A aproximação entre os modelos difuso e concentrado no controle de constitucionalidade no Brasil

Resumo: Aproximação entre os modelos difuso e concentrado no controle de constitucionalidade tem sido uma constante na atualidade (um caminho sem volta). Com poucas semelhanças quando da introdução no nosso sistema (primeiro o difuso; depois, o concentrado), hoje, principalmente após mudanças na legislação e da própria redefinição do papel do Supremo Tribunal Federal, há uma inegável convergência entre esses dois sistemas. Almeja-se, neste estudo, demonstrar o caminho percorrido até essa “aproximação”, sem descuidar de apresentar as posições doutrinárias existentes sobre o tema. Ao final, busca-se revelar a plena constitucionalidade dessa aproximação entre os modelos difuso e concentrado, assim como os benefícios que essa – nova – solução apresenta para a sociedade.    


Palavras-chave: Aproximação. Modelos. Difuso e concentrado. Possibilidade.


Abstract: Rapprochement between the diffuse model and concentrated control of constitutionality has been a constant in today (one-way trip). With little in common when introducing in our system (the first diffuse and then concentrate) today, especially after changes in legislation and the redefinition of the role of the Supreme Court, there is an undeniable convergence between these two systems. One hopes in this study show the path taken to this “approach”, taking care to present the doctrinal positions on this theme. At the end, we seek to reveal the full constitutionality of this connection between the diffuse model and concentrate, as well as the benefits that – new – solution has to society.


Keywords: Approach. Models. Diffuse and concentrated. Possibility.


Sumário: 1 – Introdução; 2 – A aproximação entre os modelos difuso e concentrado no controle de constitucionalidade; 2.1 – Inserção histórica do modelo difuso de constitucionalidade; 2.2 – Origem do modelo difuso de constitucionalidade no Brasil; 2.3 – Distinções clássicas entre os dois modelos de controle de constitucionalidade; 2.4 – A convergência ou aproximação entre os dois modelos no controle de constitucionalidade; 2.5 – A posição da doutrina acerca da tendência de convergência dos modelos; 2.6 – Precedentes do Supremo Tribunal Federal que sinalizam a convergência entre os dois sistemas; 2.7 – O julgamento que poderá dar novos rumos ao controle de constitucionalidade no Brasil – Reclamação n. 4335-5/AC; 2.8 – A possibilidade constitucional da convergência entre os dois sistemas; 3 – Considerações Finais; 4 – Referências


1. INTRODUÇÃO


No Brasil, as duas formas de controle de constitucionalidade (a concreta e a abstrata) surgiram em momentos distintos, e espelhadas em modelos igualmente diversos (o norte-americano, que é difuso; europeu, concentrado).


Cada uma delas, na sua origem, foi concebida com características próprias, merecendo especial destaque os diferentes efeitos que elas geram sobre o direito de terceiros (efeitos subjetivos). Vale dizer: o controle de constitucionalidade concreto, desde a sua origem no Brasil, gerava efeitos somente na relação daqueles que fizeram parte de lide (inter partes); por sua vez, o controle abstrato projetava (e projeta) efeitos para todos (erga omnes).


Por força da existência desses dois modelos de controle de constitucionalidade, a doutrina pátria denomina o nosso sistema como sendo “híbrido”.


Ocorre que, nos últimos anos, principalmente após uma nova postura do Supremo Tribunal Federal, há uma clara aproximação desses dois modelos, quadro que já está sendo notado pela doutrina moderna.


O presente ensaio, pois, visa a explorar essa nova configuração do modelo de controle difuso de constitucionalidade.


2. A APROXIMAÇÃO ENTRE OS MODELOS DIFUSO E CONCENTRADO NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE


2.1 – Inserção Histórica do Modelo Difuso de Constitucionalidade


O controle difuso de constitucionalidade surgiu nos Estados Unidos da América, no conhecido caso Marbury versus Madison, em 1803.  Nesse litígio, o juiz Marshall declarou a preponderância da Constituição sobre as leis. Assentou que os juízes, diante do conflito entre o ato normativo e a Constituição, devem deixar de aplicar aquele em benefício desta.


Tem-se, pois, que o controle jurisdicional, ou judicial review, não é fruto de uma Constituição, mas, sim, da jurisprudência.


A relevância da decisão é bem explicitada nessa seguinte passagem:


“Ao lado da teoria da federação, seguramente a criação do controle de constitucionalidade das leis é a maior contribuição da América para a teoria da Constituição. É fruto não apenas das peculiaridades históricas do common law, mas também do gênio do Chief Justice Marshall no célebre caso William Marbury vs James Madison em 1903” (CRUZ, 2004:325)


.A decisão de Marshall foi tão pioneira que somente passados mais de meio século (em 1857) é que a Corte Suprema invalidou uma lei federal[1], oportunidade em que entendeu incompatível com a Constituição a seção 8ª do Missouri Compromise Act, de 1850, que proibira a escravidão nos territórios.  


Com base nesse modelo difuso, não há um órgão central imbuído exclusivamente do exame de constitucionalidade das leis. Qualquer juiz, no exame do caso concreto, pode declarar a inconstitucionalidade das leis.


2.2 – Origem do modelo difuso de constitucionalidade no Brasil 


No Brasil, a Constituição de 1824 não previu qualquer sistema de controle de constitucionalidade (seja difuso, seja concentrado). A forte influência francesa no direito brasileiro da época ensejou que se outorgasse ao Poder Legislativo a atribuição de fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las, bem como velar na guarda da Constituição (MENDES, 2009:1083).


A primeira Constituição a prever o controle de constitucionalidade (no caso, difuso) foi a de 1891 (art. 59, § 1º, “a” e “b”).


A influência do direito norte-americano sobre as personalidades marcantes, como a de Rui Barbosa, foi decisiva para a adoção, no Brasil, do modelo difuso (MENDES, 2009, p. 1084).


Posteriormente, a Lei 221, de 20.11.1894, elucidou a forma – até então inexistente no país – de controle de constitucionalidade.  


2.3 – Distinções clássicas entre os dois modelos de controle de constitucionalidade


Com origens distintas, os dois sistemas de controle de constitucionalidade  apresentam distinções clássicas.


 No sistema difuso (com origem no direito norte-americano como visto), qualquer Tribunal do país têm a prerrogativa de não aplicar ao caso concreto as leis e atos normativos que considerem inconstitucionais. Por meio desse controle, não há anulação da lei ou do ato normativo com efeitos erga omnes, aplicando-se somente ao caso concreto em que a norma foi julgada inconstitucional (MORAES, 2002:587).


Por sua vez, o sistema concentrado (austríaco ou europeu) prevê a atribuição de julgamento das questões constitucionais a uma Corte Constitucional ou órgão jurisdicional superior. Esse modelo concentrado “tem ampla variedade de organização, podendo a própria Corte Constitucional ser composta por membros vitalícios ou por membros detentores de mandatos” (MENDES, 2009:1057). A decisão proferida no modelo concentrado de constitucionalidade se destaca, ainda, por ter efeitos para todos (erga omnes).


Sobre a distinção clássica entre os modelos, destaca Manoel Gonçalves Ferreira Filho o quanto segue:


Convém observar que o controle incidental tem efeito apenas para as partes litigantes. A decisão que afasta o ato inconstitucional não beneficia a quem não for parte na demanda em que se reconhecer a inconstitucionalidade. É o chamado efeito particular, ou inter partes.


O controle principal tem efeito geral, erga omnes, eliminando para o futuro e de vez qualquer possibilidade de aplicação do ato reconhecido como inconstituciona”l (FERREIRA FILHO, 2003:39).  


No mesmo sentido, e ainda tratando dos efeitos subjetivos da decisão proferida em sede de controle concreto de constitucionalidade, Carlos Roberto de Alckmin Dutra posiciona-se:


Por outro lado, a decisão proferida em sede incidental, no controle concreto, surte efeitos apenas entre as partes que atuam no processo. Os efeitos são intraprocessuais.


Nem poderia ser de outro modo, pois a sentença que reconhece a inconstitucionalidade o faz em sede de análise prévia ao mérito (questão prejudicial, como já visto). A inconstitucionalidade não consta do dispositivo da sentença, mas tão-só de sua fundamentação. Não faz, assim, coisa julgada, segundo a regra do inciso III do art. 479 do diploma processual pátrio, segundo o qual a declaração incidental produz eficácia meramente intraprocessual, sem força de coisa julgada. (…)


Certamente, para contornar, em nosso direito, essa lacuna, o Constituinte de 1934 criou a competência para o Senado Federal (art. 91, IV, da CF de 1934) suspender a execução do ato normativo, de modo a dar efeitos erga omnes à decisão definitiva da Corte Suprema” (DUTRA, 2005:63-65).


Celso Bastos sintetiza:


“Basicamente, as divergências repousam em três pontos: quanto à legitimação ativa para provocar essa declaração pelo Poder Judiciário, quanto à eficácia das decisões proferidas e quanto ao caráter retroativo ou não dessas decisões” (BASTOS, 2011:117).


Merece destaque, para os fins deste ensaio, que a doutrina tradicional apresenta os dois modelos com marcantes distinções, principalmente no que toca aos efeitos da decisão (inter partes, no difuso; erga omnes, no concentrado).


Ocorre que, nos últimos anos, percebe-se uma convergência entre os dois sistemas. É o que se examinará com mais profundidade no tópico que segue.  


2.4 – A convergência ou aproximação entre os dois modelos no controle de constitucionalidade


Roger Stiefelmann Leal destaca:


O estágio atual do constitucionalismo contemporâneo tem sido marcado, entre outras características, por significativa evolução político-jurídica da jurisdição constitucional. Os sistemas de controle de constitucionalidade têm, sob esta perspectiva, incorporado inúmeros aperfeiçoamentos e inovações não contemplados originariamente nos modelos clássicos de jurisdição constitucional: norte-americano, difuso-incidental-concreto, e o europeu, concentrado-principal-abstrato.


Nessa linha, parte da doutrina tem observado um acentuado movimento de convergência entre os modelos de controle de constitucionalidade. Haveria em marcha um processo de aproximação que permitiria vislumbrar a superação da dicotomia clássica” (LEAL, 2011:494).


Nosso país adota o que se convencionou chamar de modelo “híbrido” ou misto de constitucionalidade.


Isso porque a Constituição prevê a possibilidade do controle da constitucionalidade ser exercido pelo modo difuso (arts. 5º, XXXV, e 97) e também pelo concentrado (arts. 102, I, “a”, 103, entre outros).


É importante destacar que a tradição brasileira, contudo, é pelo controle da constitucionalidade pelo modo difuso (norte-americano). Já desde 1891 o controle difuso foi incorporado ao rol de competências do Poder Judiciário. O controle concentrado somente apareceu quando da Emenda Constitucional n. 16, de 26 de novembro de 1965 (não se confundindo, entretanto, com a chamada ação interventiva introduzida em 1934 (STRECK et al., 2007:5).


É bem verdade, ainda, que a Constituição Federal de 1988 reduziu a importância do controle incidental, visto que ampliou, de forma marcante, o rol de legitimados para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade (art. 103). A possibilidade da suspensão imediata da eficácia do ato normativo questionado, por meio do pedido cautelar, também contribuiu decisivamente para a maior importância do controle concentrado. A ênfase, portanto, passou a residir não mais no sistema difuso, mas no perfil concentrado (MENDES et al., 2009:1134).


No que concerne aos efeitos da decisão proferida em cada um dos dois modelos, é relevante frisar que, até o ano de 1977, tanto o modelo difuso quanto o concentrado, para surtir efeitos erga omnes, exigiam a manifestação do Senado Federal.


Alexandre de Moraes destaca:


“Ressalte-se, ainda, que esta posição [do efeito erga omnes] é antiga no Supremo Tribunal Federal, pois em 18-6-1977, seu então Presidente, Ministro Thompson Flores, determinou que as comunicações ao Senado Federal, para os fins do art. 42, VII, da Constituição de 1967/69 (atual art. 52, X, da CF/88), se restringissem somente às declarações de inconstitucionalidade proferidas incidenter tantum, via controle de constitucionalidade” (MORAES, 2002:625).


A doutrina contemporânea discute hoje, principalmente após o início do julgamento da Reclamação n. 4335-5/AC pelo Supremo Tribunal Federal, a desnecessidade dessa manifestação do Senado Federal (art. 52, X, da CF/88) também em relação às decisões proferidas pelo sistema difuso (oriundas do Supremo Tribunal Federal, pelo seu Plenário). Nesse caso, a manifestação posterior do Senado Federal seria para dar publicidade à decisão. Nada mais do que isso.


2.5 – A posição da doutrina acerca da tendência de convergência dos modelos


Não são poucas as vozes que se rebelaram quanto à forte tendência de aproximação dos modelos, principalmente no que diz respeito aos efeitos da decisão. Há, contudo, aqueles que a defendem.


Como o Supremo Tribunal Federal não concluiu o julgamento da Reclamação n. 4335-5/AC, está acesso o debate no meio jurídico.


Lenio Streck é um ardoroso crítico dessa aproximação dos modelos:


“Mas o modelo de participação democrática no controle difuso também se dá, de forma indireta, pela atribuição constitucional deixada ao Senado Federal. Excluir a competência do Senado Federal – ou conferir-lhe apenas um caráter de tornar público o entendimento do Supremo Tribunal Federal – significa reduzir as atribuições do Senado Federal à de uma secretaria de divulgação intra-legistativa das decisões do Supremo Tribunal Federal; significa, por fim, retirar do processo de controle difuso qualquer possibilidade de chancela dos representantes do povo deste referido processo, o que não parece ser sequer sugerido pela Constituição da República de1988. Como se não bastasse reduzir a competência do Senado Federal à de um órgão de imprensa, há também uma conseqüência grave para o sistema de direitos e de garantias fundamentais. Dito de outro modo, atribuir eficácia erga onmes e efeito vinculante às decisões do STF em sede de controle difuso de constitucionalidade é ferir os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (art. 5.º, LIV e LV, da Constituição da República), pois assim se pretende atingir aqueles que não tiveram garantido o seu direito constitucional de participação nos processos de tomada da decisão que os afetará. Não estamos em sede de controle concentrado! Tal decisão aqui terá, na verdade, efeitos avocatórios. Afinal, não é à toa que se construiu ao longo do século que os efeitos da retirada pelo Senado Federal do quadro das leis aquela definitivamente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal são efeitos ex nunc e não ex tunc. Eis, portanto, um problema central: a lesão a direitos fundamentais” (STRECK et al., 2007:6-7).


Soraya Lunardi e Dimitri Dimoulis também tecem críticas aos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Erus Grau na citada Reclamação:


“Temos aqui claras operações autocriativas do processo constitucional, atuando o STF como poder constituinte reformador que modifica o texto da Constituição. A conseqüência jurídica (e política) é que o Tribunal amplia o alcance de suas competências em detrimento de outros órgãos estatais, limitando os poderes do Senado Federal e criando efeitos vinculantes para suas decisões que o próprio constituinte não desejou lhe reconhecer” (LUNARDI e DIMOULIS, 2008).


Em sentido oposto, posicionando-se a favor da “abstrativização” do controle difuso, Marcus Montez destaca:


É fato que Supremo, atualmente, encontra-se assoberbado de processos que, muitas vezes, somente atingem interesses meramente privados, o que demanda uma real restrição de tais litígios à sua apreciação.


É fato, também, que o próprio papel do Senado Federal no controle difuso sem mostra um tanto anacrônico, frente à coexistência do controle concentrado, posto que se a decisão do Supremo, em sede de controle concentrado, possui efeitos erga omnes e vinculantes, não se mostra razoável que a mesma decisão emitida pelo Supremo (diga-se, plenário) ao julgar determinada matéria, causa de pedir em um controle difuso, tenha apenas eficácia inter partes.


É certo que tais hipóteses são excepcionais, na medida em que somente quando a Turma afetar a análise da matéria ao plenário do Supremo Tribunal Federal é que se suscita a tese da abstrativização do controle difuso.


O argumento da desnecessidade de se chegar a mutação constitucional do art. 52, inciso X, da Constituição Federal, dispensando-se, portanto, a abstrativização do controle difuso, na medida em que o Poder Constituinte Derivado disponibilizou o instrumento da Súmula Vinculante é sedutor, posto que ambos os institutos (abstrativização do controle difuso e Súmula Vinculante) geram os mesmos efeitos – erga omnes e vinculante.


Contudo, tal argumento não soluciona o problema, posto que o quorum para se aprovar Súmula Vinculante é de dois terços, diverso daquele para se declarar a inconstitucionalidade – maioria absoluta. O Poder Constituinte Derivado teria sido mais feliz se estabelecesse o mesmo quorum de maioria absoluta para a Súmula Vinculante.


Sem embargo, portanto, das críticas dirigidas à mutação constitucional do art. 52, inciso X, da Constituição Federal, vemos na adoção da abstrativização do controle difuso o caminho para uma melhor prestação da jurisdição constitucional, na medida em que diminuirá, certamente, a interposição de inúmeros recursos/ações autônomas de impugnação objetivando reformar decisões dos tribunais/juízes, tendo em vista que a matéria já foi pacificada pelo plenário.


Não se mostra acertada, data maxima vênia, ao menos frente à realidade brasileira, sobre eventual quebra de separação dos poderes, muito menos sobre ausência de legitimidade democrática nas decisões do Judiciário.


Isto porque, tal alteração de paradigma é resultado das tantas crises enfrentadas pelo Poder Legislativo – diga-se nesse ponto, crise de (im)probidade – bem como da inércia legislativa, tão repelida pela sociedade.


Tais argumentos, rechaçando a tese da abstrativização do controle difuso, caso tivéssemos um legislativo um pouco mais probo e eficaz, exercendo mesmo as funções esperadas de um poder de Estado. Contudo, este não é o caso do Brasil, ao menos atualmente.


Com isso, acreditamos que a abstrativização do controle difuso de constitucionalidade, caso venha a se firmar na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, será um grande passo, mas não o único, a conferir mais efetividade a prestação da Jurisdição Constitucional” (MONTEZ, 2007).


Não pode deixar de se dar destaque ao principal trabalho doutrinário escrito sobre o assunto, o qual, aliás, é da mesma autoria do Relator da Reclamação n. 4335-5/AC, precedente que poderá estabelecer “uma ruptura paradigmática no plano da jurisdição constitucional no Brasil” (STRECK et al., 2007:2). Trata-se da posição defendida por Gilmar Mendes:


“Parece legítimo entender que a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Dessa forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa” (MENDES et al., 2009:1139) 


2.6 – Precedentes do Supremo Tribunal Federal que sinalizam a convergência entre os dois sistemas


Além da já citada Reclamação n. 4335-5, o Supremo Tribunal Federal tem diversos outros precedentes no sentido da “abstrativização” do controle difuso de constitucionalidade.  


Podemos citar inicialmente o julgamento do Recurso Extraordinário n. 376852, de 27-03-03. Nesse julgamento, o Relator, Ministro Gilmar Mendes, defendeu a objetivação do recurso extraordinário ao se referir à Lei 10.259/01:


“Esse novo modelo legal traduz, sem dúvida, um avanço na concepção vetusta que caracteriza o recurso extraordinário entre nós. Esse instrumento deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao recurso constitucional” (Verfassungsbeschwerde).


Não obstante seja essa manifestação obiter dictum, não se pode desconsiderá-la como uma evolução do Supremo Tribunal Federal na convergência entre os dois modelos.


Outra interessante decisão do Supremo Tribunal Federal se deu no julgamento do Agravo Regimental n. 375011/RS, cuja Relatora foi a Ministra Ellen Gracie. Ao proferir o seu voto, a Ministra deixou sedimentada a intenção em promover, no âmbito da jurisprudência da Suprema Corte, uma nova feição ao julgamento de Recurso Extraordinário, ao fundamentar que:


Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, em recentes julgamentos, vem dando mostras de que o papel do recurso extraordinário na jurisdição constitucional está em processo de redefinição, de modo a conferir maior efetividade às decisões. (…)


Esses julgados, segundo entendo, constituem um primeiro passo para a flexibilização do prequestionamento nos processos cujo tema de fundo foi definido pela composição plenária desta Suprema Corte, com o fim de impedir a adoção de soluções diferentes em relação à decisão colegiada. É preciso valorizar a última palavra – em questões de direito – proferida por esta Casa.”


Claro está nesse julgado, portanto, a preocupação do Supremo Tribunal Federal em “valorizar a última palavra – em questões de direito” (voto da Ministra Ellen Gracie) das soluções ali proferidas.    


 Outro precedente que marca essa convergência foi o julgamento do Recurso Extraordinário n. 197.917. Nesse julgado, o Supremo Tribunal Federal modulou os efeitos da decisão para projetar a sua eficácia para o futuro, nos mesmos moldes em que é previsto no art. 27 da Lei 9.868/99, próprio do controle concentrado de constitucionalidade.


 O Supremo Tribunal Federal também tem decisões[2] que acolhem o ingresso da figura do amicus curiae mesmo em sede de controle difuso. Sabe-se que essa intervenção no feito é própria do controle concentrado, conforme art. 7º, § 2º, da Lei 9.868/99.


Há também a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não recente, acerca da “pertinência temática” para a aferição da legitimidade para a propositura de ADin, ADC e ADPF, o que se constitui em exemplo nítido de aproximação entre os processos objetivo e subjetivo de controle de constitucionalidade. Isso porque é estranho a um processo objetivo (discute-se somente em tese o direito) a demonstração, pelo autor da ação, de um interesse na causa.


2.7 – O julgamento que poderá dar novos rumos ao controle de constitucionalidade no Brasil – Reclamação n. 4335-5/AC


No julgamento do HC 82.959, de 23.02.06, a Suprema Corte, por maioria de votos, concedeu a ordem e declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade do art. 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/90. Essa disposição legal vedava a possibilidade de progressão do regime de cumprimento da pena nos crimes hediondos.


Mesmo com a posição do Supremo Tribunal Federal no sentido da inconstitucionalidade da norma, alguns juízes de primeiro grau, por causa da ausência do efeito erga omnes e vinculante da decisão, continuaram impedindo a progressão com fundamento no dispositivo legal já tido por inconstitucional.


Foi, então, que a Defensoria Pública da União ajuizou Reclamação perante o Supremo Tribunal Federal (tombada com o n. 4335), aduzindo, como fundamento, a preservação da autoridade das decisões daquela Suprema Corte.


Sabe-se que a Reclamação não exige, para o seu cabimento, um ato comissivo, caracterizador da desobediência. Ela é, inclusive, mais frequentemente corporificada na omissão e no retardamento (DANTAS, 2000:483).


Até o presente momento, o julgamento está suspenso, aguardando pauta para ser votado em Plenário.


Já há, contudo, dois votos (Ministro Relator Gilmar Mendes e o Ministro Eros Grau) julgando procedente a Reclamação, e, portanto, reconhecendo o efeito erga omnes e vinculante da decisão proferida em sede de controle difuso pelo Supremo Tribunal Federal. Outros dois votos foram proferidos em sentido contrário; mantendo, pois, o efeito inter partes (Ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa).


A dimensão da decisão final dessa Reclamação n. 4335, pelo Supremo Tribunal Federal, foi bem dimensionada por Lenio Streck:


“A recente polêmica que vem sendo travada no Supremo Tribunal Federal a partir da Reclamação 4335-5/AC, cujo relator é o Ministro Gilmar Mendes, não fará da decisão que vier a ser tomada, com certeza, apenas mais um importante julgado. Mais que isso: ao final dos debates entre os Ministros daquela Corte, poder-se-á chegar, de acordo com o rumo que a votação tem prometido até o momento, a uma nova concepção, não somente do controle da constitucionalidade no Brasil, mas também de poder constituinte, de equilíbrio entre os Poderes da República e de sistema federativo” (STRECK et al., 2007:1).


2.8 – A possibilidade constitucional da convergência entre os dois sistemas


Não obstante as críticas de parte da doutrina, a solução capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes de aproximar os dois modelos, o que fez tanto em sede doutrina como na condição de Relator da já referida Reclamação n. 4335-5/AC, não fere o Texto Constitucional.


A limitação da participação do Senado Federal em somente dar publicidade à decisão do Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso, e não mais estender os efeitos para todos, não significa agressão ao regime democrático (art. 1º, parágrafo único, da CF/88). Isso porque, sendo admissível a participação do amicus curiae também no controle difuso, há clara reverência ao regime democrático, vale dizer: o amicus curiae “age como verdadeiro instrumento de aplicação do princípio democrático” (ROSA, 2011).


Não se pode falar, ainda, em “ferir os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LIV e LV, da Constituição da República)” (STRECK et al., 2007:7) na adoção do efeito erga omnes e vinculante das decisões da Suprema Corte em controle difuso. Esses princípios não são absolutos, e, portanto, devem conviver com outros do mesmo Texto Constitucional, tais como os princípios da segurança jurídica (na harmonização das decisões judiciais após manifestação da Suprema Corte) e da eficiência (seriamente comprometido, caso a solução final só ocorra após esgotadas todas as instâncias inferiores até chegar ao Supremo Tribunal Federal por meio de recurso extraordinário), assim como da norma que confere ao Supremo Tribunal Federal “a guarda da Constituição (art. 102, caput, da CF/88).  


Oportuno referir, ainda, que a violação aos princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório também foi invocada pelos doutrinadores quando da previsão do efeito erga omnes e vinculante para as decisões proferidas em sede de controle concentrado, por meio da ação declaratória de constitucionalidade (previsão contida na EC n. 3/93).


A Suprema Corte, quando do julgamento da ADC n. 1[3], já rechaçou essa linha de argumentação, o que fez com sólidos argumentos. No citado julgamento, o Relator Ministro Moreira Alves destacou com grande acerto:


“A improcedência desses ataques com relação à cláusula pétrea relativa aos direitos e garantias individuais é evidente em face de os instrumentos pelos quais se realiza o controle concentrado da constitucionalidade dos atos normativos – e a ação declaratória de constitucionalidade é um deles – terem a natureza de processos objetivos que visam ao interesse genérico de defesa da Constituição em seu sentido mais amplo, e aos quais, por essa natureza mesma, não se aplicam os preceitos constitucionais que dizem respeito exclusivamente a processos subjetivos (processo inter partes) para a defesa concreta de interesses de alguém juridicamente protegidos.”     


Ora, essa irrefutável argumentação também se aplica, atualmente, ao controle difuso de constitucionalidade exercido pelo Supremo Tribunal Federal. É inegável “dessubjetivização das formas processuais, especialmente daquelas aplicáveis ao modelo de controle incidente, antes dotadas de ampla feição subjetiva, com simples eficácia inter partes” (MENDES, 2009:1150).


A legislação também conforta o entendimento dessa “dessubjetivização” do controle difuso, sendo o instituto da repercussão geral no âmbito do recurso extraordinário (art. 102, § 3º, da CF/88, com redação dada pela EC n. 45/04) a prova mais evidente desse novo rumo. Vale dizer: o que mais importa na solução do recurso extraordinário é a questão constitucional nele travada (a tese jurídica), e menos a resultado da lide entre os particulares contendores.


Tem-se, assim, que o art. 52, X, da Constituição Federal deve receber uma nova leitura, por força de uma lídima “mutação constitucional”, ou mesmo decorrente de uma interpretação sistemática do Texto Constitucional.


Os princípios da segurança jurídica e da eficiência, juntamente com a norma que atribui competência ao Supremo Tribunal Federal para exercer “a guarda da Constituição”, permitem que se interprete o art. 52, X, da Constituição Federal como atribuição de competência ao Senado Federal para dar apenas publicidade à decisão proferida pela Suprema Corte em controle difuso.


A aplicação dessa interpretação sistemática impossibilita que se interprete o art. 52, X, da Constituição Federal como um dispositivo isolado; antes, permite que ele seja lido em conjunto com as outras normas constitucionais. Com isso, há uma harmonização das normas constitucionais e uma unidade do sistema.


3. CONSIDERAÇÕES FINAIS


No Brasil, as duas formas de controle de constitucionalidade (a abstrata e a concreta) surgiram em momentos distintos.


Cada uma delas, na sua origem, foi concebida com características próprias, merecendo especial destaque os efeitos que elas geram sobre o direito de terceiros (efeitos subjetivos). Vale dizer: o controle de constitucionalidade concreto, desde a sua origem no Brasil, gerava efeitos somente na relação daqueles que fizeram parte de lide (inter partes); por sua vez, o controle concreto projetava efeitos para todos (erga omnes).


Não obstante o nosso sistema seja classificado como de “híbrido”, o controle difuso sempre teve maior destaque e relevância no nosso sistema, realidade essa que, principalmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988 que ampliou o rol de legitimados ativos e das Emendas Constitucionais que conferiram efeitos vinculantes e erga omnes às decisões da ação declaratórias de constitucionalidade (EC 3/93) e da ação direta de inconstitucionalidade (EC 45/04), foi alterada.


A posição – acertada – que confere efeitos vinculantes e erga omnes às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso, sem necessitar da manifestação posterior do Senado Federal (com efeito restrito de dar apenas publicidade), na verdade, promove uma recuperação da importância desse modelo.


Nesse novo cenário, o controle difuso e o abstrato passam a ter, guardadas ainda as suas peculiaridades (principalmente no campo procedimental), o mesmo grau de relevância dentro do sistema.


A equiparação dos efeitos, entre o controlo difuso e o concentrado, contribuiu e consolida decisivamente a posição da Suprema Corte em resolver e pacificar “teses”, e não litígios exclusivamente particulares.


Os princípios da segurança jurídica e da eficiência saem fortalecidos e respeitos com essa aproximação entre os modelos, assim como se dá inteira aplicabilidade à norma constitucional que prevê a competência do Supremo Tribunal Federal para exercer a “guarda da Constituição” (art. 102, caput, da CF/88).    


Condicionar a atribuição de efeitos vinculantes e erga omnes a posterior manifestação do Senado Federal (art. 52, X, da CF/88), isso em sede de controle difuso, é ter apego demasiado à interpretação literal, e, principalmente, ter gosto pela a eternização das lides. A sociedade é quem perde com isso.


A solução, portanto, deve ser aquela que confere iguais efeitos às decisões do Supremo Tribunal Federal tanto em sede de controle difuso como concentrado. Não há relevância para a sociedade se a Suprema Corte externou a sua posição final sobre determinado assunto pela “porta” da via difusa ou da via concentrada. A importância está naquela “tese jurídica” que foi aceita ou repelida pelo seu Plenário.  


 


Referências

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Notas:

[1] No caso Dred Scott.

[2] RE 597.165, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 4-4-2011, DJE de 12-4-2011; RE 595.964, Rel. Min. Cármen Lúcia, decisão monocrática, julgamento em 16-12-2010, DJE de 16-2-2011.

[3] Relator(a):  Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 27/10/1993, DJ 16-06-1995 PP-18212 EMENT VOL-01791-01 PP-00001


Informações Sobre o Autor

Juliano de Angelis

Procurador Federal e Chefe da Seção de Cobrança e Recuperação de Créditos da Procuradoria Seccional Federal de Canoas/RS. Pós-graduando em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp/REDE LFG.


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