A Aplicabilidade da Lei Maria da Penha Para Travestis e Transexuais

THE APPLICABILITY OF MARIA DA PENHA LAW FOR TRAVESTIS AND TRANSEXUALS

 

CARNEIRO, Melyssa Inêz Silva[1]

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MELLO, Antonio Cesar[2]

 

RESUMO: A Lei nº 11.340/2006 representa o maior avanço no âmbito legal quanto a proteção direta das mulheres, uma vez que visa criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Sua elaboração fora motivada após uma análise crítica dos órgãos mundiais em respeito aos direitos humanos, os quais apontaram negligências do Estado brasileiro em relação à proteção dada as mulheres. Até antes da criação da Lei, por muitas vezes a vítima era orientada pelas autoridades públicas na perspectiva da simplicidade e economia processual, tornando-se incapaz de participar efetivamente da solução do conflito. A Lei Maria da Penha não tem só como objetivo punir os homens agressores, também age em prol da prevenção de agressões e proteção de mulheres que sofreram violência no âmbito doméstico, configurando um dos maiores instrumentos em favor de uma vida livre de violências nas suas mais diversas formas de apresentação. Ainda que esta Lei represente um grande avanço na proteção das mulheres, é nítido o erro material do legislador no art. 2º, ao utilizar-se do termo “mulher”, tendo em vista que no art. 5º da mesma Lei a violência doméstica e familiar é configurada a partir da ação ou omissão que forem baseados no gênero. Sendo assim, percebe-se a necessidade de melhoria na abrangência da Lei, prevista no art. 1º e ainda no art. 2º, visto que o termo utilizado não designa todas as pessoas que estão inseridas no gênero feminino, como as transgêneros e as travestis.

Palavras-chave: lei Maria da Penha, direitos femininos, inclusão social.

 

ABSTRACT: Law 11,340 / 2006 represents the greatest advance in the legal framework regarding the direct protection of women, since it aims to create mechanisms to curb domestic and family violence against women. Its elaboration had been motivated by a critical analysis of the world bodies in respect to human rights, which pointed out negligence of the Brazilian state in relation to the protection given to women. Even before the creation of the Law, often oriented in the perspective of simplicity and procedural economy, it made the victim incapable of effectively participating in the solution of the conflict. The Maria da Penha Law does not have as main objective only the punishment of aggressive men, but rather acts to prevent aggression and protect women who suffer domestic violence, forming one of the greatest instruments for a life free from violence in its most diverse forms of presentation. Although this Law represents a great advance in the protection of women, the material error of the legislator in art. 2, when using the term woman, considering that in art. 5 of the same Law, domestic and family violence is configured based on the action or omission based on the gender. Therefore, it is perceived the need for improvement in the scope of the Law, foreseen in art. 1 and still in art. 2, where the term used does not designate all persons who are included in the feminine gender, such as transgender and transvestites.

Keywords: Maria da Penha Law, women’s rights, social inclusion.

 

INTRODUÇÃO

O patriarcalismo se enveredou nas estruturas familiares desde os primórdios da humanidade, tendo sido a mulher colocada em posição subjacente aos homens desde então. Todavia, a luta por isonomia de direitos entre os sexos, a qual ganhou força nos anos 60, levou ao reconhecimento internacional o fato de que esta ideologia justificou ao longo dos anos inúmeras injustiças e ações violentas para com as mulheres, estimulando em diversos países a tomada de medidas que visassem a atenuação da discrepante desigualdade entre os gêneros (Dias, 2007).

Destarte, no ano de 1994 o Brasil assinou, na Convenção Interamericana – também denominada Convenção de Belém do Pará –  documento que visava prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, além de instituir, em agosto de 2006, a Lei nº 11.340/2006, consagrada como Lei Maria da Penha, servindo de instrumento jurídico para o combate a violência doméstica e familiar contra as mulheres, representando o principal marco desta luta constante (Azevedo e Vasconcelos, 2011).

Além do mais, a evolução política e sociocultural da humanidade trouxe visibilidade para questões por muitos anos negligenciadas. A distinção entre os conceitos básicos de gênero e sexo, assim como o desligamento entre eles introduziu o reconhecimento de fatores como: identidade de gênero, definida contemporaneamente como a percepção individual sobre si mesmo, entender-se como homem ou mulher independente do sexo biológico (macho ou fêmea); e ainda a expressão de gênero, determinada pela maneira com que o indivíduo se apresenta (comportamentos, vestimentas, atitudes) na sociedade (Lopes, Leite e Araújo, 2015).

Todavia, uma vez que Lei Maria da Penha se encontra inserida no microssistema legislativo previsto no art. 226, § 8º da Constituição Federal (1988), o qual prevê que o “Estado assegurará a assistência à família”, a Lei deixa de atender àquelas mulheres que estão fora do âmbito doméstico e familiar, perpetuando a visão patriarcal, assim como, não atendendo àquelas mulheres que não são biologicamente fêmeas, uma vez que a Lei não abrange diretamente o conceito de gênero e o Direito Penal não aceita interpretações. Diante do exposto, o objetivo deste trabalho é analisar a aplicabilidade da Lei Maria da Penha para mulheres transgênero, transexuais e travestis.

 

1.    BREVE HISTÓRICO

A Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) representa o maior avanço no âmbito legal quanto a proteção direta das mulheres, uma vez que, visa criar “mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, embasada na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Tilly, 2010).

A elaboração desta Lei foi motivada após uma análise crítica dos resultados obtidos com a criação dos Juizados Especiais Criminais, os quais objetivaram o equacionamento da violência contra a mulher. Até antes da criação da Lei 11.340/2006, os problemas relacionados à norma vigente, assim como as diversas barreiras em implantar uma nova maneira de lidar com conflitos, faziam com que, por muitas vezes, as vítimas fossem orientadas na perspectiva da simplicidade e economia processual, tornando-as incapazes de participar efetivamente da solução do conflito. Sendo assim, os movimentos feministas passaram a aderir um discurso no sentido de confrontar a ação destes Juizados Especiais, dando ênfase ao que chamavam de “banalização da violência” (Azevedo e Vasconcelos, 2011).

Segundo os movimentos em favor das mulheres, a banalização da violência se fazia nítida no momento da corriqueira prática penal, visto que durante a aplicação da pena e cumprimento de sentença, optava-se sempre por medidas alternativas, como as penas restritivas de direitos. Até então, as lesões corporais ocorridas no ambiente doméstico eram consideradas como delitos de menor potencial ofensivo e, desta forma, os magistrados tendiam a resolver o conflito de forma consensual, evitando a instalação do processo, o que tornou impune a violência contra a mulher (Dias, 2007).

Ainda segundo Dias (2007, p.8):

O excesso de serviço levava o juiz a forçar desistências impondo acordos. O seu interesse, como forma de reduzir o volume de demandas, era não deixar que o processo se instalasse. A título de pena restritiva de direito popularizou-se de tal modo a imposição de pagamento de cestas básicas, que o seu efeito punitivo foi inócuo. A vítima sentiu-se ultrajada por sua integridade física ter tão pouca valia enquanto o agressor adquiriu a consciência de que era “barato bater na mulher.

Diante do descaso frente aos maus tratos contra mulheres, associações feministas unidas ao Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) investiram em denúncias à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as quais, após três advertências consecutivas ao Brasil apontando a não observação do Estado brasileiro diante do compromisso assumido frente à comunidade internacional, no Pacto de São José da Costa Rica, apontando os erros de ineficácia judicial, a impunidade dos agressores e a impossibilidade das vítimas de terem uma reparação diante da violência sofrida. Tudo isso culminou na publicação da Lei Maria da Penha, consagrada com a história da vítima de tentativa de homicídio pelo seu ex-marido, que passou a ser símbolo da luta contra a impunidade aos agressores, Maria da Penha Maia Fernandes (Cunha e Pinto, 2011).

Esta lei não tem como principal objetivo apenas a punição aos homens agressores, visa também agir em prol de prevenir agressões e proteger as mulheres que sofrerem violência no âmbito doméstico, configurando um dos maiores instrumentos em favor de uma vida livre de violências nas suas mais diversas formas de apresentação. Anteriormente a Lei Maria da Penha, os crimes contra mulheres no ambiente doméstico eram tidos como crimes de menor potencial ofensivo, o que permitia ao agressor penas amenas e restritivas, amparados na Lei 9.099/95 (Azevedo e Vasconcelos, 2011).

Todavia, ainda que Lei Maria da Penha represente um grande avanço no sentido de proteger as mulheres contra a violência doméstica, o número de agressões continua sendo elevado. Um estudo realizado pelo DATASENADO, mostrou que a porcentagem de mulheres que foram vítimas de agressões no ano de 2015 foi de 56%, tendo aumentado significativamente no ano de 2017, onde o índice atingiu 71% (Datasenado, 2015).

Uma pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo revelou que, em média, 6,8 mulheres brasileiras já sofreram ao menos um episódio de espancamento durante a vida. Dentre estas, que declararam o episódio de violência, 31% relatou ter ocorrido no último ano. Diante dos dados, a Fundação estimou um mínimo de 2,1 milhões de mulheres espancadas ao ano no país, sendo 175 mil ao mês, 5,8 mil por dia, 243 a cada hora (Fundação Perseu Abramo, 2001). De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU, 2016), no Brasil, a taxa de feminicídios é de 4,8 a cada 100 mil mulheres, sendo o quinto maior índice no mundo, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS).

Diretamente proporcional foi o crescimento do índice de agressões a transexuais e travestis, sendo este crime maior em razão da omissão da justiça brasileira quanto aos direitos dessa classe. O projeto europeu Transgender Europe’s Trans Murder Monitoring (2012a), avaliou a incidência de assassinatos de pessoas transgênero em todo o mundo ocorridos entre os anos de 2008 a 2011, o estudo demonstrou 816 assassinatos de pessoas transgênero em 55 países.

Outro fato também levantado pela Transgender Europe’s Trans Murder Monitoring (2012b), foi que, a maior parcela dos assassinatos de mulheres (cis ou transgênero) e travestis ocorreram em espaços públicos. A pesquisa aponta que um dos principais fatores para que esses assassinatos ocorram nas ruas é que grande parte dessas vítimas trabalhavam como profissionais do sexo, visto que tal profissão tão marginalizada é o principal meio de trabalho de mulheres transgênero e travestis, as quais historicamente são excluídas do sistema educacional e laboral do país.

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O meio utilizado para esses crimes também merece destaque, uma vez que a execução por arma de fogo, opção mais comum, indica planejamento do ato por parte do autor da ação. Vale ressaltar, ainda, a presença de apedrejamentos (5,15%) no ranking, um método extremamente arcaico utilizado para punição nos tempos passados. O Brasil é o país onde mais foram reportados casos de assassinatos de transexuais e travestis (101 casos em 2011), seguido pelo México (33 casos) e a Colômbia (18 casos).

 

2.    COMUNIDADE TRANS E A LUTA POR DIREITOS

A visibilidade sócio-política dada às pessoas transgêneros e transexuais pode ser vista como algo recente e em construção. A concessão do direito ao processo de transgenitalização facilitado pelo Estado e a desvinculação da identidade trans do âmbito das patologias psiquiátricas proporcionaram a saída destas classes das margens sociais, onde por muitos anos estiveram esquecidas ou secundarizadas. Sendo assim, cabe aqui evidenciar a evolução através da luta por direitos desta classe, a fim de fundamentar a necessidade por maior assistência judiciária (Transgender Europe’s Trans Murder Monitoring, 2012a).

Ao analisarmos as mobilizações sociais contemporâneas, pode-se inferir que a maior parcela das reivindicações estão embasadas no processo de construção e evolução da identidade da classe que pede por maior atenção social. Em geral, a luta dessas classes está voltada para a garantia de direitos, a alteração da opinião pública e consequentemente a desnaturação de discriminações (Tilly, 2010; Niederberger, 2015).

A organização brasileira pioneira na organização política de travestis foi estruturada em 1992, no Rio de Janeiro, denominada Associação das Travestis e Liberados do Rio de Janeiro (ASTRAL). O período em que esta associação foi organizada está associado a grande demanda por maior segurança e combate a violência, praticada pelos próprios policiais, nos pontos de prostituição na cidade, assim como na luta contra o vírus da imunodeficiência humana (Carvalho e Carrara, 2013).

Todavia, a segregação entre os conceitos de identidade travesti e identidade de gênero “transexual” só foi reivindicada anos mais tarde, em 1995, a partir da criação do Grupo Brasileiro de Transexuais (GBT), seguido pelo Movimento Transexual de Campinas (MTC), no ano de 1997. Esta cisão entre os conceitos foi pautada na necessidade de maior atenção à reestruturação do discurso médico-psiquiatra, o qual determinava até então a necessidade de realização de procedimentos cirúrgicos e terapias hormonais para a devida redesignação sexual. Sendo inserido na sociedade o termo transgênero e a expressão “identidade de gênero”, a fim de delimitar a relação entre o gênero e a identidade da pessoa (Carvalho e Carrara, 2013).

Os movimentos sociais de pessoas trans estimularam estudiosos a direcionarem atenção sobre a questão do gênero e da sexualidade. Desta forma, foi possível ter um grande avanço no âmbito médico-psiquiatra e observou-se que o sofrimento encontrado nas pessoas trans não tem relação com uma condição patológica a qual a pessoa está condicionada, mas sim com a condição de vulnerabilidade a violência e discriminação social que esta classe se encontra (Robles et al., 2016; Reed et al., 2016). No Brasil, esta vulnerabilidade é nítida devido aos altos índices de atos violentos contra estas pessoas e ainda, a alta taxa de suicídio evidencia o quão discriminada e marginalizada esta classe está (Jesus, 2014).

Contemporaneamente, os movimentos em prol das pessoas trans convergem seus interesses no sentido de combater a violência e os atos discriminatórios praticados constantemente pela sociedade a partir do reconhecimento da classe e suas demandas, principalmente, no que tange a identificação por nome e sexo em harmonia a identidade de gênero. Ainda que tenham sido adotadas políticas públicas que assegurem a alteração do nome civil em alguns documentos de identificação oficiais, a fim de atenuar constrangimentos causados por portarem um nome discordante até mesmo do próprio reconhecimento, estas medidas são nitidamente ineficazes, haja vista que elas não preveem a alteração junto ao registro civil, de onde partem os documentos oficiais de identificação de maior relevância no país, e ainda, não se estende a todas as esferas pública e privada (Brasil, 2013; Bento, 2008).

Carrara e Vianna (2006), apontam ainda a vulnerabilidade social que as travestis estão inseridas, uma vez que, a histórica marginalização escolar e laboral desta classe a sujeita a situações mais próximas da prostituição e exposição pública a homofobia. Os autores apontam ainda a discriminação, a violência e exclusão social como determinantes da extrema vulnerabilidade social em que esta classe se encontra.

 

3.    A LEI 11.340/2006 NO CONTEXTO TRANS
O efetivo reconhecimento das pessoas travestis e transgêneros tem caráter de suma importância na autenticidade dos direitos destas classes. Neste sentido, em concordância com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foi expedido aos 28 dias do mês de abril do ano de 2016, editado pela Presidente da República na época, o decreto de nº 8.727, o qual “dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional”. O objetivo deste decreto é denominar o nome social para travestis e transexuais, de modo que possam ser identificadas socialmente pelo mesmo e assim terem seu gênero respeitado, sem necessidade de ter relação com o sexo biológico.

O decreto traz as definições de nome social e identidade de gênero em seu parágrafo único do art. 1º:

I – nome social – designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida; e

II – identidade de gênero – dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como isso se traduz em sua prática social sem guardar relação necessária com o sexo atribuído no nascimento.

Todavia, ainda que este instrumento resguarde estas classes de constrangimentos e discriminações, não as respalda momento que se faça necessário a utilização do nome civil, como previsto nos arts. 3º, 4º e 5º do decreto, ou ainda observa quanto a normatização do uso do nome em instituições privadas:

Art. 3º Os serviços dos sistemas de informação, de cadastros, de programas, de serviços, de fichas, de prontuários e congêneres dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional deverão conter o campo nome social e destaque, acompanhado do nome civil, que será utilizado apenas para fins administrativos internos. (Vigência)

Art. 4º Constará nos documentos oficiais o nome social da pessoa travesti ou transexual, se requerido expressamente pelo interessado, acompanhado do nome civil.

Art. 5º O órgão ou a entidade da administração pública federal direta, autárquica e fundacional poderá empregar o nome civil da pessoa travesti ou transexual, acompanhado do nome social, apenas quando estritamente necessário ao atendimento do interesse público e à salvaguarda de direitos de terceiros.

Ainda no sentido de proteção às travestis e transexuais, o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Proteção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT), órgão administrado pela Secretaria dos Direitos Humanos, aquiesceu a resolução nº 11/2014, a qual estabelece a inserção de campos para explicitar a orientação sexual, a identidade de gênero e o nome social em boletins de ocorrência que tenham sido expedidos pela autoridade policial. Esta resolução visa legitimar a identificação das travestis e transexuais diante a sociedade e ainda, auxilia os órgãos competentes a entender a essência das barbaridades nos crimes contra a comunidade LGBT, legitimando as estatísticas, levando a conexão direta entre medidas protetivas e a identidade de gênero.

Os elevados índices de violência contra travestis e transexuais, muitas das vezes tendo a morte como desfecho, evidencia a necessidade de maior proteção a essas mulheres, de modo que a sociedade e o âmbito jurídico as reconheça a partir de seu gênero, equiparando a proteção dada as mulheres biologicamente declaradas. Neste sentido, há de se reivindicar o erro material contido no art. 2º da Lei 11.340/2006 assim como a não abrangência a todas as mulheres, previsto nos demais artigos desta Lei, os quais impedem que travestis, transgêneros e demais mulheres, que não estejam inseridas no ambiente doméstico e familiar, gozem dos benefícios protetivos de forma integral incumbidas ao Estado Democrático de Direito (Goiás, 2011).

Destarte, vale salientar o que a Lei 11.340/2006 traz em seus artigos 1º, 2º e 5º:

Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais retificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (Vide Lei complementar nº 150, de 2015).

Ao analisar os artigos supracitados, pode-se observar que o art. 1º direciona a Lei 11.340/2006 àquelas mulheres que estejam inseridas no ambiente doméstico e nas relações familiares, não equiparando de direitos àquelas que sofrerem violência em ambiente externo a ele, ou que não sejam consideradas mulheres. No art. 2º é nítido o erro material do legislador, ao se utilizar do termo mulher, tendo em vista que no art. 5º da mesma Lei, a violência doméstica e familiar é configurada a partir da ação ou omissão que forem baseados no gênero. Sendo assim, percebe-se a necessidade de melhoria na abrangência da Lei, prevista no art. 1º e ainda no art. 2º, em que o termo utilizado não designa todas as pessoas que estejam inseridas no gênero feminino, como as transgênero e as travestis (Brasil, 2006).

Atualmente, há algumas decisões do judiciário que estendem a proteção concedida às mulheres pelo instrumento da Lei 11.340/2006, às transgêneros e a casais homoafetivos em casos de violência doméstica. Como na decisão da magistrada Ana Claudia Veloso sobre o processo 201103873908, na comarca de Anápolis, estado de Goiás (2011, s.p.):

Desta forma, apesar da inexistência de legislação, de jurisprudência e da doutrina ser bastante divergente na possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha ao transexual que procedeu ou não à retificação de seu nome no registro civil, ao meu ver tais omissões e visões dicotômicas não podem servir de óbice ao reconhecimento de direitos erigidos à cláusulas pétreas pelo ordenamento jurídico constitucional. Tais óbices não podem cegar o aplicador da lei ao ponto de desproteger ofendidas como a identificada nestes autos de processo porque a mesma não se dirigiu ao Registro Civil de Pessoas Naturais para, alterando seu assento de nascimento, deixar de se identificar como Alexandre Roberto Kley e torna-se ‘Camille Kley’ por exemplo! Além de uma inconstitucionalidade uma injustiça e um dano irreparáveis! O apega à formalidades, cada vez mais em desuso no confronto com as garantias que se sobrelevam àquelas, não podem me impedir de assegurar à ora vítima TODAS as proteções e TODAS as garantias esculpidas, com as tintas fortes da dignidade, no quadro maravilhoso da Lei Maria da Penha.

Neste sentido, observa-se a concordância da magistrada em agir em prol da segurança e proteção daquelas que estejam inseridas na sociedade como gênero feminino, independente de sexo biológico, protegendo àquelas que sejam que foram desamparadas pelo legislador de modo a equiparar o respeito entre todas essas mulheres. Outro fato observado pela decisão pioneira da magistrada foi o fato de ser irrelevante a alteração no registro civil da vítima, por ser irrelevante este fato diante da expressão de gênero da mesma. Este fato também foi observado pela 1ª turma criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ – DF) sobre o processo 20171610076127:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO CONTRA DECISÃO DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. DECLINAÇÃO DA COMPETÊNCIA PARA VARA DOMÉSTICA. DECLINAÇÃO DA COMPETÊNCIA PARA VARA CRIMINAL COMUM. INADMISSÃO DA TUTELA DA LEI MARIA DA PENHA. AGRESSÃO DE TRANSEXUAL FEMININO NÃO SUBMETIDA A CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO SEXUAL (CRS). PENDÊNCIA DE RESOLUÇÃO DE AÇÃO CÍVEL PARA RETIFICAÇÃO DE PRENOME NO REGISTRO PÚBLICO. IRRELEVÂNCIA. CONCEITO EXTENSIVO DE VIOLÊNCIA BASEADA NO GÊNERO FEMININO. DECISÃO REFORMADA. 1 O Ministério Público recorre contra decisão de primeiro grau que deferiu medidas protetivas de urgência em favor de transexual mulher agredida pelo companheiro, mas declinou da competência para a Vara Criminal Comum, por entender ser inaplicável a Lei Maria da Penha porque não houve alteração do patronímico averbada no registro civil. 2 O gênero feminino decorre da liberdade de autodeterminação individual, sendo apresentado socialmente pelo nome que adora, pela forma como se comporta, se veste e se identifica como pessoa. A alteração do registro de identidade ou a cirurgia de transgenitalização são apenas opções disponíveis para que exerça de forma plena e sem constrangimentos essa liberdade de escolha. Não se trata de condicionantes para que seja considerada mulher. 3 Não há analogia in malam partem ao se considerar mulher a vítima transexual feminina, considerando que o gênero é um construto primordialmente social e não apenas biológico. Identificando-se e sendo identificada como mulher, a vítima passa a carregar consigo estereótipos seculares de submissão e vulnerabilidade, os quais sobressaem no relacionamento com seu agressor e justificam a aplicação da Lei Maria da Penha à hipótese. 4 Recurso provido, determinando-se prosseguimento do feito no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com aplicação da Lei Maria da Penha.

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Sendo assim, fica explícito que a aplicabilidade da Lei 11.340/2006 para as pessoas de gênero feminino, independente do sexo biológico, depende meramente da atenção aos atos dada pelo juizado, urgindo então a necessidade de se estabelecer medidas diretas que as assegure de quaisquer interpretações.

Para Jayme (2001) é de grande importância que a Lei 11.340/2006 não se restrinja apenas a prevenir e punir os atos de violência doméstica, mas sim que se amplie a fim de abranger todas as pessoas de gênero feminino, admitindo inclusive a sua aplicação por analogia para as travestis e transgêneros, que sofram com a violência, passando a ser referência no ordenamento jurídico brasileiro na luta pela segurança das mulheres.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei 11.340/2006 se apresenta como um dos maiores avanços na luta das mulheres contra a violência motivada pelo gênero. Encontra-se a explicação para estes atos de crueldade nos anos em que o sistema patriarcal regeu as famílias e a sociedade em geral. Todavia, pode-se perceber ao longo dos anos uma melhora na percepção quanto ao espaço e função dos indivíduos na sociedade, considerando-se assim as diferenças e evoluindo no sentido de respeitá-las.

Ainda que afirme uma grande evolução nos direitos e em respeito às mulheres, a Lei em questão ainda deve seguir o curso evolutivo, permitindo assegurar todas aquelas que não foram resguardadas por este instrumento do judiciário brasileiro. Garantir o direito fundamental a vida, independente de sexo, orientação sexual ou ambiente em que o desrespeito acontece.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Acadêmica de Direito da Faculdade Católica do Tocantins – Palmas/TO. E-mail: [email protected]
[2] Graduado em Direito pela Universidade Ritter dos Reis( Canoas-RS).Especialista em Direito e Estado pela Universidade do Vale do Rio Doce (Governador Valadares – MG).Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas-Gerais (Belo Horizonte). Mestre, em Ciências do Ambiente pela Universidade Federal do Tocantins-UFT. Professor do Centro Universitário Luterano de Palmas e da Faculdade Católica do Tocantins. E-mail: [email protected]

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