Resumo: Uma das égides presentes na sociedade humana, destes tempos imemoriais, é o pensar filosófico; que há muito tem se voltado para a seara jurídica, ao estudar, criticar e padronizar princípios, conceitos e procederes sociais, normativos e jurídicos. A aplicação filosófica no Direito almeja, sobretudo, interagir com este, mediante uma abordagem analítica, sob a ótica filosófica, dos principais elementos que o integram e de que ele se reveste em sua lide social. A importância disto encontra fulcro magno, no fato de que, na contemporaneidade, o Direito ser algo absolutamente valorizado, sendo que a Justiça representa o ideal de toda e qualquer sociedade humana pós-moderna.
Palavras-chave: Filosofia. Direito. Justiça. Filósofos.
1 INTRODUÇÃO
Os principais aspectos abordados pela Filosofia no Direito são: os métodos de produção, a Justiça, a propriedade, a liberdade, a interpretação e a aplicação jurídica das normas e princípios, a igualdade, a função do Direito, e o Direito propriamente dito; observando padrões, escrutinando razões, desvendando interesses, estabelecendo comparações, e, eventualmente, criando prognósticos futuros. Contudo, o objetivo primaz da aplicação filosófica no Direito, é conduzir o estudante e o operador do Direito a um ponderar reflexivo, acerca destas questões, levando em consideração sua moral, a ética social, as leis, a justiça, e a equidade deste e dos atos por este tutelados, reprovados, ou executados; no efetivo exercício do ideal de Justiça.
Simmonds apud Bunnin (2002, p. 389), afirma que “a Filosofia do direito se situa na intersecção (sic) desses problemas e procura formar uma compreensão coerente da natureza do direito, a fim de resolvê-los. Alguns problemas são de um tipo que pode ocorrer a qualquer pessoa que pense, enquanto outros decorrem da compreensão técnica e da experiência dos advogados”. Para tal, a Filosofia aplicada ao Direito evoca os dizeres de Paulo Nader (2003, p. 12), segundo quem esta se emprega, por exemplo, a analisar os “[…] elementos constitutivos do Direito; a indagação se este compõe-se de norma e é a expressão da vontade do Estado; se a coação faz parte da essência do Direito; se a lei injusta é Direito e, como tal, obrigatória; se a efetividade é essencial à validade do Direito, etc.”.
Ante tal perspectiva, e dotada de tão nobres acepções, a aplicação da Filosofia no Direito é um importante recurso no pensar jurídico e na aplicação do Direito, que faz com que este se aperfeiçoe inexoravelmente, atingindo aspirações cada vez mais superiores e importantes para as sociedades humanas; assim como culmina por propiciar um aprimoramento pessoal ao indivíduo, tornando-o mais crítico e observante ao bem-estar pessoal e social; fazendo com que o ditame ‘JUSTITIA SOCIETATIS FVNDAMENTVM – A Justiça é o Fundamento da Sociedade – se mostre imaculadamente verdadeiro.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 MITOLOGIA GREGA
Mito advém da palavra grega mythos (μῦθος), cuja tradução é “discurso” ou “narrativa”, indiferentemente do julgamento de veracidade que lhe possa ser atribuído; e está intimamente ligado à oralidade, dado que a Grécia possuía uma cultura oral, onde as histórias eram disseminadas entre as gerações através do canto do aedo (ἀοιδός). Mitologia é formada pelas palavras mythos e logos (λόγος); sendo, portanto, a aplicação do logos sobre o mythos, ou seja, uma “racionalização” e “sistematização” destes. Isto se altera no século XVIII com a proposição de Friedrich Schelling de uma interpretação teutegórica dos mitos. A partir de então, os mitos são analisados tendo por alicerce seus significados intrínsecos, e não mediante uma perspectiva dotada de alegoria externa. Este ideal é, ainda, aperfeiçoado por Ernst Cassirer, que afirma que o mito é algo concreto, por se relacionar com conteúdos sensíveis através de imagens, existindo unidade entre objeto e conceito.
A última evolução neste tocante foi a proposta por Claude Lévi-Strauss e Jean-Pierre Vernant, que deram gênese à corrente estruturalista, no séc. XX. Surge ai a proposição de se almejar a convergência do pensamento mítico ao racional; visando perceber e compreender a logicidade interna do mito, mediante a redução da narrativa mítica a mitemas, pequenas estruturas essenciais, irredutíveis e imutáveis. Apesar de o mito ser um conceito não definido de modo preciso e unânime, é elemento integrante de uma realidade antropológica fundamental, por traduzir, por meio de símbolos o modo como um povo ou civilização entende e interpreta a existência, sobretudo a vida em sociedade, e é daí que advém sua importância para o Direito.
Tomando por lastro a mitologia grega, em uma análise filosófico-mitológica, observa-se, ab initio, uma das mais dignas – embora primitiva – constatações sociais, externada pelo adágio “do caos à ordem”. Isto decorre do mito de Caos (Χάος), primeira divindade a surgir no universo, sendo uma força geradora. Avançando nas gerações divinas, observa-se o início da explicação grega para o Direito, na figura dos titãs, e a interrelação essencial entre quatro deles: Cronos (Κρόνος), Têmis (Θέμης), Febe (Φοίβη), e Mnemósine (Mνημοσύνη).
Nota-se, neste contexto, que Têmis, é a primeira personificação – deveras arcaica – da Justiça, é a titânida guardiã dos juramentos humanos e da lei, sendo cediço invocá-la nos julgamentos perante os magistrados; Têmis empunha a balança, com que equilibra a razão com o julgamento. A relação de Têmis com Febe , se dá mediante o fato de esta ser conhecida como “brilhante” e “profética”, tal como a justiça deve ser em seu transcorrer; além do que, Febe era uma antiga deusa da profecia, dos mistérios e segredos, bem como a personificadora de uma forma primordial de medo – cuja evolução se dá na figura de Fobos (φόβος) –. Para o transcorrer da Justiça, faz-se preciso a lembrança dos eventos, e o evitar do esquecimento dos fatos, daí o envolvimento desta com Mnemósine. Contudo, a memória é inversamente proporcional ao tempo, dado que quanto mais este transcorre, em seu inexorável fluir, mais esta se esvai no definhar do oblívio.
Em uma notável evolução do ideal de Justiça, observa-se que esta passa a ser representada por Diké (Δίκη), que também é a deusa dos julgamentos, cuja deusa correspondente na mitologia romana é Iustitia. É ela que com sua destra empunha uma espada, que representa a força – recurso inseparável do Direito em seu jus puniendi –; e na sinistra sustenta uma balança de pratos – cuja significação é a isonomia almejada pelo Direito –, com o fiel em desequilíbrio; sendo que só é obtida sua retidão (de recto) após a realização da justiça, ou seja, quando do “ison” (equilíbrio da libra) –. Nota-se então, que para os gregos, o Direito se relacionava à igualdade; além do que é representada descalça – símbolo de sua humildade – , e com os olhos bem abertos – significando seu anseio pela verdade –. A Iustitia romana, por sua vez, era representada de forma semelhante, porém com os olhos vendados – caracterização de sua imparcialidade, onde todos são iguais perante a lei –; e calçada de sandálias, que externavam a nobreza da Justiça.
Com o ideal de Justiça, ressaltado na mitologia grega, destacam-se ainda Atena (Αθηνά) e sua mãe Métis (Μῆτις). Isto se dá, pelo fato de a Justiça, tanto no período arcaico quanto na contemporaneidade, evocar, inequivocamente, certa dose de prudência e astúcia – representadas por Métis –, que geram a sabedoria – Atena –, que é imprescindível para a correta e plena aplicação das leis na obtenção da Justiça.
A compreensão, mesmo que incipiente destes ideais de Justiça, que embora tenham emergido entremeados a mitos e em um período deveras arcaico, apresentam aplicabilidade atualmente; é requisito indispensável para se ter uma visão mais apurada do que os filósofos clássicos almejavam expressar em suas ponderações, e extrair daí a essência da aplicação da Filosofia no Direito.
2.2 FILÓSOFOS CLÁSSICOS: SÓCRATES, PLATÃO E ARISTÓTELES – SURGIMENTO DA FILOSOFIA MORAL
O pensamento socrático, pilar da Filosofia clássica grega, e um “divisor de águas” em toda a Filosofia, tem sua origem em uma crítica à mudança do ethos – comportamento/costumes – que se operou em Atenas. Para se estabelecer uma compreensão, deve-se remeter ao gatilho disto. Esta mudança se deu com o fim das Guerras Médicas entre gregos e persas, onde esses venceram na Batalha de Salamina, e mantiveram a Liga de Delos; tendo ai uma forma de pré-globalização arcaica, onde Atenas se torna o centro do mundo antigo, gerando uma série de sistêmicas mudanças comportamentais em seus habitantes. Neste contexto, o rei, que detinha os poderes centrados em si e em sua vontade, dá lugar à lei – que este executava –, para se estabelecer credibilidade, igualdade, confiança e segurança às relações mercantis. É neste âmbito, também, que surge o princípio jurídico-contratual entre “iguais”; e onde desponta o alvo das ponderações e críticas socráticas, a corrupção.
Esta corrupção advém do fato de o ideal comunitário se ver despojado de seu papel primeiro, sendo relegado a plano de fundo, pela política. Nesta perspectiva, onde imperam a falta de interesse, e a aversão de uma minoria elitizada frente aos interesses de uma maioria, Sócrates volta seu pensamento para o que Mosca (1896) explicitaria, ao dizer que “a elite cumpre todas as funções públicas, monopoliza o poder e goza de vantagens que a elas estão anexas; enquanto as massas são dirigidas e reguladas pela primeira, de modo mais ou menos legal ou de modo mais ou menos arbitrário e violento […]”.
Mediante sua crítica, Sócrates introduz a ética, a educação, a virtude e a obediência como valores imprescindíveis para a sociedade. A ética socrática foi empregada, no começo, para rechaçar os sofistas e seus sofismas; tornando-se um instrumento de impugnação ao despotismo das palavras, e à corrupção dos homens e da sociedade. Um dos princípios instituídos por Sócrates é a Maiêutica; que se caracteriza pelo estabelecimento de um dialogar, cujo objetivo é que o “adversário” entre em contradição, lançando-se, assim, dúvidas sobre suas palavras, e erradicando sua teoria. Nota-se que na Maiêutica se emprega certa dose de ironia – “ironia socrática” – e é ela a responsável pelo denominado “Parto de Ideias”, que possui um relevante papel na vida social e, sobretudo, na seara jurídica; dado que para Sócrates “todo erro é fruto da ignorância, e toda virtude é conhecimento”, razão pela qual o homem deve recorrer à Maiêutica, para gerar novas ideias e abdicar das obsoletas, torpes e falsas, obtendo um conhecimento ético e um enaltecimento social.
Deste modo, o homem em sua vida social e em seu anseio pela Justiça almeja sempre a paidéia – educação –, que é a maior areté – virtude –. Para, contudo, se ter esta educação, faz-se mister o abdicar de preconceitos e falsas verdades; o que Sócrates coloca ressaltando as inscrições do Oráculo de Delfos, e que são um estandarte de sua Filosofia “Gnoûte autós” – Nosce te ipsum (lat.) – que é parte do lema do referido oráculo “Ó homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo.”. Esta expositiva de Sócrates decorre, de ele defender que a sabedoria de um homem é limitada pela sua própria ignorância, sendo que ao conhecer melhor a si mesmo, o homem pode compreender melhor o mundo. Contudo, para sanar isto, faz-se necessário o reconhecer o desconhecimento; para que ocorra a abertura para a ponderação e a aquisição de novos saberes. Daí surge sua célebre epígrafe “Só sei que nada sei”.
A Ética Socrática, reside, portanto, no conhecimento e na felicidade; pois é dotada de significação de conhecimento, e, com a prática de um ato, qualquer que seja, julga-se estar realizando algo que culmine em felicidade; mesmo que isto seja uma inverdade induzida por fatores externos. Sócrates alega ainda, que a Ética sobrepuja a Moral; tal como o coletivo demanda maior interesse que o individual, sendo que clama tanto pela observância da lógica, quanto pelo caráter individual de seu possuidor. Deste modo, a Ética Socrática não se atém puramente à observância da lei e ao respeito mútuo, mas prima pela verdade, pela virtude e pela Justiça; desaguando no Summum Bonum. Com esta vertente filosófica, Sócrates intenta a abnegação da corrupção vigente, e a implantação de um sistema de “meritocracia”, onde cada um seria reconhecido por seus méritos, como atualmente ocorre com os concursos.
Sócrates atenta ainda para o fato de que se deve ter uma obediência irrestita às leis – que são, para ele, princípios inescusáveis, da obrigação do cidadão para com o Estado e para com a sociedade –, razão pela qual aceitou sua injusta condenação à pena capital; do mesmo modo que sua ética e moral o levaram a se recusar a abdicar a seus princípios, posto que ele apregoava ser preferível a morte à desonra. Deste modo, Sócrates valeu-se de seu próprio exemplo para mostrar, não apenas o poder titânico da Justiça, mas para expor a verdade acerca do justo e do injusto; posto que a lei moral inerente a cada ser humano, unilateral, autônoma, interior e não dotada de coercitividade, pode impor seu julgo crítico sobre a justiça ou injustiça de uma lei devidamente positivada – mesmo que não perpasse para o plano prático, para não ferir a legislação política–.
Observa-se, sem muito esforço, que boa parcela do pensamento socrático encontra campo atualmente, sobretudo no tocante ao Direito, como a ética e moralidade que lhe são inerentes, a observância à lei, o despojamento de preconceitos, a busca pela verdade, o ideal de Bem Comum, e o fomentar de novas ideias. Nota-se, também que Sócrates exerceu louvável influência no pensamento de seu discípulo Platão; que incorpora o idealismo, as virtudes e a transcendência ética à Filosofia.
A submissão do indivíduo ao poder do Estado vê seu esboço na Filosofia platônica, segundo a qual, como o indivíduo é imperfeito, deve se submeter ao julgo estatal, responsável pela felicidade e realização de todos os seus membros; para o que necessitava exercer domínio sobre todas as atividades humanas. Para este filósofo, as leis são uma forma de se pautar as condutas humanas, de forma que este trabalhe para o Bem Comum; tendo um cunho educativo. Deste modo, o Estado tem um papel de educador, que exerce domínio, mas mantém ainda a individualidade e a personalidade dos “homens livres”.
O marco da Filosofia de Platão, contudo, é o chamado “Mundo das Ideias”, segundo o que o mundo físico é um mero, dúbio e nebuloso esboço de uma “ideia viva”, detentora de uma realidade transcendental. A importância disso no Direito se revela mediante este ponderar acerca das intenções dos sujeitos de uma relação jurídica, do ideal imaginário deles, e não apenas da concretude dos atos praticados; podendo-se considerar isto como o embrião do “dolo”,“culpa”,“boa fé”, e “má fé”. Platão destaca ainda o papel da prudência – phrónesis –, alegando que o sábio era aquele que agia segundo ela, e de acordo com as potencialidades de seus conhecimentos; fator este evidente na prudência dos magistrados e do Direito, constituindo também um ensaio do que séculos depois se tornará a “presunção da inocência”. Ele institui, também, a verdade como “o argumento definitivo” e irrefutável.
O fundador da Academia lança também as sementes daquilo que Foucault irá abordar em 1975. Ele institui que as penas, muito antes de serem uma forma de punir o infrator, é uma forma de “depurar” a sociedade, apartando delas aqueles indivíduos que violam o que esta sociedade, por meio de suas leis, considera como “sagrado”. O conceito de justo para Platão é dotado de suma importância, pois para ele, ser justo é dotar “o outro”, dos mesmos direitos, superando a hipocrisia do individualismo; e, portanto, é mais importante praticar a Justiça do que recebê-la. Embora a Justiça se mostre como as ações condizentes com as leis, ela é muito mais ampla, não se limitando unicamente a este conceito; sendo norteadora do Direito e sendo por ele norteada, ao passo que Justiça é cumprir aquilo que é Direito, e Direito é aquilo que é Justo.
N’A República, Platão hasteia ainda que a Justiça é um ideal de igualdade, onde cada um vê assegurado aquilo que lhe é garantido, esboçando uma universalidade harmônica; sendo que a Justiça é o compromisso do cidadão para com a sociedade, e desta para com este. A Justiça, as leis e o Direito deixam, de ser algo passível de obediência inconsiderada, e passam a ser medidas impostas ao homem, fundadas em reflexões de igualdade e doutrinação dos próprios cidadãos, dotada de subjetividade consciente da ética e da moral; sendo, portanto, virtudes universais que asseguram a manutenção da vida em sociedade, do progresso e da ordem. É digno de se assinalar que tais ideias filosóficos vigoram ainda nos dias de hoje, embora indiscutivelmente mais elaborados e “lapidados”.
Aristóteles, foi discípulo de Platão, e é, sem dúvida, um dos mais expressivos e prolíficos filósofos do mundo; sendo considerado o sistematizador do pensamento ocidental. Seu tributo inicial, tanto para a Filosofia e para o Direito, foi a crítica aplicada ao estudo dos problemas e à ponderação das diversas opiniões de seus antecessores e contemporâneos. Ele diverge de seu preceptor, ao abolir o dualismo, e impor um realismo moderado e um espírito analítico que se atenha aos fatos, abdicando o idealismo por meio da reflexão e da ação. Para ele, ainda, o Direito não deve ser definido a partir da ideia de Justiça, mas sim a Justiça deve ser decretada em função do Direito; que se torna, por sua vez, objeto desta.
O Estagirita dá princípio, ainda, à importância do método, como expôs em sua Lógica – Analytika –; por meio do qual o conhecimento humano se encontra apto a desvendar a ideia ou fato oculto no objeto em estudo. Ele interpõe ainda, a ética, como elemento de aplicação jurídico-social. Ética esta que, municiada com a prudência, a experiência e os costumes, é imprescindível para um filosofar que culmine com a Justiça; por abarcar as virtudes morais, alicerçadas na vontade, e as intelectuais, fundadas na razão. Abstrai-se então que o propósito de toda ação moral é a Justiça, e que todas as ações intelectuais visam a verdade. Assim, stricto senso, a Justiça é uma virtude que impele à igualdade, enquanto que, latu senso, é o exercício de todas as virtudes.
Ao se adentrar no saguão das virtudes, nota-se o que O Fundador do Liceu quis expressar com seu mesótes – justo meio ou caminho do meio –, ao se perceber que todas as virtudes descritas encontram vícios correspondentes; tanto por excesso, quanto por falta da virtude que se sustenta entre ambos; v.g. a coragem que pode resultar em temeridade ou covardia, ou a amizade que pode se tornar condescendência ou enfado. O homem íntegro, deve, portanto, se pautar sempre no meio deste caminho, sendo o fiel, entre os dois pratos desta “balança comportamental da vida”. Quanto à Justiça, além ser a soma das virtudes, é também uma delas, onde seus vícios, por excesso e por falta caracterizam o injusto.
Fazendo um breve adendo acerca da pessoa, aplicadora e submissa ao Direito, Aristóteles discorre ainda sobre a importância do “Eu”; ao alegar que ele é a soma de dois elementos distintos e correlacionados, a ipseidade, que é o caráter individual do ser, e “O Outro”, que é aquilo que o outro – os outros indivíduos com os quais se relaciona – atribuem a você; tal como as duas esferas organizacionais da sociedade civil proposta por Hegel, a particular e a universal, onde o juízo do outro é importante por ser uma particularidade aferindo outra, o que gera um crescimento da ipseidade. – A partir daí, Aristóteles fornece uma nova posição acerca dos trajes rituais, da oratória, da capacidade e desenvoltura dos operadores do Direito. Além de ser uma forma de se demonstrar respeito pela Justiça em si, é uma forma de influenciar, mesmo que indiretamente, à formação de uma “boa imagem”, o que pode ser determinante em um tribunal –.
Retomando desta breve digressão, nota-se que a Justiça, é uma virtude que necessita ser constantemente praticada, na forma de um exercício político, e que integra um hábito detentor de existência potencial, mas que requer desenvolvimento. O Estagirita diz ainda que, para que a prática da Justiça seja, de fato, justa e virtuosa, deve atender a três requisitos: deve-se ter consciência na justiça do ato; o animus de agir deve advir da própria ação; e a ação deve transcorrer com inabalável e irrefreável certeza da justeza do ato.
A equidade é outro ponto abordado pela Filosofia aristotélica, que disciplina que àquele à quem for dada a função de julgar, que seja equânime, agindo de forma ética e racional na aplicação da Justiça. Cumpre-se salientar que o equo não é o justo definido na lei, tampouco o advindo da interpretação humana desta; mas sim uma forma corretiva do justo legal. A equidade se faz necessária dado o fato de a lei se apresentar de forma genérica, e, haver casos em que a mera aplicação de seus dispositivos, sem a devida adequação isonômica às pormenoridades do caso que se apresenta, constitui uma violação do princípio de justo, incluindo o justo legal; sendo, a equidade, portanto, como disposto por Bittar e Almeida (2009, p.150) “[…] a correção dos rigores da lei.”. – Nota-se que daí advém um incipiente espectro do princípio de individualização da pena, como um elemento de Justiça.
O tutor de Alexandre, O Grande, coloca ainda, a Justiça em um nível comparativo de similitude com a amizade, ao ponderar que em ambas, há uma omoiótetá – semelhança – subjetiva, posto que inexiste a vontade de prejudicar, e há a vontade de se conceder aquilo que é de direito, não se “invadindo” e “tomando” o do outro, não ficando com nada para mais ou para menos do que o que é devido. Aristóteles inova ainda com a introdução da Retórica como forma de diálogo, aperfeiçoando as ideias de Sócrates e Platão, e sendo um precursor do “Círculo Hermenêutico” de Gadamer, e da “Argumentação” de Chaïm Perelman. A Retórica aristotélica consiste em um diálogo construído em três partes: uma tese inicial, de onde irá se erguer o debate; uma antítese, que é uma ideia que diverge da tese inicial; e a síntese que é a conclusão obtida por meio do confrontar crítico destas.
2.3 FILOSOFIA NO HOMEM E NA SOCIEDADE – FILÓSOFOS DA IDADE MÉDIA À CONTEMPORANEIDADE
O Direito tutela os valores que certa comunidade humana considera como imprescindíveis a sua existência; sendo, portanto, um elemento que possibilita a vida em sociedade, por configurar os princípios por ela estipulados, como conceito de justo e correto; responsável por pautar os frutos de uma vida organizada no eixo das reações e necessidades humanas. Vale-se então do exposto por Führer (2005, p. 15) “as leis físicas indicam aquilo que, na natureza, necessariamente é. As leis jurídicas, ao contrário, indicam apenas aquilo que na sociedade deve ser. Por isso diz-se que o Direito é a ciência do dever ser”. Deste modo, o Direito enquanto fato social e ciência social, só pode e deve ser considerado em função do homem vivente em sociedade, tal como o brocardo ubi homo, ibi jus; ubi societas, ibi jus, ubi jus ibi ratio – Onde está o homem está o Direito; onde está a Sociedade está o Direito, onde está o Direito está a razão –. Neste contexto, obtém-se uma interposição entre os interesses sociais e individuais; posto que, como Kant (2004) diz:
“Vida é a faculdade que possui um ser de agir segunda as leis da faculdade de desejar. A faculdade de desejar é a faculdade desse mesmo ser, de ser, por meio de suas representações, causa da realidade dos objetos dessas representações. Prazer é a representação da coincidência do objeto ou da ação com as condições subjetivas da vida, isto é, com a faculdade da causalidade de uma representação em consideração da realidade do seu objeto (ou da determinação das forças do sujeito para a ação de produzi-lo).”
O exposto suscita uma ponderação acerca do que é Liberdade. Este termo apresenta duas significações diversas e interdependentes. Em uma designação negativa, a liberdade é ausência de submissão, a falta de subserviência, ou seja, a independência. Positivamente, liberdade, constitui a espontaneidade e a autonomia do sujeito racional complexo; o que se externa na forma de comportamentos voluntários. A Liberdade, portanto, confere sinergia ao homem, possibilitando uma auto-afirmação deste, enquanto ser racional dotado de potencialidades. Arthur Schopenhauer e Jean-Paul Charles Aymard Sartre, objetivaram, atribuir a liberdade como uma qualidade inerente ao ser humano ‘livre’. Avaliando a Liberdade e a Vontade em Schopenhauer, “Sobre o Fundamento da Moral” (1995), e correlacionando com, “O Mundo Como Vontade e Representação” (2005), percebe-se que o desejo do homem de querer ser livre torna-se a força-motriz deste, e constitui, o meio para a libertação. A Liberdade no meio jurídico, tem significação ainda mais vasta, pois é o elemento responsável, atualmente, por ser o algoz do condenado que se vê privado desta; quando seu agir viola as normas do Contrato Social que firmou.
Este Contrato Social e a relação de Liberdade são explicitados e explorados por Rousseau e Hobbes. O Contrato Social é o pacto firmado entre o indivíduo e o Estado, para que ele viva em uma sociedade organizada; sendo, sua representação física, a certidão de nascimento. É mediante este contrato que o homem migra do Estado de Natureza para o Estado de Direito; cedendo (vendendo) parte de sua Liberdade – que antes era infinita para garantir a posse de si mesmo (a vida) – em troca de proteção (comprando-a). Observa-se que esta migração ocorre devido ao constante medo e insegurança em que se vivia no Estado de Natureza. Hobbes coloca a Liberdade nos termos da equação física da velocidade – ∆v=∆s/∆t; neste caso, ∆l=∆s/∆t – colocando-a como diretamente proporcional ao espaço de que se insere e inversamente proporcional ao tempo de que se dispõe. A privação de Liberdade, portanto, mais que o restringir de direitos, a fere em sua essência, ao se confinar o espaço. De forma análoga, quanto menor o tempo que se dispõe, maior a sensação desta; tal como evidenciado pelos de idade avançada, ou os condenados à pena capital, onde cada segundo é importante e dotado de uma Liberdade da Vontade. Daí surge o ideal de Jusnaturalismo Contratual.
Nota-se ainda, que o Poder do Estado depende, mais do que qualquer outra coisa, de duas coisas, do medo e da propriedade; uma vez que, quando os cidadãos apresentam medo – sobretudo da morte –, e/ou medo da perda de seus bens, recorrem à figura do Estado, fomentando o Poder deste. A vida em sociedade requisita, porém da observância a certas regras. Tais regras, mais do que a legislação vigente, podem ser resumidas, tal como fez Hobbes, nos capítulos de X a XV do Leviatã, em dezenove regras básicas e universais.
“I- Que procure se esforçar pela paz, aquele que mantém esperança de obtê-la; e quando não mais, que lance mão de todos os recursos e benefícios da guerra.
II- Que se renuncie a todos os benefícios e se contente em ter tanta liberdade contra o outro, quanto concederia ao outro contra si.
III- Que se cumpram os acordos feitos; pois justiça é cumprí-los.
IV- Preserve que se restituam os benefícios, antes que se arrependam, e para que continuem a fazê-lo.
V- É dever se adaptar aos outros.
VI- Que se perdoe aqueles que, arrependendo-se, o desejem; desde que munido das devidas garantias.
VII- Nas vinganças, não se deve olhar o mal passado, mas o bem visível futuro.
VIII- Não se deve declarar o ódio por palavras, gestos ou atos.
IX- Todos são iguais por natureza.
X- Não se deve desejar nenhum direito que não agrade que seja reservado a outro.
XI- À pessoa a quem é confiada a missão de julgar, que seja equânime.
XII-XIX- Tratam do salvo-conduto, do uso comum das coisas, etc.” (CORRÊA JÚNIOR, 2011, citação proveniente de informação verbal)[1]
É nitidamente inferível que a legislação externa essas regras; e que é mediante o violar delas que se instaura a punição. Antes de se adentar da seara da punição em si, é inabdicável proceder a uma abordagem acerca do jus puniendi, cujo exercício é prelazia do Estado. Niccolò Machiavelli aborda esta temática em sua mais emblemática obra, O Príncipe; ressaltando-se ainda o exposto por Rousseau (1978, p. 13) “O mais forte nunca o é bastante para ser sempre o amo, se não transformar sua força em direito e a obediência em dever”. Mas, contudo, Machiavelli levanta uma importante consideração acerca deste transmutar imposto por Rousseau; ponderando acerca de este transmutar levar à amabilidade ou ao temor. Deste modo, aquele que detém o Poder, para continuar possuindo-o deve ser amado ou temido. Machiacelli (2001, p147) coloca:“Continuando na exposição das qualidades acima referidas, tenho a dizer que cada príncipe deve desejar ser tido como piedoso e não como cruel: apesar disso, deve cuidar de empregar convenientemente esta piedade”. Machiavelli ressalta ainda, que não podendo ser amado, que seja temido; como forma de se obter o respeito e se evitar o ódio. Isto é importante, pois a obediência decorre de se fazer algo por se “amar” seu líder – no caso, o Estado –, ou por temer a ele e às suas represálias.
Etienne de La Boétie (1999) discorre acerca disso, remetendo ao ideal de Liberdade, em seu Discurso da Servidão Voluntária; onde, mediante análise, se extrai que quando se sente afeição pelo governante, o sujeitar-se a ele e às suas vontades ocorre de forma voluntária, e no pleno uso de sua Liberdade, o sujeito abdica dela; tal como se nota nas religiões, ou mediante um ídolo ou herói. O evitar impedir o ódio e evitar o temor tem também sua abordagem, pois embora haja obediência, o Poder é instável, sendo suscetível de expropriação, tão logo surja uma oportunidade. Assim, nota-se a sujeição espontânea dos homens às leis e normas, como elemento do Pacto Social firmado, para se preservar seus bens, sobretudo a vida e a fração de Liberdade que ainda detêm; mas é preciso que o ente estatal responsável por elas se legitime e evoque esta servidão voluntária e não imponha-a.
Como exposto previamente, a transgressão leva à punição. O filósofo responsável por esmiuçar este aspecto foi Michel Foucault, que manteve observância às obras de seus antecessores. Em sua obra Vigiar e Punir. Foucault (1987, p. 78) defende que “para ser útil, o castigo deve ter como objetivo as conseqüências (sic.) do crime, entendidas como a série de desordens que este é capaz de abrir”. Ele alega ainda que se deve “calcular uma pena em função não do crime, mas de sua possível repetição. Visar não à ofensa passada mas à desordem futura. Fazer de tal modo que o malfeitor não possa ter vontade de recomeçar, nem possibilidade de ter imitadores” (FOUCAULT, 1987, p. 78). Deste modo, Foucault expõe que a pena não deve ser estabelecida como uma forma de vingança estatal à violação das normas, tampouco deve ser balizada pela gravidade do ato; ela deve ser uma forma de coibir a repetição do delito, utilizando o infrator como exemplo para a si e para a sociedade, posto que, caso se tivesse a certeza de que ele não reincidiria em sua conduta, bastava dissimular sua punição para os demais cidadãos. Foucault (1987, p. 79) estipula ainda que “a semiotécnica com que se procura armar o poder de punir repousa sobre […] seis regras […]”.
A Regra da Quantidade Mínima estipula que m crime é cometido porque traz vantagens; deste modo, fazendo com que ele se atrele a uma desvantagem um pouco maior, ele não seria mais alvo de interesse. A Regra da Idealidade Suficiente, por sua vez, dispõe que a eficácia da pena se encontra na desvantagem que lhe segue, e endossa ainda, que é sua representação que deve ser ampliada, e não seu flagelo corpóreo. A Regra dos Efeitos Laterais ressalta que a pena deve ter maiores efeitos naqueles que não cometeram o crime; e devem constituir de meios que ocasionarão no espírito popular a impressão mais eficaz e duradoura, e ser, simultaneamente, a menos atroz sobre o físico do transgressor.
A Regra da Certeza Perfeita constitui um elemento de publicidade, dado que estipula que as leis que configuram os crimes e prescrevem as penas sejam perfeitamente claras, para que haja ampla compreensão pelas pessoas; o que exige sua publicação, assim como torna forçoso a punição ante a transgressão, dado que nada fragiliza mais as leis, do que a esperança de impunidade; requisitando, portanto, maior vigilância. A Regra da Verdade Comum é um prelúdio ao princípio da presunção de inocência, posto que estabelece que o verificar de um crime deve atender a critérios gerias e homogêneos, com uma demonstração completa da verdade, e a criminalidade da conduta só pode ser admitida após ser inteiramente comprovada; sendo que até então o réu deve ser reputado inocente. A última regra, neste tocante, exposta por Foucault é a Regra da Especificação Ideal, segundo a qual um código deve ser absolutamente claro e preciso, não se permitindo ambiguidades; e muito menos pode consentir com a impunidade pelo silêncio da lei.
Foucault pondera ainda acerca do fato de se manter abstenção àquilo que os fatos e provas revelam, condenando as opiniões pessoais; devendo se ter um rigor científico revestido com a realidade dos fatos concretos, e com a classificação social; defendendo que há de se ter um ideal legítimo de direitos, mas, no operar do Direito deve-se atuar de forma objetificada, para não se macular o processo com pareceres individuais. Observa-se, mediante uma análise da Filosofia de Foucault, que a Justiça passa a ter contornos mais humanísticos e dotados de maior racionalidade em sua desenvoltura; embora menos por fins altruísticos e mais por uma necessidade de preservação do rigor e incolumidade do proceder jurídico.Hegel dispõe, com relação ao “Ser” que é uma figura dual do Direito, ativa e passiva, que este, é formado de um Ser e de um Ser-Ai. Este último é o elemento chave, neste caso; pois ao “Ser-Ai Jurídico” compete o preservar da vida no tecido social por meio da lei e das práticas condizentes com o interesse geral, visando o Bem Comum.
John Rawls é outro filósofo cujo pensamento se volta para o Direito; e que se revela contrário ao utilitarismo – que almeja realizar um máximo de bem com o mínimo de mal possível – e ao institucionalismo. Rawls ressalta sempre a fairness – equidade – como o elemento a reger todo o sistema jurídico e todo espectro de reflexões que a ele se relacionam. Outro aspecto que Rawls explicita e que se revela esplendorosamente no Direito atual, é o fato de o Direito de um prevalecer sobre a Vontade de Todos, conforme os ditames das leis. É com raízes em seu pensamento que se passa a ter uma nova visão do Direito. Até então se defendia a pessoa portadora de direitos; à partir daí se defende os princípios e os direitos que uma pessoa porventura detém. Daí surgem as bases da Argumentação de Perelman, onde o jurista, mais do que aplicador do Direito, é um complemento do sistema jurídico, que emprega o ponderar a argumentação para obter a verdade e estabelecer o Justo.
3 CONCLUSÃO
A importância da Filosofia no Direito decorre do fato de este ser um recurso humano empregado na lide com humanos; e como a Filosofia se debruça à análise das capacidades e pensamentos humanos, extraindo deles sua essência; pode-se, através desta dicotomia, alcançar uma especulação reflexiva, cuja aplicação na seara jurídica, além de possibilitar a compreensão acerca desta e de suas origens, permite que esta evolua. Não é por menos que os sistemas filosóficos se pronunciam nos assuntos jurídicos reiteradas vezes no decorrer dos séculos. Nota-se que o pensar filosófico sofre grandes mudanças no transcorrer do tempo, se aperfeiçoando e se tornando mais complexo, completo e disciplinado; assim como o Direito; se complementando, sem, contudo, se extinguir as vertentes anteriores.
Ao se aplicar a Filosofia à prática jurídica e ao Direito, percebe-se que este se torna mais condizente com o pensar e proceder humano, sendo, por conseguinte, mais justo e aceitável; posto que a Filosofia é intimamente ligada à sabedoria, à ética, à moral, e ao comportamento. Mediante a aplicação filosófica, não raro, se obtém o Justo sem se recorrer às leis ou à jurisprudência; podendo ser ela considerada próxima a um parecer doutrinário, embora se difira dele, por não se obter pronto, mas ser dialeticamente construído.
Informações Sobre os Autores
Guilherme Fortes Monteiro de Castro
Graduação em Direito pela Fundação Universidade de Itaúna, FUIT, Brasil; Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires, UBA, Argentina. Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-Minas; Pós-Graduado em Direito do Trabalho pela Fundação Getúlio Vargas – FGV; Advogado
Eduardo da Silva Gonçalves
Acadêmico de Direito no Centro Universitário de Formiga – UNIFOR-MG, FUOM