Resumo: A anencefalia causa deformidades irreversíveis no sistema nervoso do feto, ainda na fase de formação, impedindo o desenvolvimento do cérebro e de duas estruturas acessórias. A Medicina já permite a descoberta precoce do mal, assim, é justo o pedido de antecipação terapêutica do parto. A solução jurídica aponta para este caminho, mesmo porque envolve a análise do princípio da dignidade da pessoa humana que será atingida com a continuidade da gestação.
Palavras-chave: anencefalia; dignidade da pessoa humana; antecipação terapêutica do parto.
Abstract: Anencephaly causes irreversible deformities in the fetal nervous system, still in the training phase, preventing the development of the brain and two accessory structures. Medicine already allows early detection of evil, so it is just a request for early therapeutic delivery. The legal solution points to this path, because it involves analysis of the principle of human dignity that will be affected with the continuation of the pregnancy.
Keywords: anencephaly; human dignity; advance delivery of therapeutic.
Sumário: 1 Da anencefalia; 1.1 Conceito médico; 1.2 Inviabilidade do feto. 2 Princípio da dignidade da pessoa humana; 2.1 dignidade da pessoa humana e o direito à vida; 2.2 dignidade da pessoa humana e o direito à integridade física, psíquica e moral; 2.3 dignidade da pessoa humana e o direito à liberdade. Epílogo.
1 Da anencefalia
A humanidade, de um modo ou de outro, sempre guardou especial preocupação com a perfeição física. Tais cuidados já chegaram a extremos reprováveis, mas a rejeição ao que não é belo, ou não coaduna com determinados padrões sociais pré-fixados é uma questão antropológica que parece arraigada no DNA humano.
Nessa linha, desde priscas eras o homem rejeita as anomalias, de modo mais, ou menos drástico. Inicialmente, a questão resolvia-se no plano do divino. Apenas Deus, ou os deuses, poderiam justificar o nascimento de uma criança que fugisse aos escorreitos padrões de perfeição social.
Na Grécia e Roma antigas a mitologia respondia estas questões rapidamente, inclusive com criação de seres míticos extraordinários. Na cultura helênica era comum a existência de seres híbridos resultantes da união de humanos com animais reunindo virtudes e defeitos de ambos. São exemplos notáveis: os centauros (metade cavalo), o minotauro (metade touro), os sátiros (metade bode) e as sereias (metade peixe).
Ademais, invariavelmente a responsabilidade pela anomalia era atribuída à mulher, decorrência direta da sociedade patriarcal. Da união destes elementos emerge a secular condição repressiva que paira sobre as mães e perturba-as permanentemente. Esse pensamento perpetuou-se no tempo permeando as tradições populares. Apenas em meados do século XIX com o desenvolvimento das ciências médicas impulsionado pela Revolução Industrial foi possível jogar luzes sobre o caso.
Os estudos passaram a ser realizados diretamente com as pacientes e o corpo humano pode ser devassado, possibilitando o conhecimento das estruturas orgânicas internas de modo mais apropriado. A obstetrícia prosseguia, entretanto, um passo atrás nesse avanço por envolver os recônditos do corpo feminino em uma sociedade que se ligava umbilicalmente ao pudor. Nesse período, continuava em voga a atividade das parteiras, o médico só era consultado em última hipótese.
O progresso científico continuou timidamente na primeira metade do século XX, mas acelerou seu desenvolvimento espetacularmente após a 2ª Guerra Mundial. Na ocasião o mundo em frangalhos precisava ser reconstruído e o acesso ao saber científico era uma das formas mais lucrativas de fazê-lo. Não bastasse isso, as descobertas até então utilizadas apenas para fins bélicos, passaram a ter função mais nobre, servindo à medicina. Nesse grupo, adentram os exames de diagnóstico por imagem realizados com certos produtos radioativos ou com tecnologias militares.
O correto aproveitamento dos conhecimentos oriundos da guerra propiciou avanços desmesurados nos exames de imagem. O avanço tecnológico associado à pesquisa resultou em um enorme desenvolvimento da obstetrícia, neste momento as anomalias fetais iniciaram a transição da crendice popular centrada na punição divina e passaram à seara das patologias.
“Os progressos na tecnologia da ultra-sonografia têm contribuído para aumento da detecção de fetos com anomalias estruturais em populações de baixo risco, tornando-se paulatinamente parte da rotina dos cuidados pré-natais.
O exame de ultra-sonografia permite identificar diretamente alterações morfológicas individuais, sinais indiretos relacionados (crescimento fetal restrito e alterações do volume de líquido amniótico, entre outras), além das malformações associadas, que apresentam estreita correlação com quadros sindrômicos”. (BARINI, 2002)
A importância desse saber centra-se na possibilidade palpável de minorar os danos ao feto e a mãe, e aumentar a qualidade de vida de ambos. Para muitos, entretanto, oculta por trás dos fins nobres da medicina, encontra-se a centelha abortiva da eugenia. Na realidade, é inquestionável que os avançados métodos permitem a descoberta precoce de inúmeras doenças, algumas das quais, como será visto à frente, levarão, inevitavelmente, o feto ao fenecimento.
“Grande parte das doenças e deficiências diagnosticadas pelas técnicas modernas de diagnóstico pré-natal não possui tratamento ou cura, o que faz com que, nos casos mais graves e limitantes, as mulheres desejem a interrupção seletiva da gestação. No Brasil, raríssimas são as mulheres grávidas que, diante de um diagnóstico de má-formação fetal incompatível com a vida, não buscam apoio médico e jurídico para interromper a gestação”. (DINIZ,2003)
Nesses casos, em que a antecipação do parto significará apenas o encurtamento de um processo irreversível, não se pode falar em aborto ou eugenia. O que se busca não é a destruição de uma vida (o feto não tem condições biológicas de sobreviver em ambiente externo ao útero) e menos ainda o aprimoramento genético.
1.1 Conceito médico
A anencefalia é definida com propriedade por Gisleno Feitosa (2006, p. 18):
“Consiste na ausência parcial ou completa da abobada craniana, bem como da ausência dos tecidos superiores com diversos graus de má formação e destruição dos rudimentos cerebrais. Em suma, anencefalia significa ‘sem encéfalo’, sendo encéfalo o conjunto de órgãos do sistema nervoso central, contidos na caixa craniana”.
José Aristodemo Pinotti, por seu turno, informa que: “A anencefalia é resultado da falha de fechamento do tubo neural, decorrente da interação entre fatores genéticos e ambientais, durante o primeiro mês de embriogênese” (PINOTTI, 2004).
Assim, pode-se dizer, valendo-se da própria etimologia da palavra[1], que a anencefalia é uma doença congênita caracterizada pela ausência, completa ou parcial, dos tecidos encefálicos (cérebro com seus hemisférios e o cerebelo), comumente associada à deficiência de certos nutrientes, mormente ácido fólico.
Ademais, é válido esclarecer que em decorrência do não-fechamento do tubo neural, o anencéfalo, não desenvolve o couro cabeludo, a calota craniana (ossos frontal, occipital e parietal) e as meninges.
Por conta da ausência de completude das estruturas corpóreas “já se disse que o feto anencéfalo possui a aparência de uma rã, na medida em que é totalmente falto da calota craniana e da cobertura das demais estruturas neurológicas” (PIERANGELI, 2008, p. 40). A patologia é facilmente identificada e isso é possível ainda nos primórdios da gestação.
“Hoje, com os equipamentos modernos de ultra-som, o diagnóstico pré-natal dos casos de anencefalia tornou-se simples e pode ser realizado a partir de 12 semanas de gestação. A possibilidade de erro, repetindo-se o exame com dois ecografistas experientes, é praticamente nula. Não é necessária a realização de exames invasivos, apesar dos níveis de alfa-fetoproteína aumentados no líquido amniótico obtido por amniocentese” (PINOTTI, 2004).
Embora indubitável a facilidade de identificação dos episódios de anencefalia é importante ter em mente que a caracterização da doença não está completa e, portanto, torna-se cabível uma análise expansionista do termo.
“É também importante consignar que, ao contrário do que o termo possa sugerir, a anencefalia não caracteriza somente casos de ausência total do encéfalo, mas sobretudo casos onde observa-se graus variados de danos encefálicos. A dificuldade de uma definição exata do termo baseia-se sobre o fato de que a anencefalia não é uma má-formação do tipo ‘tudo ou nada’, ou seja, não está ausente ou presente, mas trata-se de uma má-formação que passa, sem solução de continuidade, de quadros menos graves a quadros de indubitável anencefalia. Uma classificação rigorosa é, portanto quase que impossível” (ANALAFT, 2011).
Há que se observar que os anencéfalos possuem características físicas bem peculiares que refletem fielmente a ausência dos tecidos cerebrais. Desse modo, os portadores da patologia possuem aparência semelhante a anfíbios, com os olhos saltados das órbitas e o crânio achatado, devido à ausência de alguns ossos, com a exposição da parte do cérebro que se desenvolveu ou do deformado tronco neural.
1.2 Inviabilidade do feto
A ausência da completude do sistema nervoso no feto anencéfalo por si só é suficiente para inviabilizar a sobrevivência da criança. Mesmo que resista ao parto a sobrevida reduz-se a poucos instantes.
“A maioria dos anencéfalos sobrevivem no máximo 48 horas após o nascimento. Quando a etiologia for brida amniótica podem sobreviver um pouco mais, mas sempre é questão de dias. As gestações de anencéfalos causam, com maior freqüência, patologias maternas como hipertensão e hidrâmnio (excesso de líquido amniótico), levando as mães a percorrerem uma gravidez com risco elevado” (PINOTTI, 2004).
Por outro lado, também, não existe qualquer possibilidade de reversão do quadro, tendo em conta que inexiste nas ciências tratamento capaz de obrar tal milagre.
“Partimos da única certeza moral comum a todos nós: a do momento da morte. Um feto com anencefalia é um feto morto, ou potencialmente morto momentos após o parto. O feto não resiste mais do que minutos ou horas, assim como não há qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro” (CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DA BAHIA, 2004, p. 32).
Dessa maneira, a interrupção da gravidez tornar-se-ia apenas a antecipação de resultado inevitável de maneira menos traumática. Assim, as especificidades do caso não têm o condão de regularizar ou fomentar o aborto eugênico.
“É inaceitável que a prática do aborto seja utilizada como método contraceptivo, mas em casos de anencefalia é hipocrisia proibi-lo. Pois deve-se levar em conta o bem estar e a segurança da gestante, já que a vida do feto é inviável. O ideal seria a possibilidade da mulher optar pela interrupção ou não da sua gravidez”. (TAVARES FILHO, 2009)
A complexidade da questão avulta-se quando se tem em mente o conceito de morte empreendido pela lei reguladora dos transplantes de órgãos e tecidos no Brasil, qual seja, a morte cerebral. Adotada essa ideia ter-se-ia que o anencéfalo sequer possuiu vida, diante da completa ausência de atividade cerebral. Esta corrente de pensamento causa horror nos religiosos e é refutada fortemente.
“A morte cerebral é sinal indicativo de morte humana, mas no caso do bebê, não. A criança com anencefalia não está morta, pois o tronco cerebral está presente nos fetos com anencefalia e permite, em alguns casos, uma sobrevivência de alguns dias, fora do útero materno. Além disto, as tentativas de declarar morta uma criança com anencefalia representa mais um passo na progressiva aceitação de algo menos que a morte legal para o objetivo de angariar órgãos transplantáveis”. (BARTH, 2011)
Muitos defensores do direito de nascimento dos anencéfalos, alegam que após o fenecimento seria possível a retirada dos seus órgãos e tecidos para beneficiar outras crianças. A medida seria humanitária não apenas pela simples doação, mas, principalmente, por ser muito difícil a captação de órgãos para crianças nos primeiros anos de vida.
Contudo, essa decisão cabe apenas aos pais da criança, desse modo, a decisão anterior no sentido do encerramento da gestação, já anteciparia o posicionamento a ser empreendido quanto ao aproveitamento dos órgãos e tecidos do bebê falecido.
2 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A preocupação com a preservação da dignidade inerente ao ser humano não é uma novidade, na realidade, a externalização de tal compromisso tem sua gênese comumente associada ao desenvolvimento ao desenvolvimento dos princípios da doutrina cristã. Durante, muitos anos o dogma cristão manteve-se à margem dos textos legais estando presente na sociedade, muito mais como uma obrigação moral do que uma imposição do Estado. Pertinente observar que:
“(…) uma das mais significativas tentativas de se elevar o ser humano a dogma constitucional surgiu com a eclosão da Constituição da República Italiana de 27.12.1947, eis que no intróito do seu art. 3°, dentro do âmbito dos Princípios Fundamentais, restou consignado que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.
Todavia, a doutrina atribui o pioneirismo de tal iniciativa como sendo pertencente à Lei Fundamental de Bonn, de 23.05.1949, responsável por solenizar, no seu art. 1.1., a seguinte altercação: “A dignidade do homem é intangível. Os poderes públicos estão obrigados a respeitá-la e protegê-la” (BAHIA; PANHOZZI, 2006).
O princípio da dignidade da pessoa humana é uma espécie de abre-alas da Constituição de 1988, seja porque é apresentado em seus primeiros momentos, logo no artigo 1º, seja porque, em decorrência de sua abrangência, acaba por abarcar direta e indiretamente inúmeros outros princípios constitucionais e representa com clareza o espírito defendido pela constituinte pós-ditadura.
“Embora não esteja expresso no preâmbulo de nossa Constituição, é evidente que o constituinte originário elegeu a dignidade humana como valor supremo. Ora, a ideia de liberdade, igualdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento e justiça revela a nítida pretensão de colocar a dignidade como valor máximo de nosso Texto Constitucional. Desse modo, a dignidade humana é um valor de onde flui uma série de direitos e garantias constitucionais” (LEITE, 2008, p. 54).
Dessa maneira, o espírito defendido pelo legislador constituinte é o de garantir o máximo respeito a essência humana, compreendendo nessa visão toda a sua complexidade, ou seja, englobando a integridade física e psíquica, a saúde, a honra, a qualidade de vida etc.
“Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. (…) daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos a existência digna (art. 170), a ordem social visará à realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc, ao como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo eficaz da dignidade da pessoa humana”. (SILVA, 2001, p. 109)
Esse conceito expandido de dignidade da pessoa humana colocaria, no caso dos anencéfalos, em conflito os direitos do feto e da mãe e exigiria ponderação de valores para o alcance da solução plausível.
“Uma classificação que se tornou corrente na doutrina é a que separa os direitos da personalidade, inerentes à dignidade humana, em dois grupos: direitos à integridade física, englobando o direito à vida, o direito ao próprio corpo e o direito ao cadáver; e direitos à integridade moral, rubrica na qual se inserem os direitos à honra, à liberdade, à vida privada, à intimidade, à imagem, ao nome e o direito moral do autor, dentre outros (…)
Impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração, importa violação de ambas as vertentes de sua dignidade humana. A potencial ameaça à integridade física e os danos à integridade moral e psicológica na hipótese são evidentes. A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro do seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica”. (BRASIL, 2004)
É desproporcional exigir que uma mulher mantenha-se grávida de um natimorto e tenha de levar a termo uma gestação que não pode prosperar vez que o produto da concepção possuirá sobrevida mínima. Exsurge, pois, que maior razão assiste àqueles que defendem o direito da mãe decidir se deseja ou não antecipar o parto, pois os sofrimentos a que será submetida, em caso de prolongamento da gestação, proporcionaram ataques frontais a sua dignidade seja por coibir a livre determinação, seja por não receber o necessário apoio por parte da sociedade e dos órgãos estatais.
“(…) a dignidade possui uma dimensão dúplice, que se manifesta enquanto simultaneamente expressão da autonomia da pessoa humana (vinculada à ideia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência), bem como da necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo – e principalmente – quando ausente a capacidade de autodeterminação” (SARLET, 2008, p. 30).
De outro modo a aplicação da regra de ponderação de interesses desenvolvida por Robert Alexy não causa qualquer enfraquecimento nestas posições.
“Desta forma, percebe-se que os princípios têm estreita relação com a noção da proporcionalidade, através de suas máximas parciais ou subprincípios: adequação (a relativização do direito contrário é justificada pela proteção e realização de um outro direito igualmente importante e protegido pela ordem jurídico-constitucional – no caso em tela, a dignidade e a proteção do sofrimento da mãe como fatores que justificariam a pretensão de sacrifício da vida do feto, tal qual ocorre nos demais casos de aborto legal previstas pela legislação), necessidade (que, para a realização de um direito, faça-se, realmente necessário, o sacrifício ou relativização do direito contrário- no caso da anencefalia, por exemplo, tem-se que o sofrimento da mãe reside exatamente na manutenção da gestação, não sendo possível, a um só tempo, interromper-se a gestação e preservar a vida do feto) e proporcionalidade em sentido estrito (adequação entre meios e fins, ou seja, a restrição do direito fundamental contrario deve dar-se na intensidade mínima necessária a realização do direito em pauta, não se admitindo excessos)”. (LEAL, 2008)
A interpretação amplificada do princípio da dignidade da pessoa humana por si só seria suficiente para embasar a defesa da antecipação terapêutica do parto no caso de diagnóstico de anencefalia. Contudo, a interpretação jurídica seria superficial se limitada a isto.
O princípio da dignidade da pessoa humana possui uma ampla magnitude, podendo ser desdobrado em subprincípios, ou interrelacionar-se de modo profundo e duradouro com outros princípios de modo a formar uma amalgama de defesa dos interesses dos indivíduos. Por isto, alguns doutrinadores atribuem a ele o caráter de superprincípio, estando alocado acima dos demais.
Essa proposta não prospera, visto que, como demonstrado alhures todos os princípios encontram-se em um mesmo nível hierárquico e os conflitos entre eles (colisões) são resolvidos no campo do caso concreto, com a ponderação de valores. Assim, diante da amplitude do princípio da dignidade humana, salutar que se proceda uma análise minuciosa de seus diferentes espectros.
2.1 dignidade da pessoa humana e o direito à vida
O direito à vida é, indubitavelmente, o mais importante dentre aqueles assegurados pelo ordenamento jurídico brasileiro, mesmo porque, direta ou indiretamente, é o nascedouro de todos os outros direitos. Assim, hodiernamente se compreende que não é suficiente viver, é primordial que essa existência seja acompanhada de qualidade. É o entendimento de Carmem Lúcia Rocha (1998, p. 49).
“A vida com justiça é que é o objeto do direito. E a vida é justa quando garantida a dignidade da experiência humana. Vida com fome não é justa nem digna. Vida com dor, também não, seja qualquer a espécie de dor que acometa o homem. A vida tocada pelo medo e pela angústia é experiência malsã, mais ainda se o desequilíbrio vem de fora”.
Nesse diapasão, é inevitável o questionamento acerca da viabilidade dos fetos anencéfalos. Especialmente, quando se tem em mente que o conceito legal de morte adotado no Brasil, vincula-se, exclusivamente, à ausência de atividade cerebral. Ora, se o feto não possui encéfalo pode ser considerado ente vivo?
Muitos são aqueles que respondem incisivamente: anencéfalo é necessariamente um natimorto. Desta feita, como pode haver tão forte grita em defesa do seu direito à vida? Na verdade, a revolta deveria ser apontada à natureza e não aos profissionais da saúde e da Justiça que autorizam e realizam os procedimentos necessários à antecipação do parto.
Ainda assim, existem muitos, especialmente grupos religiosos, que defendem freneticamente a necessidade de respeitar o direito à vida do feto, independentemente, de sua condição corpórea. Estas pessoas lembram constantemente que o direito à vida é absoluto, seria um dom ofertado por Deus e somente poderia ser retirado por ele.
Esse posicionamento é criticável, mormente, por ser claro o intuito do legislador constituinte de relativizar, em alguns casos especiais, o direito à vida.
“Com efeito, a tese que ora se sustenta também parte da premissa de que a proteção da vida se inicia no momento da concepção. Apenas afirma que a tutela da vida anterior ao parto tem de ser menos intensa do que a proporcionada após o nascimento, sujeitando-se, com isso, a ponderações de interesse envolvendo outros bens constitucionalmente protegidos, notadamente os direitos fundamentais da gestante.
Neste particular, o uso da cláusula “em geral” evidencia que a proteção à vida intra-uterina deve ser concebida como um princípio e não como uma regra. Em outras palavras, e empregando a conhecida fórmula de Robert Alexy, a proteção ao nascituro constitui um “mandado de otimização” em favor de um interesse constitucionalmente relevante – a vida embrionária – sujeito, contudo, a ponderações com outros princípios constitucionais, e que pode ceder diante deles em determinadas circunstâncias” (SARMENTO, 2007, p.79).
Por outro lado, também há clara afronta ao direito à vida da mãe. Lembram Débora Diniz e Fabiana Paranhos (2004, p. 27):
“Uma gestação de feto com anencefalia acarreta riscos de morte à mulher grávida. Sem dúvida, e sobre isso há alguns dados levantados que são muito interessantes. Em primeiro lugar, há pelo menos 50% de possibilidade de polidrâmnio, ou seja, excesso de líquido amniótico que causa maior distensão do útero, possibilidade de atonia no pós-parto, hemorragia e, no esvaziamento do excesso de líquido, a possibilidade de descolamento prematuro da placenta, que é um acidente obstétrico de relativa gravidade. Além disso, os fetos anencéfalos, por não terem o pólo cefálico, podem indicar a expulsão antes da dilatação completa do colo do útero e ter o que nós chamamos de distócia do ombro, porque nesses fetos, com freqüência, o ombro é grande ou maior que a média e pode haver um acidente obstetrício na expulsão no parto do ombro, o que pode acarretar dificuldades muito grande no ponto de vista obstétrico. Assim sendo, há inúmeras complicações em uma gestação cujo resultado é um feto sem nenhuma perspectiva de sobrevida. A distorcia do ombro acontece em 5% dos casos, o excesso de líquido em 50% dos casos e a átona do útero em 10% a 15% dos casos.”
A legislação penal traz em seu âmago hipóteses em que o direito à vida pode ser relativizado. Merecem destaque de forma geral a legítima defesa e o estado de necessidade. Entrementes, é interessante anotar a existência de casos em que o aborto está autorizado: quando houver risco de vida para a gestante e quando a gestação decorrer de estupro. Não merece maiores ponderações a primeira hipótese, vez que um trata-se de uma frontal ponderação entre duas existências.
De outra banda, é salutar uma palavra acerca da gravidez decorrente de estupro. O legislador compreendeu o sofrimento que cercaria uma mãe, em ter de gerar e suster, posteriormente, uma criança que nasceu de ato violência tormentosa. Não há proporcionalidade em obrigar uma mulher a levar a cabo a gravidez produzida por seu algoz e, mais, não há mecanismo que possa fazer com que ela demonstre o mínimo afeto pela criança cuja presença pode trazer as piores recordações de sua existência. A violência sexual afasta por completo tudo o que de sublime há na gravidez.
É certo, portanto, que uma vez mais, prevalecerá, indubitavelmente, o ânimo de preservar a saúde da mãe (física e psicológica), vez que não há sentido algum em colocar, mesmo que minimante, em risco a vida da gestante para garantir o parto de uma criança que possuirá sobrevida mínima.
2.2 dignidade da pessoa humana e o direito à integridade física, psíquica e moral
Decorrência direta do direito à vida, o direito à integridade possui uma amplitude respeitável, abarca de uma só feita os aspectos físico, psíquico e moral. É dizer, pois que busca resguardar a pessoa humana em toda a sua complexidade.
Nesse ponto, cabe um retorno ao que foi discutido alhures, ou seja, é possível reconhecer direito amplo à integridade aos fetos anencéfalos? Parece que não, pelos motivos decantados anteriormente.
De outra banda é obvio que a mãe que gestaciona um anencéfalo necessita que todos os aspectos de sua integridade sejam respeitados, sob pena de sofrer um verdadeiro massacre. Lembra o Ministro Joaquim Barbosa (BRASIL, 2004):
“Não se pode impor à gestante o insuportável fardo de, ao longo de meses, prosseguir na gravidez já fadada ao insucesso. A morte do feto, logo após o parto, é inquestionável. Logo, infelizmente nada se pode fazer para salvar o ser em formação. Assim, nossa preocupação deve ser para com o casal, em especial com a mãe, que padece de sérios problemas de ordem emocional ante o difícil momento porque passa.”
Assevera Antonio Chaves (1999, p. 34-35):
“(…) insistir no prosseguimento de uma gravidez sem possibilidades de êxito, como no caso da acrania, quando há vontade contrária da mulher, representa capricho irresponsável, que, a par do sofrimento natural, poderá ensejar risco potencial e grave comprometimento psicológico.
Há, ainda, não se pode esquecer, a possibilidade de risco à saúde da mulher, com eventual reflexo em suas condições de vida. E isso deve ser impedido, no mínimo por razões humanitárias.”
É desarrazoado exigir que os pais de um feto anencéfalo suportem o fardo de acompanhar até o último instante uma gravidez que está fadada ao mais doloroso dos fracassos. Chega às raias da desumanidade obrigar uma mãe trocar as pecinhas do enxoval do bebê e seu berço, por vestes mortuárias e um féretro.
Surgem daí os defensores do transplante de órgãos do anencéfalo para outras crianças. Os messiânicos diriam, inclusive, que os pequenos bebês desprovidos de encéfalo cumprem um papel divino de salvar a vida de outras crianças. Existem decisões administrativas do Conselho Regional de Medicina de São Paulo e do Conselho Federal de Medicina autorizando tal procedimento.
Não há dúvida de que a mãe pode optar pelo prosseguimento da gestação por um fim humanitário, mas não está obrigada a fazê-lo em hipótese alguma. Forçar esta gestação traria resultados desastrosos, pois:
“(…) coisifica o corpo da mulher. Transformá-la em mera encubadora de feto anencéfalo no aguardo do transplante de órgãos atenta contra a dignidade da sua condição de mulher.
Penalizá-la com a mantença da gravidez, para a finalidade exclusiva do transplante de órgãos do anencéfalo significa uma lesão à autonomia da mulher, em relação a seu corpo e à sua dignidade como pessoa (…).
Cuida-se aqui do primeiro e fundamental princípio da ética laica contemporânea: aquele com base no qual nenhuma pessoa pode ser tratada como coisa, pelo que qualquer decisão heterônoma, justificada por interesses alheios aos da mulher, equivale a uma lesão do imperativo kantiano, segundo o qual nenhuma pessoa pode ser tratada como meio para fins a si alheios, mas apenas como fim de si mesma.
Instrumentalizar a mulher grávida, tornando-a apenas um corpo útil para gestar um feto anencéfalo afim de que este forneça órgãos ou tecidos a terceiros necessitados é algo que ofende aos mais comezinhos princípios éticos.” (FRANCO, 2005)
Mais uma vez a balança tenderá para o lado dos pais em desfavor da mantença do direito de nascer da criança.
2.3 dignidade da pessoa humana e o direito à liberdade
O direito à liberdade é outra conquista consolidada no Brasil. Interessante, entrementes, notar que é comumente associado à locomoção e expressão de opiniões. Essa é uma visão limitadora que deve ser rejeitada. Na realidade, assim como os direitos relacionados à integridade corpórea, a liberdade deve ser compreendida em um sentido lato, concebendo diferentes possibilidades e resguardando de maneira maximizada o cidadão. É dizer, deve ser vista, também, como a autonomia da decisão sobre o destino a ser dado a vida, ao corpo ou mesmo à existência como pessoa humana.
Nesse diapasão, não se pode deixar de reconhecer a liberdade decisória da mãe, mormente, no que se refere ao destino que deseja empregar à gestação fadada ao fracasso que desenvolve. Na verdade, a gravidez não é um fim em si mesmo, mas um processo que deve desembocar em um ser humano nascido e vivo. A falência desta premissa gera a necessária modificação das ideias que a precedem.
Dessa maneira, forçando a continuidade da gravidez, além de todas as implicações apresentas anteriormente, haverá o desrespeito ao direito de a mulher dispor livremente de seu corpo. No Direito Romano, como mencionado, o feto era apontado como parte das vísceras maternas[2] cabendo a gestante decidir, sobre seu destino.
Não se pretende, aqui, iniciar a defesa de condutas abortivas e liberalizantes, mas não é impossível deixar de reconhecer que a gravidez de um anencéfalo não pode ser tratada como uma gestação convencional e, como tal, deva estar submetida aos mesmos ditames de todas as demais.
“Nesse sentido, impedir a antecipação do parto de um feto comprovadamente anencefálico fere o direito à dignidade da pessoa que gesta e o direito de fazer a sua livre escolha. Da mesma forma, não se trata de impor à gestante a interrupção da gravidez em caso de anencefalia, apenas busca-se que seja possível fazer a opção por levar adiante ou não essa gestação. As situações envolvendo equívocos diagnósticos acabam por confundir o que já está claramente estabelecido”. (RAYMUNDO, 2008)
Assim, uma vez mais, assiste razão àqueles que defendem o direito de a mulher decidir livremente sobre a sua integridade corpórea e sobre o prosseguimento ou não da empreitada que está fada ao fracasso.
EPÍLOGO
A anencefalia não é uma novidade que passou a assombrar as mulheres há pouco tempo, ao inverso, desde épocas remotas a perda de um filho é um dos piores traumas a que uma mulher poderia ser submetida, tanto mais se a criança não possuir qualquer chance de sobrevivência fora do útero. O que há de novo é a chance de identificar com precisão a presença da patologia, o que possibilita a ação dos médicos com antecedência minorando os danos sofridos pela mãe. Contudo, de que adianta o avanço científico da medicina se existem outros obstáculos, às vezes, intransponíveis?
Na seara jurídica não há qualquer consenso acerca dos procedimentos a serem adotados logo após o diagnóstico de um caso de anencefalia. A grita não facilita a busca de um acordo. Os partidários e os inimigos da antecipação terapêutica do parto recolhem-se às suas trincheiras e coordenam ataques mútuos. Com argumentos lógicos e sólidos foi possível provar, sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana que a mulher pode decidir o futuro da gestação, quando estiver plenamente informada de que o feto não possui condições de sobrevivência após o parto.
Fica claro que permissão e obrigatoriedade jamais serão sinônimos, assim, o fato de admitir-se a antecipação terapêutica do parto não quer dizer que todos as mulheres serão forçadas a adotar tal caminho. O poder de decisão que se deseja reconhecer não pode ser utilizado contra as mulheres, como um ato de violência. Ao inverso, esta possibilidade surge como respeito à dignidade individual.
Informações Sobre o Autor
Volgane Oliveira Carvalho
Especialista em Direito Processual e Mestrando em Direito pela Universidade Autónoma de Portugal. Professor de Direito da Faculdade Piauiense e do Instituto Camillo Filho, Analista Judiciário do TRE-MA.