Resumo: A prescrição dos ilícitos funcionais tem natureza jurídica semelhante ao instituto da decadência e por isso deve ser percebida como prescrição sui generis. O poder público deve reconhecer a prescrição das penalidades de Advertência e Suspensão quando os respectivos prazos se esgotarem antes daquele previsto para a pena de Demissão. A prescrição retroativa do direito penal não se aplica ao direito sancionador funcional. O fundamento para extinção da punibilidade nos casos de advertência e suspensão pelo decurso de prazo antes do lapso temporal quinquenal é aplicação da prescrição direta diferida. Denúncia temerária de ilícito administrativo é um “nada jurídico” e não dá ensejo à responsabilização de quem deu causa à prescrição.
Sumário: Introdução; 1 Natureza jurídica do prazo legal promotor da extinção da punibilidade disciplinar; 2 A aplicação analógica da prescrição retroativa no processo administrativo disciplinar; 3 A pertinência do reconhecimento da prescrição direta diferida em lugar da prescrição retroativa; 4Análise da necessidade de responsabilização de quem contribuiu para o escoamento de prazo prescricional em processo administrativo disciplinar; 5 Conclusão; 6 Referências.
INTRODUÇÃO
A pacificação social e segurança jurídica das relações constituídas são fundamentos de validade dos institutos da prescrição e da decadência e encontram plena ressonância, também, na seara do direito administrativo, especialmente no que respeita ao Direito Administrativo Sancionador.
A Lei nº 8.112, de 11 de dezembro 1990, define o estatuto disciplinar dos servidores públicos civis federais, prevê as condutas consideradas irregulares e comina as respectivas penalidades aplicáveis mediante apuração em processo administrativo disciplinar.
Essa ação disciplinar do Estado não pode ser exercida por prazo indefinido. Ela se sujeita a limites temporais que estão elencados no art. 142 da norma supracitada.
A proposta deste estudo é explorar a aplicação da prescrição no processo administrativo disciplinar, com foco em duas questões centrais que vêm suscitando dúvidas em sua aplicação pela Administração Pública e debates jurídicos nos foros apropriados. A primeira versa sobre a polêmica travada acerca da aplicação da prescrição dita retroativa no âmbito do processo administrativo disciplinar e o segundo ponto examina a orientação administrativa voltada para a apuração de responsabilidade de quem contribui, por culpa ou dolo, para o transcurso da prescrição de ação disciplinar estatal.
A discussão é atual, pois ainda não se chegou a uma conclusão sobre a aplicabilidade da prescrição retroativa no direito disciplinar, ensejando julgamentos conflitantes entre órgãos da Administração Pública, possibilitando que uma mesma situação implique, por exemplo, aplicação de penalidade de suspensão de 90 dias a um servidor e arquivamento do processo em relação a outro servidor pela prática do mesmo delito funcional, nas mesmas circunstâncias, em clara afronta ao princípio da isonomia e da impessoalidade.
Noutro turno, debruçam-se as autoridades sobre uma questão relevante: em tendo ocorrido a prescrição impõe-se, inexoravelmente, a abertura de processo administrativo disciplinar para investigar os responsáveis pela inércia administrativa, promotora do prazo extintivo do jus puniendi da Administração, independentemente das circunstâncias que envolveram o caso e a dimensão do valor jurídico do bem tutelado?
Pretende, pois, este artigo cooperar com o debate sobre as questões mencionadas, trazendo uma abordagem diferente do que se conseguiu encontrar de produção sobre o tema, viabilizando uma alternativa de fundamentação para adoção de determinando procedimento ou servindo, se for o caso, como ponto de partida para fortalecimento de teses em contrário, em respeito à dialética doutrinária que ora se incentiva.
Em relação ao primeiro ponto, utilizar-se-á como método a análise do instituto da prescrição retroativa no direito penal, perquirindo-se sobre suas especificidades na seara criminal e eventual aplicabilidade no direito disciplinar estatal. Questionar-se-á, também, se se trata, mesmo com efeitos e incidências semelhantes, do mesmo instituto jurídico [prescrição retroativa] a incidir na área disciplinar, opinando-se, por fim, sobre o aproveitamento do prazo já transcorrido em relação às penalidades de advertência e suspensão, sem que se tivesse implementado o prazo prescricional de cinco anos previsto para processamento dos ilícitos funcionais puníveis com demissão.
No que concerne à exigência de abertura de processo administrativo disciplinar para apurar responsabilidade de quem contribuiu para ocorrência da prescrição parece conveniente avaliar aspectos como o contexto em que se deu a perda do prazo, a tramitação do processo, o valor do bem público protegido e até a relação custo/benefício dessa medida em conformidade com as exigências do interesse público.
1 Natureza jurídica do prazo legal promotor da extinção da punibilidade disciplinar
A prescrição administrativa disciplinar é instituto sui generis, pois se analisada à luz dos elementos do direito civil e da distinção clássica entre prescrição e decadência a partir dos efeitos que tais institutos podem incidir, não seria incoerente classificá-la como decadência administrativa.
Não há, neste caso, uma perspectiva de ação judicial respaldada por lapso temporal que vise preservar o jus puniendi do Estado-Administração. Quando o Estado atua em juízo na defesa do direito de punir dentro do prazo legal, ele o faz por meio de exceção e não por uma ação judicial propriamente dita já que, geralmente, é o servidor faltoso que pleiteia uma prestação jurisdicional em face da Administração que, por sua vez, prescinde dessa tutela jurisdicional para promover o processo disciplinar. Por isso, transcorrido o prazo prescricional, perde-se o próprio poder-dever da Administração de apurar os ilícitos funcionais identificados e não, tão-somente, uma ação.
Ademais, este direito mais se aproxima daquela classificação feita por CHIOVENDA, lembrada por Agnelo Amorim Filho[1], para diferenciar a prescrição da decadência no sentido de que, o direito que abrange poderes outorgados por lei para certas pessoas “de influírem, com uma declaração de vontade, sobre situações jurídicas de outras, sem o concurso da vontade dessas”, é “potestativo” e, nessa condição, por se distinguir dos “direitos a uma prestação” não ostenta uma pretensão resistível a gerar ação condenatória, uma vez que são direitos insuscetíveis de lesão. Assim, por mais esse argumento, estariam tais prazos sujeitos à decadência administrativa, pois as ações constitutivas que tutelam os direitos potestativos, quando não exercidas tempestivamente, não geram prescrição.
É certo, porém, que os períodos decadenciais não se sujeitam à suspensão ou à interrupção, ao passo que os prazos temporais tratados neste trabalho podem ser interrompidos, conforme preceitua o art. 142, §2º da Lei nº 8.112/90, bem como podem permanecer suspensos enquanto não ultrapassados os prazos estipulados em lei para conclusão da sindicância ou processo administrativo disciplinar.
Também podem restar suspensos se houver decisão judicial que impossibilite a prossecução da apuração, eis que aí a inércia não pode ser atribuída à Administração[2]. A doutrina, porém, vem admitindo que, mesmo de natureza decadencial, o prazo poderia ser interrompido ou suspenso se houvesse previsão legal expressa, tal como é a hipótese presente.
Nesta vetusta discussão sobre a distinção entre a prescrição e decadência, a doutrina costuma apontar a possibilidade de renúncia aos efeitos do transcurso do prazo por parte de quem dele se beneficia como componente caracterizador do prazo prescricional. Tem-se entendido que o prazo prescricional pode ser renunciado, permitindo que o direito torne a ser exigível, ao contrário do prazo decadencial que, superado, faz perecer o direito em definitivo.
No direito administrativo sancionador, assim como no direito penal[3], não há que se cogitar da hipótese de renúncia ao prazo previsto em lei para apuração das faltas funcionais. Não poderia, com a devida vênia de quem defende o contrário, o servidor, mesmo que convicto de sua inocência e querendo demonstrá-la através do devido processo legal administrativo, abrir mão deste prazo para que ressurja para a Administração nova oportunidade de processamento. Afinal o instituto não existe para proteção de eventuais culpados, mas para segurança jurídica de quem se relaciona com o serviço público, daí ser considerara como norma de ordem pública (art. 112, da Lei nº 8.112/90).
Não obstante os critérios referenciados indiquem a natureza decadencial dos prazos em análise, convém tratá-los, pois, como prescricional sui generis ante a singularidade estampada na norma legal que a define.
Feitas estas breves considerações passa-se a análise do cerne do que se propõe discutir neste trabalho.
2 A aplicação analógica da prescrição retroativa no processo administrativo disciplinar.
A prescrição retroativa é construção jurisprudencial que remonta à edição da súmula 146 pelo Supremo Tribunal Federal e hodiernamente vem disciplinada na redação atual do art. 110 do Código Penal Brasileiro, in verbis:
Art. 110 – A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 1º – A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação, ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 2º – A prescrição, de que trata o parágrafo anterior, pode ter por termo inicial data anterior à do recebimento da denúncia ou da queixa. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Diz-se retroativa porque o prazo começa a ser contado a partir da publicação da sentença condenatória transitada em julgado para acusação, para trás, até o recebimento da denúncia ou desta até a consumação do delito.
Nesse contexto, se a um crime praticado se lhe impõe uma pena máxima abstrata de quatro anos, a prescrição da pretensão punitiva sobrevirá ao fim de oito anos sem ocorrência de causa interruptiva, ou entre estas causas, tendo como marco inicial a consumação do delito, conforme os ditames do art. 109, IV, c/c 111, I, e 117 do Código Penal.
Entretanto, se ao prolatar a sentença condenatória, o juiz decidir aplicar pena de um ano e esta pena se mantiver até o trânsito em julgado para a acusação, o magistrado promoverá cálculo retro-operante de forma a verificar se entre as causas interruptivas ocorreu lapso superior a quatro anos (art. 109, V) e, caso o identifique (e desde que o prazo não supere oito anos), se estariam presentes as condições para se decretar o reconhecimento da prescrição retroativa.
No âmbito administrativo, é conveniente lembrar que no processo disciplinar são previstas seis espécies de penalidades principais e uma alternativa quais sejam a advertência, a suspensão, a demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, destituição de cargo em comissão e destituição de função comissionada. A penalidade alternativa é a multa no valor de 50% (cinqüenta por cento) dos vencimentos do servidor em substituição à pena de suspensão quando houver conveniência para o serviço, devendo o apenado continuar em atividade.
A penalidade de advertência prescreverá em 180 (cento e oitenta) dias, a de suspensão em 2 (dois) anos e as demais em 5 (cinco) anos.
A prescrição administrativa pode ser interrompida uma única vez pela abertura de sindicância ou de processo administrativo disciplinar (Art. 142, §3º), e volta a ocorrer ultrapassados 140 dias (ou 80 no caso de sindicância) conforme assentada jurisprudência do STF sobre o tema:
“RMS 23436 / DF – DISTRITO FEDERAL ../jurisprudência/RMS23436/DF-RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO Julgamento: 24/08/1999 Órgão Julgador: Segunda Turma Publicação DJ 15-10-1999
Ementa
PRESCRIÇÃO – PROCESSO ADMINISTRATIVO – INTERRUPÇÃO. A interrupção prevista no § 3º do artigo 142 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, cessa uma vez ultrapassado o período de 140 dias alusivo à conclusão do processo disciplinar e à imposição de pena – artigos 152 e 167 da referida Lei – voltando a ter curso, na integralidade, o prazo prescricional. Precedente: Mandado de Segurança nº 22.728-1/PR, Pleno, Relator Ministro Moreira Alves, acórdão publicado no Diário da Justiça de 13 de novembro de 1998.”
Tal entendimento se aplica em vista do que dispõe o §4º do art. 142 da Lei nº 8.112/90 ao prever que o prazo voltará a correr a partir do dia em que cessar a interrupção. Ante a omissão legal sobre o momento que faria cessar a interrupção do prazo, o STF, em voto condutor do Ministro Marco Aurélio no aresto colacionado, refutando a imprescritibilidade da ação disciplinar nestes casos, entendeu que o prazo deveria recomeçar ao final do prazo previsto no caput do art. 152, incluindo a prorrogação, somado com aquele conferido à Administração para julgamento, que é de 20 dias, conforme preceitua o art. 167 do mesmo diploma legal.
Ciente dessas questões, o procurador federal Marcelo Henrique de Azevedo Souza, em percuciente trabalho intitulado “Inaplicabilidade da prescrição retroativa em sede de processo administrativo disciplinar”[4], defende, como evidencia o título do artigo, que a prescrição retroativa não encontra espeque na seara administrativo-disciplinar, em fundamentos que poderiam ser assim resumidos:
“a) a Administração tem o poder-dever de instaurar processo administrativo disciplinar sempre que não exaurido o prazo prescricional da pena máxima (cinco anos), independentemente da gravidade dos fatos a serem apurados;
b) o silêncio do legislador quanto à aplicabilidade do instituto no âmbito administrativo foi eloqüente no sentido de sua não-incidência, desautorizando interpretação analógica;
c) o instituto é de índole estritamente penal;
d) os valores tutelados pelo direito penal são diversos do direito administrativo, sendo que, no primeiro, a hermenêutica aplicada sobre as normas deve primar pelo direito de liberdade do indivíduo, ao passo que, no direito administrativo, deve prevalecer o interesse público;
e) a sanção penal visa a proteger a coletividade e à sanção administrativa, resguardar os interesses funcionais exclusivos da Administração;
f) somente interpositio legislattoris autorizaria a aplicação do instituto no âmbito administrativo.”
Com a máxima vênia do insigne articulista e daqueles que marcham na mesma direção e no mesmo passo, a prescrição denominada retroativa não se aplica ao regime disciplinar do servidor público federal não exatamente pelos argumentos acima aduzidos, mas pelo fato de que o reconhecimento da prescrição, na conjectura declinada, não se enquadraria no conceito da “prescrição retroativa”, o que, em tese, afastaria qualquer discussão sobre a aplicação da referida modalidade prescricional de natureza penal no direito administrativo disciplinar.
Entretanto, como ora se pretende justificar exatamente os efeitos prescricionais negados por todos que o fazem com fulcro na utilização equivocada, concessa venia, do instituto da prescrição penal retroativa, faz-se oportuno tentar rechaçar tal argumento, enfrentando cada um dos conhecidos fundamentos utilizados pela corrente.
3 A PERTINÊNCIA DO RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO DIRETA DIFERIDA EM LUGAR DA PRESCRIÇÃO RETROATIVA
Com o escopo de se avançar no estudo, é mister ilustrar, com exemplo hipotético, a situação aventada pela doutrina que desacolhe a prescrição retroativa.
Para tal desiderato, é importante considerar, inicialmente, que o estatuto disciplinar do servidor público pugna pela punição de advertência quando constatada a violação de proibição constante do art. 117, incisos I a VIII e XIX, e de inobservância de norma legal que não justifique imposição de penalidade mais grave, bem como impõe a pena de suspensão “em caso de reincidência das faltas punidas com advertência e de violação das demais proibições que não tipifiquem infração sujeita a penalidade de demissão”.
Contemple, pois, a hipótese em que o servidor prepara um cartaz com expressões desabonadoras contra a chefia, aduzindo sobre sua incompetência para gerenciar, o modo descortês com que trata os colegas e o jeito incomum de se vestir para o trabalho, conclamando os companheiros, em recinto de trabalho, a pleitearem sua substituição, em atos e circunstâncias que configurassem, em tese, aquela situação prevista no inciso V, do art. 117, da Lei nº 8.112/90.
Tal fato ter-se-ia tornado conhecido da autoridade competente para apuração da irregularidade em 4 de janeiro de 2003, entretanto, só viera a ser averiguado mediante processo administrativo disciplinar, em 2 de janeiro de 2008. O relatório final da comissão seria entregue ao fim de cento e vinte dias, e o julgamento proferido cem dias depois do recebimento do relatório.
Segundo o entendimento da doutrina que nega a aplicação da denominada prescrição retroativa no direito disciplinar o processamento, na hipótese, é legítimo eis que, no caso, a prescrição máxima de cinco anos não foi atingida. Desse modo, se a comissão apresentou relatório compatível com a prova dos autos, pugnando pela punição de advertência, a autoridade competente para o julgamento deve impô-la ao servidor faltoso, desconsiderando todo o período anterior à publicação da portaria constitutiva da comissão processante sob o argumento de que ela interrompeu o prazo prescricional que tornou a ter novo curso.
O equívoco desta exegese começa, permissa venia, com a compreensão de que o prazo prescricional de cinco anos serve como panacéia jurídico-disciplinar a convolar situações caducas em direito subjetivo do Estado.
Esgotado o prazo inicial de 180 dias a partir do conhecimento do fato pela autoridade competente, sem causa interruptiva, encerra-se, também, o direito de punir com advertência. Perquirir o contrário seria fazer letra morta o art. 142, cujo prazo só serviria se houvesse instalação de processo administrativo disciplinar ou sindicância para cômputo posterior, já que antes disso somente o prazo de cinco anos faria prescrever a penalidade, independentemente da gravidade do ato ilícito praticado.
Veja o que dispõe o art. 142 da Lei nº 8.112/90:
“Art. 142. A ação disciplinar prescreverá:
I – em 5 (cinco) anos, quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão;
II – em 2 (dois) anos, quanto à suspensão;
III – em 180 (cento e oitenta) dias, quanto á advertência.
§ 1o O prazo de prescrição começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido.”
Ora, se a mens legislatoris fosse somente considerar os prazos dos incisos II e III depois de instaurada a comissão processante, então o §1º não poderia conter a redação atual, uma vez que o texto se aplica a todos os incisos, não fazendo qualquer distinção entre eles.
A Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre técnica de elaboração, redação, alteração e consolidação de leis, reza através do seu art. 11, III, c que a redação da norma deve “expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e às exceções à regra por este estabelecida”.
De imediato, percebe-se que o §1º do art. 142 da Lei nº 8.112/90 não consubstancia uma exceção, mas um dado que complementa as disposições do caput e seus incisos. Ele se refere a todos os incisos, calhando ao debate os ensinamentos de Carlos Maximiliano[5], ao afiançar que a interpretação que melhor se amolda à leitura do dispositivo é aquela que empresta maior efetividade à norma, pois, a contrário senso, o referido dispositivo perderia toda sua força normativa, exceto em relação ao prazo destinado à apuração de ilícitos puníveis com demissão.
Defende-se, aqui, que a prescrição deve ser reconhecida e, nesse diapasão, é de se cogitar, inclusive, se cabe registrar a penalidade prescrita, nestas circunstâncias, nos assentamentos funcionais do servidor, pois tal situação implicaria tratamento desigual, devido à possibilidade de reconhecimento in limine da prescrição sem instauração de apuratório.
Ora, conhecido o fato e a sua natureza, a Administração deve cuidar e adotar as medidas necessárias ao processamento disciplinar, em conformidade com o lapso temporal disponibilizado. Isso se sucede assim porque o legislador optou por selecionar prazos prescricionais de acordo com a gravidade das condutas descritas, forçando o Serviço Público a punir mais rapidamente os comportamentos ilícitos menos gravosos para Administração ou se desvencilhe da obrigação de punir mais rapidamente para se dedicar a assuntos de maior interesse administrativo.
Os ilícitos funcionais ensejadores de advertência ou suspensão até 30 dias podem ser processados mediante sindicância, que é procedimento mais célere que o processo administrativo disciplinar por ter prazo de conclusão de trinta dias prorrogáveis por mais 30, demonstrando à saciedade a finalidade da norma em resolver, a bem da estabilidade jurídica do serviço público, de forma mais ligeira possível, tais pendências.
Também quis o legislador que prazos mais severos fossem observados em relação à atuação irregular do servidor que traga maiores danos ao serviço. É um critério de proporcionalidade.
Quando, no caso hipotético apresentado, permite-se a aplicação da penalidade de advertência depois de transcorrido mais de cinco anos e sete meses, está-se praticando, além de uma ilegalidade, uma clara inversão de valores, pois a interpretação mais condizente com os preceitos reguladores da matéria é aquela que conduz ao raciocínio de que para faltas pequenas, penas pequenas devem ser aplicadas e prescrição pequena deve ser prevista, enquanto para faltas graves, penas mais rígidas devem incidir e prazo prescricional maior deve ser oferecido à Administração, com o escopo de disponibilizar-lhe mais tempo para investigar o assunto e evitar a rápida extinção da punibilidade.
No caso em tela, o prazo utilizado para aplicação da advertência é maior do que o previsto para aplicação de demissão, não parecendo coerente tal construção, nem consentânea com a política disciplinar que a norma legal almeja implementar.
Assim, se as circunstâncias evidenciarem que a natureza da infração não provocaria comutação de pena de advertência ou suspensão para demissão, há que se discordar do esposado no item “a” da página 6 (que impõe a apuração disciplinar sempre que não extrapolado o prazo de cinco anos do conhecimento do fato ilícito) para asseverar que não deve a Administração instaurar procedimento disciplinar se para tanto já transcorreu o prazo prescricional de 180 dias ou dois anos, respectivamente. Ressalta-se, ademais, que tal conjectura não configura a refutada “prescrição penal antecipada” ou “prescrição em perspectiva” tantas vezes rechaçada pelo STF[6] e pela doutrina especializada[7]
A prescrição em perspectiva consistiria em calcular-se o prazo prescricional antes da existência de qualquer título executivo, deixando de considerar a pena em abstrato prevista no art. 109 do Código Penal para ter-se em conta pena hipotética, eventualmente aplicável diante das circunstâncias presentes. A crítica mais contundente contra o método diz que o Ministério Público poderia trazer outros elementos ao processo que aumentaria a pena e, conseqüentemente, o prazo prescricional. Ademais, não existe norma legal expressa contemplando tal instituto.
A origem dessa balbúrdia no âmbito disciplinar está na confusão que se faz entre “tipos de penas” e “quantidade da pena”. O art. 32 do Código Penal prevê três tipos de penas, quais sejam, as privativas de liberdade, restritivas de direitos e de multa. A prescrição penal, abarcando todas as suas modalidades, inclusive a retroativa e até a malsinada prescrição antecipada, é calculada de acordo com a “quantidade da pena” que pode ser a máxima abstrata para o crime específico ou a concreta prevista (ou previsível no caso da prescrição antecipada) em sentença condenatória transitada em julgado para a acusação.
Nos tipos de penas previstos na Lei nº 8.112/90 uma espécie admite quantitativo variável: a suspensão, que pode variar entre 1 e 90 dias. Entretanto, a prescrição administrativa não é regulada pela quantidade de pena. Só existe um prazo prescricional para cada um dos três grupos de infrações, e ele é inalterável.
Portanto, se o ato ilegal é tipificado entre aqueles puníveis com advertência, como o exemplo trazido à baila, a prescrição de 180 poderá ocorrer em dois momentos, sendo o primeiro a partir do conhecimento do fato e o segundo a partir da cessação da causa interruptiva inaugurada com instauração de processo administrativo disciplinar. Em se reconhecendo a prescrição no primeiro momento, antes de instaurado qualquer procedimento e antes do prazo de cinco anos, não se estaria aplicando a “prescrição em perspectiva”, pois não haveria quantidade de pena variável que aumentasse ou diminuísse o prazo prescricional.
Não é demais relembrar que o legislador optou pela expressão “prescrição administrativa”, mas seu conteúdo, como apreciado neste trabalho, aponta para sua inevitável natureza decadencial e, assim sendo, transposto o prazo perde-se, totalmente, a oportunidade de exercer-se o direito persecutório, fulminando de invalidade qualquer procedimento disciplinar, posteriormente instaurado, que admita a extrapolação do prazo prescricional inicial.
Ainda nessa linha, veja que a multa penal tem apenas um prazo prescricional e, coincidentemente, é igual ao previsto para a multa substitutiva da suspensão disciplinar: dois anos.
Perceba, outrossim, que se ultrapassados dois anos do ilícito penal punível exclusivamente com multa, e ainda assim se desse curso ao processo penal, a decisão que reconhecesse o transcurso do lapso prescricional não poderia ser chamada de retroativa, pois não haveria aí uma pena concreta diferente de outra abstrata que alterasse o prazo prescricional. Não se trata, pois, da aplicação do §1º do art. 110 do CP, mas do art. 109 c/c 114 e 117, IV, do CP.
Evidente, portanto, o entendimento de que a decretação de prescrição depois da sentença condenatória, na hipótese vertente, não é a retroativa, tampouco a antecipada, pois para ambas é crucial que exista penas abstratas máximas previstas para determinados crimes e possibilidade de aplicação de penas concretas inferiores àquelas e que possa importar em alteração de prazo prescricional.
No regime disciplinar do servidor público federal, é sempre importante frisar: não existem penas variáveis que alterem, dentro do mesmo tipo, prazo prescricional.
O julgamento que reconhece a prescrição entre a data do conhecimento do fato e a instauração do inquérito administrativo apenas anuncia algo que já ocorreu e por isso sua natureza declaratória.
Já os registros nos assentamentos funcionais quando impraticável a imposição da pena só devem incidir quando a prescrição sobrevier depois de instaurada, tempestivamente, a comissão processante, conforme se depreende da Formulação nº 36 do extinto Departamento de Administração do Serviço Público – DASP ao asseverar que “se a prescrição for posterior à instauração do inquérito, deve-se registrar nos assentamentos do funcionário a prática da infração apurada.” (grifo não-original)
Assim, somente quando ocorresse a prescrição intercorrente caberia o registro, pois, nessa hipótese o processo fora instaurado em prazo hábil e a prescrição fora interrompida, tendo sido ofertada oportunidade de contraditório e ampla defesa.
Nesse contexto, a imposição do art. 170 da Lei nº 8.112/90 deve ser interpretada cum grano salis, posto que veio ao mundo jurídico para dar concretude à jurisprudência administrativa extraída da formulação supracitada.
Quanto à alínea “b”, que invoca o silêncio da norma sobre a aplicação da prescrição retroativa para ressuscitar prazo morto, deve-se ponderar, na realidade, que o legislador não deveria mesmo prever tal regência, pois tal instituto, a par de emprestar efeitos parecidos no direito penal, não apresenta qualquer outro critério que o aproveite neste orbe.
Percebe-se que a prescrição retroativa penal só tem significado jurídico devido à regra contida no art. 109 do CP, que manda regular a prescrição pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, confrontada com a possibilidade de ser aplicada, no caso concreto e para o mesmo crime, penalidade inferior.
Assim, no crime de Extorsão Indireta, por exemplo, tipificado pelo art. 160 do CP, que prevê pena máxima de três anos, a prescrição ocorreria ao fim de oito anos. Entretanto, se o magistrado fixasse em sentença passada em julgado para acusação a pena em dois anos, o critério acolhido pela tese da prescrição retroativa reza que o jus persequendi do Estado esgotar-se-ia ao fim de quatro anos.
No Direito Administrativo Sancionador, porém, não existe gradação de pena para um mesmo delito funcional. Não se aplica advertência ou demissão mínima, média e grave. A suspensão, apesar de poder variar em quantidade de dias, não apresenta prazo prescricional diferente alterável conforme o tempo de punição; são dois anos de prescrição para penalidade de um dia de suspensão e dois anos para penalidade máxima de noventa dias de suspensão
Não existe, pois, “pena abstrata prevista” e “pena concreta aplicada” que justifique a utilização da figura da prescrição retroativa no direito administrativo disciplinar e nesse diapasão discorda-se também, com vênias reforçadas, de quem propõe a aplicabilidade do instituto no processo disciplinar como se vê da seguinte passagem:
“Assim, a prescrição retroativa disciplinar se caracteriza quando se conclui que, após a realização dos trabalhos investigatórios, a pena concreta a ser imposta ao servidor já havia sido alcançada pelo lapso prescricional ocorrido entre o dia da ciência do fato e a data em que a respectiva portaria instauradora fora oficialmente publicada.”[8]
A ausência de previsão do instituto é, de fato, intencional, mas por motivos diferentes daqueles invocados por quem se opõe a sua incidência, uma vez que o instituto pré-falado não serve para explicar os efeitos negados, pois se trata, desde o início, de prescrição direta, no caso, prescrição direta diferida.
Ora, se a decisão administrativa tem mera natureza declaratória e reconhece que a prescrição ocorrera antes da instauração do procedimento investigatório, sem a utilização de qualquer sistema de cálculo de pena e contagem retroativa, então essa prescrição sempre foi a prescrição direta. Por ter sido reconhecida com atraso, convém distingui-la pela nomenclatura que ora se sugere de prescrição direta diferida.
No que concerne à afirmação contida na letra “c” de que o instituto da prescrição retroativa é de natureza estritamente penal, não há como se discordar. Tal assertiva, contudo, não serve para afastar a noção de que a comissão deve reconhecer a ocorrência da prescrição direta diferida e declarar a perda da pretensão punitiva do Estado.
É, pois, de natureza declaratória a decisão da comissão que reconhece a prescrição direta diferida e, nesse aspecto, com as adaptações necessárias, faz-se pertinente acatar a lição produzida por José Armando da Costa, in verbis:
“Ademais, destaque-se que o ato disciplinar, de per se, ostenta a iniludível natureza jurídica declarativa, o que implica inferir que ele, a exemplo do que se verifica com o procedimento do lançamento tributário, deve reportar-se à data da ocorrência do fato. E se no interregno que mediou o conhecimento do fato e a instauração do procedimento já havia passado tempo suficiente para alcançar, pela prescrição, a reprimenda disciplinar em concreto, obviamente que a publicação da portaria deflagradora da responsabilização disciplinar não teria jamais o condão de interromper o prazo prescricional”.[9]
Para afastar o argumento acerca da natureza exclusivamente penal do instituto não seria preciso defender a aplicação analógica de institutos do direito penal no direito administrativo disciplinar, mas asseverar pela impossibilidade da analogia, porém, é enveredar por caminhos labirínticos, pois haveria que se combaterem, de maneira convincente, juristas consagrados, como estes citados pelo Prof. Luís Roberto Barroso[10]:
NELSON HUNGRIA[11]:
“Assim, não há falar-se de um ilícito administrativo ontologicamente distinto de um ilícito penal. A separação entre um e outro atende apenas a critérios de conveniência e oportunidade, afeiçoados à medida do interesse da sociedade e do Estado, variável no tempo e no espaço. A única diferença que pode ser reconhecida entre as duas espécies de ilicitude é de quantidade ou de grau; está na maior ou menor gravidade ou moralidade de uma em cotejo com outra. Pretender justificar um discrime pela diversidade qualitativa ou essencial entre ambos, será persistir no que KUKULA justamente chama de ‘estéril especulação’. A identidade essencial entre o delito administrativo e o delito penal é atestada pelo próprio fato histórico, aliás reconhecido por GOLDSCHMIDT, de que ‘existem poucos delitos penais que não tenham passado pelo estádio do delito administrativo’. Entre nós, não há razão alguma para rejeitar-se o sistema de subordinação da ação disciplinar à ação penal.”
Lúcia Valle Figueiredo[12]:
“Nos primeiros, nos disciplinares, a Administração visaria a apurar fatos reputados como faltas administrativas funcionais, que poderiam levar até à demissão. Nos segundos, os sancionatórios, a Administração visaria a apurar infrações administrativas para aplicar punições. Nessas hipóteses, a verdade material sofre temperamentos. Não poderá a Administração agravar as penas, mercê dos recursos. Se assim não fosse, a parte ficaria absolutamente tolhida, quase que impossibilitada de levar sua defesa até o final. Claro está que nesses processos – disciplinares e sancionatórios – vão viger os mesmos princípios do direito penal.”
Doutrina estrangeira: Eduardo García de Enterría e Tomaz-Ramon Fernandez,[13]:
“Tal situação, apoiada na ausência de uma regulação legal destas matérias gerais e na simplicidade dos preceitos legais que atribuem poderes sancionadores à Administração, tem sido corrigida ultimamente por uma firme doutrina jurisprudencial, que figura com justiça entre as melhores reações de nosso contencioso-administrativo, embora lhe falte chegar ainda a suas últimas conseqüências. Esta doutrina jurisprudencial tem estabelecido que essa vasta ausência na legislação de uma ‘parte geral’ das infrações e sanções administrativas não pode ser interpretada como uma habilitação à Administração para uma aplicação arbitrária, senão que se trata de uma lacuna que deve integrar-se necessariamente com as técnicas próprias do Direito Penal ordinário.”
No que toca ao item “d” da página 6, reconhece-se que os valores protegidos pelo direito penal são divergentes daqueles tutelados pelo direito administrativo e que tais ramos do direito têm regras e princípios próprios, mas justamente por terem estatutos diversos não há como se afirmar que um sistema prepondera sobre o outro ou que os valores resguardados por um prevalece sobre outro.
O direito administrativo disciplinar tem seu próprio regramento e especificidades. Nesse sentido, ele pode definir normas de prescrição do modo que mais bem repercuta para o seu desiderato sem, com isso, subverter valores.
O tópico “e”, umbilicalmente ligado ao item “d” visto anteriormente, reforça o entendimento de que não se aplica o instituto da prescrição retroativa (ou, como aqui se defende, prescrição direta diferida), porque a sanção penal busca proteger a coletividade e a sanção administrativa almeja tutelar os interesses funcionais exclusivos da Administração.
O fundamento invocado é decorrente da interpretação de que a norma penal cobre valores mais caros para a sociedade e por isso não poderia o direito administrativo usar da analogia para aplicar instituto exclusivo do direito penal, visando com isso a extinguir a punibilidade administrativa, escorado no critério da prescrição dita retroativa.
É preciso destacar considerações pontuais sobre o argumento.
Primeiro, o direito administrativo disciplinar não utiliza o instituto da prescrição retroativa, pois, como já reiteradamente aduzido, não há pena abstrata a ser distinguida de sanção concreta que retroaja e aplique um prazo prescricional menor do que o inicialmente previsto em lei. O prazo prescricional não muda depois do julgamento. Se uma pena, na visão da comissão, transmuda de advertência para suspensão, por exemplo, então desde o cometimento do ilícito se tratava de conduta punível com suspensão e tal reconhecimento tem mera natureza declarativa.
Segundo, não há, em tese, prevalência de um ramo do direito sobre outro em razão dos valores que protege. Enquanto o direito especializado atender aos ditames constitucionais, sua força normativa mantém-se íntegra.
Terceiro, o direito disciplinar não visa apenas aos interesse funcionais exclusivos da Administração. Este é apenas o objetivo imediato. A pretensão punitiva disciplinar vai além da mera pena como a pena vai além da mera punição. Há, como no direito penal, uma função corretiva e outra preventiva em prol dos administrados que é, na verdade, a mesma população protegida pelo direito penal.
Ademais, a prescrição utilizada imprime a extinção da punibilidade pela inércia da Administração. Ainda que se reitere a não-preponderância de um direito sobre outro, dentro de seu espectro normativo específico, o argumento produzido pelos “irretroativistas” encontra óbice no próprio fundamento. Ora, se a norma penal resguardaria bens maiores, como poderia incidir nela a prescrição retroativa e extinguir a punibilidade do infrator, e na seara administrativa que protegeria apenas interesses funcionais não poderia incidir tal conceito?
Veja que o legislador optou por aplicar o prazo prescricional do direito penal quando o ilícito administrativo também configurar crime (Art. 141, §2º) parecendo ilógico imaginar que, assim procedendo, quis aceitar a prescrição em penas mais graves que levariam até a privação da liberdade e negá-la naquelas de natureza de disciplinamento administrativo.
Discorda-se, por último, da assertiva propugnada no item “f” de que somente a previsão expressa em lei do instituto da prescrição retroativa poderia autorizar o reconhecimento da prescrição das penalidades de advertência e suspensão depois de instaurado processo administrativo disciplinar, dentro do prazo prescricional de cinco anos para demissão, cassação da aposentadoria ou destituição de cargo ou função, mas já transcorrido o interregno prescricional das penalidades menores.
Data venia, não há necessidade de previsão legal.
Como tantas vezes dito neste artigo, o que se aplica no direito administrativo não é a prescrição retroativa, mas a prescrição direta adiada, postergada, protelada ou diferida e que é declarada somente por ocasião da apreciação pela comissão processante ou pela autoridade julgadora. Nessa condição não há necessidade de incluir nomenclatura nova na lei, pois ela já vem impressa em vivas cores no estatuto disciplinar federal.
Feitas estas ponderações acerca das questões formuladas por quem nega os efeitos da prescrição direta diferida, não é despiciendo acrescentar que não se pode interromper prazo que já se esgotou.
Ao invocar o prazo prescricional de cinco anos para instaurar procedimento para apurar responsabilidades puníveis com advertência ou suspensão a Administração estaria fazendo tábula rasa do art. 142 e valendo-se de artifício para justificar a própria inércia, fazendo ressurgir das cinzas, qual fênix, prazo extinto.
Por conseguinte, aplicar a prescrição direta diferida é a medida que mais se coaduna com a política disciplinar a ser perseguida pelo poder público eis que incentiva a imediata apuração de faltas de menor potencial ofensivo para o serviço público ao passo que prestigia, por outro lado, a estabilidade da relações jurídicas com a Administração Pública quando a instiga a se afastar da investigação, pelo decurso de prazo, para tratar de outros temas mais caros e urgentes para o administrado, sem que, com isso, se estimule a impressão de impunidade.
Do que foi exposto pode-se extrair, portanto, que o reconhecimento da prescrição das penalidades de advertência e suspensão no decorrer de processo administrativo disciplinar instaurado depois de transcorridos os prazos prescricionais das referidas sanções, mas antes de findo o prazo prescricional para aplicação de demissão, é legítimo e deve ser sempre adotado pelo Poder Público; que o instituto adotado nestes casos não é o modelo abraçado no direito penal denominado de prescrição retroativa; e que na hipótese vertente o que incide é a própria prescrição direta declarada tardiamente e que, por isso, aqui se convencionou chamar de prescrição direta diferida.
Deduz-se, igualmente, que o registro nos assentamentos funcionais de falta prescrita só deve ocorrer nos casos de prescrição intercorrente, aquela que se concretiza depois de instaurado, tempestivamente, o processo administrativo disciplinar, eis que a Administração não encontrava óbice para apuração e foi oferecido o contraditório e a ampla defesa ao acusado.
4 Análise da necessidade de responsabilização de quem contribuiu para o escoamento de prazo prescricional em processo administrativo disciplinar
O direito de punir do Estado-Administração não é apenas um “direito”, mas também, um “dever”. Trata-se de um poder-dever.
Não subsiste direito discricionário a permitir ao agente público escolher entre instaurar ou não um processo administrativo disciplinar decorrente de fato ilícito posto ao seu conhecimento.
Estando configurado o ilícito com indícios suficientes da materialidade a apuração se impõe por meio da promoção do devido processo legal de ordem disciplinar. No caso, porém, de imediato reconhecimento de improcedência das acusações, o arquivamento deve ser promovido.
A contrario sensu, não poderia a autoridade arquivar a denúncia quando revestida de indícios de materialidade e autoria de ilícito.
Contudo, não poderia instaurar processo disciplinar despido de requisitos mínimos, pois tal conduta poderia sugerir, no mínimo, abuso de autoridade a ser averiguado mediante manuseio do devido processo legal.
Para que a autoridade cumpra seu mister, o ordenamento jurídico estabelece um prazo para o exercício do direito de punir do Estado com duplo propósito: primeiro, forçar a autoridade a adotar as providências necessárias à apuração de responsabilidades funcionais; segundo, evitar que se eternize a ameaça de punição ao servidor, possibilitando que haja estabilidade nas relações entre ele e a Administração e entre esta e o administrado.
Tal prazo foi denominado pela Lei nº 8.112/90 de prescrição administrativa.
Como não é facultado à autoridade competente optar por processar ou não uma denúncia, ela deve ser responsabilizada quando, por sua influência, o prazo prescricional aplicado à espécie de infração transcorrer in albis.
Há quem cogite que a apuração de responsabilidade só deve acontecer quando preenchido o requisito do art. 169, §2º, da Lei nº 8.112/90, naquelas hipóteses em que a autoridade julgadora deu azo à caducidade do prazo para apuração de ilícito funcional também tipificado como crime. Tal ilação não procede.
Não obstante a norma legal se refira apenas àquela hipótese de ilícito funcional igualmente tratado como crime, uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico certamente conduz ao raciocínio de que também nas situações em que não configuram crimes cabe a apuração de responsabilidade.
Apurar faltas funcionais é um dever legal e sua inobservância, por si só, já é suficiente para imputar responsabilidade a quem, por dolo ou culpa, se escusa de cumprir suas obrigações funcionais.
Assim, quanto ao mérito da apuração, a primeira questão a ser levantada diz respeito ao próprio conteúdo da denúncia. Por vezes o denunciante se projeta como último paladino dos valores morais da sociedade e faz revestir sua denúncia de aparente pertinência que não resiste a uma análise mais acurada.
Parece óbvio que nesses casos não se deve abrir processo administrativo disciplinar contra autoridade que permitiu a ultrapassagem do prazo extintivo de punibilidade, pois a denúncia seria descabida.
Difícil seria constatar se a autoridade não processou a missiva por conhecer da improcedência da representação (e nesse caso deveria ter ordenado o arquivamento) ou se não o fez movido por motivos menos nobres.
Ainda assim, se a denúncia seria incapaz de prosperar, nada mais há que se apurar, inclusive a responsabilidade de quem deu causa a prescrição, independentemente do que se passara no foro íntimo da autoridade omissa, pois há carência de justa causa já que inexiste a própria prescrição. Se coubesse analogia com o direito penal, nesse caso, viria à tona, de imediato, a figura do crime impossível por absoluta impropriedade do objeto.
Noutro turno, quando a denúncia é desmantelada ab ovo, o processo é arquivado e não se fala em prescrição, mas, se subsiste suspeita e transcorre o prazo de prescrição, surge a questão que deve ser dirimida mediante a análise criteriosa da denúncia.
Se preciso for, abre-se até sindicância para averiguar a pertinência da denúncia para, somente depois dela, decidir sobre a instauração de processo administrativo disciplinar contra a autoridade faltosa, pois denúncia temerária não se sujeita à prescrição porque é um nada jurídico. Em outras palavras, para que dúvidas não pairem sobre o tema, não há prazo prescricional a ser violado por denúncia totalmente improcedente e, por conseguinte, não há como se responsabilizar agente que não a apura mediante instauração de processo administrativo disciplinar.
A providência acima resguardaria a imagem da autoridade tida por omissa se se constatar a inverossimilhança da representação e, caso contrário, instruiria melhor o processo, de forma a se ponderar sobre a gravidade da conduta da autoridade ao causar tal dano à Administração.
É inequívoco, outrossim, que se a denúncia contiver elementos caracterizadores de autoria e materialidade da infração funcional, abrem-se as portas do processo disciplinar em face daquele que permaneceu inerte enquanto a punibilidade do representado original se extinguia pela ocorrência da prescrição administrativa.
Portanto, em caso de denúncia descabida, não há prescrição a ser violada, nem responsabilização a ser imputada.
Outros fatores devem ser analisados em conjunto, para se aquilatar sobre o cabimento de abertura de processo disciplinar em face de quem deu causa à prescrição. Deve-se considerar as condições de trabalho, o trâmite do processo, a ocorrência de fatos relevantes, o custo/benefício, a gravidade da representação, o dano ao erário, se o caso é isolado e a dificuldade de se identificar os responsáveis, tudo isso em constante cotejo com o princípio da razoabilidade e a prevalência do interesse público.
Todos estes fatores podem ser bem aferidos por intermédio a instauração de processo investigatório, mas se eles já estiverem evidenciados, nada impede que a autoridade competente os considere para decidir sobre a abertura de processo administrativo disciplinar.
Desse modo, constatado que as condições de trabalho com ausência de instrumentos básicos operacionais e gerenciais concorreram para a desorganização involuntária do setor é coerente averiguar, em conjunto com outros elementos, se já não é o caso imediato de arquivamento.
Aliás, sobre a influência das condições de trabalho na formação de culpa do servidor, o STF firmou posição no sentido de que as falhas estruturais do órgão não podem ser transferidas ao agente público, conforme se pode apreender da notícia[14] abaixo transcrita:
“Ao concluir o julgamento hoje, a maioria dos ministros deferiu o Mandado de Segurança (MS 23041) apresentado pela servidora aposentada ao entender que a própria comissão de sindicância atribuiu a perda de prazo para recorrer à desorganização estrutural do Ibama em Florianópolis, que sequer tinha assinatura do Diário da Justiça para acompanhar processos judiciais.
O ministro Gilmar Mendes, que em agosto de 2004 foi o primeiro a votar pelo deferimento do mandado, reafirmou hoje seu posicionamento. ‘O exame dos documentos demonstra à sociedade que as faltas imputadas à impetrante [a procuradora] não restaram configuradas’ e que as falhas identificadas ‘são de natureza fundamentalmente estrutural [do Ibama]’.
Demonstrou-se bem que as falhas detectadas não são imputáveis à impetrante. Na verdade, algumas das alegações e das acusações deduzidas contra a própria impetrante resultam mais de questões de ordem estritamente estrutural [do Ibama], disse Celso de Mello” (notícia relacionada ao MS nº 23041; Relator: Min. Carlos Velloso; Publicação: DJ nº 31 do dia 22/02/2008).
Ora, se para apurar ilícito funcional as condições de trabalho são fatores imprescindíveis para formação da culpa, assim também o é quando se trata de falta funcional específica por inércia causadora de prescrição administrativa.
O trâmite do processo é outro aspecto relevante, pois se durante o prazo prescricional o procedimento teve trânsito por inúmeros setores em prazos relativamente curtos, e não se identifique nesse proceder dolo ou negligência de algum dos agentes envolvidos, então outro elemento se soma para que se aquilate sobre a pertinência de apuração.
O advento de caso fortuito ou força maior deve ser apreciado antes de decidir sobre a investigação. Ora, quando eventos imprevisíveis assolam a unidade administrativa e se faz perder documentos importantes, dos quais resulte difícil recuperação ou reconstituição, tais condições precisam ser sopesadas no momento de tratar sobre responsabilidade pelo prazo prescricional superado.
A autoridade deve, também, verificar a gravidade da representação e a partir dela ponderar sobre outras condições como o dano sofrido pelo erário, por exemplo, pois processar autoridade que não investigou o desaparecimento de um grampeador pode causar danos bem mais relevantes do que o grampeador furtado, pois, além dos recursos que se oferece para a comissão, perde-se, inclusive, a força de trabalho de, no mínimo, dois servidores. Tal providência, em vez de demonstrar zelo com o patrimônio público, aparenta verdadeira afronta ao princípio da eficiência. Ademais, em casos como esse, o resultado da investigação dificilmente imporia pena à autoridade.
5 CONCLUSÃO
Esta breve análise do instituto da prescrição administrativa não tem o condão de transformar em calmaria a procela gerada sobre o tema, entretanto não se exime de enfrentar os pontos mais polêmicos sobre a aplicação da prescrição retroativa no âmbito do processo administrativo disciplinar concluindo pela possibilidade de reconhecimento da prescrição das penalidades de advertência e de suspensão quando ultrapassados os prazos de 180 dias e dois anos, respectivamente, no curso de procedimento apuratório instaurado antes de findo o prazo prescricional de cinco anos erigido para aplicação da penalidade de demissão.
A manifestação exarada neste instrumento refuta, portanto, a aplicação da prescrição retroativa no direito sancionador administrativo, mas admite que os efeitos negados pela corrente “irretroativista” incidem no processo, não obstante sob o manto de outro título jurídico.
Sustentou-se durante todo o trabalho, também, que a analogia com o direito penal é possível, mas que o instituto da prescrição retroativa penal, como tantas vezes externado, não consubstanciava instrumento idôneo para justificar o reconhecimento da prescrição.
Assim, entendeu-se que o instituto aplicado é a própria prescrição direta, reconhecida em momento posterior à instauração de procedimento investigativo, em decisão de natureza declarativa, razão pela qual se prefere a nomenclatura de prescrição direta diferida.
Por ter ocorrido a prescrição em momento anterior à inauguração do processo disciplinador, não haveria justa causa para abertura de apuração e, desse modo, caso continuasse o procedimento, a decisão prolatada nos autos não poderia implicar registro nos assentamentos funcionais, não incidindo, na hipótese, o art. 170 da Lei nº 8.112/90.
O art. 170 está inserido na seção II do Regime Jurídico Único que trata do julgamento e considerando que a prescrição pode ser reconhecida de ofício a qualquer momento, o processo pode ser encerrado depois de instalada a comissão processante sem que haja relatório final e subseqüente julgamento. Em sendo assim, o dispositivo referido se aplica exclusivamente, data venia, aos casos em que ocorreu a prescrição intercorrente, pois, nessa linha, o processo pode ser instalado ainda dentro do prazo prescricional com o oferecimento do contraditório e da ampla defesa.
Quanto à discussão sobre a exigência de responsabilização de quem concorreu para ultrapassagem do prazo prescricional gerando a extinção da punibilidade do acusado, foi aqui esposado que alguns critérios devem ser previamente analisados, antes de qualquer providência, visando a preservar o interesse público.
Nessa toada, ao se constatar a prescrição, é preciso averiguar em que circunstâncias ela se operou, sendo de todo relevante aferir as condições de trabalho, a tramitação processual, o acontecimento de caso fortuito ou força maior, a natureza da infração prescrita, o dano ao erário e a previsibilidade de êxito da investigação.
Instaurar por instaurar o processo disciplinar neste exemplo, quando alguns destes elementos apontam pela inviabilidade do processamento, é atentar para a boa prática administrativa e ferir, frontalmente, princípios basilares da Administração Pública como o da eficiência, economicidade e continuidade do serviço.
Fulcrado, portanto, nas razões acima aduzidas pugna-se pela aplicação da prescrição direta diferida como medida processual mais consentânea com o ordenamento disciplinar vigente, bem como se sustenta a necessidade de adoção de critérios para apurar responsabilidade de agente público que concorreu para superação de prazo prescricional de natureza disciplinar como comportamento administrativo compatível com a missão corretiva do estado.
Informações Sobre o Autor
Aluizo Silva de Lucena
Procurador Federal Ex-Procurador Geral do INSS Ex-Adjunto de Consultoria da PGF Ex-Adjunto de Consultoria do Ministério do Planejamento Ex-Gerente do Registro Aeronáutico Brasileiro Ex-Gerente-Executivo do INSS em Mossoró-RN e Volta Redonda-RJ Ex-Procurador-chefe das procuradorias de Mossoró-RN, Volta Redonda-RJ e Goiânia-GO Especialista em Direito Previdenciário pela UNB Especialista em Direito Público pela UNB