza científica transforma-se em insegurança jurídica, posto que as descobertas técnicas afastam a aplicação do direito vigente, deixando um vácuo jurídico.
Os pesquisadores e os operadores do direito têm se defrontado com situações de dano ambiental ou de probabilidade de ocorrência de danos. Esses casos apresentam-se como as situações de risco da pós-moderna sociedade de risco delineada por Beck (2013). “Indeed, in a world that could literally destroy itself, risk-managing and risk-monitoring increasingly influences both the constitution and calculation of social action”[1]. (ELLIOTT, 2002, p. 8).
Então, em face da necessidade de cálculo e de reflexão sobre as ações sociais, vêm esses agentes começando a atuar de forma precaucional, invocando o princípio da precaução – o qual não possui normatividade jurídica no direito brasileiro – para afastar a aplicação de leis. Isso provoca a insegurança jurídica, uma vez que não se pode mais confiar na legislação para a tomada de decisões e execução de atividades. Segundo Pardo (2009, p. 145), “La aplicación de este principio [precaução] conduce así a una situación de anomia, de ausencia de normas, porque las normas vigentes en el sector de que se trate quedan entonces sin efectos.”[2] A partir desse raciocínio, o autor espanhol demonstra que o Estado está enfraquecido pela ciência, que se apresenta como a verdadeira soberana.
Poder-se-ia dizer, então, que a economia é, na realidade, a soberana dessa sociedade de risco pós-moderna? Se a ciência é quem determina os rumos da sociedade e por trás dessa ciência estão os interesses econômicos (grandes empresas e capital móvel), que ditam a direção a ser tomada pela ciência, a economia seria a verdadeira detentora do poder soberano. A economia está manipulando o mercado – e indiretamente os Estados – respaldando-se no conhecimento técnico da ciência, que é por ela mesma (economia) direcionado.
Portanto, o Estado deve e precisa se fortalecer para voltar a controlar a força da economia. Só assim o Estado restabelecerá a sua soberania, bem como a sua função de controlador das relações sociais e econômicas. Sem um Estado forte a população fica sem poder de reação aos ditames da economia, sujeitando-se aos riscos ambientais desproporcionais.
Analisando-se todo o cenário que se apresenta na atualidade, percebe-se que o Poder Judiciário vem substituindo o Poder Executivo na tomada de decisões e de medidas para evitar os danos ambientais e a alocação desproporcional desses danos, buscando reequilibrar a sociedade. Em face da ausência de normatividade concreta para guiar as decisões judiciais sobre os assuntos ambientais, os magistrados têm se socorrido principalmente do princípio da precaução. Todavia, como já referido, essa conduta leva ao Estado de Exceção moderno descrito por José Esteve Pardo (2009).
Ao menos, com isso se está tomando um rumo de conscientização e de proteção ambiental no Brasil e também no restante do planeta. Porém, ainda é preciso criar e concretizar medidas para o alcance da justiça ambiental.
3 Construção da justiça ambiental
O panorama delineado pelo que foi até então analisado deixa claro a existência da injustiça ambiental. Nota-se a relação estreita entre a questão da injustiça social e dos danos ambientais. Urge a sociedade pela justiça ambiental, a fim de estabelecer um quadro de equilíbrio social e para não sobrecarregar uns em detrimento de outros quando se fala em danos ambientais.
Percebe-se como uma das causas do problema a sujeição do Estado à força da economia, que determina onde serão alocadas as indústrias e, consequentemente as externalidades advindas da atividade econômica. Assim, como referido alhures, só se obterá a justiça ambiental se o Estado se fortalecer e retomar a sua soberania.
A fim de que seja possível o fortalecimento do Estado, evidencia-se a necessidade de investimentos em pesquisas científicas próprias e livres de interferência dos agentes econômicos e em tecnologia. O Estado deve ser capaz de se desenvolver e de atuar por si mesmo, fugindo às ingerências da economia.
Para tanto, deve-se investir em melhorias internas do país, no escopo de alavancar esse desenvolvimento, que deve, por sinal, orientar-se no sentido de um desenvolvimento sustentável. Isto é, o desenvolvimento deve ser economicamente viável, ecologicamente correto e socialmente justo. Essas melhorias residem principalmente em educação de qualidade, fomento à economia interna, com abertura de postos de trabalho e infraestrutura, capacitação técnica, e infraestrutura básica (saneamento básico, transporte público, postos de saúde e hospitais, escolas etc.).
O estudo baseado em médias referido por Torres e Marques (referenciados por Acselrad, Mello e Bezerra, 2009, p. 48-49) é um mecanismo de camuflagem da situação perante os olhos da população. Àqueles que usufruem de uma condição econômica mais favorável, desconhecedores das mazelas da parcela inferior da sociedade, parece que a situação do país não é tão grave. Isso desestimula essa parcela superior a tomar atitudes que suavizem os problemas sociais e ambientais que recaem sobre a sociedade. De outro lado, àqueles que compõem a parcela desfavorecida, propaga-se a ilusão de uma melhoria de condição de vida.
Contudo, o que se pode perceber é o agravamento da concentração de renda e o alargamento das zonas de hiperperiferiais, como apontado por Torres e Marques. Dessa forma, é imprescindível a elevação do grau de conscientização das pessoas em geral sobre os riscos ambientais e a demonstração das camadas mais afetadas.
A articulação da sociedade e dos órgãos governamentais é fundamental para a obtenção dessa consciência ambiental e social. O ensino sobre o meio ambiente deve ser inserido na escola de base, desenvolvendo desde a infância a consciência ambiental. Outrossim, a criação dos foros de consenso (gestão participativa) é uma ferramenta a ser utilizada como forma de participação da sociedade no processo decisório. Diante do mandamento constitucional inserido no caput do art. 225, CF – segundo o qual é dever do Poder Público e também da sociedade a proteção do meio ambiente, garantido a fruição pelas gerações atuais e futuras –, deve-se oferecer condições de participação da coletividade na tomada de decisões. Surge, com a imposição da gestão compartilhada, um novo modelo de cidadania, conhecido como “cidadania ambiental”.
Nesse sentido, deve-se caminhar para a implementação do Estado de Direito Ambiental, o qual “[…] consiste num modelo que impõe a estrita observância dos preceitos normativos de natureza ambiental, e que decorre diretamente de uma interpretação integrativa dos mandamentos presentes no vigente Estatuto Jurídico Fundamental pátrio” (STACZUK, 2012, p. 100). O Estado deve atuar positivamente para criar normas que estejam de acordo com uma visão sistêmica do meio ambiente, compreendendo que os recursos naturais não são infinitos e que, sem uma gestão sustentável desses recursos, será inviável a manutenção da vida humana.
Nessa mesma senda, a preocupação com as gerações futuras não pode ser afastada. A gestão compartilhada deve considerar esse panorama de insuficiência de recursos a nível nacional e mundial e tomar decisões a fim de conservar e de regenerar o meio ambiente, preservando-o para as gerações futuras.
O ambientalismo liberal defende que uma forma de solucionar a exploração desenfreada do meio ambiente e a escassez dos recursos ambientais seria a privatização dos mesmos. Argumenta-se que a atribuição de preço aos bens ambientais regularia o acesso e compensaria a exploração por meio de trocas econômicas voluntárias. Garret Hardin (apud ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, 2009, p. 85) entende que o sistema de propriedade privada, apesar de causar injustiça, é aceitável porque evita a ruína da sociedade. Segundo essa corrente, o problema ambiental deriva da falta de operação eficaz do meio ambiente, que pode ser efetivada pela privatização dos recursos ambientais.
A solução apresentada pelo ambientalismo liberal não soa adequada, haja vista que a exploração do meio ambiente continuaria sendo permitida, porém se tornaria mais caro o acesso aos bens produzidos com base nos recursos naturais. O que aconteceria, ao que parece, não seria a redução da exploração do meio ambiente, mas sim a acentuação da injustiça ambiental. Isso porque o acesso a esses bens se tornaria cada vez mais caro, só sendo possível à parcela mais favorecida da sociedade e aos controladores do mercado. A privatização dos recursos naturais deixaria a economia ainda mais forte e os Estados mais enfraquecidos e sujeitos àqueles que detivessem o poder de exploração dos recursos naturais (os agentes econômicos).
A teoria de privatização do meio ambiente, que vê na compensação econômica e na operação eficaz do meio ambiente as soluções para a exploração ambiental descontrolada, necessitaria da ciência para aferir o grau e a forma de compensação. Novamente, uma ciência de incertezas diante da sociedade de risco da pós-modernidade. E, “diante das incertezas produzidas pela sociedade tecnológica, é necessário (sic) a construção de uma justiça ambiental orientada para o futuro e fundamentada no princípio da responsabilidade” (PERALTA, 2014, p. 26).
O Estado de Direito Ambiental e a justiça ambiental vêm para dosar a exploração do meio ambiente e da dispersão – desproporcional – das externalidades oriundas das práticas produtivas. Nesse sentido, “a justiça ambiental deve visar a uma nova racionalidade ecológica, exigindo um novo modelo de desenvolvimento, que deverá ser traçado via ações políticas orientadas por critérios de sustentabilidade, pelos princípios da responsabilidade e da solidariedade e pelo respeito ao outro” (PERALTA, 2014, p. 28) grifo do autor.
E mais, “a questão ambiental não é um entrave ao desenvolvimento, mas sim uma dimensão de um novo modelo, que deve ser democrático e inclusivo” (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, 2009, p. 131-132). Modelo esse que deve ser orientado por um desenvolvimento sustentável, solidário e responsável, visando às gerações futuras.
4 Considerações finais
A construção da justiça ambiental não se mostra tarefa fácil. Percebe-se ao longo do que foi exposto que ainda estamos muito distantes da sua concretização. Todavia, identificar as causas da injustiça ambiental permite visualizar os pontos cruciais para combatê-la.
Faz-se necessária a reconstrução de um Estado forte, que seja capaz de fazer resistência ao jogo econômico. Pôde-se perceber que investimentos em pesquisas e tecnologia, em educação, em saneamento básico e em outros fatores são imprescindíveis. A distribuição desses fatores entre a sociedade deve se dar uma forma mais uniforme, no intuito de amenizar as diferenças sociais. Só será viável a obtenção da justiça ambiental se a solução da questão social for também buscada.
No que toca ao fator econômico, o Estado deve fomentar o desenvolvimento interno do país. Esse desenvolvimento, como dito, deve orientar-se pela sustentabilidade, pela responsabilidade, pela solidariedade e pela preocupação com as gerações futuras.
A educação envolve não apenas o aprendizado escolar e a capacitação profissional, mas também a questão da sensibilização da sociedade sobre os riscos ambientais. Além disso, deve-se mostrar à população a existência da alocação desproporcional desses riscos, bem como que a equalização da distribuição é relevante para a concretização do Estado forte.
No sentido do fortalecimento do Estado, deve-se formar uma teia legislativa a respeito da questão ambiental, protegendo-se o meio ambiente de forma explícita em todos os campos legislativos (constitucional, penal, civil, processual, administrativo etc.). Ademais, a criação de leis que responsabilizem os causadores de danos ambientais de forma eficaz também é um fator a ser considerado.
A normatização de princípios como o da precaução e o da prevenção (como forma de aprofundamento da sua aplicabilidade) e a criação de normas a respeito do meio ambiente viriam a auxiliar a atuação jurisdicional. Deve-se, nesse sentido, construir o Estado de Direito Ambiental, o que iria conferir maior segurança jurídica ao sistema, sendo relevante para afastar o Estado de Exceção moderno delineado por José Esteve Pardo.
A tudo isso se soma a participação social no processo decisório. Permitir a participação da comunidade é extremamente proveitoso para identificar as carências sociais e os danos aos quais está exposta, para descobrir formas inovadoras e sustentáveis para resolver essas situações e para sensibilizar a população sobre os riscos ambientais. Construir a cidadania ambiental pode assim, em muito, auxiliar na construção da justiça ambiental.
Certo é que ainda estamos distantes da concretização dessa justiça ambiental. Ao menos, entretanto, podem-se estabelecer diretrizes para iniciar a busca desse novo estado socioambiental almejado.
Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus. Advogada. Conciliadora Criminal Juizado Especial Criminal da Comarca de Pelotas/RS
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