Resumo: O presente artigo refere-se ao estudo da aplicabilidade da Lei Maria da Penha aos delitos praticados por homens contra mulheres, julgados no Estado do Rio Grande do Sul, nos anos de 2012, 2013 e 2014. Busca-se identificar a violência doméstica, suas formas, as motivações frequentemente presentes, analisando-se em que medida pode-se afirmar a ocorrência desse tipo de violência como forma de violação aos direitos humanos, verificando-se, também, quais as medidas protetivas de urgência, previstas em lei, que são mais frequentemente determinadas nos casos submetidos a julgamento. A Lei 11.340/2006 representa um marco no ordenamento jurídico brasileiro, ocupando posição destacada no sentido de trazer novo olhar sobre a situação da mulher, hoje protegida pela lei em vigor. Um dos destaques da Lei Maria da Penha foi o de afastar a aplicação da Lei 9.099/95, trazendo uma nova configuração à punição dos delitos infringidos contra a mulher, fazendo com que a aplicabilidade da lei desse outros contornos às transgressões, percebendo-se um novo ritual no cenário familiar, onde as normas mais rígidas cercearam investidas criminosas, destacando o uso de álcool e entorpecentes, as patologias mentais e transtornos de personalidade como reveladores de atitudes que desencadeiam a violência contra as mulheres. Trabalha-se com análise qualitativa, dados secundários da Secretaria da Segurança Pública do Rio Grande do Sul e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, utilizando-se a revisão bibliográfica com o método dedutivo.
Palavras- chave: Lei Maria da Penha – Violência Doméstica – Direitos Humanos
Abstract: This article refers to a study of the applicability of the Maria da Penha Law to crimes committed by men against women, and sentenced in the State of Rio Grande do Sul, in 2012, 2013 and 2014. The first aim was to identify domestic violence and its various forms and the frequent motivations, analyzing in what measure we can affirm the occurrence of this type of violence as a form of a human rights violation. In addition, the study determined which urgent protective measures set forth by law are most frequently implemented in tried cases. Law 11.340/2006 represents a mark in the Brazilian legal system, occupying a prominent position in the sense of bringing a new vision to women’s lives, now vigorously protected by the law. One of the highlights of the Maria da Penha Law was that it replaced Law 9.099/95. This brought about a new paradigm of punishment of crimes against women, with the applicability of the Law giving new parameters to offenses. A new ritual in the family was seen, where the most rigid norms curtailed criminal onslaughts, particularly those caused by the use of alcohol and intoxicants, mental pathologies, and personality disorders, which show the attitudes that cause violence against women. The study used qualitative analysis, secondary sources Irom the Secretary of Public Safety of Rio Grande do Sul and the Court of Justice of the State of Rio Grande do Sul, and a bibliographic review with a deductive method.
Key- words: Maria da Penha Law- Domestic Violence- Human Rights
Sumário: Introdução. 1. O conceito de violência doméstica . 1.1. Aspectos culturais sociais e psicológicos da Lei Maria da Penha. 2. Antecedentes legislativos e a constitucionalidade da Lei Maria da Penha. 2.1. A violência doméstica como violação dos direitos humanos da mulher. 2.2. Criação de órgãos judiciários com competência civil e crimial e a não aplicação da Lei 9.099/95. 3. Medidas protetivas de urgência. 3.1. Entrevista realizada referente às questões dos delitos de lesões corporais ocorridos na cidade de Porto Alegre. Conclusão. Referências
INTRODUÇÃO
A Lei 11.340/2006, denominada como Lei Maria da Penha, foi promulgada em 7 de agosto de 2006, e aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional. Recebeu esse nome em referência à história de vida de Maria da Penha Maia Fernandes, que, após sofrer várias agressões e duas tentativas de morte por parte de seu marido, indignada diante da não punição de seu agressor, fez uma denúncia pública à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, à qual terminou responsabilizando o Estado brasileiro por omissão ao seu compromisso internacional de prevenção e punição a esse tipo de violência.
A Lei Maria da Penha visa resgatar os Direitos Humanos das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, protegendo-as das ações criminosas de que são vítimas, buscando garantir a sua integridade física e mental, enquanto estiverem em situação de perigo e o processo penal estiver em curso.
A nova lei criou um tratamento penal diferenciado para os crimes cometidos no âmbito das relações domésticas, familiares e afetivas, aumentando penas e alterando significativamente o rito processual, estabelecendo a criação dos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e a promoção de medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência.
A violência doméstica contra a mulher representa uma realidade que intimida o público feminino, violando seus direitos nos mais diferentes países, em variadas idades, etnias e classes sociais. No Brasil, a Lei n°.11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, surge como uma possibilidade jurídica para garantir os direitos da mulher, difundindo que a violência doméstica e familiar contra a mulher se constitui como uma das formas de violação dos Direitos Humanos.
A Lei Maria da Penha é um mecanismo importante na garantia da punibilidade dos crimes de violência doméstica, justifica-se então a importância da análise da aplicabilidade dessa lei aos casos constatados no município de Porto Alegre.
Observou-se que há um significativo número de denúncias para as quais não há punição, ou a punição aos agressores é leve; outra evidência revelada foi o alto índice de desistências das vítimas em denunciar seus agressores, mesmo após repetidas ocorrências, salientando uma característica da mulher vítima de violência doméstica na capital.
Com a pesquisa realizada, quer-se refletir sobre a situação de risco que as mulheres vivenciam em momentos de tensão e de medo, que as fere ao longo do tempo, e o compromisso da sociedade como um todo em exigir a aplicabilidade da Lei Maria da Penha e participar das políticas públicas que visam proteger a mulher, buscando uma sociedade de paz na qual todos tenham direitos iguais.
1 O CONCEITO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica, foi vítima de tentativa de homicídio, sendo autor o seu esposo, Marco Antônio Heredia Viveiros, economista, que tentou matá-la com arma de fogo, enquanto ela dormia, isso após séries de agressões durante sua vida matrimonial. Em consequência, Maria da Penha sofreu várias lesões e submeteu-se a inúmeras operações cirúrgicas, ficando paraplégica e com traumas físicos e psicológicos. Seu marido era agressivo e violento, agredia a esposa e filhas durante seu casamento. A situação era insuportável, mas ela, por medo, não propunha a separação. De acordo com ela, o esposo alegou não ser o autor do crime, mas sim, uma tentativa de roubo e agressões de ladrões. Logo após regressar do hospital, sofreu um segundo atentado, quando Heredia tentou eletrocutá-la. Decidiu, então, pela separação judicial.
Segundo os defensores de Maria da Penha, Heredia agiu premeditadamente, pois induziu a esposa que fizesse, antes do evento, um seguro de vida a seu favor e também, que ela assinasse um documento para efetuar a venda do carro dela. Há quem afirme que Heredia era bígamo e tinha um filho na Colômbia – situações que não informara à esposa.
Em consequência da paraplegia, Maria da Penha ficou dependente de múltiplos tratamentos e não dispunha de recursos para custeá-los e nem ajuda financeira por parte do esposo.
Na investigação judicial, houve a comprovação da autoria do atentado por parte do marido, e de que ele tinha intenção de matá-la. Baseado em todas as provas, o Ministério Público apresentou sua denúncia contra Heredia (CAMPOS; CORRÊA, 2012, p. 48- 49).
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu como regra a igualdade entre homens e mulheres, de onde decorre a isonomia de direitos e deveres na sociedade conjugal (CAMPOS. CORRÊA, 2012, p. 251).
A Convenção de Belém do Pará foi o primeiro tratado internacional de proteção dos direitos humanos a reconhecer a violência contra as mulheres como um fenômeno generalizado que atinge um elevado número de mulheres, sem distinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição. A Convenção afirma que a violência contra a mulher constitui grave violação dos direitos humanos e impede total ou parcialmente o exercício dos direitos fundamentais, constituindo ofensa à dignidade humana (PIOVESAN, 2009, p. 229).
A Lei 11.340/2006 criou regras para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, tratando da condição da mulher e prevendo políticas públicas para efetivar os direitos humanos (art.8°, inciso VIII e IX) (CAMPOS; CORRÊA, 2012, p. 653).
Para se chegar ao conceito de violência doméstica é necessário interpretar, conjuntamente, os artigos 5° e 7°. Pode ser definida como qualquer das ações citadas no art. 7° , ou seja, a violência física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral, quando praticadas contra a mulher uma vez existentes fortes laços de natureza familiar ou afetiva (MISAKA apud DIAS, 2015, p. 49). A violência doméstica contra a mulher tem por finalidade, como asseveram Cunha; Pinto (2014, p.42): “intimidá-la, puni-la ou humilhá-la ou mantê-la nos papéis estereotipados ligado ao seu sexo, ou recusar-lhe a dignidade humana” ou ainda: “abalar sua segurança pessoal, seu amor próprio”.
Na violência doméstica, identifica-se a existência de laços de afetividade entre o homem agressor e sua vítima:
“A violência doméstica ocorre numa relação afetiva, cuja ruptura demanda, via de regra, intervenção externa. A mulher raramente consegue desvincular-se de um homem sem o auxílio externo. Até que isso ocorra, descreve uma trajetória oscilante, com movimentos de saída da relação e de retorno a ela” (SAFFIOTI apud CAMPOS; COSTA, 2011, p. 28).
A Lei Maria da Penha trouxe visibilidade e transparência necessária ao conhecimento da violência doméstica no Brasil; em consequência, a sociedade tornou-se mais atenta e vigilante, também, menos tolerante com a violência praticada contra a mulher que, muitas vezes, não pode decidir sobre sua vida e seu papel no exercício de poder (CAMPOS; COSTA, 2011, p. 85).
A violência doméstica contra a mulher está, em grande parte dos casos, relacionada a problemas de conjugalidade:
“Ou seja, conforme propõe Toloi (2006), sob a expressão e comunicação de anseios, expectativas, valores, intenções individuais, de como os indivíduos e instituições compreendem e vivenciam as concepções de amor, família, casamento e como essas concepções atuam no cotidiano das relações. Segundo Magalhães e Féres- Carneiro (2203), a conjugalidade se define como uma dimensão psicológica compartilhada que possui uma dinâmica inconscientemente ligada a leis e funcionamentos sociais específicos” (TOLOI; MAGALHÃES; FÉRES-CARNEIRO apud FREITAS; PINHEIRO, 2013, p. 85).
As formas de violência doméstica e familiar contra a mulher são elencadas como: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
A violência física é considerada como qualquer agressão ao corpo da mulher, prejudicando sua vida e comprometendo-a fisicamente por meio de empurrões, socos, queimaduras, pontapés e cortes causados por faca, canivete, asfixia, arma de fogo e outros (CAMPOS; CORRÊA, 2012, p. 255).
Conforme a lei, violência psicológica é toda ação que cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que impeça o pleno desenvolvimento da mulher, cerceando suas ações, comportamentos, decisões, crenças, por meio de agressões verbais, ameaça, constrangimento, ironia, insulto, perseguição e humilhação ou diferentes ações que venham prejudicar sua saúde psicológica e autodeterminação (CAMPOS; CORRÊA, 2012, p. 273).
A violência sexual configura-se como qualquer atitude que force a mulher a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada através de ameaça, coação, intimidação ou uso da força. Também quando a mulher é obrigada a ver imagens pornográficas ou a praticar ato sexual com terceiros, quando não queria. Para que seja considerada violência doméstica e familiar, a violência sexual deve ser praticada por agressor que possua vínculo conjugal, familiar ou afetivo com a mulher, mesmo que não tenha acontecido no espaço doméstico ou familiar (CAMPOS; CORRÊA, 2012, p. 291).
A violência patrimonial configura-se como o ato de subtrair objetos da mulher sendo nada mais do que furtar, quando a vítima é mulher e o agressor mantém relação afetiva. Também em relação à apropriação indébita e ao delito de dano (DIAS, 2015, p. 77).
Entendida como a retirada de valores, direitos e recursos econômicos com a finalidade de suprir as necessidades da mulher, a violência patrimonial refere-se, também, ao não pagamento de alimentos. Ao omitir-se da obrigação de alimentar à mulher, quando dispõe de recursos, o alimentante incorre não apenas em delito de violência patrimonial, mas também de abandono material (DIAS, 2015, p.77).
A violência moral é prevista nos delitos contra a honra: calúnia, difamação e injúria, mas, quando acontecem como resultado de vínculo de natureza familiar ou afetiva, representam violência doméstica.
Na calúnia, o caso atribuído pelo defensor à vitima é denominado crime. Na injúria, não há atribuição de caso definido, no entanto, na difamação, há imputação de caso de ofensa à reputação da vítima. A calúnia e a difamação ferem a honra objetiva, e a injúria, a honra subjetiva. A calúnia e a difamação configuram-se quando terceiros ficam sabendo da afirmativa; a injúria, quando o próprio ofendido é informado da imputação (CAPEZ apud DIAS, 2015, p. 78).
A violência moral é uma ofensa à autoestima e ao reconhecimento social, mostrando–se na forma de desqualificação, inferiorização ou ridicularização. Face às novas tecnologias de informação, internet e rede sociais, a violência moral contra a mulher adquiriu novas proporções. São ofensas publicadas em espaços virtuais e em rede, de maneira instantânea, de custosa comprovação e combate (FEIX apud DIAS, 2015, p. 78).
Essas formas de violência doméstica contra a mulher são praticadas, normalmente, pelos companheiros, namorados ou maridos das vítimas, de forma reiterada, na maior parte das vezes, referindo-se a doutrina ao denominado: “ciclo de violência” (BASTOS, 2013, p. 61). Esse ciclo de violência integra a vida do casal, repetindo-se, com frequência, sendo formado pelas fases de tensão, agressão e reconciliação:
“a) Fase da tensão- a rotina de tensões são reunidas pelo agressor, criando um ambiente de perigo para a mulher, que é penalizada por essas causas diárias. Por qualquer motivo o ofensor menospreza a vítima, culpando-a por essas aflições. Os motivos que o levam a essa atitude podem ser os mais comuns, como a de não ter lavado bem a louça, ter feito uma comida que não é do seu agrado, ou de ter amantes. O aumento do estresse ocasiona uma séria discussão entre ambos, que pode ter sido impulsionada pelo alcoolismo ou uso de entorpecentes por parte do agressor;
b) Fase da agressão- o ofensor maltrata física e psicologicamente a vítima, que permanece passiva, imaginando que, dessa maneira, o agressor acabe com a violência. Esse ataque pode causar lesões graves à vítima, levando-a a procurar ajuda médica;
c) Fase da reconciliação- o ofensor, após a violência, mostra-se arrependido e promete mudar de atitude, reforçando o seu pedido de perdão com carinhos à vítima, para que esta acredite que apenas foi um momento de descontrole que motivou a agressão” (BASTOS, 2013, p. 61).
O ciclo de violência, após a fase de reconciliação, é relembrado pela vítima através do medo, esperança e amor que sente por ter acreditado nas promessas de seu parceiro que, de novo, desiludiu-a (BASTOS, 2013, p. 62). O medo que sente a vítima é causado pelas trágicas experiências vividas e pela ameaça de novas agressões. A esperança revela-se no desejo de realizar o seu projeto de vida ao lado do parceiro, embora ele continue apresentando atitudes agressivas. A vítima do ciclo de violência conjugal vê-se dependente de uma relação doentia pelo amor que continua a dedicar ao agressor e a crença de que ele, nos períodos de arrependimento, diz-lhe ter amor.
Esse ciclo da violência conjugal revela, frequentemente, fortes vínculos doentios que se alternam em fases de violência, intercalados por reconciliações nas quais imperam o ódio e o amor e, nesse caso, é difícil a repressão por parte do poder público (BASTOS, 2013, p. 62-63).
1.1 ASPECTOS CULTURAIS, SOCIAIS E PSICOLÓGICOS DA LEI MARIA DA PENHA
Os aspectos culturais, segundo Dias (2007, p. 15), contribuíram para que a violência doméstica tivesse força como exemplo para a família, na qual a mulher tem o dever de submeter-se às ordens estabelecidas pelo homem, aquele que provê o sustento e exige o cumprimento das regras. Nessa visão de sociedade, ela acredita que sua proteção está no fato de casar-se e constituir uma família:
“Ser a rainha do lar, ter uma casa para cuidar, filhos para criar, e um marido para amar. Não há casamento em que as casadoiras não suspirem pelo buquê da noiva. Ao depois, venderam para a mulher a ideia de que ela é frágil e necessita de proteção e delegaram ao homem o papel de protetor, de provedor. Daí à dominação, do sentimento de superioridade à agressão, é um passo” (DIAS, 2007, p. 15).
Esse pensamento ainda é presente na sociedade brasileira contemporânea. Mesmo que a mulher, ao longo dos anos, tenha obtido muitas conquistas no âmbito de sua atuação, na qual busca ser referência de pessoa capaz de assumir qualquer papel na sociedade, essa situação é incipiente, haja vista os impedimentos em relação a alguns cargos, os quais, em sua maioria, são assumidos por homens, em uma declarada visão na qual encontram-se, ainda, preconceitos. Afirmando então Dias (2007, p.15-16): “que esse preconceito é de natureza cultural e tem origem na diversidade no exercício do poder e que leva a uma ligação entre dominante e dominado. Essas atitudes acabam sendo abonadas pelo Estado. Em decorrência disso, acontece o perverso descaso de que sempre foi vítima a violência doméstica”.
O homem recebeu o privilégio de dominar o espaço público e a mulher foi limitada à família e ao lar, originando o aparecimento de dois mundos: o de dominação e produtor; e o de submissão e reprodutor. Considerando essa diferença, homem e mulher desempenham, na sociedade, papéis diferentes: ele provendo a família e ela cuidando do lar. Esses padrões comportamentais espelham um código de honra, no qual a sociedade destina um papel paternalista ao homem e, à mulher, submissão. Em razão dessa diferença, as mulheres são educadas para serem mais comedidas, limitadas em seus ideais, reféns do tabu da virgindade, do cerceamento do exercício da sexualidade e da consagração do papel de mães (DIAS, 2007, p.17).
O ciúme patológico, agravado pelo uso de entorpecentes como drogas e álcool, constitui uma das causas de maior atrito entre os casais, representando tortura para as vítimas, que são obrigadas a anular-se completamente, e, para comprovar o seu amor ao ciumento, afastam-se de amigos e familiares. Mas, essa atitude não anula a vigilância e a perseguição à vítima, as agressões e as desconfianças, deixando-a psicologicamente abalada, incapaz de perceber que esses motivos “são inventados” pelo agressor para justificar suas atitudes destrutivas (CAMPOS; CORRÊA, 2007, p. 275).
2 ANTECEDENTES LEGISLATIVOS E A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA
A violência doméstica e familiar contra a mulher é a mais perversa forma de anulação da pessoa humana, privando-a da liberdade e exercida por alguém a quem ela deposita sua confiança, tornando o lar em um espaço de temor e perigo, levando-a a viver constantemente com medo e insegura (BASTOS, 2013, p. 74).
Coloca-se como primeiro antecedente legislativo a Lei n° 10.455/2002, acrescida do parágrafo único do art. 69 da Lei n° 9.099/95, que prenuncia uma medida cautelar, de natureza penal com o objetivo de retirar o agressor do lar conjugal sendo aplicada pelo juiz do próprio Juizado Especial Criminal (BASTOS, 2013, p. 74).
A Lei n° 10.886/2004, que incluiu os parágrafos 9° e 10° ao artigo 129 do Código Penal, criou um novo tipo de lesão corporal originário da violência doméstica, e acrescentando a pena mínima de três para seis meses de detenção (AVENA apud BASTOS, 2013, p. 74).
A Lei n° 11.106/2005 apresentou avanços ao revogar os artigos 107 e 219 do Código Penal com a introdução na Constituição de 1988, ao refutar com veemência a violência doméstica (art. 226, § 8°). Da mesma maneira, em 1990, o estupro e o atentado violento ao pudor foram definidos como crimes hediondos (CAMPOS; CORRÊA, 2012, p. 186).
Mas esses antecedentes não foram suficientes para a solução do problema. A violência doméstica e familiar contra a mulher continuou aumentando estatísticas negativas, porque tais crimes, devido às baixas penas aplicadas, continuavam sendo julgados de menor potencial e sendo processados sob a égide dos Juizados Especiais Criminais.
Considerando-se a grande incidência de violência doméstica e familiar contra a mulher, no Brasil e em outros países da América Latina, e a ineficácia dos institutos da Lei 9.099/95 no confronto dessa questão, tornou-se imperativo a criação de uma lei adotando medidas e regras mais severas no combate à violência contra a mulher (BASTOS, 2013, p. 75).
A Convenção de Cedaw veio possibilitar a primeira investida para a existência da Lei 11.340/06 na legislação brasileira. O texto legal foi uma consequência de um exaustivo processo de discussão, tendo por base a proposta apresentada por um consórcio de ONGs (ADVOCACY, AGENDE, CEPIA, CFEMEA, CLADEM/IPÊ e THEMIS), após a discussão e reformulação dessa proposta por um grupo de trabalho interministerial, coordenado pela Secretaria Especial de Políticas, foi encaminhada pelo Governo Federal ao Congresso Nacional (CAMPOS; CORRÊA, 2012, p. 140).
Constata-se que a Lei Maria da Penha cumpriu os acordos das convenções internacionais, assumidos pelo Brasil:
“Em vigor desde o dia 22.09.2006, a Lei Maria da Penha dá cumprimento, finalmente, à Convenção para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência contra a Mulher da OEA (Convenção de Belém do Pará), ratificada pelo Estado brasileiro há 11 anos, bem como à Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), da ONU” (CAMPOS; CORRÊA, 2012, p. 140).
A Convenção de Belém do Pará, de 1994, foi editada pelo Decreto 1973/96 e trata especialmente da violência em que vivem muitas mulheres da América, considerada essa uma situação generalizada. Os Estados Partes consideram que a violência contra a mulher é uma ofensa à dignidade humana que se manifesta nas relações de poder desiguais entre homens e mulheres. Seu principal objetivo é desafiar os Estados a editar regras de proteção contra a violência institucionalizada contra a mulher, dentro ou fora do lar (NUCCI, 2008, p. 861).
O Estado brasileiro firmou compromisso no plano internacional de combater a violência doméstica contra as mulheres, de onde resultou a edição da Lei Maria da Penha (NUCCI, 2088, p. 860).
Criticada por favorecer as mulheres vítimas de violência doméstica, terminou tendo sua constitucionalidade questionada junto ao Supremo Tribunal Federal. Alguns tribunais entendiam que, ao não proteger, também. os homens que pudessem ser vítimas de violência por parte de suas mulheres, feriria o princípio da igualdade de gênero, discriminando a mulher como sexo frágil, única merecedora de proteção especial do Estado. Essa referência foi descaracterizada na própria Constituição Federal, artigo 226, §5°, que equipara ambos os sexos em direitos e obrigações na sociedade conjugal, proporcionando, aos dois sexos, no § 8°, proteção no caso de violência doméstica (BASTOS, 2013, p. 82).
Ao considerar a predisposição de alguns tribunais e de esporádicas decisões afirmando a inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha, o Presidente da República, na época, tomou uma decisão incomum. Através da Advocacia-Geral da União, propôs Ação Direita de Constitucionalidade- ADC 19-3/610, referente aos arts. 1°,33 e 41, dos arts. 1°,33 e 41. A Procuradoria-Geral da República também incitou manifestação da Corte Suprema ao propor Ação Direta de Inconstitucionalidade- ADI 4.424, referindo-se aos arts. 12,I;16; e 41, todos pertencentes à Lei 11.340/2006. O Supremo Tribunal Federal, sendo relator o Ministro Marco Aurélio, decidiu, por maioria, acolher ambas as ações (STF apud DIAS, 2015, p. 112), sustentando tratar-se de ação afirmativa em favor da mulher, razão pela qual a discriminação em favor destas tornou-se constitucional.
Após longo tempo e discussões intensas, constituindo um instrumento de cidadania, a Lei Maria da Penha surge no ordenamento jurídico brasileiro como um prêmio desejado. Não se trata de uma lei comum, pois tem uma história, uma razão de existir, é feita de muita luta e persistência, constituindo mecanismo de discriminação positiva, elaborado para proteger as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, de acordo com os dispositivos constitucionais vigentes, não se podendo, nem para fins de debate, aceitar o vício de inconstitucionalidade (CAMPOS; CORRÊA, 2012, p. 173).
2.1 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA COMO VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DA MULHER
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, Carta de 1948, erigiu-se como um dos principais documentos internacionais, colocando a dignidade do ser humano como um direito fundamental e inalienável. Nos termos do art. 1° da Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos, dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade" (ONU apud BASTOS, 2013, p. 41-42).
Em relação aos Direitos Humanos, Bobbio afirma que “são aqueles que pertencem, ou deveriam pertencer a todos os homens, ou dos quais nenhum homem pode ser despojado e, ao destacar a Declaração Universal dos Direitos Humanos”, assim se expressa:
“Somente depois da Declaração Universal é que podemos ter certeza histórica de que a humanidade – toda a humanidade – partilha alguns valores comuns; e podemos finalmente crer na universalidade dos valores, no único sentido em que tal crença é historicamente legítima, ou seja, no sentido em que universal significa não algo dado subjetivamente, mas algo subjetivamente acolhido pelo universo dos homens” (BOBBIO apud BASTOS, 2013, p. 44).
A Constituição Federal, em sua norma, anulou o sistema legal discriminatório em relação ao gênero feminino, colocando como fundamento da República a dignidade da pessoa humana, e um dos objetivos essenciais de nosso País é a garantia do bem de todos, eliminando toda forma de discriminação, seja quanto à origem, raça, sexo ou cor (CAMPOS; COSTA, 2011, p. 21).
Direito Humano, na atualidade, sobressai como obrigação moral com a sociedade, seu costume e a aparência referem-se a ser aceito, assumindo a vontade geral ou a de um grupo específico.
Todo objeto reflete seu ser de forma visível ou em pensamento, e, segundo Sartre, é “fenômeno de ser”, destacando que é diferente de “ser fenômeno” (SARTRE apud CAMPOS; COSTA, 2011, p. 142).
O direito à liberdade faz parte da essência humana, o ser deve ser reconhecido e aceito nas suas diferenças. O homem e a mulher movem-se, cotidianamente, na busca pela paz e pela felicidade, esta conquista é o que incentiva a sociedade a viver lutando por seus objetivos.
A vontade e a liberdade são aprisionadas no “politicamente correto”, pois alguns indivíduos têm consciência de sua miséria social, de seu ideal pretendido não ser realizado e a maioria apenas repete uma dada estrutura de relacionamento e não absorve sua condição moral e, por não existir consciência, ele copia (CAMPOS; COSTA, 2011, p. 143).
Ser aceito pela sociedade é ideal pretendido em todas as relações humanas:
“A consciência de si que purifica o seu objeto, o seu conteúdo e o seu fim e o ergue àquela universalidade atua como pensamento que se estabelece na vontade. Eis o momento em que se torna evidente que a vontade só é verdadeira vontade como inteligência que pensa. O escravo não conhece a sua essência, a sua infinitude, a sua liberdade, não se conhece como essência e, portanto, não se conhece, não pensa. Esta consciência de si que se apreende como essência pelo pensamento e assim se separa do que é contingente e falso constitui o princípio do direito, da moralidade subjetiva e objetiva” (HEGEL apud CAMPOS; COSTA, 2011, p. 143).
É dever do Estado proteger todas as pessoas, suas garantias fundamentais de liberdade, igualdade e dignidade, pois, assim agindo, estará afirmando sua própria soberania.
A mulher vê-se cerceada em sua liberdade quando o homem a domina, impondo-lhe obediência e submissão, incutindo o medo, a mais perversa anulação do ser humano. A violência doméstica constitui uma violação à igualdade, conquista valiosa da segunda geração dos direitos humanos, em que a mulher, livre e soberana, é protagonista de sua história de vida.
A solidariedade é o direito que vem trazer à mulher a sua realização pessoal, como elemento ativo e participante em uma sociedade fraterna (DIAS, 2015, p. 45).
O Brasil, através da Constituição Federal de 1988, instituto notável de reconhecimento dos direitos humanos das mulheres, integrou-se à proteção internacional desses direitos, que representam uma valiosa conquista da sociedade (CAMPOS; CORRÊA, 2012, p. 143).
Sendo assim, ao garantir os Direitos Humanos das mulheres, previsto na lei, representa uma forma de promoção de seus direitos humanos, porque necessitam de tratamento especial por parte do poder público, considerando sua fragilidade e a necessária promoção de sua assistência, para que elas, em condição de igualdade, direcionem sua vida em favor da família e da comunidade (CAMPOS; CORRÊA, 2012, p. 196).
2.2 CRIAÇÃO DE ÓRGÃOS JUDICIÁRIOS COM COMPETÊNCIA CIVIL E CRIMIAL E A NÃO APLICAÇÃO DA LEI 9.099/95
Os Juizados Especiais Criminais – JECRIM’s, antes do advento da Lei Maria da Penha, eram os julgadores dos crimes contra a mulher, uma vez que a violência doméstica, no sistema penal brasileiro, considerava esses acontecimentos de importância comum. Em um momento especial, foi promulgada a Lei 11.340/06, que a retirou da incidência dos Juizados Especiais nos delitos domésticos, por não se tratar de infração de menor lesividade, mas sim, entre aquelas de maior potencial ofensivo, uma vez que suas consequências e as sequelas da violência não atingem somente a mulher, mas também os filhos (DIAS, 2015, p. 104).
O artigo 1, 29 e 33 da Lei Maria da Penha referem a sugestão de criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher. Como sustentam Gomes et al (2009, p. 82) esses juizados integrados à rede de atendimento à mulher em situação de violência objetivam: “proporcionar às mulheres que vivem em situação de violência doméstica e familiar o acesso à justiça formal e respostas céleres e integrais que colaborem para seu fortalecimento e para o exercício de seus direitos”, com competência na esfera cível e criminal para aplicação da Lei 11.340/2006. Destacam esses autores:
“Com esta medida, o legislador procurou reduzir os obstáculos que as mulheres enfrentam no acesso à justiça, unificando, no mesmo espaço físico (juizado) e temporal (a audiência), o acesso às medidas de proteção, de assistência e a garantia de seus direitos e de seus filhos. Além disso, esta medida também contribui para a abordagem integral necessária ao enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher, uma vez que permite que o juiz e o representante do Ministério Público, que cuidam da causa criminal, possam, também, ter conhecimento sobre os efeitos da violência e a extensão da violação dos direitos das mulheres nos outros âmbitos de sua vida. Um segundo elemento que caracteriza o atendimento especializado nestes juizados é a existência de equipes multiprofissionais que deverão assessorar o juiz na tomada de decisões, identificar as necessidades das mulheres e providenciar para que elas tenham acesso a serviços e programas sociais aplicáveis no âmbito das medidas de assistência e proteção”.
Na Ação Direta de Constitucionalidade nº 19 o STF declarou a constitucionalidade[1] do artigo 33 da Lei Maria da Penha, afirmando seu relator que a sugestão de criação desses juizados por lei federal não é obrigatória, devendo eles serem criados por lei estadual, já que se trata de norma de organização judiciária local, destacando-se a competência das varas criminais, caso não haja sido criado o órgão sugerido, para julgamento das causas de competência cível e criminal que envolvam a aplicação da Lei 11.340.
Na capital gaúcha há dois Juizados da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. O 1º Juizado foi criado em 2008, com a Resolução 663/08[2] que transformou a 1ª Vara de Delitos de Trânsito em Juizado de Violência Doméstica e Familiar. Em março de 2014, foi criado o 2º Juizado, dado o expressivo número de processos que tramitavam naquele primeiro. Com isto, a competência[3] do 1º Juizado diz respeito à competência territorial dos Foros da Restinga, Tristeza, 4° Distrito e parte dos processos de competência do Foro Central de Porto Alegre, cabendo, pelo mesmo critério, ao 2º Juizado os processos dos Foros Regionais do Sarandi, Alto Petrópolis, Partenon e parte do Foro Central.
3 MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA
A Lei Maria da Penha, para alcançar o seu objetivo principal, que é o de permitir que a mulher tenha o direito a uma vida digna e sem violência, criou uma série de medidas protetivas, visando impedir o agressor de efetivar seu intento, bem como garantir a proteção pessoal e patrimonial à vítima e seus filhos, passando a ser esses encargos não somente da polícia, mas também do juiz e do Ministério Público (DIAS, 2015, p. 138).
Ao tomar conhecimento do fato que revele a prática da violência doméstica, a autoridade policial tomará as devidas providências legais para a proteção da vítima. O mesmo compromisso tem também o Ministério Público, de solicitar que as medidas protetivas sejam aplicadas ao caso, ou a análise crítica das que já foram concedidas, visando à proteção da mulher.
A ação do juiz de pedir providências de adoção de medidas de proteção está condicionada à vontade da vítima. A partir desse momento, o juiz pode agir de ofício, adicionando medidas que entender necessárias para efetivar a proteção que a lei promete à mulher, tendo também o direito de requisitar a ação da força policial ou decretar a prisão preventiva do agressor (DIAS, 2015, p. 138- 139).
Existe um princípio de atipicidade das medidas protetivas de urgência, no ordenamento processual civil, em relação à tutela específica dos deveres de fazer ou não e dar coisa distinta de dinheiro, de autorizar ao magistrado de adotar, em cada caso concreto, a medida que julgar mais adequada, necessária e proporcional ao objetivo pretendido, mesmo que tal atitude não esteja prevista ou regulamentada na lei, pois é a maneira mais coerente de manter a abertura do sistema (DIDIER; OLIVEIRA, 2008, p. 16).
As medidas de urgência referentes ao agressor configuram a suspensão da posse ou porte de arma de fogo, procurando, dessa maneira, impedir maior agressão, podendo evoluir para um homicídio; o afastamento do lar e a consequente separação de corpos também oferece proteção à mulher em relação a delitos que venham a ser consumados; a proibição de contato, que pode ser através de várias maneiras como: e-mail, telefone, cartas e o impedimento de o agressor frequentar determinados lugares foi importante, porque, dessa maneira, impede o autor de, frequentemente, influenciar a mulher com pedidos inoportunos ou pressioná-la a tomar atitudes que comprometam sua segurança; considerando-se a restrição ou suspensão do direito de visitas do autor aos filhos menores e a prestação de alimentos têm por objetivo melhorar a eficiência da aplicação da Lei 11.340/06 (NUCCI, 2008, p. 879).
As medidas de urgência protetivas da vítima encontram-se elencadas no artigo 23 da Lei 11.340/06. Umas das medidas cabíveis à vítima e seus dependentes é o encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento que pode ser decidido pelo juiz ou pela autoridade policial, o mesmo podendo fazer o Ministério Público, que tem o poder de determinar serviços públicos de segurança, decidir pelo recolhimento da vítima. As medidas protetivas de afastamento do local de trabalho e a garantia de remoção, bem como a vigência do vínculo empregatício, visam proteger física e psicologicamente a mulher. Outra determinação é oferecer à vítima os benefícios das conquistas científicas e tecnológicas, como os serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis- DSTs e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida- AIDS e outros atendimentos referentes à violência sexual. A medida mais solicitada é a de manter o agressor distante da vítima, e, para assegurar o fim do ciclo de violência, o magistrado pode determinar a saída de qualquer um deles da residência comum. Quando a mulher for autorizada a sair da casa, continua gozando os direitos referentes a bens, guarda de filhos e alimentos (DIAS, 2015, p. 146- 147).
Em relação ao afastamento do agressor da vítima, de seus familiares e testemunhas, pode o juiz fixar a distância que ele deve cumprir para evitar qualquer aproximação física. Também essa determinação pode estender-se ao local de trabalho da ofendida e aos espaços de lazer (CUNHA; PINTO, 2014, p. 149).
Se a convivência do pai com os filhos não representar nenhuma ameaça, pode continuar acontecendo, mesmo depois do afastamento do agressor e da proibição de aproximação, garantindo, dessa maneira, o vínculo de convivência entre eles (DIAS, 2015, p. 150- 151).
Os filhos dependentes do agressor têm direito ao recebimento de alimentos provisórios uma vez que a denúncia se refere à violência doméstica e a vítima pode solicitar alimentos para ela e os filhos, ou somente para a prole. A ofendida não necessita propor ação principal no prazo de 30 dias, quando os alimentos forem deferidos. Caso forem indeferidos, em sede de medida protetiva de urgência, o pedido pode ser encaminhado por meio da ação de alimentos diante do juízo de família (DIAS, 2015, p. 150-151).
A aplicação de medidas protetivas de natureza patrimonial está prevista na Lei Maria da Penha, visando a restituir os bens da ofendida que o agressor subtraiu, também prevê a proibição por prazo estabelecido de compra, venda ou locação dos bens pertencentes ao casal e a anulação da procuração que a vítima outorgou ao cônjuge.
O patrimônio adquirido pelo casal no período de convivência, seja na união estável ou no casamento, a eles pertencem. Quando a vítima recebe de volta legalmente seus bens, estes se referem tanto aos bens particulares quanto aos do acervo comum, pois a metade lhe pertence. Para a locação de bens comuns só é necessário o contrato firmado pelo casal se o prazo exceder o período de 10 anos (DIAS, 2015, p. 151-152).
A negativa de celebração de contrato de compra, venda ou locação do patrimônio comum deve ser cientificada ao Cartório do Registro de Imóveis; a suspensão da procuração deve ser comunicada ao Tabelionato onde foi outorgada. Para que a decisão seja oponível a terceiros, sugere-se o registro junto ao Cartório de Registro de Títulos e Documentos (CUNHA; PINTO apud DIAS, 2015, p. 153).
3.1 ENTREVISTA REALIZADA REFERENTE ÀS QUESTÕES DOS DELITOS DE LESÕES CORPORAIS OCORRIDOS NA CIDADE DE PORTO ALEGRE
A entrevista referida foi realizada com a Juíza de Direito Madgéli Frantz Machado, que atua há sete anos como titular do Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher na cidade de Porto Alegre.
Nesse questionamento, a entrevistada apontou como fatores associados à violência contra mulheres o uso de álcool e drogas, e também a existência de patologias mentais e transtornos de personalidade, que podem estar presentes tanto no autor quanto na vítima, afirmando que esses episódios podem ter origem nas vivências de infância reproduzidas de geração para geração e também em fatores econômicos, sociológicos, etc..
Destacou que antes da edição da Lei Maria da Penha, não havia dados estatísticos. Essas violências eram invisíveis e as mulheres, quando conseguiam coragem para ir até a Delegacia de Polícia, eram, muitas vezes, ridicularizadas e nada era feito em favor delas. Com sua vigência e aplicação de punições aos agressores, evita-se ou diminui-se a prática de novos crimes, considerando-se o caráter pedagógico, apontando como fator positivo a visibilidade dos dados sobre a violência doméstica.
A aplicação de medidas protetivas colabora na coibição da prática de novos delitos, já que a Lei Maria da Penha inovou ao permitir ao juiz/juíza o decreto de prisão preventiva do autor que descumprisse as medidas protetivas, mesmo nas hipóteses de contravenção penal, o que antes da Lei Maria da Penha era impossível.
Em todo Rio Grande do Sul, no ano de 2015, foram concedidas aproximadamente 60 mil medidas protetivas, e, em mais de 60% dos casos que terminaram em morte, essas mulheres não haviam registrado ocorrência na Delegacia de Polícia, ou seja, a violência estava invisibilizada. As medidas protetivas mais frequentemente estabelecidas são as que proíbem o contato e a aproximação do autor com a vítima, e as que determinam o afastamento dele do lar comum.
Os fatores que a entrevistada mencionou como sendo relevantes para que a vítima permaneça com o seu companheiro, são a dependência financeira, a emocional/afetiva e a baixa autoestima, esta construída através de reiteradas violências sofridas. É muito difícil a mulher pedir a separação, inclusive porque, muitas vezes, não possui escolaridade/qualificação para o trabalho e várias alegam manter o relacionamento “por causa dos filhos”.
Sendo comum os homens demonstrarem arrependimento, especialmente se tiverem recebido algum tipo de intervenção, como em grupos reflexivos. E as mulheres, vítimas das agressões, manifestam remorsos por terem consentido os delitos e retomado a relação e, com ela, a volta das agressões, resultando em arrependimento, após participarem de grupos de acolhimento ou intervenções técnicas.
Algumas mulheres retornam ao relacionamento; outras não. Infelizmente, uma constatação, na sala de audiências, é que justamente as mulheres as quais foram vítimas de delitos mais graves, não se separam. Talvez pelo medo e até pela dependência financeira e emocional. Destaca-se a importância da intervenção técnica, tanto com os homens, como com as mulheres, pois é preciso evitar a manutenção do ciclo de violência.
Há, efetivamente, um cadastro dos processos relacionados à violência doméstica contra mulheres feito pelo Ministério Público, mas os dados não estão acessíveis à população, pela própria relação com a esfera da intimidade das pessoas envolvidas.
Entretanto, constatou-se que há dados levantados por outros órgãos que também atuam na rede de proteção às mulheres. Destarte, a Secretaria da Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul, desde 2012, realiza estatísticas, como também a Coordenadoria Estadual das Mulheres, em situação de violência doméstica e familiar.
A população feminina em Porto Alegre, segundo indicadores da Secretaria da Segurança Pública do Rio Grande do Sul, é de 755.664 mulheres. No ano de 2012 foram registradas, na capital gaúcha, um total de 9.447 ocorrências policiais relacionadas à Lei Maria da Penha, relativas à prática de crimes de ameaça, lesão corporal, estupro e feminicídio. Foram 9.052 registros no ano de 2013 e 8.775 em 2014. Os números mostram uma diminuição nas ocorrências policiais envolvendo esses delitos.
Foram analisados os dados estatísticos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, indicando quantas processos criminais foram julgadas no Estado, registrando-se, no ano de 2012 , 45.946 processos, com 42.885 réus julgados; no ano de 2013 iniciaram-se 51. 177, havendo sido julgados 42.977; no ano de 2014, foram 51.762 e julgados 48.210.
Entre os anos 2012, 2013 e 2014 em relação às absolvições e às condenações em processos envolvendo matéria criminal no Rio Grande do Sul, têm-se os seguintes dados: 2012, absolvições: 1.164, condenações: 851.
No ano de 2013, absolvições: 1.693, condenações 1.321 e, em 2014, absolvições: 2.704 e condenações: 1.747
As medidas protetivas, no período de 2012, 2013 e 2014, configuram um crescente número de concessões como demonstrado no gráfico abaixo, revelando a preocupação do Estado em relação à proteção e segurança para as mulheres vítimas de violência.
Os maiores ingressos de pedidos de medidas protetivas contra a mulher em situação de violência doméstica e familiar no Rio Grande do Sul são: Porto Alegre com 6.829; Canoas, 1.827; Viamão, 1.781; Caxias do Sul, 1.663; Pelotas, 1.550; Alvorada, 1.487; Santa Maria, 1.462; Gravataí, 1.460; São Leopoldo, 1.301 e Novo Hamburgo, 1.223.
O total de medidas protetivas aplicadas no ano de 2014 foi de 59.207, com maior índice a proibição de aproximação da ofendida, de familiares e testemunhas: 23.158; proibição de contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas: 23.105; afastamento do lar, domicílio ou local de convivência: 7.633; proibição de frequentação de determinados lugares: 2.906.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o advento e aplicação da Lei Maria da Penha, houve uma modificação na atitude das mulheres agredidas, que passaram a denunciar os crimes sofridos com maior frequência, revelando a mudança em seus sentimentos de impotência e humilhação diante de preconceitos de parte da sociedade.
Pela observação dos dados referentes aos casos, envolvendo violência doméstica contra a mulher da Secretaria de Segurança Pública e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e aos processos iniciados nos anos de 2012, 2013, 2014, pode-se afirmar que são números expressivos os relacionados a esse tipo de delito, corroborando as afirmações de que a violência doméstica sofrida pela mulher aponta para uma realidade preocupante. Apesar de o número de absolvições em processos judiciais ser maior do que as ações penais julgadas improcedentes, nos anos de 2012, 2013 e 2014, pode-se considerar expressivo o número de condenações aos agressores de mulheres nos processos julgados pelo 1º Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.
Houve um aumento anual do número de casos de medidas protetivas aplicadas, sendo estas muito frequentes, quando se trata de aplicação da Lei Maria da Penha, revelando-se como importantes ferramentas para proteção das mulheres vítimas de violência doméstica.
A violência doméstica e familiar contra a mulher fere os direitos humanos, mas ainda transita no imaginário coletivo como um crime comum, revelando uma cultura arraigada em conceitos que não privilegiam a posição feminina nos relacionamentos afetivos. Apesar das conquistas da Lei Maria da Penha, as relações entre homens e mulher, com frequência, não se dão em condições de absoluta igualdade.
Destaca-se a imperiosa necessidade de campanhas educativas e políticas públicas para o enfrentamento desse grave problema da violência doméstica contra a mulher, que atinge muitos lares, impedindo que essas vítimas possam viver com dignidade.
Informações Sobre o Autor
Helena Vian de Oliveira
Bacharel em Direito pela Universidade da Região da Campanha URCAMP e cursando Pós- Graduação em Direito e Processo do Trabalho na Instituição de Ensino Damásio Educacional