Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar as restrições legais e doutrinárias à concessão da antecipação de tutela contra a Fazenda Pública, bem como sua adequabilidade ao Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição Federal de 1988, que consagra a razoabilidade e proporcionalidade como princípios constitucionais. Para tanto, o presente trabalho analisa os conceitos da tutela de urgência e das prerrogativas da Fazenda Pública, além de fornecer uma visão atual do posicionamento dos Tribunais Superiores. Avança-se ao estudo das teorias acerca da prevalência do interesse público e individual, culminando na análise da possibilidade, ou não, de determinação prévia e objetiva da predominância do interesse público no ordenamento jurídico brasileiro. Por fim, conclui-se pela necessidade de ponderação dos bens em conflito em cada caso concreto, delegando-se ao controle difuso a possibilidade de inaplicação das restrições legais já referidas.
Palavras-chave: Antecipação de Tutela. Fazenda Pública. Estado Democrático de Direito.
Abstract: This study aims to examine the legal and doctrinal restrictions to the granting of advance relief against the Treasury and its suitability for democratic rule of law established by the 1988 Federal Constitution, which establishes the reasonableness and proportionality as constitutional principles. To that end, this paper examines the concepts of guardianship of urgency and Privileges of the Treasury, and provides a current view of the positioning of the Superior Courts. Goes to the study of theories about the prevalence of public interest and individual, culminating in examining the possibility or, otherwise, of the determination and objective prior to the predominance of public interest in the Brazilian legal system. Finally, the conclusion is the need to balance the conflicting goods in each case, delegating to the diffuse control the possibility of non-application of legal restrictions already mentioned.
Keywords: Preliminary Injunction. National Treasury. Democratic State of Law.
A tutela no direito brasileiro pode ser dividida em tutela definitiva, obtida após cognição exauriente, caracterizada pela observância dos princípios do contraditório e ampla defesa e formação de coisa julgada, e tutela cautelar, não satisfativa e destinada a conservar ou assegurar a eficácia daquele provimento final.
Carecia o ordenamento jurídico de uma tutela destinada àquelas peculiares situações em que o interessado, pelas características do interesse pretendido ou dele próprio não poderia aguardar o tempo que a tutela definitiva exige: não haveria, após sua decorrência, meios de obter-se aquele direito que se intentou, seja pelo seu próprio exaurimento, seja por males da vida que não permitirão ao autor usufruí-lo mais. Ainda, restava a tutela destinada a preservar o direito daquele que estava sendo prejudicado por abusividade da parte ré, através da prática de atos protelatórios.
Defende-se a idéia de que, caso o direito material da parte contenha alguma peculiaridade, ou seja revestido de especialidade,a lei deve conferir-lhe um procedimento especial. Todavia, há casos em que não há nenhuma peculiaridade, mas ainda assim há a necessidade de uma tutela diferenciada, em face de sua urgência. Para esses casos, a legislação prevê a existência de provimentos de urgência postos à disposição da parte que não pode aguardar o desfecho da demanda.
Com a reforma do Código de Processo Civil, introduziu-se a tutela antecipada no art. 273[1], em que se garantiu, através de cognição sumária, a concessão do próprio direito pretendido, se presente prova inequívoca do direito e que essa fosse hábil ao convencimento do Magistrado, bem como um dos seguintes pressupostos: os requisitos de dano irreparável ou de difícil reparação; ou da ocorrência de abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.
Essa tutela frequentemente foi confundida com a tutela cautelar, que apesar de essencialmente distinta daquela, possui natureza de tutela de urgência. A tutela cautelar garante a futura eficácia da tutela definitiva, enquanto que a antecipada confere eficácia imediata à mesma. Ainda, divergem quanto à estabilidade. Enquanto a tutela antecipada é provisória, uma vez que permite o gozo do direito e posteriormente é substituída pela tutela definitiva, a cautelar é propriamente definitiva, conferida após cognição exauriente e garantindo os futuros efeitos da tutela satisfativa.
Todavia, ao se analisar as peculiaridades da presença da Fazenda Pública em Juízo, percebe-se que esse instituto, tão essencial à garantia da segurança jurídica e da efetividade das decisões, não é de simples aplicação quando em face do Poder Público.
A Fazenda Pública, composta pela União, Estados, Distrito Federal, Municípios, autarquias e as fundações públicas, quando em Juízo, reveste-se das seguintes prerrogativas: juízo privativo, prazos mais dilatados, dispensa do pagamento de despesas judiciais, procedimento próprio para execução das condenações da Fazenda Pública em pagamento de quantia certa, conforme art. 100 da Constituição, o duplo grau de jurisdição obrigatório ou remessa oficial das sentenças proferidas contra a Fazenda, art. 475, II, do CPC e o regime próprio quanto às decisões proferidas contra si em caráter provisório.
“[…] Neste ponto, saliente-se que é justificável o tratamento processual diferenciado estabelecido pela lei em favor do Poder Público, desde que guardada a consonância com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Deve-se admitir, é verdade, que nem todas as prerrogativas conferidas por lei à Fazenda Pública constituem privilégios contrários ao princípio da isonomia, uma vez que a isonomia não é sinônimo de igualdade em termos absolutos.
Esse tratamento processual diferenciado encontra respaldo no interesse publico, haja vista o ente estatal representar o interesse de toda a coletividade. Baseia-se, outrossim, na alegação de que a burocracia da máquina administrativa dificulta a defesa do Poder Público de maneira equitativa em relação à outra parte, decorrendo disso a necessidade de se contemplar a igualdade material, anteriormente citada”.[2]
Dentre as prerrogativas da Fazenda, principalmente a necessidade de remessa oficial e de inscrição no regime de precatório, passaram a ser levantadas pelos doutrinadores como óbices à concessão da tutela antecipada contra a Fazenda.
Passou-se a questionar a possibilidade de determinar à Fazenda que cumprisse as condenações proferidas em sede de antecipação de tutela antes do trânsito em julgado da sentença, como exige o art. 475 do CPC.[3] Ainda, no que tange às obrigações de pagar quantia certa, como poderiam ser adimplidas sem a inscrição no regime de precatório, meio hábil para pagamento nas execuções contra a Fazenda, uma vez que seus bens são impenhoráveis, não havendo garantias ao exeqüente?
Enquanto o regime de precatório é classificado, nesse trabalho, como limitação constitucional à antecipação de tutela contra a Fazenda[4], a remessa oficial é como limitação infraconstitucional. Além dessa, outras previsões legislativas passaram a suscitar esse conflito: a Lei 9.497/97, na qual foram estendidas as limitações à concessão de liminares contra o Poder Público em mandado de segurança previstas na Lei 8.437/92, levantou muitas controvérsias, pois de antemão restringiu o poder do Magistrado quando examinasse questões que envolvessem aquelas citadas situações contra o Poder Público; alegou-se ofensa ao poder cautelar geral, o poder cautelar genérico e o poder cautelar de forma ampla.
Renomados doutrinadores alegaram, ainda, a impossibilidade de verificação dos pressupostos alternativos previstos no art. 273, incisos I e II nas relações jurídicas com a Fazenda Pública, quais sejam, o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.[5] Isso porque se afirma ser impossível a existência de dano irreparável ou atos eivados de má-fé, como abuso de direito. Se é o próprio Estado que se encontra na relação, não haveria o que se preocupar acerca do seu adimplemento.
Essas restrições, sejam infraconstitucionais, ou previstas na Constituição, que em tese impossibilitariam a concessão de tutela antecipada contra a Fazenda, originaram o conflito entre os direitos fundamentais e o interesse público: de um lado, a inafastabilidade da proteção adequada e efetiva do direito, o que pode ocorrer somente se a tutela for antecipada em regime de urgência, e, de outro, o risco de graves danos ao interesse público.
A posição do interesse público em face do particular foi socialmente analisada e originou as teorias organicistas, utilitaristas, individualistas e personalistas. Variando conforme cada uma, o interesse público possui determinada posição que, em algumas sobrepõe-se ao interesse individual, presente no Antigo Regime, em outras é relevada, como na Era burguesa, e, ainda, pode interferir na promoção do interesse individual, como preconiza a Constituição Federal de 1988.
Assim, no Estado de Direito Brasileiro, em que os direitos fundamentais são elevados a cláusula pétrea, não é possível que a Lei de antemão exclua sua eficácia, garantindo-se a preservação do interesse público. Para a solução do conflito, quando, por exemplo, uma pessoa que, em risco de vida, necessita de valores a serem pagos pela Fazenda, utiliza-se o princípio da proporcionalidade. Segundo esse, devem ser consideradas a adequação entre o meio e o fim, a necessidade de que a escolha feita tenha sido a melhor e única possível, ou seja, que a medida restritiva seja indispensável e a mais eficaz à defesa de um direito fundamental, e a proporcionalidade em sentido estrito, preservar o mínimo de sacrifício ou restrição possível.
Se a negativa da tutela não tiver respaldo no confronto com os principios da razoabilidade e proporcionalidade, estaremos diante da inobservância do princípio da isonomia, uma vez que se estará privilegiando interesses secundários em nome da supremacia do interesse público.
1 INSTITUTO DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA
1.1 Breves considerações sobre a tutela provisória
Ao ajuizar uma ação, a parte busca a consagração do direito pretendido, ou seja, a tutela definitiva. Essa é adquirida após amplo debate acerca do tema, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa, e atribuindo-se, de maneira segura, o objeto da demanda. “É predisposta a produzir resultados imutáveis, cristalizados pela coisa julgada material.”[6] Essa tutela definitiva será sempre exauriente, com o ônus da demora que esse longo exame exige.
O que ainda faltava no nosso direito era a expressa possibilidade da concessão da tutela antecipatória no processo de cognição exauriente. Conforme as notas de Barbosa Moreira, se o Estado proibiu a Justiça de mãos próprias, está obrigado a prestar a tutela jurisdicional adequadamente a cada conflito de interesses. Pode-se concluir disso, portanto, que a inexistência de tutela adequada a determinada situação conflitiva significa a própria negação da tutela a que o Estado obrigou-se no momento em que chamou a si o monopólio da jurisdição: o processo nada mais é do que a contrapartida que o Estado oferece aos cidadãos diante da proibição da autotutela.
“Note-se que a “ação cautelar” que substituía o mandado de segurança que não mais podia ser impetrado em razão da decadência, nada mais era do que uma ação de cognição exauriente onde se postulava uma tutela sumária. Tal ação, embora na prática rotulada de cautelar, afastava-se da cautelaridade na mesma proporção em que o direito líquido e certo afasta-se da fumaça do bom direito. Nesses casos, o desconhecimento da técnica da cognição fez pensar que a ação era cautelar satisfativa, dispensando a propositura de uma ação principal, ou mesmo, que era necessária uma absolutamente inócua ação principal. Ora, a ação não era cautelar porque o juiz não se limitava a um juízo de verossimilhança, assim como dispensava a ação principal porque nada mais precisava ser conhecido.”[7]
Assim, o legislador deparou-se com a necessidade de haver tratamentos distintos àqueles direitos evidentes e aos que correm riscos de serem lesionados. Aos direitos que são evidentes e cujas defesas são exercidas abusivamente é conferida uma tutela imediata, bem como àqueles que o juiz entende significativamente prováveis de existirem e que sofrem riscos de lesão. A essa concessão prévia do direito pretendido, em situação peculiares, foi conferida a referência de tutela antecipada. Ela permite, assim, que se dê tratamento diferenciado aos direitos evidentes e àqueles que correm risco de lesão, permitindo que sejam realizadas antecipadamente as conseqüências concretas da sentença de mérito. Elas podem ser consideradas como os efeitos externos da sentença, ou seja, os efeitos que operam fora do processo e no âmbito das relações de direito material.
Foi o momento da Reforma do Código de Processo Civil, em que se buscou o aperfeiçoamento do sistema processual, tendo por paradigma a instrumentalidade e a efetividade do processo, como resposta à evolução da sociedade.
“A tutela antecipada, vale a ênfase, é assim chamada porque precipita a produção dos efeitos práticos de uma sentença, os quais, de outro modo, não seriam perceptíveis, pois não seriam sentidos na realidade concreta, no plano exterior ao processo, no plano material, portanto até um evento futuro: proferimento de sentença, processamento de recursos de apelação com efeito suspensivo e, eventualmente, seu trânsito em julgado. É por isso que é fácil responder à questão “até quando é possível pleitear a tutela antecipada?”. A tutela é “antecipável até o instante em que ela, “naturalmente” (ex lege, isto é, por imposição do sistema jurídico), passa a surtir seus efeitos concretos.”[8]
1.1.1 Características da tutela antecipada
A antecipação, total ou parcial, dos efeitos práticos materiais pretendidos na inicial, prevista no art. 273 e 461, par. 3, do CPC, não é um instituto desconhecido no nosso ordenamento, uma vez que já era previsto nas liminares proferidas em mandado de segurança, em ações cautelares, ações civil públicas, ações possessórias, em determinadas medidas constitucionais e em algumas outras medidas de natureza semelhante, como nos alimentos provisionais nas ações de família, nas relativas à locação, etc.
Todavia, aquelas são hipóteses referentes a determinadas e específicas situações. A inovação do referido artigo 273 foi sua generalização, pois, em qualquer processo de conhecimento, desde que presentes os requisitos, é possível sua aplicação.
A antecipação pode ser conferida antes mesmo da produção de todas as provas tendentes à demonstração dos fatos constitutivos do direito, o que não ocorre no mandado de segurança. É fundada na probabilidade de que o direito afirmado será demonstrado e declarado.
A tutela provisória, também chamada de sumária ou precária, é um instituto de direito processual destinado a conferir, antecipadamente, o gozo imediato dos efeitos da tutela definitiva. É possível atribuir-lhe duas características básicas: a sumariedade da cognição e a precariedade do direito conferido. Quanto à primeira, ela significa que o juiz, ao deferi-la, realizará um exame superficial do objeto da causa a fim de considerar-se convencido da verossimilhança das alegações. Já a precariedade está relacionada à possibilidade de, a qualquer tempo e fase do processo, a antecipação da tutela ser revogada ou modificada.[9]
Pode-se afirmar que as tutelas de cognição sumarizadas no sentido vertical objetivam: assegurar a viabilidade da realização de um direito, no caso da tutela cautelar; realizar, em vista de uma situação de perigo, antecipadamente um direito, tutela antecipatória; realizar, em face das peculiaridades de um determinado direito e em face da demora do procedimento ordinário, antecipadamente um direito, como nas liminares de determinados procedimentos especiais e, por fim, realizar, quando o direito surge como evidente e a defesa é exercida de modo abusivo, antecipadamente um direito, mas aqui, conforme o art. 273, II, do CPC.
“Se a realidade da sociedade contemporânea muitas vezes não comporta a espera do tempo despendido para a cognição exauriente da lide, em muitos casos o direito ao devido processo legal somente poderá se realizar através de uma tutela de cognição sumária. Quem tem direito à adequada tutela tem direito à tutela antecipatória, seja a tutela antecipatória fundada nos arts. 273 e 461 do CPC e 84 do CDC, seja a tutela antecipatória fundada no art. 273, II, do Código de Processo Civil. É necessário observar que o legislador infraconstitucional, para atender ao princípio constitucional da efetividade, deve desenhar procedimentos racionais, ou seja, procedimentos que não permitam que o autor seja prejudicado pela demora do processo.”[10]
Sobre a cognição sumária, a restrição no plano vertical conduz ao chamado juízo de verossimilhança ou às decisões derivadas de uma convicção de verossimilhança. Na antecipação da tutela ela destina-se a dois objetivos: a) antecipar um direito, tendo em conta uma situação de perigo, correspondendo ao previsto no art. 273, I, do CPC b) antecipar um direito quando a pretensão do autor é inequívoca e a defesa é realizada de modo abusivo, correspondendo, então, ao art. 273, II, do CPC.
Ao conceder a tutela sumária, o juiz restringe-se a afirmar a probabilidade do direito pretendido, e é por isso que, ao aprofundar-se no exame cognitivo durante a litispendência do processo, pode deparar-se com a inexistência daquele direito.
Quanto à natureza do instituto, a doutrina harmoniza-se no sentido de que se trata de natureza satisfativa, no sentido de antecipação do resultado final do processo, afastando caracterizá-la como tutela cautelar.
Segundo Cândido Rangel Dinamarco, “a medida antecipatória conceder-lhe-á o exercício do próprio direito afirmado pelo autor. Na prática, a decisão com que o juiz concede a tutela antecipada terá, no máximo, o mesmo conteúdo do dispositivo da sentença que concede a definitiva e a sua concessão equivale, mutatis mutandis, à procedência da demanda incial- com a diferença fundamental representada pela provisoriedade”.[11]
1.1.2 Distinção entre a tutela cautelar e a tutela antecipada
“A insistência com que temos tratado da distinção entre as ‘medidas antecipatórias’ que poderão, eventualmente, ser também assegurativas, mas que, antes de tudo, são formas de tutela satisfativa e, por isso mesmo, ultrapassam o campo da cautelaridade, justifica-se a cada dia, tendo em vista a tendência geral da jurisprudência para o contínuo alargamento do campo da tutela jurisdicional de urgência. A expansão exagerada das medidas liminares, com a previsível reação contrária posterior, caracterizada pelo que se passou a denominar, na Itália, de “fenômeno suspensivo”, é uma conseqüência inevitável da confusão conceitual entre as variadas formas de execução provisória )satisfativa) e tutela cautelar.”[12]
A possibilidade de antecipar, no processo de conhecimento, os efeitos da tutela de mérito, tem profundas repercussões no processo cautelar. Até sua introdução, a cautelar era utilizada indiscriminadamente tanto para alcançar-se as medida cautelar propriamente dita – medida para assegurar o direito, sem satisfazê-lo – como também para obter-se a medida de antecipação satisfativa. A partir da introdução do art. 273, a ação cautelar destina-se à obtenção de medidas cautelares típicas: as antecipações satisfativas só poderão ser deduzidas na própria ação de conhecimento.
“A distinção entre elas passa a ser, como se vê, de fundamental importância e não apenas por motivos burocráticos (na prática, até agora a antecipação satisfativa era requerida em ação autônoma – cautelar – mas os autos, geralmente, eram apensos aos da ação principal, onde se fazia instrução e julgamento conjunto). Sob este aspecto, a antecipacao satisfativa da tutela pelo regime do art. 273 do CPC restou facilitada (já que independe de ação própria, podendo ser requerida por simples petição). Porém, a profundidade da mudança foi em outro aspeco: mudaram os pressupostos para a concessão da medida, que passaram a ser mais severos que os do processo cautelar.”[13]
Para eliminar esse uso anômalo das ações cautelares e atender ao interesse de urgência, criou-se a tutela antecipada do art. 273, com requisitos um pouco mais exigentes que os da ação cautelar. Objetivamente pode-se distingui-las da seguinte forma: ao invés do fumus boni iuiris, passou-se a exigir a verossimilhança das alegações fundadas em prova inequívoca, devendo ainda haver ou um risco de lesão ou manifesto propósito protelatório do réu. Ainda, deve estar ausente a irreversibilidade do provimento. [14]
Ovídio Baptista, com clareza, confirma essa distinção, assevereando que “quando se antecipa execução, satisfaz-se por antecipação, atendendo-se desde logo a pretensão, o que significa mais do que dar-lhe simples proteção cautelar”.[15]
Como já foi dito, a par da tutela definitiva foi necessária a criação de tutela jurisdicional diferenciada, a fim de que se resguardasse o direito pretendido ou se conferisse sua própria fruição.
Assim, além da tutela antecipada, há no ordenamento vigente a tutela cautelar, destinada à preservação dos efeitos da tutela definitiva satisfativa; ela, em verdade, garante a futura eficácia da tutela definitiva, enquanto que a antecipada confere eficácia imediata à mesma. Divergem, portanto, quanto à função exercida.
“Muitos confundem a tutela antecipada (provisória) com a tutela cautelar (definitiva). Possuem pontos em comum, é verdade, mas não deixam de ser substancialmente distintas. Rigorosamente, possuem naturezas jurídicas distintas: uma, a tutela antecipada, é uma técnica processual; a outra, a tutela cautelar, é uma espécie de tutela jurisdicional, resultado prática que se pode alcançar pelo processo. A dificuldade na distinção das figuras certamente decorre disso: possuindo diferentes naturezas, não deveriam ser confrontadas.”[16]
Apesar de as duas possuírem o mesmo objetivo, que é atenuar os males do tempo, elas divergem quanto à estabilidade. Enquanto a tutela antecipada é provisória, uma vez que permite o gozo do direito e posteriormente é substituída pela tutela definitiva, a cautelar é propriamente definitiva, conferida após cognição exauriente e garantindo os futuros efeitos da tutela satisfativa. Ainda, quanto a sua natureza: a tutela antecipada pode antecipar os próprios efeitos pretendidos, ou seja, ser satisfativa, conforme art. 273 do CPC, ou não satisfativa, ou seja, atributiva ou conservativa do bem da vida, que seria a cautelar, conforme art. 804 do CPC. Já a cautelar é sempre não satisfativa e assecuratória ou conservativa.[17]
Ovídio Baptista diferencia periculum in mora e ‘receio de dano irreparável ‘ como conceitos que, segundo ele, são de criação medieval e dizem respeito não `a morosidade natural da prestação jurisdicional comum, mas ao perigo efetivo demonstrado no caso concreto que, por si s’o, possa colocar em perigo a efetividade do direito ou o interesse protegido cuja existência e’ alegada apenas pela parte.[18]
Foi a necessidade de uma tutela jurisdicional efetiva que levou à utilização da tutela cautelar como instrumento destinado à satisfação tempestiva da pretensão que só poderia ser pleiteada através da ação principal.
A tutela cautelar não se destina a antecipar a tutela de conhecimento. Como leciona renomado processualista, “uma das formas de distorção do uso da tutela cautelar verifica-se sempre que se dá ao resultado de uma prestação de tutela jurisdicional cautelar uma satisfatividade que não pode ter.”[19]
Não é possível afirmar que a cautelar pode realizar o próprio direito, como por exemplo a pretensão aos alimentos; se assim o fizermos, haverá contradição, pois uma vez realizado o direito material nada mais resta para ser assegurado. Ou seja, quando o direito é satisfeito, nada é assegurado e nenhuma função cautelar é cumprida.
Cabe ainda examinar os diferentes pressupostos exigidos para cada uma, apesar de haver exceções quanto ao mesmo. A tutela cautelar exige simples verossimilhança do direito alegado, fumus boni iuris, enquanto que a antecipada atributiva exige a verossimilhança fundada em prova inequívoca do direito. Imprescinde, portanto, de cognição mais profunda. Todavia, é ainda possível que se conceda tutela antecipada satisfativa após o preenchimento de pressupostos simples, como no caso da possessória, que dispensa comprovação de perigo. Não se trata de critério teórico. Quanto à urgência, cabe ressaltar que a cautelar sempre a exige, enquanto a antecipada pode, ou não, fazê-lo.
Portanto, pode-se esquematizar o alegado da seguinte forma. Há a tutela definitiva, exauriente e apta a formar coisa julgada. A mesma pode ser satisfativa, certificando ou efetivando um direito, ou não satisfativa, que é a cautelar. De outro lado, existe a tutela antecipada, que, como técnica processual, antecipa esses efeitos já citados: pode ser, portanto, antecipada satisfativa ou cautelar. A cautelar é, junto com a tutela de execução e certificação, uma das três modalidades de tutela definitiva.
Calmon de Passos também diferencia os dois institutos, lecionando que:
“Na cautelar, o juiz analisa o risco de ineficácia da futura tutela provável, e, na antecipação, o juiz analisa a necessidade de ser executada, de logo, provisoriamente, a decisão de mérito, que proferiu ou vai proferir, em condições normais sem aptidão para constituir-se titulo legitimador de execução provisória do julgado. Por isso mesmo, a cautelar requer existe ato da parte e dele derive o risco de dano, ao passo que na antecipação isso ‘e de todo irrelevante, devendo o magistrado considerar apenas a necessidade de antecipação da eficácia do julgado porque, senão deferida, haverá risco de ocorrerem, para o autor, danos que serão eliminados, se antecipação houver.”[20]
Uma questão importante: qual seria a razão de haver tanta confusão entre a tutela cautelar e a antecipada? É que sempre houve a previsão, no artigo 804 do CPC, da tutela antecipada cautelar. Em 1994, criou-se a possibilidade, no art. 273 e no par. 3 do art. 461, da tutela antecipada satisfativa, e acabou-se utilizando tão somente essa, criando-se a crença de que a tutela antecipada seria sempre satisfativa e a cautelar, assecuratória. Além disso, o perigo da demora, pressuposto da cautelar, é utilizado por vezes como pressuposto da tutela antecipada, o que acabou confundindo, porque as duas foram definidas como tutelas de urgência sem diferenciação.
1.2 Pressupostos autorizadores da Antecipação de tutela
A fim de que fosse deferida a antecipação de tutela, previu o legislador a necessidade de ocorrência de três determinados pressupostos obrigatórios, a saber: a prova inequívoca, a verossimilhança e a possibilidade de reversão da medida. Essa última será examinada em tópico à parte.
A lei exige a prova inequívoca do fato, a verossimilhança da alegação e a reversibilidade da medida para concessão da tutela antecipada, tanto nas hipóteses de risco de dano, abuso de direito de defesa e manifesto propósito protelatório, bem como incontrovérsia do pedido.
São sempre necessárias, assim, para a concessão da tutela antecipada, a prova inequívoca e a verossimilhança da alegação, conforme o art. 273 do CPC. Já os cumulativo-alternativos seriam o receio de dano irreparável ou de difícil reparação e o abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu, conforme os incisos I e II do citado artigo.
Cabe ressaltar que não há, segundo alguns autores, contradição entre os termos ‘prova inequívoca’ e ‘verossimilhança’, na forma tratada pelo art. 273 do CPC. Ao tratar da prova inequívoca, refere-se aos fatos; já ao tratar da verossimilhança refere-se às alegações, ao fundamento de direito, ou aos efeitos jurídicos que se pretende absorver dos fatos.
O termo prova inequívoca é de difícil definição priorísitica, pois esta qualidade a se atribuir a alguma prova depende do quanto for capaz de convencer o magistrado de sua veracidade. O art. 131 do CPC, inclusive, permite uma livre valoração da prova, desde que indicados, na sentença,os motivos da decisão.[21] Assim, o que é inequívoco para um juiz pode não ser para outro. A prova tem a oportunidade de tornar a ocorrência de um fato mais ou menos provável, mas não produzirá uma certeza absoluta. Na verdade, nem quando encerrada a instrução com cognição plena o juiz terá a certeza absoluta. Mais ainda será a dispensabilidade da certeza absoluta em sede de cognição sumária.
O único juízo de certeza passível de se obter é o jurídico, que é possibilitada através de regras processuais, quais sejam, as regras de produção de provas e as que distribuem o ônus da prova e as presunções. O magistrado deve, com base nas regras processuais vigentes, fundamentas sua decisão.
“O melhor entendimento para prova inequívoca é aquele que afirma tratar-se de prova robusta, contundente, que dê, por si só, a maior margem de segurança possível para o magistrado sobre a existência ou inexistência de um fato. Embora ninguém duvide da maior credibilidade que se pode dar a documentos para essa finalidade, a expressão não se deve limitar a eles. Até porque mesmo um documento público pode ter sido falsificado e ser, por isso mesmo, nada inequívoco no sentido da regra em exame.”[22]
Assim, conclui-se que qualquer meio de prova, que não ilícito, pode ser hábil para convencer o magistrado da verossimilhança. Até a prova testemunhal, uma vez que o art. 461, par. 3, admitiu, para fins de antecipação de tutela na obrigação de fazer, não fazer e de entregar coisa, que se realizasse justificação prévia. Esse é, na verdade, um instrumento processual em que o Juiz colhe testemunhos, para convencer-se de fato independentemente de prova documental. A expressão inequívoca indica, não o tipo de prova, mas sua capacidade de invocar segurança ao magistrado para que esse decida acerca dos fatos alegados.
Segundo as célebres palavras de Zavascki, a prova inequívoca deveria ser interpretada “[…] no contexto do relativismo próprio do sistema de provas”.[23]
Não se pode olvidar que a inequivocidade da prova é aquela que pode ser produzida inirio litis, ou seja, antes do contraditório e da produção das provas dos fatos extintivos, modificativos e impeditivos do direito do autor, ou seja, antes do fim da instrução do processo.
Segundo Carlos Augusto de Assis, “prova inequívoca é pura e simplesmente prova com boa dose de credibilidade, que forneça ao juiz elementos robustos para formar sua convicção (provisória)”.[24]
Para Kazuo Watanabe, a prova inequívoca de verossimilhança e o fumus boni iuris possuem significados distintos, sustentando quer o juízo de verossimilhança possui diversos graus, enquanto que o juízo fundado em prova inequívoca seria mais intenso que aquele fundado em mera “fumaça”.[25]
Ainda, Teori Albino Zavascki sustenta que a lei não exige prova de verdade absoluta, mas apenas uma prova segura que, em cognição sumária, aproxime o juízo da verdade.[26]
A prova inequívoca deve conduzir o magistrado a um juízo de verossimilhança em relação aos fatos indicados. Portanto, a verossimilhança é um juízo que possibilita alcançar-se uma verdade provável sobre os fatos. Segundo Athos Gusmão Carneiro, um dado não pode ser esquecido: prova inequívoca não conduz necessariamente a juízo de verossimilhança e ao acolhimento do pedido; e o juízo de verossimilhança não decorre necessariamente de prova inequívoca.[27]
“O conceito de prova inequívoca deve ser somente o processual, já que, na cognição plena, não se pode exigir outra certeza que não seja a jurídica; a inequivocidade não pode ser outra que não a permitida pelas regras processuais que disciplinam a prova e as técnicas de julgamento, devendo o juiz, no entanto, demonstrar os elementos de sua conclusão, como expressamente exigido no par. 1 do art. 273 do CPC brasileiro de 1973, ao demonstrar que o juiz deverá indicar “de modo claro e preciso, as razões de seu convencimento”, fundamentação esta também exigida para a revogação da medida.”[28]
Essa prova inequívoca de verossimilhança do direito alegado é mais rigorosa que a fumaça do bom direito, pressuposto da tutela cautelar. Tal decorre do exame cognitivo mais profundo que se exige à tutela antecipada: ao passo que a tutela antecipada exige verossimilhança fundada em prova, a cautelar somente necessita de plausibilidade ou probabilidade, independente de prova.
Cabe ressalvar que, caso não ocorra qualquer controvérsia fática, quando, por exemplo, a controvérsia versar somente em torno de questões de direito, não há que se falar em antecipação de tutela, mas sim em julgamento antecipado da lide.
O que se espera, portanto, é que, ao conceder a antecipação de tutela, o juiz entenda que o fato esteja relativamente provado conforme as regras de direito processual. Assim, se uma lei exige prova formal de determinada situação, como no caso da escritura pública, o fato estará provado com a apresentação da mesma. Não estará, todavia, com o depoimento de testemunhas.
Ovídio Baptista defende que não é exigível que o direito se mostre ao magistrado como evidente e indiscutível, pois, se tal ocorrer, outra espécie de tutela, definitiva e satisfativa, é que deve ser prestada.[29]
Verificada a presença dos pressupostos obrigatórios, cabe ao magistrado examinar a presença de pelo menos um dos pressupostos alternativos: receio de dano irreparável ou de difícil reparação, conforme art. 273, I, ou abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu, consoante art. 273, II.
Quanto ao receio de dano irreparável, esse diz respeito ao dano concreto, atual e grave. A antecipação de tutela, nesse caso, não pode ser concedida se tratar-se somente de um dano remoto e provável de ocorrer. É majoritário o entendimento doutrinário de que não é um simples inconveniente da demora processual que justiçaria a antecipação, mas sim um dano que não seja representado somente pelo transcurso do tempo.
A antecipação de tutela em face de perigo da demora é conferida apenas se a parte comprovar que o ônus do tempo pode acarretar um dano de difícil reparação ou ainda irreparável. Seu direito, nesse caso, é impossível de ser provido pelo juiz com a sentença de mérito: tardia, não terá mais utilidade ao beneficiário.
A urgência é o verdadeiro legitimador da jurisdição cautelar e um dos fatores que justificam a tutela antecipada, sendo que ela não permite um exame aprofundado capaz de conduzir a um juízo de certeza. Sendo assim, permite ao juiz prover a medida fundada em uma cognição sumária e superficial.
Conforme leciona Luiz Guilherme Marinoni, o dano de difícil reparação trata-se daquele que muito possivelmente não será revertido, ou porque as condições financeiras do réu permitem concluir-se que não será compensado ou restabelecido, ou porque, por sua própria natureza, é complexa sua individualização ou quantificação precisa.[30]
“Para a valoração da irreparabilidade é impossível a não consideração da pessoa que se diz titular do direito que pode ser irreparavelmente prejudicado. Isso não significa uma personalização do prejuízo, mas apenas a necessidade da irreparabilidade do prejuízo ser considerada em relação à pessoa que se diz titular do direito.”[31]
Já quanto à hipótese de antecipação de tutela punitiva, ou seja, em face de atos protelatórios e abusivos da parte, teço os seguintes comentários.
Nesses casos, está ausente o risco de dano. O magistrado deve, diferentemente, interpretar tais conceitos em face de cada caso concreto, a fim de concluir-se pela sua presença ou não.
“O magistrado deve agir com olhos atentos à finalidade da norma: garantir o prosseguimento do feito de forma célere, sem embaraços ardilosos. Assim, só deve enquadrar como ato abusivo ou protelatório, aquele que consista em um empecilho ao andamento do processo, ou seja, aquele que implicar comprometimento da lisura e da celeridade do processo.”[32]
Cabe também esclarecer as diferenças entre ambas as expressões: enquanto o abuso do direito de defesa engloba atos praticados dentro do processo, na fase de defesa, os atos protelatórios dizem respeito a comportamentos do réu realizados fora do processo. O magistrado deve interpretar o termo abuso de direito de forma extensiva, não se limitando a abusos realizados somente na contestação.
Em verdade, a previsão do art. 273, II, tem por objetivo distribuir o ônus do tempo do processo. Uma vez que o autor pretende uma modificação da realidade empírica, é natural que o réu, muitas vezes, protele o resultado do processo. Assim, abusa do direito de defesa. Para que isso não ocorra, a reforma do CPC de 1994 acabou por instituir essa previsão, dispondo que poderá ser concedida a tutela antecipada se caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu. Devem ser levadas em consideração a evidência do direito do autor e a fragilidade da resistência do réu.
Essa medida tem, portanto, por objetivo, permitir ao magistrado que conceda a antecipação de tutela em favor daquela parte que est’a prestes a sofrer a pratica de atos que podem ser caracterizados como abusivos ou protelatórios.
Há uma interessante questão acerca da possibilidade de verificação de atos protelatórios praticados antes do início do processo. A doutrina mais recente posiciona-se pela possibilidade: uma vez já ocorrida a citação do réu, é possível a antecipação de tutela por atos da parte anteriores à formação do processo.[33]
Nesses casos de tutela antecipatória punitiva, a mesma é concedida tão somente diante da probabilidade do direito alegado. Ela destina-se à manutenção da seriedade processual. Todavia, imperiosa a ressalva de que não são comuns tais hipóteses, uma vez que o juiz possui outros meios para impedir a deslealdade processual.
1.2.3 A reversibilidade da medida
A reversibilidade da decisão é inerente à antecipação de tutela por sua natureza provisória, uma vez sua vocação para existir até que outra decisão a substitua, seja outra decisão interlocutória que a revogue, seja a própria decisão final que poderá mantê-la ou revogá-la, retroagindo, no que possível, seus efeitos.
Conforme o que dita o par. 2 do art. 273 do CPC, a irreversibilidade da medida adotada constitui impedimento genérico e obrigatório para a concessão da medida.[34] Destina-se, portanto, a evitar que a concessão da tutela antecipada crie situação fática definitiva, sem possibilidade de retorno à situação anterior em caso de revogação ou de sentença de mérito contrária.
“O dispositivo em exame encerra o denominado princípio da salvaguarda do núcleo essencial, que proíbe a antecipação definitiva liminar dos efeitos da tutela jurisdicional, a qual somente pode se dar após uma cognição plena e exauriente. No exame dessa questão, é fundamental diferenciar a satisfatividade com a irreversibilidade. A primeira pode ter consequências reversíveis ou irreversíveis no plano dos fatos, e sob esse prisma deve ser analisada, já que a decisão judicial, no plano formal, será sempre reversível.”[35]
Levando-se em consideração a provisoriedade do provimento que concede a antecipação de tutela, o legislador procurou preservar a parte que sofre os efeitos da mesma, não a concedendo quando não for possível reverter a medida. Essa regra concilia os princípios da efetividade da jurisdição e segurança jurídica: é como se o legislador lembrasse que o princípio da segurança jurídica não pode ser suprimido pelo da efetividade da jurisdição.
A irreversibilidade jurídica do provimento antecipatório tornaria a tutela concedida definitiva e privaria o réu de algum bem jurídico sem que sequer fosse observado o contraditório. Considerando-se que as medidas antecipatórias podem ser concedidas inaudita altera parte, isso violaria os princípios da ampla defesa previstos na Constituição.[36]
Cabe lembrar que a antecipação dos efeitos do provimento final encontra-se no plano fático, e não no jurídico, pois qualquer provimento judicial provisório é reversível no plano jurídico. Portanto, a conclusão a que se chega é a de que tal condição não é estanque: há casos em que a reversibilidade da medida deve sucumbir diante da colisão com outros direitos fundamentais do autor, justificando a concessão de provimento mesmo diante de irreversibilidade fática.[37] Nesses, diante do conflito entre segurança jurídica e efetividade apenas um poderá sobreviver, uma vez que a manutenção de um acarretará inevitavelmente o sacrifício total de outro.
De fato, a lei não poderia impedir a análise das particularidades de cada caso concreto, devendo o juiz ponderar entre os bens em conflito.
O princípio da superação do interesse mais relevante sobre o menos relevante é essencial na atuação da tutela de urgência, devendo o Juiz examinar, dentre os direitos fundamentais em conflito, qual será sacrificado. É a aplicação do princípio da proporcionalidade ou razoabilidade. Essa proporcionalidade é utilizada somente no caso concreto, uma vez não existir prévia definição de hierarquia entre princípios.
2 A ANTECIPAÇÃO DE TUTELA EM FACE DA FAZENDA PUBLICA
Muito se tem discutido acerca do cabimento do instituto da antecipação de tutela prevista no art. 273 do CPC contra a Fazenda Pública. Dentre os argumentos acerca da impossibilidade da concessão da medida contra o ente estatal estão: as prerrogativas do Poder Público em Juízo; a remessa obrigatória; a inexistência de dano irreparável ou de difícil reparação contra a Fazenda ou de abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório da fazenda; a necessidade de precatório para o pagamento das obrigações de pagar quantia certa e as restrições previstas na legislação.
Em razão da própria atividade de proteger o interesse publico, a Fazenda Pública ostenta condição distinta das demais pessoas físicas ou jurídicas de direito privado. Ela atua no processo exatamente em razão da existência de interesse público, e assim deve-lhe ser possibilitado atuar da melhor e mais ampla forma possível, evitando-se condenações injustificáveis ou prejuízos para o Erário.
Todavia, para que atue da melhor forma possível é imprescindível que lhes sejam conferidas condições adequadas para tanto. Dentre as tais, estão as chamadas prerrogativas processuais. Elas devem estar revestidas de razoabilidade, observado o princípio da igualdade nos termos definidos por Aristóteles, qual seja, tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual.
Antes de adentrar nas prerrogativas propriamente dita, questiona-se o que é o termo Fazenda Pública. Esse termo possui diversos sentidos, mas os principais são o sentido técnico e o administrativo.
Quanto ao sentido administrativo, o termo Fazenda Pública é utilizado como o órgão que detém a responsabilidade sobre a situação financeira do Estado; essa é a razão de muitas vezes serem utilizadas as expressões Ministério da Fazenda e Secretaria da Fazenda.[38]
Por outro lado, o sentido técnico refere-se às próprias pessoas jurídicas de direito público interno em Juízo. Alguns doutrinadores, como Odete Medauar, definem que essa expressão é atribuída à Fazenda quando atua na qualidade de parte em ações judiciais, sob o enfoque dos ônus patrimoniais da ação.[39]
Portanto, “Fazenda Pública” no sentido técnico processual diz respeito à União, Estado, Municípios e ao Distrito Federal. A doutrina ainda acrescenta as autarquias e as fundações públicas.
A razão para a definição do que seja a Fazenda reside na identificação dos legitimados a gozar das prerrogativas processuais conferidas a seus entes integrantes. Apesar de haver argumentos no sentido de que essas normas regradoras violariam o princípio da isonomia, o posicionamento dominante é quanto a sua constitucionalidade.
“Sendo o Estado uma organização burocrática de alta complexidade, que cuida, de forma simultânea, de interesses direcionados às mais variadas áreas, o tratamento processual diferenciado destinado à Fazenda Pública não compromete o princípio constitucional da isonomia”.[40]
Sendo assim, quando a Fazenda Pública atua em juízo, possui determinadas prerrogativas que não são estendidas aos particulares, mas que, ao mesmo tempo, também não ferem o princípio da isonomia. São necessárias para que a Fazenda possa representar o poder público em seu aspecto financeiro.
No que tange especificamente às suas prerrogativas, podemos verificar o juízo privativo, cabendo ressaltar que no âmbito federal ele também beneficia as empresas públicas, conforme art. 109, I, da Constituição Federal; os prazos mais dilatados, conforme os artigos 188 e 277 do CPC; a dispensa do pagamento de despesas judiciais que, conforme o art. 27 do CPC, será paga ao final pelo vencido, sendo que também está dispensada de preparo dos recursos – art. 511 do CPC; o procedimento próprio para execução de créditos em favor da Fazenda Pública, e a possibilidade de obtenção de medida liminar na ação de arresto sem justificação prévia (art. 816, inc. I do CPC).
É possível ainda citar como prerrogativas, e são as indicadas como principais óbices à tutela antecipada contra a Fazenda: procedimento próprio para execução das condenações da Fazenda Pública em pagamento de quantia certa, conforme art. 100 da Constituição; o duplo grau de jurisdição obrigatório ou remessa oficial das sentenças proferidas contra a Fazenda, art. 475, II, do CPC e o regime próprio quanto às decisões proferidas contra si em caráter provisório.
Muito se discutiu, e até hoje doutrinadores impugnam esse tratamento diferenciado dipensado à Fazenda Publica quando ‘e parte em ação judicial, pois ocorreria desrespeito ao principio da isonomia conferir aos entes públicos privilégios não extensíveis aos particulares.
“O Estado brasileiro, para se beneficiar quando parte em processo judicial, desde sempre manipulou a legislação (e, desde 1998, com maior liberdade, as medidas provisórias) para criar situações inexistentes para os particulares e dessarazoadas e injustificáveis mesmo para quem, por definição, conglomera interesses de toda uma coletividade. A desigualdade por ele perpetrada, para alcançar esse mister, ‘e indesmentivel.”[41]
O fundamento para as prerrogativas é a própria supremacia do interesse publico sobre o privado. Ela, por conglomerar o direito de toda a coletividade, recebe esse tratamento diferenciado
“Frise-se, ainda , que alem da necessidade de haver previsão legal expressa para que seja legitima a norma que concede prerrogativas à Fazenda Publica em nome da supremacia do interesse publico sobre o privado, é indispensável que a mesma tenha sido lastreada pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, sob pena de ser repudiado pelo próprio Poder Judiciário.”[42]
Não se pode esquecer, todavia, que se de um lado o Estado possui diversas prerrogativas, de outro, os particulares também necessitam de instrumentos eficazes em face desse Estado, a fim de serem preservados seus direitos individuais.
O problema surge, portanto, ao tentar-se compatibilizar as prerrogativas da Fazenda com o instituto da tutela antecipada, que procura preservar o provável direito do autor, o qual tem urgência em desfrutá-lo, e que fica obstaculizado em razão da necessidade de remessa oficial, de pagamento por precatório e do regime próprio quanto às decisões proferidas contra si em caráter provisório.
Essas três prerrogativas, dentre outras especificidades da relação jurídica da Fazenda, acabaram por ser apontadas como principais impedimentos à concessão da antecipação de tutela contra a Fazenda.
2.2 Principais óbices à antecipação contra a Fazenda
Apesar de a previsão do art. 273 do CPC não restringir a aplicabilidade da antecipação de tutela a nenhuma parte, o artigo deve ser interpretado dentro do sistema processual e constitucional.
Da leitura do próprio Código de Processo Civil se observa que a necessidade de remessa oficial às sentenças contra a Fazenda obstaculiza a antecipação dos efeitos da tutela. Já a Constituição, ao prever a o sistema de inscrição em precatório das quantias certas a serem pagas pela Fazenda, também torna discutível sua aplicação. Ainda, defende-se que não há a ocorrência dos pressupostos alternativos indispensáveis à concessão da tutela, quais sejam, risco de dano irreparável ou abuso de direito: tais não seriam existentes quando presente a Fazenda em Juízo.
Afora esses óbices implícitos, há ainda um óbice expresso: a Lei n. 9.497/97 expressamente estendeu à tutela antecipada as restrições à concessão de liminares contra o Poder Público.
Sendo assim, os óbices à antecipação contra a fazenda podem ser divididos entre óbices infraconstitucionais e constitucionais.
Quanto aos primeiros, são então as previsões da Lei n. 9494/97 que estendeu expressamente as limitações à concessão de liminar em face do Poder Publico às antecipações de tutela. Tal previsão legislativa desencadeou inúmeras discussões doutrinarias, uma vez que é polemica a extensão da aplicação das regras de um instituto processual, a medida liminar, a outro que possui diversas peculiaridades que desde o distingue, qual seja, a antecipação de tutela. Al’em dessa, a exigência geral de reexame necessário em causas que envolvam a Fazenda Publica, polemizando a questão de que tal previsão somente se aplica às sentenças finais, e não às decisões interlocutórias; e alegada impossibilidade de verificação dos pressupostos alternativos para concessão de tutela antecipada, ou seja, Inexistência de dano irreparável ou de difícil reparação contra a Fazenda ou de Abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório da Fazenda.
No que tange ao óbice constitucional, trata-se da necessidade de observância do sistema constitucional de precatórios, que seria um óbice à tutela antecipada nos casos de obrigações de pagar quantia certa pois essas deveriam obedecer àquela ordem cronológica.
Todavia, apesar de todas as restrições previstas, ainda assim cada caso deve ser analisado dentro de seu contexto, uma vez que por diversas vezes não é possível aguardar-se a remessa oficial, a inscrição no precatório ou a observância das normas legais restritivas. Nesse sentido, inclusive, já decidiu o STJ no julgamento do Resp n. 442.693.[43]
2.2.1 Óbices infraconstitucionais
Os óbices infraconstitucionais são determinações previstas em lei que, ao determinar certas peculiaridades processuais em relação à Fazenda Pública, tornam polêmica a aplicação da tutela antecipada.
“Neste especial, vale, inclusive, assinalar que, em inúmeras situações, os Poderes Legiferantes (Executivo, por vias transversas, e Legislativo, por imposição constitucional) tem comumente confundido os diferentes institutos da tutela cautelar (de nítida função acautelatória, relativa a uma jurisdição imprópria (extensiva), com referibilidade processual) e da tutela antecipatória (de nítida função cognitiva, relativa a uma jurisdição própria (de conhecimento), com referibilidade material), editando normas regulamentares de difícil interpretação, como o caso da Lei n. 9494/97 que, ao disciplinar mecanismos restritivos em relação à concessão da tutela antecipatória, acabou por estabelecer uma inconveniente (e equivocada) similitude com a tutela cautelar, dispondo, em seu. Art. 1, a plena aplicabilidade das restrições ao deferimento de liminares acautelatórias, expressamente consignadas nos arts. 5 e parágrafo único e 7. da Lei n. 4348/64, art. 1 e seu par. 4 da Lei 5.021/66 e nos arts. 1,3 e 4 da Lei n. 8437/92, às medidas antecipatórias previstas nos arts. 273 (tutela antecipada) e 461 (tutela específica), ambos do CPC.”[44]
2.2.1.1 As limitações da Lei 8437/92 ou 9494/97
Antes mesmo da publicação da Lei n. 9.494/97, já havia normas limitadoras às liminares contra a Fazenda em sede de mandado de segurança e ação cautelar. Essas restrições estavam conexas à conjuntura econômica da época.
“Assim, exemplificativamente, a Lei n. 2.770, de 04 de maio de 1956, que suprimiu a concessão de medidas liminares para a liberação de mercadorias de procedência estrangeira, teve por finalidade a proteção da incipiente indústria automobilística nacional; a Lei n. 5.021/66, que limitou o pagamento de vencimentos e vantagens em sede de mandado de segurança, teve por objetiva restringir a discussão da reforma administrativa que se implantava à época; a Lei n. 8.076, de 23 de agosto de 1990, que impediu as medidas liminares em cautelares e mandados de seguranças, tinha por objetivo liminar a discussão sobre as reformas econômicas implantadas pelo Plano Collor.”[45]
A Lei n. 8.437/92 estabeleceu limitações à concessão de liminares em mandado de segurança e em ações cautelares em face do Poder Público. [46] Inicialmente, a doutrina divergia quanto à aplicação de suas disposições à antecipação de tutela em face da Fazenda, o que restou superado com o advento da MP n. 1.570, de 26 de março de 1997, posteriormente convertida na Lei n. 9.494, de 10 de setembro de 1997, que disciplinou taxativamente determinadas hipóteses de antecipação de tutela contra a Fazenda, situação em que o legislador estendeu-lhe expressamente as limitações da Lei n. 8.437/92.[47]
Segundo Reis Freire, apesar de muitas normas, anteriores à Constituição Federal, imponham limites para a concessão de liminares e de antecipação da tutela, a doutrina e a jurisprudência têm se posicionado de forma majoritária no sentido de que as mesmas afrontam diretamente princípios constitucionais expressos e implícitos, ferindo, assim, o poder cautelar geral, o poder cautelar genérico e o poder cautelar de forma ampla; defendem, assim, a ineficácia jurídica dos mesmos, a qual deve ser declarada pelo julgador.[48]
Parte-se, então, a uma análise crítica de alguns dispositivos previstos nessa Lei que tem sua constitucionalidade questionada.
O art. 1, caput da Lei nº 5.021/66 prevê que o pagamento de vencimentos ou vantagens pecuniárias asseguradas em sentença final a servidor público federal, da Administração direta e autárquica, e a servidor estadual e municipal, somente será efetuado relativamente às prestações que se vencerem a partir do ajuizamento da inicial.
“De fato, sendo dispositivo previsto para aplicação no restrito âmbito do mandado de segurança, carece de sentido quando se tenta transpantá-lo para o processo comum de conhecimento. Ora, quando se estabelece que as vantagens pecuniárias de servidores só abrangerão os valores que se vencerem a partir do ajuizamento da inicial, apenas se está limitando o âmbito de aplicação do mandado de segurança, que não se presta como ação de cobrança de valores pretéritos, nos termos da Súmula 271 do STF. Assim, os valores anteriores ao ajuizamento do mandado de segurança. Assim, os valores anteriores ao ajuizamento do mandado de segurança deverão ser pleiteados pela ação judicial apropriada, que, no caso, é uma ação de conhecimento condenatória.”[49]
Todavia, como a antecipação de tutela ocorre no próprio processo de conhecimento, se é aplicado esse dispositivo à antecipação de tutela estará inviabilizada a cobrança destas vantagens anteriores ao ajuizamento da ação de conhecimento: tornar-se-iam incobráveis.
Outro dispositivo questionável é o que estendeu à tutela antecipada o art. 5, parágrafo único da Lei. 4.348/64, que condiciona a execução da sentença ao trânsito em julgado quando a decisão tiver por objeto as matérias previstas na referida lei. Ora, esse dispositivo diz respeito ao provimento final pois, se aplicado à antecipação de tutela, causa a dúvida acerca da possibilidade de execução provisória nos casos em que não for concedida a antecipação de tutela. Conclui-se, assim, que a concessão da antecipação não constitui parâmetro que condicione a eficácia da sentença final.
Apesar de todas as controvérsias, o STF tem se posicionado, mesmo que em cognição sumária, pela constitucionalidade das restrições à antecipação de tutela. Após a edição da Lei n. 9494/97, o Presidente da República e as mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal ingressaram com a Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 4, com o objetivo de se obter provimento judicial que impedisse a concessão de tutela nos casos previstos pela lei. O Pleno da Corte, em 12-02-1998, deferiu parcialmente o pedido de medida cautelar, suspendendo, com efeito vinculante e eficácia ex nunc, a prolação de qualquer decisão sobre pedido de tutela antecipada contra a Fazenda que tenha como pressuposto a inconstitucionalidade do art. 1 da Lei.
Já em 01-10-2008 foi julgada, por maioria, procedente a Ação Declaratória de Constitucionalidade, entendendo os Ministros que o art. 1 da Lei 9.497/97 é constitucional.
Apesar dessa decisão, que entendeu compatível a extensão, à antecipação de tutela, das restrições previstas nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. 1º e seu § 4º da Lei nº 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992, ainda assim o próprio STF e os Tribunais preconizam ser prudente a análise de cada caso concreto, a fim de sopesar os interesses conflitantes.
“Embora tenha reconhecido a constitucionalidade das restrições e vedações à concessão da tutela antecipada contra o Poder Público, o STF vem conferindo interpretação restritiva ao referido dispositivo, diminuindo seu âmbito de abrangência para negar reclamações constitucionais em algumas hipóteses que lhe parece cabível a medida antecipatória, mesmo para determinar o pagamento de soma em dinheiro.”[50]
O TRF 1 Região nesse sentido já decidiu, entendendo que os impedimentos previstos no art. 1 da Lei 9.497/97 não é irrestrita.[51]
2.2.1.2 Reexame necessário como condição de eficácia da decisão contra a Fazenda
Grande parte da doutrina considera a necessidade de reexame necessário como um dos maiores obstáculos à concessão da antecipação de tutela contra a Fazenda.[52] Para superá-lo, predomina o entendimento de que essa necessidade de remessa oficial diz respeito à sentença, e não à decisão interlocutória.[53]
Todavia, esse argumento não é suficiente, pois leva à conclusão de que o art. 475 impediria a execução imediata da sentença contra a Fazenda, mas não esta execução em face de tutela antecipada.
Em verdade, a análise objetiva do dispositivo não é suficiente para afastar o art. 475 II do CPC, pois pode levar ao entendimento de que, enquanto a sentença, proferida após cognição plena e exauriente, não pode ser imediatamente executada, aquela decisão, obtida após cognição sumária, pode.
Deve ser observado que os efeitos de uma sentença ainda não recorrida são iguais aos de uma sentença proferida contra particular na qual foi interposta apelação com efeito suspensivo. Ora, o recebimento de uma apelação com efeito suspensivo não impede a concessão de tutela antecipada, pois, se assim o fizesse, tornaria inócuo o instituto. É imperiosa uma análise sistemática do artigo da remessa oficial e da antecipação de tutela para que se conclua acerca de seus efeitos.
Conforme leciona Marinoni, entender que o art. 475 impede a tutela antecipatória contra a Fazenda implicaria em inconstitucionalidade em face da previsão do art. 5., XXXV da Constituição, que garante o direito de acesso à Justiça.[54]
Outro argumento que rebate a consideração da previsão da remessa como óbice à tutela antecipada é o que compara essa restrição à eficácia de uma sentença contra a qual foi interposto apelo com efeito suspensivo. Ora, assim como o recebimento de um apelo em seu duplo efeito não impossibilita a antecipação de tutela e a execução imediata da sentença, também a sentença proferida contra a Fazenda não pode afastar a possibilidade de antecipação de tutela: seus efeitos são os mesmos.
Não é possível, portanto, a remessa oficial ser considerada como impedimento assim como não se pode falar em impossibilidade de antecipação de tutela proferida contra particular de cuja sentença final possa ser interposta apelação recebida no duplo efeito.
“A exigência geral de reexame necessário em causas que envolvam a Fazenda Pública refere-se apenas à sentença final (art. 475, I , do CPC) – e não ao pronunciamento antecipador. Essa conclusão deriva da interpretação tanto literal quanto teleológica da disposição legal sobre reexame. Aliás, mesmo quando a antecipação de tutela é veiculada no bojo da própria sentença, ela não fica sujeito ao efeito suspensivo de eventual apelação interposta pela Fazenda ( art. 520, VII do CPC). Essa constatação confirma que a eficácia da tutela não se subordina ao reexame necessário. Vale aqui a diretriz que tem sido repetidamente afirmada pelo STJ no sentido de que o reexame necessário não se põe como condição de eficácia daqueles provimentos cuja apelação ressente-se de efeito suspensivo.”[55]
Se imaginarmos que, interposto o apelo com efeito suspensivo, não possa mais ser concedida a antecipação da tutela, é negar existência a esse próprio instituto. A garantia da reapreciação da sentença e o efeito suspensivo não impedem que o relator do processe antecipe a decisão a fim de que seja evitado perigo da demora, bem como de punir o apelante que abusa de seu direito.[56] Da mesma forma deve ser considerado quanto à remessa oficial.
Teori Albino Zavascki leciona que deve a remessa oficial e a decisão antecipada serem compatíveis entre si, devendo aquela ser efetivada sem prejuízo da execução de suas providências decorrentes.[57]
Outro argumento interessante acerca dessa questão é o que considera que a previsão da necessidade remessa é indispensável à formação de coisa julgada material, e não da produção de seus efeitos. A Súmula 423 do STF prevê que: Não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso ex officio, que se considera interposto ex lege. Defende-se que essa expressão “não poderá ser executada” não possui o mesmo sentido que “não poderá ser executada”, pelo fato de que o trânsito em julgado só ocorrerá após iniciada a execução provisória, se interposto recurso sem efeito suspensivo.
Ainda, e por fim, contestando o preceito de que a remessa oficial seria impedimento, cabe ressaltar o fato de que, em sede de liminar em mandado de segurança, ela nunca o foi. Mesmo que sujeitas a reexame, podem ser executadas.
Para corroborar o entendimento doutrinário de que ela não é óbice, cita-se precedente de Tribunal, inclusive, tem entendido que a previsão da remessa oficial não se estende às antecipações de tutela.[58]
Outro impedimento à concessão da antecipação de tutela é a inaplicação dos pressupostos alternativos nas relações jurídicas com a Fazenda Pública. Isso porque parte da doutrina afirma ser impossível a existência de dano irreparável a ela. Afirma-se que, se é o próprio Estado que se encontra na relação, não há o que se preocupar acerca do seu adimplemento: ele sempre poderá arcar com os débitos decorrentes de uma ação judicial, tornando-se desnecessária a antecipação de tutela.[59]
Da sua primeira leitura é possível abstrair o equívoco da premissa: ora, nem sempre a Fazenda está em juízo para discutir pretensões de cunho patrimonial. Como ficariam as questões que dizem respeito a relações pessoais? Ainda, a Fazenda pode causar danos irreparáveis ou de difícil reparação a direitos patrimoniais cuja proteção possa ensejar uma antecipação da tutela de cunho delcaratório, constitutivo, condenatório de entrega de coisa certa ou incerta, ou, ainda, antecipação de tutela mandamental.
O termo “difícil reparação” deve ser interpretado no sentido de que, posteriormente, quando do provimento final, este não seja mais útil ao que demanda contra a Fazenda.
Cabe ainda ressaltar, quanto ao tema, que muitas vezes o direito patrimonial está associado a um direito não patrimonial, sendo que esse poderá ser afetado de modo irreparável. Isso ocorre, por exemplo, quando, por ação ou omissão do Estado, alguém sofra dano irreparável em direito fundamental como a saúde ou a educação, ou ainda não possa manter seu sustento.
Esse argumento, portanto, de inexistência de dano de difícil reparação, em se tratando da Fazenda, se adotado, traz como conseqüência a possibilidade de o autor ter seu direito lesionado.
Passando à análise do outro pressuposto alternativo, argumenta-se que a Fazenda não atuaria de forma abusiva na defesa de seu direito, pois, se o fizesse, agiria com litigância de má-fé, não encontráveis na atuação dos procuradores da Fazenda. Esses agem conforme os princípios da moralidade e da legalidade, bem como veracidade e probidade.
Muitos doutrinadores associam o abuso do direito com a atuação de litigância de má-fé.[60]
“Qualquer comportamento que possa ser entendido como abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu deve conduzir o magistrado, desde que presentes os pressupostos do caput do art. 273, `a antecipação da tutela fundamentada no inciso II. O art. 17, ao cuidar dos atos de litigância de ma-fe, e um bom referencial de comportamentos que devem ser levados em conta para fins de antecipação da tutela com base nesse dispositivo de lei, sem prejuízo de outras situações, que não estejam lá previstas, levem à mesma conseqüência.”[61]
Todavia, há quem afirma ser possível abusar-se do direito de defesa, ou ainda, demonstrar manifesto propósito protelatório sem, contudo, ser litigante de má-fé.[62] O renomado processualista destaca que é possível haver abuso de direito sem, contudo, atuar como litigante de má-fé. Exemplifica o autor citando a situação em que a Fazenda interpõe recurso: existem recursos reconhecidamente como protelatórios, que causam lentidão na prestação do direito. Nesses casos, a Fazenda abusa do seu direito de defesa, sem, todavia, agir com litigância de má-fé. Reconhecer que não é possível a concessão da antecipação de tutela por abuso de direito ou manifesto propósito protelatório pela Fazenda é permitir que ela faça uso de atos que estendam a litispendência do processo indefinidamente.
Há situações, também, em que os próprios princípios constitucionais estão em conflito com normas previstas na Constituição, como é o caso da previsão constitucional da execução por precatório.
A doutrina, portanto, elenca como a necessidade de expedição de precatório paga pagamento de quantia certa óbice à antecipação da tutela. O art. 100 da Constituição Federal prevê que as condenações de pagar quantia certa, proferidas contra a Fazenda Publica, serão pagas através de precatório, com exceção das de pequeno valor.[63] Nesse caso, faz-se imprescindível a existência de transito em julgado da sentença.
Todavia, mais uma vez a regra não pode ser aplicada sem consideração do sistema jurídico, ou seja, sem analisar os interesses que possam ser prejudicados por sua aplicação.
“Então, in casu, tem-se dois institutos onde o fator tempo é tido diferentemente para cada um deles, isto é, para o precatório, a demora é mesmo da sua essência e, ao contrário, para a tutela antecipada, o vetor temporal há de ser vencido a todo custo, sob pela de malogro de tal meio procedimental.
[…]se a ordem jurídica haverá de ser cumprida em nível de tutela de urgência, a principiologia acima mencionada recomenda que é proporcional, razoável e jurídico que o desembolso, em caso que tal, seja levado a efeito fora dos parâmetros do requisitório.”[64]
Argumenta-se, portanto, que a antecipação de tutela contra a Fazenda, nessas situações, só poderia ocorrer através do instituto do precatório, com exceção das obrigações de pequeno valor, para as quais esse foi dispensado.
“No regime das ordenações Manuelinas e Filipinas, a execução contra a Fazenda Pública se processava da mesma forma que contra qualquer pessoa, constituindo-se a penhora no ato que revela a essência da execução, sem qualquer privilegio a proteger os bens do Estado.
No entanto, essa legislação foi alterada por sucessivas leis que excluíram da penhora bens e mais adiante, a renda e ordenado de ofício dos nobres, sem licença régia, passando-se, posteriormente, a considerar que os bens da Fazenda Nacional só poderiam ser alienados e penhorados por Decreto da Assembléia-Geral, vindo, afinal, a constar do art. 15, par. 15, da Constituição do Império,o princípio da impenhorabilidade dos bens públicos.
Com a impossibilidade de penhorar bens públicos, a antiga precatória de vênia transformou-se no precatórios, como conhecemos atualmente, aparecendo pela primeira vez no art. 41 do Decreto n. 3.084, de 5/11/98, que aprovou a Consolidação das Leis referentes à Justiça Federal, embora com o nome de “precatória”.”[65]
O precatório é o instituto mediante o qual o Judiciário requer ao Poder Executivo que reserve determinada quantia para o pagamento de quantia ao qual foi condenado judicialmente. Isso tudo porque, diferentemente dos demais devedores, o Poder Público não sofre a penhora, e o credor, consequentemente, não possui essa garantia.
“A execução contra a Fazenda é uma execução especial. A sua especialidade reside em que a Fazenda Publica apresenta uma forma particular para o cumprimento de seus débitos pecuniários ( art. 100, CRFB), na medida em que os bens públicos, porque se encontram vinculados em principio a uma finalidade publica, são inalienáveis (art. 100, CC), não sendo passiveis de penhora (art. 649, CPC). Mesmo os bens públicos alienáveis – os bens públicos dominicais – têm regime jurídico próprio de alienação, não sendo possível sua venda em face de execução forçada (arts. 101, CC, e 23, Lei 9.636, de 1998). Consideram-se Fazenda Publica a Uniao, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal, suas autarquias e fundacoes publicas. As empresas publicas e as sociedades de economia mista não entram no conceito de Fazenda Publica para os efeitos dos arts. 730, 731, do CPC.”[66]
Há diversos posicionamentos doutrinários acerca da definição da necessidade de precatório como impedimento à antecipação de tutela em face da Fazenda. Fredie Didier Jr., por exemplo, entende que a emenda que previu a necessidade de precatório seria inconstitucional, uma vez que afronta, diretamente, o direito fundamental à tutela preventiva e efetiva. Afrontaria normas fundamentais, pretéritas e impositivas.[67]
“Esse vinculo ao transito em julgado é fruto de emenda à Constituição que, seria despiciendo dizer, estivéssemos, eventualmente, em outro lugar do mundo, deve observar determinadas regras que lhe são anteriores e impositivas. Assim, na exata medida em que a necessidade de aguardar o transito em julgado para que o jurisdicionado se beneficie de uma decisão judicial que o favorece tem aptidão para colocar em risco uma situação de ameaça ou criar uma lesão de difícil reparação ou irreparável, o lapso temporal correspondente atrita com a proteção do art. 5, XXXV. Nesse sentido, a emenda constitucional é inconstitucional. […] é que não há problema nenhum em atrelar o pagamento ao transito em julgado, justamente porque é de tutela antecipada que se está a tratar aqui. Nos casos em que não há necessidade de antecipação de tutela, aguarda-se o transito em julgado; em outras situações em que há urgência ( art. 273, I, por exemplo), antecipa-se a tutela, não obstante o texto da Constituição. Se
O STJ, inclusive, no julgamento do REsp n. 834.678-PR, já se manifestou no sentido de admitir o cumprimento de tutela antecipada contra a Fazenda para o pagamento de quantia independentemente de precatório, uma vez ser ele incompatível com a tutela de urgência. [68] Há, ainda, dois posicionamentos opostos acerca dessa questão. Um deles determina que a emissão do ofício precatório só ocorreria com a prolação de uma sentença, e não de uma decisão interlocutória, uma vez que o artigo é claro ao se referir a “sentença judiciária”. Assim, estaria inviabilizada a concessão de antecipação de tutela contra a Fazenda, em caso de pagamento de quantia certa.[69]
Diverso posicionamento é no sentido de que, não se referindo o artigo às condenações realizadas em sede de decisão interlocutória, não é possível uma interpretação extensiva do artigo e considerar a restrição aplicável às decisões interlocutórias.[70]
Há, ainda, posição no sentido de que ambos os entendimentos citados estariam incorretos, uma vez que partem de uma interpretação literal dos artigos.[71] Conforme essa corrente, o art. 100 da CF não pode ser interpretado literalmente, e defende que a antecipação de tutela não poderia ser obstada porque, embora não seja considerada titulo judicial, nunca se defendeu o não cabimento da sua execução provisória.
Imperioso citar o entendimento de Vicente Greco Filho, que argumenta que a admissão da dispensa do sistema de precatório não tornaria os bens da Fazenda penhoráveis, sendo que o exeqüente restaria sem garantia nenhuma para sua execução. Considera que os créditos devidos pela Fazenda não poderiam ser pagos sem dotação orçamentária e que o Poder Judiciário não possui poder constritivo sobre a Fazenda para coagi-la a pagar.[72]
A posição doutrinaria majoritária é a que não dispensa o precatório, ainda que para a concessão de antecipação de tutela nas execuções para pagamento de quantia certa. Todavia, cada situação deve ser analisada peculiarmente: não se pode olvidar que, enquanto a demora é inerente ao precatório, a antecipação de tutela é um instituto que objetiva exatamente impedir os efeitos cruciais do tempo.
É perfeitamente cabível, portanto, que, em casos especiais, quando o magistrado entenda pela impossibilidade de espera pelo exeqüente, seja afastada a necessidade de inscrição na ordem do precatório, e seja deferida a antecipação de tutela.
“O artigo 100 da Constituição Federal, com o procedimento estabelecido no art. 730 do Código de Processo Civil, não pode ser considerado como um dispositivo que prevalece em qualquer situação, independentemente dos princípios constitucionais ou bens jurídicos em conflito.”[73]
3 O CONFLITO ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O INTERESSE PÚBLICO
Procura-se justificar a atribuição de tratamento especial à Fazenda, quando parte em juízo, em face da proteção que ela confere ao interesse público.
“Na verdade, o interesse social e o geral estão relacionados com a coletividade ou com a sociedade civil, enquanto o interesse público mantém ligação com o Estado. Ao Estado cabe não somente a ordenação normativa do interesse público, mas também a soberana indicação do seu conteúdo. O interesse público constitui interesse de que todos compartilham. A finalidade dos atos administrativos deve vir informada pelo interesse público. A expressão interesse público evoca, imediatamente, a figura do Estado e, mediatamente, aqueles interesses que o Estado escolheu como os mais relevantes, por consultarem aos valores prevalecentes na sociedade. Há uma aproximação terminológica entre interesse público e interesse geral. O interesse público não é a soma dos interesses particulares, sendo certo que a Administração é competente para definir o interesse público naquilo que não constitui domínio reservado para o legislador.”[74]
Todavia, tal tratamento diferenciado tem sua justificativa relativizada conforme a percepção que a sociedade tem acerca da relação entre o interesse público e o individual. Isso porque, se determinada sociedade entende que o interesse individual deve prevalecer quando em conflito com o interesse coletivo, como ocorreu, por exemplo, na era burguesa, esse tratamento desigual perde fundamento jurídico.
Dentro desse contexto, serão analisadas teorias sociais acerca da relação entre o interesse público e o privado, procurando adequá-las ao Estado de Direito conferido pela Constituição Brasileira de 1998.
3.1 Teorias sobre a posição do indivíduo em relação ao poder público
Há inúmeros estudos acerca da relação entre o interesse publico e o interesse individual, uma vez que, muitas vezes, eles entram em conflito. Esse é o caso da antecipação de tutela contra Fazenda, em que certas prerrogativas em favor do Poder Público, destinadas a resguardar o interesse coletivo, ferem o interesse individual.
Desenvolveram-se, então, diversas teorias morais que pudessem justificar a supremacia dos interesses da coletividade sobre os do particular, bem como outras que comprovavam exatamente o contrário. Algumas delas compatibilizam-se com a Constituição de 1998, que expressamente adotou o Estado Democrático de Direito e consagrou como princípio inexorável a dignidade da pessoa humana.
“Parece-nos que a afirmação da supremacia do interesse da coletividade sobre os direitos pertencentes a cada um dos seus componentes pode, do ponto de vista de uma teoria moral, ser justificada a partir de duas perspectivas diferentes, que, no entanto, mantêm alguns denominadores comuns: o organicismo e o utilitarismo. Para o organicismo, o interesse público seria algo superior e diferente ao somatório dos interesses particulares dos membros de uma comunidade política, enquanto, para o utilitarismo, ele confundir-se-ia com tais interesses, correspondendo a uma fórmula para a sua maximização. Já a tese da supremacia indondicionada dos direitos individuais sobre os interesses da coletividade assenta-se sobre o individualismo”.[75]
O organicismo, defendido principalmente pelo sociólogo Émile Durkheim, é uma teoria que prima pelo interesse público em detrimento do individual. Entende uma comunidade como um todo composto de indivíduos que atuam como órgãos da mesma.
Os adeptos dessa teoria entendem que o objetivo máximo de uma comunidade deve ser a realização dos interesses coletivos.
Na concepção durkheimiana de sociedade, o todo social é superior à simples soma de indivíduos, a consciência individual gera inter-relações que associam os indivíduos em vida social. Este social ultrapassa os interesses individuais gerando ações em prol da sobrevivência e desenvolvimento do grupo. Restringindo o campo de atuação da Sociologia e definindo as pretensões da citada Ciência, Max Weber delimita a atuação na compreensão e interpretação das ações sociais.
Importante citar, acerca dessa teoria, que um de seus grandes adeptos, especificadamente do organicismo modero, foi Hegel.
“O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em sei e para si: esta unidade substancial é um fim absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este ultimo fim possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado ser.
Quando se confunde o Estado com a sociedade civil, destinando-o à segurança e proteção da propriedade e das liberdades pessoais, o interesse dos indivíduos, enquanto tais, é o fim supremo para que se reúnem, do que resulta ser facultativo ser membro do Estado. Ora, é muito diferente a sua relação com o individuo. Se o Estado é o espírito objetivo, então só como membro é que o individuo tem objetividade, verdade e moralidade. A associação como tal é o verdadeiro conteúdo e o verdadeiro fim, e o destino dos indivíduos está em participarem de uma vida coletiva; quaisquer outras satisfações, atividades e modalidades de comportamento têm seu ponto de partida e o seu resultado neste ato substancial e universal”.[76]
Todavia, o organicismo minimiza o ser humano, não levando em consideração que, apesar de sua função na sociedade da qual faz parte, é um valor em si mesmo, o qual deve ser respeitado. Cada pessoa possui interesses, valores e objetivos que não podem ser superados pelo interesse da comunidade: devem ser compatibilizados. Inclusive, apesar da importância da vida humada na sua dimensão publica, ela não possui qualquer sentido sem a dimensão privada.
Todavia, toda essa argumentação acerca da importância do interesse público não reflete a sociedade que foi se formando: Weber chamou de “desencantamento” do mundo o processo de superficialização das relações humanas, ocasionado principalmente pela quebra da unidade religiosa após a reforma e o avanço das ciências. Realmente, nas antigas comunidades o vínculo entre as pessoas era forte e profundo, mas foi sucumbindo nas sociedades modernas nas quais preponderam laços frágeis e artificiais.
Paulo Bonavides alerta sobre o risco do organicismo, principalmente utilizado por defensores de direito, autoritários e antidemocratas. Com o tempo, a prioridade incondicional do coletivo anula o interesse individual, que passa a servir tão somente como instrumento do organismo coletivo e superior. [77]
Juridicamente, o organicismo não se coaduna com os princípios da dignidade da pessoa humana, que não pode ser tratada como meio para algum fim. O Estado Democrático de Direito, ainda, é baseado no reconhecimento do valor fundamental da autonomia pública e privada, sendo aquela teoria incompatível com a Constituição de 1998, que define, em seu art. 1, o Estado Brasileiro como Estado Democrático de Direito e fundamentado na dignidade da pessoa humana.
O utilitarismo tornou-se a mais importante ideia moral e política do séc. XIX, tendo ajudado a dar rosto à estrutura das sociedades democráticas desenvolvidas do séc. XX.
Diferentemente do organicismo, o utilitarismo não prevê o interesse publico como algo diverso e superior ao individual, mas sim como um instrumento para maximizar-se os interesses dos indivíduos. Seus principais defensores são Adam Smith e Stuart Mill.
O objetivo do utilitarismo é a busca, em cada situação, de uma solução que acarrete em maior escala a satisfação do maior numero de pessoas. O utilitarismo foi igualmente denominado, na história da filosofia, de radicalismo filosófico, uma vez que propõe uma reestruturação dos valores éticos e, em alguns casos, como no pensamento de Bentham, uma reforma da própria ordem social. Longe de pregar uma moral solipsista, baseada apenas na obtenção de prazer individual, o utilitarismo, em sua concepção filosófica, compreende a utilidade igualmente como felicidade, e esta, por sua vez, como o maior prazer do maior número de pessoas.
Todavia, também o utilitarismo é incompatível com a nossa Constituição, exatamente por causa da relevância que atribui aos direitos fundamentais. Essa teoria não vislumbra os direitos fundamentais como superiores ao interesse das maiorias. Eles serão preservados, tão somente se isso for útil à promoção do bem estar da maioria das pessoas. No Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais devem ser protegidos ainda que contrariem os interesses da maioria dos membros da sociedade.
Os utilitaristas defendem a manifestação de cada individuo considerando o proveito que isso tem em relação ao bem-estar geral, e não porque isso respeita a dignidade humana. Nas situações, todavia, em que os direitos fundamentais não levam à maximização dos interesses da maioria, eles são relevados. É aí que reside sua incompatibilidade com a Constituição Brasileira.
“Na verdade, o utilitarismo parece equiparar as sociedades a indivíduos – aproximando-se neste ponto do organicismo. Isto porque a justiça, para as teorias utilitaristas, equivalerá à procura da medida mais favorável ao bem-estar geral, que será definido através do cômputo dos interesses de todos os membros da sociedade. Só que, com isso, estas teorias justificam a perda de direitos sofridos por uns, desde que em benefício de um bem-estar maior usufruído por outros. Não há uma preocupação com a distribuição deste bem-estar dentre os diferentes componentes da sociedade, mas apenas com a maximização geral do bem-estar. Tal como no organicismo, os indivíduos acabam sendo tratados como partes no todo, e não como fins em si, porque não se atribui relevância moral à separabilidade e à independência das pessoas.”[78]
Diferente e quase que contrariamente às teorias apresentadas, os defensores do individualismo defendem a primazia dos interesses individuais em prol do interesse coletivo.
Teoria consagrada no final do século XIX e que, diante da atual crise do Estado Social, está renascendo. Conforme essa teoria, os interesses coletivos e derivados das relações entre os membros do grupo são submetidos ao interesse individual.
O individualismo surgiu após o Estado Burguês, sendo que tal nascimento é facilmente compreensível. Durante a era burguesa, o indivíduo era apenas considerado para fins econômicos, como mero instrumento de produção e circulação de riquezas. Seus interesses pessoais, vontades, etc., eram completamente relegados, importando apenas o que o burguês desejava. O Estado, na época, não interferia nas liberdades individuais e nem no funcionamento do mercado, uma vez que sua existência era vista como um perigo à liberdade. Tal atitude é compreendida se considerado o contexto de que o Estado burguês instaurou-se após a queda do Antigo Regime, e a instauração, posterior, do Estado Social de Direito, também é compreendida após conhecidas as características da era burguesa.
Portanto, o homem, apesar de valorizado pelo individualismo, era somente considerado no âmbito econômico. As pessoas, que não burguesas, eram vistas por esses como meros instrumentos de mercado.
Os direitos fundamentais, sob a ótica individualista, eram, por enquanto, direitos negativos[79], ou seja, que exigiam a abstenção do Estado em relação aos indivíduos. Eles seriam como que direitos de defesa, inerentes às pessoas.
Todavia, o Estado Burguês, apesar de produzir muita riqueza, gerou muita desigualdade e miséria. Foi assim que se abriram as portas para o Estado Social, no qual foram exigidas do Estado medidas intervencionistas, a fim de proteger os mais miseráveis. Foram requeridas condições materiais básicas de existência e foi preciso abrir-se os olhos para os indivíduos que viviam ao lado. Passou-se a enxergar a pessoa sob a ótica de um grupo, carente de medidas que lhes proporcionasse uma vida mais digna. A supremacia do interesse individual sucumbiu, portanto, ao interesse coletivo. É a fase dos direitos fundamentais de segunda geração, a partir do início do século XIX.
“Em síntese, na leitura estritamente individualista, a igualdade jurídica é a mera igualdade formal, com a recusa a qualquer pretensão de utilização do Direito para fins redistributivos. A solidariedade não é um principio normativo, mas apenas uma virtude humana, que escapa às considerações da ordem jurídica. E a liberdade é a não-intervenção; a simples ausência de impedimentos externos para o comportamento individual, afigurando-se irrelevante a existência ou não da possibilidade real do agente de fazer suas escolhas e de agir em conformidade com elas.”[80]
Compreendendo-se que a teoria individualista preza, fortemente, a ausência de intervenção do Estado, visto como o adversário da liberdade individual, é possível depreender a razão de ela não se compatibilizar com a Constituição de 1988. Em inúmeros artigos da Carta Magna encontra-se exigência de intervenção do Estado para garantir condições sociais do povo, como os direitos sociais previstos nos artigos 6 a 11, bem como no artigo que prevê os objetivos da República Federativa do Brasil, art. 3 inciso I e III.[81]
A igualdade, no nosso ordenamento, não é apenas um limite para intervenção do Estado; ela inclusive exige a participação pública para que seja promovida ou então para que sejam redistribuídas as riquezas. A Constituição Brasileira consagra a idéia de que deve haver liberdade da pessoa humana não só em face do Estado, mas também das demais pessoas e instituições presentes na sociedade real.
3.1.4 Personalismo e a ordem Constitucional Brasileira
O personalismo, aplicado à ordem jurídica, é o responsável por construir em seu interior uma noção de personalidade que se baseia em uma concepção pré-normativa de pessoa. Ou seja, para os persoalistas, a noção de pessoa humana deve ser reconhecida pela ordem jurídica em toda a sua plenitude axiológica. Tal qual a pessoa, a personalidade é "noção insusceptível de gradação e mensuração".
A criação de uma ordem jurídica voltada para os valores da pessoa humana era defendida, desde o primeiro quartel do século, por Mounier e posteriormente, por Maritain e Mata-Machado. O Personalismo Jurídico, como ficara conhecido tal movimento, defendia a necessidade de uma ordem jurídica imersa em valores da pessoa humana
A noção moderna de personalismo, enquanto denominação de um movimento, teria surgido em França, por volta de 1930, em torno de uma revista denominada "Esprit" coordenada por Emmanuel Mounier, tendo como base: o cristianismo, o existencialismo e o socialismo. Não se firmou como um sistema, mas enquanto uma filosofia que parte da concepção de pessoa não como um objeto, mas sim, como um ser que está e que se afirma no mundo, comunicando, aderindo e apreendendo idéias, enfim um ser que conhece a si mesmo em um constante processo de autocriação realizado em sociedade. [82]
A visão personalista, em semelhança à individualista, coloca a pessoa humana como o centro da sociedade. Mas, diferente da teoria antes explanada, o indivíduo não é vazio mas sim completo de interesses e desejos. O Estado, conforme o personalismo, é atuante e participativo em prol de medidas que promovam o interesse público, assumindo funções que, para o liberalismo clássico, eram da ingerência da sociedade.
Para essa teoria, o Estado age introduzindo às pessoas a possibilidade e as condições essenciais para que façam suas escolhas e agir conforme essas, mas não regulam os planos e organizações desses. Sua ingerência é limitada e útil. Aqui se pode diferenciar fundamentalmente as teorias do organicismo e do personalismo: para aquele, os desejos e planos de cada indivíduo deveriam ser tratados conforme a melhor forma para a promoção do interesse público; já para o personalismo,o Poder Público interfere tão somente para promover o interesse individual, fomentando-o e respeitando-o.
Essa é, sem sombra de dúvida, a teoria filosófica que mais se adéqua à Constituição de 1988. Ela assegura a prevalência das liberdades fundamentais, consagra o pluralismo político, preconiza os valores comunitários, promoção cultural, os direitos transindividuais. Ela declara a primazia do direito individual sobre o Estado e prevê meios de exercer essa liberdade do indivíduo. Por outro lado, e afastando-se do liberalismo, reconhece carências da sociedade e nesse ponto permite a interefência do Poder Estatal.
O personalismo é o equilíbrio, pois, ao mesmo tempo que repudia a supremacia do interesse público sobre o individual, também não permite a prevalência incondicionada do interesse individual sobre o interesse público; tal como o fez a Constituição Federal de 1988.
3.2 Ponderação entre os interesses em conflito: O princípio da proporcionalidade
A questão da possibilidade de antecipação de tutela contra a Fazenda apresenta, portanto, o problema do conflito entre direitos fundamentais e o interesse público: são valores igualmente relevantes em abstrato. De um lado, a inafastabilidade da proteção adequada e efetiva, o que pode ocorrer somente se a tutela for antecipada em regime de urgência, e, de outro, o risco de graves danos ao interesse público.
Ao verificar-se a ocorrência do conflito, deve o Magistrado levar em consideração determinados princípios, ínsitos ao sistema constitucional, quais sejam:
a) o princípio da necessidade, que determina só ser legítima a solução se o conflito for real, não podendo os interesse em litígio conviverem simultaneamente;
b) o princípio da menor restrição possível, segundo o qual a restrição ao direito fundamental não pode ir além do limite;
c) princípio da salvaguarda do núcleo essencial, o qual determina não ser legítima solução que elimina um dos direitos fundamentais.
Estes princípios é que devem ser levados em consideração na própria aplicação do princípio da proporcionalidade.
“Os subprincípios da proporcionalidade são a adequação (correspondência entre meio e fim), a necessidade (invasão mínima) e a proporcionalidade em sentido estrito (precedência de um valor sobre outro).Pelo subprincípio da necessidade, requer-se que a esfera de liberdade do indivíduo seja invadida o mínimo possível, além do fato de que a escolha feita tenha sido a melhor e única possível, ou seja, que a medida restritiva seja indispensável e a mais eficaz à defesa de um direito fundamental. O subprincípio sub examine leva à idéia de pluralidade de meios aptos à consecução de determinado direito fundamental, sendo que dessa gama seja escolhido o menos gravoso. A adequação refere-se à pertinência entre o meio adotado e o fim almejado, devendo haver uma relação de causalidade entre o meio empregado e o objetivo colimado.”[83]
O subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito trata da proporção entre os interesses protegidos através da medida aplicada e os bens jurídicos que foram sacrificados ou restringidos, procurando-se preservar o mínimo de sacrifício ou restrição possível. A proporcionalidade em sentido estrito preserva a existência mínima do direito restringido, não podendo ele ser eliminado ou demasiadamente prejudicado.
A doutrina é pacífica no entendimento de que os princípios são normas jurídicas e, ainda quando implícitos, são obrigatórios e vinculam deveres tal como as regras jurídicas. A norma é gênero da qual são espécies os princípios e as regras. Enquanto essas têm em si mesmas a descrição específica das hipóteses a que se aplicam, os princípios têm sua incidência ilimitada. A aplicação dos princípios sempre exige um significativo juízo de valor: é que os princípios possuem conteúdo radicalmente axiológico. Já a aplicação da regra prescinde desse juízo de valor, a sua maioria aplica-se objetivamente aos fatos, sem necessidade de um prévio critério valorativo.
Ao examinar-se a aplicação de uma regra, define-se pela sua incidência ou não; ou ela é válida, ou não é. Já o princípio vai incidir ora com maior, ora com menor extensão. É, como afirma Alexy, um mandado de otimização; uma norma que ordena que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes.[84]
Portanto, conflitando duas regras, é simples a solução: uma delas será inteiramente aplicada. Agora, conflitando dois princípios, devem ser ponderados e aplicados conforme o princípio da proporcionalidade. Um cederá perante o outro, na medida do necessário. Naquela situação específica, um dos princípios precede ao outro, sendo que em situação diversa, esse outro pedido que cedeu pode ser o que precede.
Segundo Bonavides, a construção do princípio da proporcionalidade é o mais importante mecanismo jurídico de proteção eficaz da liberdade.[85] Exerce papel muito importante na concretização dos direitos fundamentais, harmonizando os conflitos entre princípios constitucionais.
“A amplitude com que a jurisprudência dos tribunais faz uso desde método explica-se, especialmente, pela ausência de uma delimitação rigorosa das hipóteses normativas destes direitos, a não indicação das notas distintivas, em relação, por exemplo, ao que é ‘exigível’. Os direitos, cujos limites não estão fixados de uma vez por todas, mas que em certa medida são ‘abertos’, ‘moveis’, e, mais precisamente, esses princípios podem, justamente por esse motivo, entrar facilmente em colisão entre si, porque a sua amplitude não está de antemão fixada. Em caso de conflito, se se quiser que a paz jurídica se restabeleça, um ou outro direito ( ou um dos bens jurídicos em causa) tem que descer até um certo ponto perante o outro ou cada um entre si. A jurisprudência dos Tribunais consegue isto mediante uma ‘ponderação’ dos direitos ou bens jurídicos que estão em jogo conforme o ‘peso’ que ela confere ao bem respectivo na respectiva situação.”[86]
O princípio da proporcionalidade torna possível a concretização da Justiça; enquanto a lei em sentido genérico define abstratamente os valores jurídicos a serem protegidos, é o magistrado que, concretamente, quando eles entram em conflito, aplica o princípio da proporcionalidade e soluciona a lide.
Se o Tribunal conclui pela impossibilidade de obtenção de um denominador comum aos bens jurídicos em conflito, deve respeitar que a mitigação que for feita a qualquer um deles seja a menor possível: as restrições a um direito fundamental, ou a um princípio constitucional, que são inevitáveis, mas apenas na medida do necessário. Deve ser respeitada a salvaguarda do núcleo essencial, que prevê a ilegitimidade da decisão conformadora se, ao procurar resolver o conflito entre direitos ou princípios, eliminar um deles ou lhe retirar toda a substância elementar.
3.2.1 A proteção de direitos fundamentais e a antecipação contra a Fazenda:
Como já se viu da leitura dos capítulos anteriores, em se tratando de princípios constitucionais, inafastabilidade da proteção adequada e efetiva e proteção do interesse público, não se deve abstratamente definir qual prevalece. Todavia, a Lei 9.494/97 o fez, determinando previamente que o interesse particular deve ceder ao interesse público em certas situações.
Apesar de o STF reconhecer a constitucionalidade da ADC n. 4, ajuizada em relação ao art. 1 da referida Lei, já entendeu que apenas concretamente, no exame de cada caso em que pleiteia a antecipação de tutela, é que o juiz terá a possibilidade de verificar a razoabilidade da restrição. Ao examinar pedido de suspensão cautelar da MedProv 173/90, que vedava a concessão de liminares em processos que tratassem de questões relativas ao Plano Collor, exarou o seguinte voto, que é perfeitamente aplicável a situações em que se discutem as vedações à concessão de antecipação de tutela contra a Fazenda:
“[…] Assim, creio que a solução está no manejo do sistema difuso, porque nele, em cada caso concreto, nenhuma medida provisória pode subtrair ao juiz da causa um exame de constitucionalidade, das restrições impostas ao seu poder cautelar, para, se entender abusiva essa restrição, se a entender inconstitucional, conceder a liminar, deixando de dar aplicação, no caso concreto, à medida provisória, na meida em que, em relação àquele caso, a julgue inconstitucional, porque abusiva.”[87]
O Ministro afirma, ainda, que há duas dimensões da inconstitucionalidade: uma norma poderia ser inconstitucional em todo e qualquer caso, ou a inconstitucionalidade poderia dar-se especificamente em determinados casos concretos. O primeiro tipo de inconstitucionalidade poderia ser objeto de reconhecimento tanto na via do controle difuso quanto no incidental; já o segundo, só no incidental. Então, no caso da tutela antecipada, o reconhecimento da constitucionalidade na via direta ainda não afastaria a possível constatação, na via incidental, da inconstitucionalidade concreta.
Assim como não há como os conflitos entre os valores fundamentais serem solucionados pela lei infraconstitucional, também não há como o serem em sede de controle direto e abstrato de constitucionalidade. Esse controle é destinado apenas para detectar inconstitucionalidade que independem de ponderação concreta. Não é o caso. O Pleno do STF, inclusive, já se manifestou nesse sentido:
“Na Ação direta de inconstitucionalidade, examinam-se as leis impugnadas, apenas, em seus conteúdos, no sistema normativo que definem e nos efeitos delas decorrentes, de forma abstrata, em face de preceitos da constituição federal, não cabendo, assim, em princípio, ao STF, no âmbito estrito desse processo, confrontar ou considerar, em sua individualidade concreta, casos, situações ou efeitos particulares, porventura resultantes da aplicação da lei, objeto da representação, até a data do julgamento”.[88]
Acerca da ADC n. 4, inclusive, em algumas situações o STF entende que as limitações devem ser interpretadas restritivamente, não podendo ser estendidas a outros casos, indicando estarem fora da vedação, por exemplo, verbas previdenciárias e verbas de qualquer natureza quando, “na hipótese de valor que, já antes recebido, fora retirado e é restituído por força de tutela antecipada”.[89]
Quando presente restrição à concessão de tutela antecipada, seja por se tratar das situações elencadas pelo art. 1 da Lei 9.497/97, seja por incompatibilidade com as previsões processuais, como a remessa oficial, a necessidade de precatório, é impossível assegurar de antemão a prevalência pelo interesse público. Tal determinação vai de encontro às consagrações de ordem personalista da Constituição de 1988.
“”Supor que todos os conflitos entre valores constitucionais poderiam ser solucionados na lei infraconstitucional significaria esvaziar o conteúdo constitucional dos princípios. Mais do que isso: implicaria negar a própria idéia de princípio. A essência do princípio, como se viu, reside na maleabilidade de sua incidência no caso concreto, de modo a compatibilizar-se com outros princípios. Em primeiro lugar, a idéia de que o legislador poderia – de antemão e integralmente – predefinir essa incidência teria por resultado transformar todo princípio constitucional em regra infraconstitucional: princípio constitucional seria aquilo que a lei infraconstitucional diz que é. Depois, nessa perspectiva, os princípios seriam normas destinadas unicamente ao legislador: um princípio apenas poderia incidir diretamente quando não houvesse conflito entre valores (hipótese, de resto, incompatível com uma ordem jurídica que consagra uma pluralidade de valores). Vale dizer, incidiria de modo direto precisamente quando desnecessária, ou menos necessária, a sua incidência como mandado de otimização. Cair-se-ia, assim, na negação da essência do princípio.[90]
A solução do conflito entre valores fundamentais implica considerar a realidade em questão. No ordenamento jurídico não é possível aceitar-se leis puramente harmonizadoras dos direitos fundamentais: a lei deve permitir a consideração das circunstancias do caso em exame, restringindo-se ao estabelecimento de critérios relevantes por meio de cláusulas gerais ou de conceitos indeterminados a serem preenchidos pelo Juiz. É a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade no caso concreto.
A tutela urgente é um resultado de regras de realização de um princípio, qual seja, o acesso à justiça. No exame das limitações a essa em face do Poder Público, quando a concreta ponderação de bens conduzir à preponderância do princípio do acesso à Justiça em face dos valores que inspiram as regras proibitivas, essas terão sua incidência afastada no caso concreto: o princípio que as revestem será ponderado e cederá parcialmente espaço.
É o caso, por exemplo, de situação que diz respeito ao acesso à saúde: pedido de antecipação de tutela contra a Fazenda para o fornecimento de valores destinados à compra de medicamentos. Aqui se ponderam duas questões: a necessidade de aplicação do princípio da proporcionalidade, entre o direito fundamental à saúde e o interesse público, bem como a observância da “reserva do possível”.
No julgamento do pedido de suspensão de antecipação de tutela no Agravo Regimental n. 175, proferiu o Min. Celso de Mello o seguinte entendimento:
“O alto significado social e o irrecusável valor constitucional de que se reveste o direito à saúde não podem ser menosprezados pelo Estado, sob pena de grave e injusta frustração de um inafastável compromisso constitucional, que tem, no aparelho estatal, o seu precípuo destinatário.
O objetivo perseguido pelo legislador constituinte em tema de proteção ao direito à saúde, traduz meta cuja não realização qualificar-se-á como uma censurável situação de inconstitucionalidade por omissão imputável ao Poder Público, ainda mais se se tiver presente que a Lei Fundamental da República delineou, nessa matéria, um nítido programa a ser necessariamente implementado mediante adoção de políticas públicas conseqüentes e responsáveis.”
O Ministro, ainda, ponderou que, entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável e assegurado pela Constituição, ou fazer prevalecer um interesse financeiro e secundário do Estado, entende, conforme razões de ordem ético-jurídica, ser devida a opção que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde. Aplicou, portanto, o princípio da proporcionalidade.
Cabe ressaltar que, apesar da necessidade de ponderação entre os valores em conflito, é de ser observado o princípio da reserva do possível. Esse diz respeito ao fato de que as normas constitucionais, por serem normas de direito público, no mais das vezes, exigem dispêndio de dinheiro. A existência de recursos configura uma limitação econômica e real à eficácia jurídica dessas normas. Observe que se fala em normas constitucionais em geral e não apenas normas de direitos sociais.
Em sede de efetivação e implementação onerosa dos direitos econômicos, sociais e culturais, cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas, é indispensável que se observem as possibilidades orçamentárias do Estado. Se comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir a imediata efetivação do comando.[91]
Apesar, portanto, da inaplicabilidade imediata das normas expressa ou implicitamente restritivas da concessão da antecipação de tutela contra a Fazenda, deve ser observada também a cláusula da reserva do possível, não se podendo exigir do Poder Público o fornecimento de valores que superem suas previsões orçamentárias.
Apesar da constitucionalidade das previsões da Lei n. 9497/97, que foi declarada pelo STF no julgamento da ADC n. 4, bem como do reconhecimento da validade das supostas restrições à antecipação de tutela derivadas de determinadas prerrogativas da Fazenda Pública, a simples definição, de antemão, da preponderância do interesse público, não tem guarida no ordenamento que a Constituição de 1988 houve por bem formar. Conforme previu a Carta Magna, enumerando diversos bens e valores jurídicos a serem protegidos e promovidos pelo Estado, parte-se da constatação de que não há uma ordem jurídica abstrata e preestabelecida de todos eles. Se é assim, a Lei não poderia definir qual deles prepondera.
As decisões judiciais não podem considerar o processo como um fim em si mesmo ou uma unidade independente dentro do sistema jurídico. A interpretação da lei ordinária deve ser feita com supedâneo nas normas e nos princípios constitucionais, que são os que refletem os desejos da sociedade. Esse é o pensamento que mais se coaduna com os valores elencados na Constituição Federal do Brasil, pois se de modo se entender, estará sendo previamente determinado que prepondera o interesse público em detrimento do individual, sem a análise dos bens envolvidos.
Sufragar a postura adotada de vedar-se incondicional e irrestritamente a antecipação do provimento contra a Fazenda Pública importa a ruptura com o modelo da busca pela eficácia ótima idealizada por Georg Ress, que destaca a importância da aplicação, pelo juiz, de juízo de equidade – de ponderação entre os pós e contras, de averiguação dos excessos na relação entre o meio e o fim – na solução do caso concreto.
Essa vedação contraria o ordenamento jurídico por duas razões: elimina os princípios constitucionais de segurança jurídica e efetividade das decisões judiciais, bem como exclui o poder de cautela do Magistrado, que fica sem qualquer discricionariedade no exame da lide.
Já se sabe que a Constituição Federal assegura a quem litiga em juízo inúmeros direitos fundamentais, que não podem ser anulados quando em conflito com a proteção do interesse público. Quanto à efetividade de jurisdição, significa, nas palavras do Ilustre processualista Teori Albino Zavascki:
“O conjunto de direito e garantias que a Constituição atribuiu ao individuo que, impedido de fazer justiça por mão própria, provoca a atividade jurisdicional para vindicar bem da vida de que se considera titular. A este individuo devem ser, e são, assegurados meios expeditos e, ademais, eficazes, de exame da demanda trazida à apreciação do Estado. […] Em outras palavras: o dever imposto ao individuo de submeter-se obrigatoriamente à jurisdição estatal não pode representar um castigo.”[92]
Por se tratar de conflito entre princípios de matriz constitucional, não há hierarquia no plano normativo. Ocorrendo, no plano da realidade, fenômeno de tensão derivado do fator tempo (aguardar-se o trânsito em julgado ou conferir o bem pretendido na lide em sede antecipação de tutela), o perecimento do direito pode provocar a limitação do interesse público no caso específico. Na verdade, não há como a lei prever qual preponderá in abstracto, sendo imperioso que tal ponderação seja realizada pelo Juiz.
“Porém, o legislador opera em abstrato e nem sempre consegue prever e dar solução a todas as situações de conflito que a vida apresenta. É por isso que, subsidiariamente à via legislativa e em harmonia com ela, viabiliza-se a atuação direta do Juiz. Não é por outra razão que ao Juiz se assegura o ‘poder geral de cautela’, que lhe permite deferir medidas cautelares ‘inominadas’, não previstas no texto legislativo.”[93]
Como bem afirmado pelo Min. Sepúlveda da Pertence, a solução está na utilização do sistema difuso, porque é ali que se torna possível ao Magistrado ponderar as nuances extraídas do caso concreto.
Assim, diante da impossibilidade de se chegar a um denominador comum, que é o que ocorre quando do conflito entre o pedido de antecipação de tutela contra a Fazenda para proteção de algum direito urgente derivado de valores jurídicos assegurados pela Constituição e a preservação do interesse público. Deve o Magistrado, então, examinar se é caso de se manter as restrições à tutela de urgência, ou de, naquela situação peculiar, afastá-las. Algum desses valores devem prevalecer: o mais urgente e fundamental, naquele caso específico. Por outro lado, o prejuízo ao bem jurídico que não prevalece não pode ir além do que requer o fim aprovado, qual seja, a realização do bem que prevalece.
Não é possível, portanto, a definição em abstrato de quais os princípios que devem prevalecer. E, inclusive, como já citado no trabalho, o Supremo já se posicionou no sentido de que somente no exame de cada o Juiz poderia verificar a razoabilidade da restrição.[94] Na verdade, o reconhecimento da constitucionalidade na via direta não afasta a possível constatação, na via incidental, da inconstitucionalidade no caso concreto.
O exame de inconstitucionalidade no sistema abstrato é destinado, tão somente, ao reconhecimento de inconstitucionalidade independentemente da ponderação concreta. Inclusive, é possível que no controle difuso o Magistrado entenda que é caso de manutenção da inconstitucionalidade verificada no sistema abstrato, mas, para isso, examinou as nuances da lide e foi capaz de produzir uma decisão mais coadunada com a realidade.
Se todos os conflitos pudessem ser resolvidos na lei infraconstitucional, tal ato significaria extrair todo o conteúdo constitucional dos princípios. Sua essência é exatamente flexibilizar sua incidência em cada caso concreto, compatibilizando-se com os outros princípios. Se a lei já determinasse qual seria essa incidência, o princípio seria relegado à regra infraconstitucional.
Segundo autor português, “é difícil que o legislador possa, em abstrato, hipotizar todas as situações possíveis, tendo, por isso, de, através de um processo de tipificação, simplificar a realidade”.[95]
Sendo assim, o único modo de se atingir o resultado pretendido é a permissão, pela lei, de serem consideradas as circunstancias do caso concreto, restringindo-se a legislação à definição de critérios relevantes e indeterminados a serem preenchidos pelo próprio Magistrado.
As limitações à tutela antecipada em face da Fazenda, portanto, quando a ponderação entre um interesse individual e fundamental e o interesse público resultar na preponderância daquele, devem ter sua incidência afastada no caso concreto. Não são previsões legislativas estanques, inflexíveis às peculiaridades do caso concreto. Caso contrário, estariam sendo violados os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, corolários do devido processo legal.
Procuradora do Estado/RS; Especializada em Direito Processual Civil – PUC/RS
Uma das dúvidas mais comuns entre clientes e até mesmo entre profissionais de outras áreas…
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) regula o trabalho aos domingos, prevendo situações específicas…
O abono de falta é um direito previsto na legislação trabalhista que permite ao empregado…
O atestado médico é um documento essencial para justificar a ausência do trabalhador em caso…
O cálculo da falta injustificada no salário do trabalhador é feito considerando três principais aspectos:…
A falta injustificada é a ausência do trabalhador ao trabalho sem apresentação de motivo legal…