A aposentadoria premial e a aposentadoria dos governadores

Resumo: A todos os cidadãos é reconhecido o direito a uma existência digna e o direito de acesso a um sistema de proteção social. É previsto no sistema constitucional da Seguridade Social a possibilidade de criação de uma vasta gama de regimes de proteção social, todos fundamentados no dever social de trabalhar, o que também inclui o trabalho realizado no exercício do poder político pelos governadores, ou de pessoas que, pelos seus méritos pessoais se tornaram heróis nacionais, dignos de terem a garantia de uma aposentadoria assegurada pelos cofres públicos sem a necessidade de prévio financiamento para a Previdência Social.

Palavras chave: Aposentadoria, aposentadoria premial.

Sumário:1. Introdução. 2. O direito à aposentadoria dos governantes no proto-constitucionalismo português e espanhol. 2.1. As capitulações espanholas. 2.2. As Capitanias hereditárias e o “dever régio de premiar”. 3. A aposentadoria premial concedida ao Imperador D. Pedro II. 4 – A aposentadoria premial dos Ex-combatentes. 5 – A aposentadoria premial dos ex-jogadores das Seleções brasileiras de futebol vencedores das Copas do Mundo de 1958, de 1962 e de 1970. 6. A aposentadoria dos governadores.7. Conclusão.

1. Introdução.

Alguns questionamentos têm surgido nos últimos tempos, via ações diretas de inconstitucionalidade argüidas perante o Excelso Supremo Tribunal Federal, relativamente a algumas aposentadorias concedidas sem o necessário custeio prévio para a Previdência Social, tais como as aposentadorias dos governadores e as aposentadorias concedidas aos ex-jogadores das Seleções Brasileiras de futebol, campeões das Copas do Mundo de 1958, de 1962 e de 1970.

Sobre estas últimas o Excelso Supremo Tribunal Federal emitiu julgamento na semana passada (em 07/05/2014), rejeitando a arguição de inconstitucionalidade suscitada pela Advocacia Geral da União (AGU) contra a Lei Geral da Copa (Lei nº 12.663, de 2012), que concedeu prêmio em dinheiro e auxílio mensal aos mencionados ex-jogadores campeões.

Em tal julgamento o Excelso Supremo Tribunal Federal respaldou a constitucionalidade dos preceitos da Lei Geral da Copa, utilizando, contudo, um fundamento de proteção assistencialista, quando já existiam precedentes constitucionais de regras não escritas oriundas das práticas constitucionais seculares do “dever régio de premiar”, e, ao mesmo tempo em que, apontou na fundamentação de seu julgamento, outros casos precedentes mais recentes sobre os quais não houve qualquer questionamento de inconstitucionalidade.

O caso julgado institucionaliza a prática constitucional das aposentadorias premiais, ao passo que o caso das aposentadorias dos governadores, ainda não julgado, tem como pressuposto o no mesmo “dever régio de premiar” que imigrou da práticas políticas protoconstitucionalistas medievais para o constitucionalismo do Estado Moderno, embora assentadas em pressupostos distintos e causas diversas.

2. O direito à aposentadoria dos governantes no proto-constitucionalismo português e espanhol.

Com a Descoberta das Américas, na virada do século XV para o século XVI, Portugal se viu diante de uma grande missão política: a de ocupar e administrar as terras que conquistou com as suas Grandes Navegações do século XV e aquelas terras que teve que dividir com a Espanha através do Tratado de Tordesilhas.

Divergem as soluções adotadas pela política espanhola e pela política portuguesa para a ocupação dos territórios conquistados, gerando, assim, dois distintos regimes políticos de administração colonial: o primeiro deles é marcado pela “capitulação” e o segundo pelas “capitanias hereditárias”.

Tais políticas eram secundadas por um ideal de “cruzada” ou de “guerra santa”, como observaram os historiadores FRÉDÉRIC MAURO, RUY DE ALBUQUERQUE, MÁRIO DE ALBUQUERQUE, FERNANDEZ CATILEJO e LUÍS FILIPE THOMAZ, citados por ANTÔNIO VASCONCELOS DE SALDANHA[1], ao se referir ao officium missionandi e à motivação religiosa que os Monarcas sempre imprimiram de modo explícito nos mais diversos atos da Expansão ultramarina.

Tanto Portugal como a Espanha possuiam regimes senhoriais, ao tempo da Expansão Ultramarina, como explica ANTÔNIO VASCONCELOS DE SALDANHA[2], citando GONZALEZ ALONSO, para com este concordar no sentido de que os regimes senhoriais português e espanhol estavam assentados num conteúdo jurídico do domínio sobre a terra, em direitos exclusivos dos capitães e em cartas de foral, que compreendiam o estatuto jurídico dos habitantes e a extensão precisa dos poderes dos órgãos de administração donatorial.

Os regimes senhoriais português e espanhol não estavam consolidados num documento único, pois variavam em cada caso de concessão das cartas de forais, como explica ANTÔNIO VASCONCELOS DE SALDANHA.

No entanto, observamos que os regimes senhoriais português e espanhol eram inspirados em princípios políticos e jurídicos fundamentais, que foram instituídos pelo regime senhorial inglês, moldado pelo Rei Willian I, “O Conquistador”, e consistentemente emoldurado pela Magna Carta, de 1215, em vários aspectos[3].

Destacam-se como princípios políticos e jurídicos do sistema senhorial inglês, adotados pelos sistemas senhoriais português e espanhol, o domínio do Rei sobre as terras e o compartilhamento da jurisdição entre o Estado e a Igreja.

Obviamente não havia nesses sistemas senhoriais medievais qualquer reconhecimento de direito à aposentadoria dos governantes, nos moldes definidos pelo Direito moderno, porque não estavam baseados num sistema de poupança coletiva, mas, em se tratando de pessoas investidas de poder político, a transição do regime monárquico para o regime republicano nos obriga a certas reflexões históricas ao tratamos do tema da aposentadoria dos governadores.

2.1. As capitulações espanholas.

A História[4] registra que “o processo de exploração da América colonial foi marcado pela pequena participação da Coroa, devido à preocupação espanhola com os problemas europeus, fazendo com que a conquista fosse comandada pela iniciativa particular, mediante o sistema de capitulações”.

“Capitulação” é uma palavra que tem origem no latim medieval “capitulare”, e que significa ato ou efeito de capitular; convenção segundo a qual um chefe militar entrega ao inimigo o posto que defende ou as tropas que comanda; rendição; sujeição, submissão, renúncia; acordo entre litigantes; transigência à força das circunstâncias; cessão[5].

A História[6] explica que as capitulações eram contratos, pelos quais a Coroa espanhola concedia permissão para a exploração, conquista e povoamento de terras, com fixação de direitos e de deveres recíprocos, delas tendo surgido os “adelantados”, que eram pessoas responsáveis pela colonização e que acabaram representando o poder de fato nas terras coloniais da Espanha, a exemplo de Cortez e Pizarro, e que, apesar de terem incorporado ao domínio espanhol grandes quantidades de terra, não conseguiram implementar um sistema eficiente de exploração, geralmente em virtude da existência de disputas entre aqueles que participavam do empreendimento. Em conseqüência, à medida que se revelavam as riquezas do Novo Mundo, a Coroa foi centralizando o processo de colonização, anulando as concessões feitas aos particulares.

A instituição espanhola dos adelantados, guardava, portanto, uma certa semelhança com a instituição portuguesa das capitanias hereditárias, mas estas nunca tiveram conotação contratual e foram instituídas por lei.

Embora existam parâmetros de comparação entre os regimes senhorais portugueses e espanhóis para a colonização de suas possessões ultramarinas, ainda não encontramos nada de relevante no regime das capitulações sobre a concessão de pensões e de rendas para os emissários de Sua Magestade o Rei de Espanha.

2.2. As Capitanias hereditárias e o “dever régio de premiar”.

Antes mesmo da Coroa portuguesa decidir o que fazer com as terras descobertas de sua colônia ultramarina, enviou para a Terra de Vera Cruz Gaspar Lemos, com a missão de percorrer o litoral situado entre o atual Estado do Rio Grande do Norte e o Uruguai. A História[7] registra que Gaspar Lemos havia nascido no Reino de Leão (um dos feudos que deu origem à Espanha), serviu ao Rei português Afonso IV (cujo reinado durou de 1325 a 1357), recebeu terras doadas pelo rei D. João I e constituiu “morgados”.

Etimologicamente, “morgado” é uma palavra de origem latina (“maioricatu”), que significa “mais velho”; filho primogênito ou herdeiro ou possuidor de bens vinculados; filho mais velho ou filho único; propriedade vinculada ou conjunto de bens vinculados que não se podiam alienar ou dividir, e que em geral, por morte do possuidor, passava para o filho mais velho; o possuidor desses bens; coisa muito rendosa[8].

A instituição de morgados constitui uma ponte entre o direito romano e o direito português medieval e fundamenta a instituição das Capitanias Hereditárias.

D. Sebastião instituiu, pela Lei de 15 de setembro de 1557, o “morgadio”, que “significava o direito de herança, ou seja, a passagem dos bens familiares ao filho homem primogênito, a fim de conservá-los indivisos e intransferíveis”.

Esse regime do morgadio foi abolido no Brasil em 1835, durante o Período Regencial[9].

Porém, ao que tudo indica, o morgadio já era uma instituição política antes de se tornar uma instituição de direito, pois em 1532 inspirou o Rei D. João III a instituir as Capitanias Hereditárias portuguesas no continente africano e no Brasil.

A História[10] registra os fundamentos da concessão das Capitanias Hereditárias e alguns aspectos dos direitos e deveres por elas estabelecidos entre o Rei de Portugal, os Capitães e os colonos:

Muito embora estivesse interessado em investir no processo de colonização do Brasil, faltavam também os recursos para tal projeto, sendo assim, Portugal resolveu implantar um sistema em que essa tarefa fosse transferida para as mãos da iniciativa particular, tendo o rei Dom João III dividido o Brasil em 15 grandes lotes (as capitanias) e os entregou a pessoas de razoáveis condições financeiras, os donatários, que eram a autoridade máxima dentro da sua capitania, tendo a responsabilidade de desenvolvê-la com seus próprios recursos. Com a morte do donatário, a administração da capitania passava para seus descendentes, surgindo daí a expressão capitania hereditária.

As relações entre o rei, os donatários e os colonos eram definidos primeiramente pela carta de doação, que transferia a posse da capitania da Coroa para o donatário, e pelo foral, que estabelecia direitos e deveres de todos. Cabia ao donatário, em primeiro lugar, colonizar a capitania, fundando vilas, em seguida, deveria policiar as suas terras, protegendo os colonos contra o ataque de índios e estrangeiros. Deveria, também, fazer cumprir o monopólio real do pau-brasil e do comércio colonial e, caso fossem encontrados metais preciosos, 1/5 de seu valor seria pago à Coroa. Em contrapartida, além de passar a capitania a seus herdeiros, o donatário tinha o direito de doar sesmarias a colonos, escravizar índios para trabalho agrícola, montar engenhos, além de cobrar impostos e exercer a justiça em seus domínios”.

ANTÔNIO VASCONCELOS DE SALDANHA[11] explica que o Regime das Capitanias Hereditárias foi uma das mais fecundas manifestações do regime senhorial português e tinha na forma de domínio da terra, nos direitos exclusivos e nas cartas de foral a base de compreensão do estatuto jurídico dos habitantes e a extensão precisa dos poderes dos órgãos de administração donatarial. No plano constitutivo do núcleo comum às várias modalidades de capitanias existentes na área atlântica, eram definidos: a) a base territorial de propriedade e jurisdição; b) a autoridade investida nos Capitães e, c) o rendimento econômico dos Capitães. No que concerne aos rendimentos econômicos, haviam três classes de concessões: 1) as rendas derivadas do próprio exercício da autoridade ou faculdades dos Capitães (a exemplo das pensões dos tabeliães) e as pensões fixas cobradas sobre atividade de serras de água, e os chamados direitos exclusivos, como o dos fornos ou da venda do sal; 2) as rendas diretamente calculadas e cobradas em função dos réditos reais (a exemplo da “redízima”) e, 3) as rendas de caráter meramente territorial, decorrentes da exploração das terras próprias dos Capitães.

Naturalmente que os direitos de pensão reconhecidos pelas Cartas de Doação e pelas Cartas de Forais, embora assegurassem aos Capitães uma renda, estavam longe de poder ser comparados com o moderno benefício previdenciário da pensão por morte do segurado, mas implicava no reconhecimento da instituição de uma renda vitalícia transferível hereditariamente para os herdeiros do donatário, como reconhecimento da Coroa portuguesa ao esforço e à dedicação do Capitão ao cumprimento de uma missão de Estado.

Efetivamente, o governante, por se dedicar a atividades de Estado, que lhe foram outorgadas, pelas Cartas de Doação e pelas Cartas de Forais, deveria ser remunerado pelo seu trabalho.

ANTÔNIO VASCONCELOS DE SALDANHA[12] observou que “se atentarmos nas motivações que subjazem à concessão de capitanias, haverá a notar que – em confronto com outras doações régias, inclusive as de senhorios metropolitanos – estas, de capitanias, não se reportam a uma única causa donandi, específica ou determinada, mas a um jogo de causas articuladas e afins a três tipos de desiderato: a recompensa do mérito próprio do herdado do súbdito beneficiado, a prossecução de estratégias oficiais de ordem política e econômica, e a satisfação de obrigações inerentes à defesa e progresso da Fé in partibus infidellium” e põe em destaque o dever real de premiar e galardoar, corolário da justiça, exercitado nas concessões das Capitanias Hereditárias:

O dever de premiar ou galardoar, além de se centrar, como dissemos, na própria construção das doações régias, era uma componente indissociável da prática genérica da justiça, entendida como um dos atributos régios fundamentais. Referindo-se aos primórdios da nacionalidade, escreveu o Professor Paulo Merêa que se ‘havia idéia generalizada nestes tempos e que por certo a ninguém ocorreria pôr em dúvida, embora se protestasse muitas vezes contra os abusos a que dava ensejo, era a de que os reis tinham não só o direito, mas o dever de distribuir mercês, premiando os serviços dos seus vassalos e fiéis e assegurando-lhes a condição e estado que os seus deveres exigiam. Por isso os moralistas dessas eras, se por um lado enalteciam a justiça do rei como virtude capital, logo a par colocavam a sua liberalidade, predicado por igual inerente a um príncipe digno desse nome.

Efetivamente, o dever régio de premiar tem uma genealogia antiga e o sólido amparo da doutrina. No quadro dual em que a filosofia escolástica decompôs o conceito estrito de justiça, a justiça distributiva contrapunha-se àquela outra que se denominava comutativa. E se esta tinha como enquadramento a relação de laços estabelecidos entre pessoas privadas, a primeira respeitava às relações de todo da comunidade com cada membro seu em particular, harmonizando encargos e prêmios segundo a capacidade e mérito de cada um.

 (…) Manuel Álvares Pegas, o célebre causídico seiscentista que, contra as pretensões da Coroa, defendeu os direitos dos Condes de Vimioso à Capitania de Pernambuco, apresentou precisamente como ponto primeiro da sua Alegação de Direito o postulado de que ‘é regalia do Príncipe, própria natureza do Rei premiar os vassalos que o servem e remunerar os serviços que se fazem’ (…)”.

Portanto, desde a Idade Média está estabelecida a premissa jurídica da justiça social, calcada na técnica da autoproteção, obtida pela remuneração do trabalho prestado a serviço do Estado Medieval, como forma de subsistência dos seus vassalos, seja ele um simples súdito ou um Capitão, donatário de Capitania Hereditária.

Estamos diante de um preceito protoconstitucional moldado sob a justificação político-jurídica de ser uma “regalia do Príncipe” conceder privilégios, prêmios, rendas constituídas e outras benesses.

O “dever régio de premiar” é um preceito constitucional não escrito, mas que está moldado como um poder-dever do Estado por uma secular prática protoconstitucional dos Estados medievais europeus.

Antes do Período Medieval, no entanto, a História universal registra que no Período Pré-clássico, as cidades gregas sagravam heróis os seus cidadãos que venciam os jogos olímpicos e lhes concediam uma renda mensal vitalícia para que pudessem sobreviver com dignidade sem precisar trabalhar para o resto da vida.

A História brasileira recente reeditou essa prática política ancestral e universal que encontra justificação na solidariedade social e no caráter premial da concessão de certas aposentadorias sem que os agraciados tivessem contribuído para a formação de uma reserva matemática.

O governo brasileiro instituiu aposentadorias premiais em mais de uma época e por mais de um fundamento, exemplificativamente, nas seguintes ocasiões: a) quando concedeu aposentadoria ao Imperador deposto D. Pedro II; b) quando concedeu condições especiais de aquisição de aposentadoria aos ex-Combatentes da II Guerra Mundial; c) quando concedeu aposentadoria aos ex-jogadores campeões das Seleções Brasileiras de futebol campeões das Copas do Mundo de 1958, de 1962 e de 1970.

3. A aposentadoria premial concedida ao Imperador D. Pedro II.

Provavelmente a primeira aposentadoria premial concedida pelo governo brasileiro tenha sido a que foi concedida a D. Pedro II pelos republicanos.

ALIOMAR BALEEIRO[13] registra que, em 16 de novembro de 1889, no dia seguinte à Proclamação da República, que aboliu o regime monárquico no Brasil, o Governo Provisório da I República baixou o Decreto nº 2, que estabeleceu uma aposentadoria de cinco mil contos de réis para prover “a decência da posição do ex-Imperador e as necessidades do seu estabelecimento no estrangeiro”, sem prejuízo das “vantagens asseguradas ao chefe da dinastia deposta e sua família na mensagem do Governo Provisório, datada de hoje” (artigo 2º).

D. Pedro II, o Imperador brasileiro deposto, se recusou a aceitar essa aposentadoria premial, primeiramente porque dela não necessitava efetivamente para sobreviver com dignidade, e, certamente, porque nela havia um velado propósito de humilhação à pessoa do, até então, Imperador do Brasil, como sugere a história.

Não obstante, a concessão da aposentadoria premial foi feita e está devidamente justificada na mesma regra do “dever régio de premiar”, e, neste caso, premiou até mesmo o rei deposto, com o declarado propósito de prover a decência da posição do ex-Imperador.

O “dever régio de premiar” começa a ser lido como um dever régio de amparar e se institucionalizou com as primeiras leis republicanas.

Além da aposentadoria premial, o referido Decreto nº 2 faz menção expressa a uma mensagem feita, na mesma data, pelo mesmo Governo Provisório da I República, e que assegurou outras vantagens (cuja enumeração foi negligenciada pela história) ao Imperador deposto.

4 – A aposentadoria premial dos Ex-combatentes.

Acreditamos que segunda manifestação da aposentadora premial no direito brasileiro se deu com o fim da II Guerra Mundial, em 1945.

O governo brasileiro instituiu um sistema de condições especiais de aquisição do direito à aposentadoria pelos ex-combatentes que lutaram na Itália, diante da aclamação pública que tiveram nas ruas, pelo povo brasileiro,  os soldados brasileiros que integraram a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que lutou na Itália ao lado das tropas aliadas do Ocidente para libertar a Europa da dominação nazista.

O regime de previdência social dos ex-combatentes não é tecnicamente um regime especial de previdência social para eles, porque apenas lhes confere regalias e privilégios para a aquisição de benefícios previdenciários, notadamente o benefício da aposentadoria por tempo de serviço (atualmente designada como aposentadoria por tempo de contribuição) em condições especiais de carência em outros regimes de previdência social (atualmente o Regime Geral da Previdência Social e os diversos Regimes Próprios dos Servidores Públicos, federal, estaduais ou municipais).

As condições mais vantajosas é que se revestem de um caráter premial, dentro de regimes contributivos, não deixando de ser um privilégio conferido aos ex-Combatentes.

5 – A aposentadoria premial dos ex-jogadores das Seleções brasileiras de futebol vencedores das Copas do Mundo de 1958, de 1962 e de 1970.

A Lei Geral da Copa (Lei nº 12.663, de 2012), teve a sua constitucionalidade parcialmente questionada, via Ação Direta de Inconstitucionalidade, interposta pela Procuradoria Geral da República (PGR) junto ao Excelso Supremo Tribunal Federal, porque teria incorrido em inconstitucionalidades, dentre elas, porque teria concedido aposentadoria aos jogadores das seleções brasileiras que ganharam a Copa do Mundo dos anos de 1958, 1962 e de 1970, prêmio em dinheiro e auxílio mensal.

Ao julgar o processo de número ADI 4976, em 07/05/2014, por dez votos contra um (o único voto dissidente foi proferido pelo Ministro Joaquim Barbosa), o Plenário do Excelso Supremo Tribunal Federal acatou o voto do Ministro Relator, Ricardo Lewandowski, que expôs em sua fundamentação a existência de 25 leis posteriores à promulgação da Constituição de 1988 que dispõem sobre o pagamento de pensões, sem questionamento de previsão orçamentária, a exemplo das que foram concedidas aos descendentes de Tiradentes, aos sertanistas Cláudio e Orlando Villas-Boas, ao médium Chico Xavier e aos seringueiros da Amazônia, denominados de “soldados da borracha.

A Lei Geral da Copa teve a sua constitucionalidade preservada pelo Guardião da Constituição porque, em todos esses casos paradigmas de concessão de aposentadorias premiais, o Congresso Nacional Brasileiro levou em consideração o caráter assistencial da concessão, o alcance da atividade social dessas pessoas e o atendimento de demandas sociais geradas por fatos “excepcionais, imprevisíveis e não reeditáveis”, que não exigem contraprestação.

6. A aposentadoria dos governadores.

O “dever régio de premiar”, como visto, justificou em certa fase da expansão do regime senhorial português das Capitanias Hereditárias a concessão de privilégios aos Capitães, especialmente títulos nobiliárquicos que os assemelhavam à nobreza portuguesa, uma vez que os Capitães não eram escolhidos entre nobres de sangue, o que é um dos traços distintivos entre o regime político senhoral das Capitanias e o regime político feudal da Metrópole.

Dentre os elementos distintivos dos regimes políticos senhorial e feudal destaca-se uma fundamental circunstância fática sociológica: nas terras conquistadas não haviam vassalos.

Sem vassalos nas terras conquistadas, Portugal não tinha condições de implantar um sistema de rendas feudais baseadas no contrato de arrendamento feudal nas colônias ultramarinas africanas e no Brasil. Sem que pudessem obter renda por conta própria, os Capitães precisavam de um suporte financeiro que lhes permitissem sobreviver em suas Capitanias. Em conseqüência, o regime senhorial das Capitanias outorga aos Capitães o direito às pensões e a outras rendas, nas Cartas de Forais.

A origem das aposentadorias dos governantes está nessas Cartas de Forais, porém se transmutou, no Período Moderno, para uma renda de sobrevivência que se tornou inerente à personalidade pública, visando preservar a dignidade do cargo exercido, sem prejuízo de outras vantagens que lhe tenham sido asseguradas por lei, tal como foi estatuído no artigo 2º do Decreto nº 2, de 16 de novembro de 1889, do Governo Provisório da I República.

Desde a eleição para o cargo de governador (isso também ocorre nas eleições para os cargos de Presidente da República e de Prefeitos dos Municípios, mas só as aposentadorias dos governadores tiveram sua constitucionalidade contestada judicialmente) o eleito se torna uma pessoa pública, não tendo outra alternativa após o término do mandato eletivo senão se candidatar a outro cargo público e, assim fazer carreira profissional como político, pois lhe seria extremamente difícil exercitar uma profissão liberal ou um emprego privado depois de ter se tornado uma personalidade pública, encarnação da Chefia de Governo. Por isso precisa ser financeiramente sustentado, juntamente com os membros de sua família, com uma renda mensal adequada para o suprimento das despesas com suas necessidades pessoais e familiares de natureza patrimonial.

ANTÔNIO CARLOS DE OLIVEIRA[14] registra que em 1º de outubro de 1821, o ainda Príncipe-Regente Pedro de Alcântara, promulgou um Decreto Régio concedendo aposentadoria aos mestres e professores, após 30 anos de serviço, e assegurando um abono de 1/4 (um quarto) dos ganhos aos que continuassem em atividade. Apesar de ter afirmado que não se tem notícias de que alguém tenha auferido tais benefícios, especula que essa aposentadoria correspondia a uma prerrogativa funcional concedida aos primeiros professores que vieram do estrangeiro para lecionar nos primeiros cursos jurídicos fundados no Brasil por D. João VI. Esses professores tinham o poder de requisitar aposentos nas residências das famílias, pois àquela época cerca de 80% da população brasileira vivia no campo e apenas 20% nas cidades, sendo estas desprovidas de infra-estrutura para abrigar os viajantes, por isso não tinham hotéis, nem restaurantes.

Ao que tudo indica o fundamento jurídico desse Decreto Régio é a mesma premissa original do regime senhorial das Capitanias Hereditárias: era necessário criar condições de sobrevivência dos primeiros professores que eram enviados de Portugal para lecionar nos primeiros cursos jurídicos criados aqui no Brasil. E neste caso a mera instituição de uma renda não resolveria o problema, porque faltava infra-estrutura urbana para a recepção de estrangeiros e viajantes nas vilas e cidades brasileiras.

Essa aposentadoria, como poder administrativo de requisição de aposentos (“albergamento”) era usufruída durante a vida ativa dos professores, sendo despida de caráter “premial”, passando a assumir a natureza de uma prerrogativa funcional para o recebimento de um salário indireto, também conhecido em direito do trabalho como “salário in natura”.

A aposentadoria dos governadores (dos Presidentes da República e dos Prefeitos municipais) assume, portanto, a natureza jurídica de remuneração da inatividade para manutenção da dignidade do cargo público exercitado, assegurando ao aposentado uma vida digna (o ócio cum dignitate), diante da impossibilidade de os ex-governadores retornarem às atividades privadas que exerciam antes de terem sido eleitos, assim como outras atividades privadas ofertadas pelo Mercado de Trabalho.

Outra possibilidade teórica é a de que as aposentadorias dos governadores seja fundamentada nas teorias do salário diferido e do salário futuro, atribuindo-lhes um aspecto de contraprestação futura do trabalho que realizaram em prol da administração dos interesses públicos  durante o tempo em que exerceram seus mandatos, e que, por isso, estiveram impedidos de exercer atividades de trabalho privado capaz de lhes permitir a filiação e a contribuição para um regime de previdência social próprio para os trabalhadores do setor privado. E como Chefes de Governo não poderiam ser protegidos com dignidade dentro dos limites dos planos de benefícios dos regimes jurídicos próprios de previdência social dos servidores públicos que lhe foram subordinados.

Ademais, são muitos os impedimentos legais impostos aos governadores, durante o exercício do mandato, como por exemplo, o impedimento para o exercício do magistério. Antônio Augusto Junho Anastasia, meu ilustre colega de magistério jurídico na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, foi obrigado a se licenciar no cargo de Professor de Direito Administrativo, sem percepção de vencimentos, tão logo foi empossado no cargo eletivo de Vice-Governador do Estado de Minas Gerais, em janeiro de 2007, persistindo, na atualidade, esse licenciamento sem proventos, eis que foi empossado no cargo de Governador do Estado de Minas Gerais, em 2010, e foi reeleito para o mesmo cargo eletivo, com posse em 1º de janeiro de 2011. Na atualidade, desde o mês passado (abril de 2014) continua licenciado sem o recebimento de subsídios, pois se desincompatibilizou do cargo de governador para ser candidato indicado pelo seu partido para concorrer a uma vaga de Senador pelo Estado de Minas Gerais.

Em outro caso, o então Prefeito de Belo Horizonte, o médico Célio de Castro, foi acometido por um AVC em pleno exercício do cargo, levando a Câmara Municipal de Belo Horizonte a ter que aprovar, em regime de urgência, um regime de previdência municipal que pudesse ampará-lo em sua enfermidade, pois não tinha patrimônio suficiente para subsistir sem a proteção previdenciária diante do infortúnio que o impediu de concluir o seu mandato eletivo por fatores alheios à sua vontade. Alguns anos após, veio a falecer, tendo sido assegurado à sua viúva o recebimento da pensão por morte.

Qual seria o fundamento jurídico ou o fundamento ético ou moral que justificaria a perda ou a limitação do direito à proteção social pelo cidadão que se dedica à vida pública?

Nenhum, é a resposta, pois a proteção previdenciária é compulsória para todos os cidadãos que trabalham, desde os comandos da constituição brasileira até a lei previdenciária de menor hierarquia jurídica. Ou do ponto de vista do Supremo Tribunal Federal, que atribuiu à aposentadoria premial a natureza de benefício assistencialista, deverá ser concedida “a quem dela necessitar” (artigo 203, caput, da constituição brasileira de 1988).

Do ponto de vista técnico, não justifica a instituição de um regime próprio de previdência social para uma pequena categoria de cidadãos, pois isso é típico e próprio da previdência coletiva, que é pouco conhecida no Brasil.

Do ponto de vista atuarial de um regime de previdência social, o período de licenciamento sem vencimentos implica na necessidade de o segurado se inscrever na condição de segurado facultativo e contribuir com carga contributiva mais elevada, para manter a sua condição de segurado, qualquer que seja o regime de previdência social. Não cabe, no entanto, o enquadramento dos agentes políticos e dos agentes públicos do Estado no Regime Geral de Previdência Social, que é o único que contempla essa possibilidade, mas que rege exclusivamente a situação dos trabalhadores do setor privado (à exceção dos servidores públicos que não  sejam amparados por regime próprio do previdência social).

7. Conclusão.

A constitucionalidade das leis estaduais que instituíram as aposentadorias dos governadores advém das práticas protoconstitucionais medievais do regime senhorial das Capitanias Hereditárias e do “dever régio de premiar” seus Capitães e seus vassalos.

Também é desse “dever régio de premiação” que advém o fundamento das aposentadorias premiais que foram outorgadas ao Imperador deposto D. Pedro II, das concessões de condições especiais de aquisição de aposentadorias pelos ex-Combatentes da II Guerra Mundial e das rendas mensais assistenciais que constituem verdadeiras aposentadorias não contributivas concedidas aos ex-jogadores das Seleções Brasileiras campeãs das Copas do Mundo de 1958, de 1962 e de 1970, assim como de outras aposentadorias premiais lembradas pelo Excelso Supremo Tribunal Federal no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade de número ADI 4976, em 07/05/2014, sem a necessidade de financiamento prévio por parte dos cidadãos que foram por elas contemplados.

A despeito dos questionamentos de inconstitucionalidade, o Poder Público deve providenciar a instituição de regimes de benefícios próprios para os agentes políticos exercentes de mandatos públicos eletivos de Governador de Estado, sejam eles contributivos ou não; sejam eles de previdência social ou de previdência coletiva; sejam eles de previdência ou de assistência social, mas, principalmente, que sejam eles arrimados nas práticas protoconstitucionais medievais que constituem fundamentos históricos para as políticas públicas de proteção social albergadas pela constituição brasileira de 1988, e de todas as constituições que a antecederam, a exemplo das políticas públicas agora inseridas nas leis estaduais, promulgadas pelos Estados de Minas Gerais, do Mato Grosso do Sul, do Amazonas, e por outros Estados-Membros da República Federativa do Brasil, que asseguram o direito de aposentadorias aos seus ex-governadores, que também são cidadãos que merecem e que precisam do amparo social, durante e após o término do cumprimento de seus mandatos eletivos.

 

Referências
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FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2a. ed.. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1986.
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OLIVEIRA, Antônio Carlos de. Direito do Trabalho e Previdência Social; Estudos. São Paulo: LTR. 1996.
SALDANHA, Antônio Vasconcelos de. As Capitanias; O Regime Senhorial na Expansão Ultramarina Portuguesa. Funchal: Centro de Estudos de História do Atlântico. 1992. ISBN 972-648-054-X. 295 p.
 
Notas:
[1] As Capitanias; O Regime Senhorial na Expansão Ultramarina Portuguesa. Funchal: Centro de Estudos de História do Atlântico. 1992. p. 62/63.

[2] As Capitanias:… p. 4.

[3] L. B. CURZON (English Legal History. Londres: MacDonald & Evans Ltd. 1968. p. 24/25) explica que, em 1214, os lordes ingleses, insatisfeitos com a tirania e os caprichos do violento Rei João, o quarto filho do Rei Henrique II, se inspiraram na Carta de Coroação de Henrique I (“The Coronation Charter of Henry I”), para elaborar uma carta de direitos – “The Greater Charter of Liberties” (mais conhecida como Magna Carta). Após o Rei João protelar a aceitação dessa carta, por três meses, os barões reunidos em assembléia, em Runnymede, a impuseram sob a ameaça de luta armada. Aceita a carta, esta foi datada de 15 de junho de 1215, contendo um preâmbulo e 63 cláusulas, que podem ser agrupadas, segundo L. B. CURZON, em sete grupos de disposições: a) eclesiásticas; b) feudais obrigatórias; c) cidades e distritos; d) provisionamento e garantias reais; e) lei e justiça; f) princípios constitucionais; g) efetividade da carta.

[4]  América Colônia: A colonização espanhola. In: HISTORIANET – A nossa história. Disponível em http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=35, acessado em 02/01/2011.

[5] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2a. ed.. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1986. p. 344.

[6] América Colônia: A colonização espanhola. Idem, ibidem.

[7] LEITE RIBEIRO, Carlos. Brasil 1500: Da Descoberta até a chegada do 1º Governador. Bloco 1. Disponível em http://www.caestamosnos.org./Brasil_1500/Bloco1.html, acessado em 02/01/2011.

[8]  FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Ob. cit.. p. 1160.

[9]  BOTELHO, Ângela Vianna e REIS, Liana Maria. Dicionário Histórico Brasil: Colônia e Império. 5a. ed. Belo Horizonte: Autêntica. 2006. p. 136.

[10] Capitanias Hereditárias. In: História do Brasil, História Capitanias Hereditárias… Disponível em http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/capitanias-hereditarias/capitanias-hereditarias… Acessado em 02/01/2011.

[11] As Capitanias:… p. 3, 4, 25 e 26.

[12] As Capitanias… p. 61.

[13] Constituições Brasileiras: 1891. v. 2. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos. 2001. p. 17/19.

[14] Direito do Trabalho e Previdência Social; Estudos. São Paulo: LTR. 1996. p. 91.


Informações Sobre o Autor

Milton Vasques Thibau de Almeida

Doutor em Direito pela UFMG. Professor Adjunto de Direito do Trabalho e Previdência Social da Faculdade de Direito da UFMG. Professor dos Cursos de Graduação e de Mestrado em Direito da Universidade de Itaúna. Juiz Convocado do Tribunal Regional do Trabalho da 3a. Região


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