Nesses mais de sete anos – mais precisamente nesses quase oito anos – que se seguiram à edição, em 23 de setembro de 1996, da Lei nº 9.307 – Lei de Arbitragem, muito se escreveu sobre o instituto, criando-se uma doutrina vasta e respeitável, mesmo que se considerem as muitas décadas durante as quais a arbitragem, pelas razões já bastante conhecidas de todos neste momento, permaneceu hibernando em nosso marco legal.
Quando nos referimos a uma doutrina respeitável, não o fazemos em razão do volume de textos, monografias e artigos produzidos, mas da complexidade dos problemas tratados e enfrentados pelos autores.
Aos olhos de especialistas de outras jurisdições, poderá parecer que as questões levantadas ainda guardam um traço pueril. Na verdade, esse aparente traço pueril está intimamente ligado ao estágio de desenvolvimento do arcabouço teórico da arbitragem no Brasil. Tomando-se de empréstimo o ciclo evolutivo da vida humana, constatamos que a arbitragem no Brasil supera a infância e se move em direção de sua adolescência.
Para tanto, muito têm contribuído nossos tribunais e juízes de primeira instância, ao prestigiarem em decisões importantes os fundamentos que embasam a arbitragem.
Não se pode negar que a mais importante de todas as decisões judiciais foi, sem dúvida alguma, a declaração de constitucionalidade de determinados artigos da Lei de Arbitragem pelo Supremo Tribunal Federal.
Não se tratava, no caso, apenas e tão somente, de artigos inseridos num texto legal e que, por sua natureza, violariam normas constitucionais. Tratava-se, isso sim, de artigos que, declarados que fossem como violadores da Lei Magna, decretariam o retorno do instituto da arbitragem à hibernação e, dessa feita, durante um longo e tenebroso inverno.
No entanto, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal abriu caminho para que a arbitragem, conhecida em nosso direito desde as Ordenações do Reino, se revitalizasse a tal ponto que deu lugar a um ciclo evolutivo próprio.
Se for verdade que superamos, com sucesso, a infância, muito mais nos aguarda na fase de adolescência do instituto. Precisamos estar alertas para evitar que nos defrontemos com os inconvenientes naturais da rebeldia dessa fase.
O estágio de adolescência do instituto requer de todos aqueles que com ele estejam envolvidos extremo cuidado e uma preocupação constante com sua preservação.
Essa preocupação não se situa, apenas e tão somente, no plano judicial. Estende-se ela às constantes e subseqüentes iniciativas legislativas e, sobretudo, a questões correlatas e fundamentais inerentes à prática arbitral.
Ética, árbitros, partes e advogados são o centro das preocupações. As regras de atuação de cada um deles e o comportamento na prática arbitral constituem questões relevantes que devem ser cuidadosamente analisadas, estabelecendo-se parâmetros mínimos a serem observados, garantindo-se a neutralidade e independência dos árbitros, o que resultará na preservação da sentença arbitral por eles proferida.
A cada dia, novas questões são levantadas; instaura-se o debate, gerando posições divergentes, onde o confronto de idéias favorece a reflexão e, conseqüentemente, aporta contribuição valiosa para o processo evolutivo da arbitragem no Brasil.
Essa profusão de questões, dúvidas e perplexidades muito tem a ver com o longo período de hibernação do instituto. Vivemos um momento excepcional de resgate dos fundamentos e princípios da arbitragem, de forma que possamos construir uma posição brasileira sólida, o que servirá para garantir a continuidade na aplicação do instituto.
Vale sempre a pena lembrar que a festejada adesão do Brasil à Convenção de New York, de 1958, quatro décadas após a sua criação, fez com que nos defrontássemos com questões bastante relevantes, colocando em evidência o marco constitucional e legal brasileiro e suas relações com o texto convencional.
Do ponto de vista da denominada arbitrabilidade subjetiva, entendida esta como a capacidade das partes de submeterem seus litígios à solução por arbitragem, passou-se a questionar se o Estado e as empresas por este controladas poderiam ou não ser partes em procedimentos arbitrais, a despeito da amplitude de linguagem do texto contido no artigo 1º da Lei de Arbitragem.
Esse questionamento se manifestou, inclusive, em decisões administrativas e judiciais que implicam a exclusão do Estado de procedimentos dessa natureza, ignorando o artigo 1º ao afirmarem que inexistiria autorização legal para que assim procedessem.
Na esfera legislativa, no entanto, a situação é ainda mais complexa e contraditória. O Projeto de Lei, de iniciativa do Executivo, destinado a regular aspectos fundamentais relativos às parcerias público-privadas, está sintonizado com o artigo 1º da Lei de Arbitragem, o que vale dizer que reconhece o Estado e suas empresas no conceito de “pessoas”, ratificando a arbitrabilidade subjetiva das controvérsias em que figurem como partes.
Por outro lado, no entanto, a Proposta de Emenda Constitucional nº 29, ora em exame pelo Senado Federal, assesta um golpe fatal contra a arbitragem ao estabelecer, no § 3º do artigo 98, que “ressalvadas as entidades de direito público, os interessados em resolver seus conflitos de interesse poderão valer-se do juízo arbitral, na forma da lei”. Dessa forma, ao prevalecer a disposição constitucional proposta, a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, as autarquias e fundações públicas estariam impedidos de optar pela arbitragem na solução de suas controvérsias contratuais. Independentemente do retrocesso que isso significaria para a posição brasileira no cenário da arbitragem, certo é que a aprovação de disposição dessa natureza acarretará conseqüências desastrosas para o desenvolvimento econômico do País. Mais do que um simples mecanismo para a solução de controvérsias contratuais, a arbitragem deve ser, e tem que ser, entendida como um elemento preponderante no conjunto das considerações da viabilidade econômica de projetos de grande porte na área de infraestrutura. Negada ou proibida a sua utilização em campo onde a presença do Estado é fundamental, certamente que estaremos agregando um elemento adicional à matriz de riscos desses projetos, valendo ressaltar, ainda, que seriam muito pequenas as chances para a sua mitigação.
Por outro lado, a situação não é menos preocupante no caso da Lei nº 10.848, de 15 de março de 2004, oriunda da Medida Provisória nº 144, de 11 de dezembro de 2003, e que dispõe sobre a reforma do Setor Elétrico Nacional. A regulamentação desse mecanismo de solução de controvérsias permanece inalterada no referido texto legal, em contraste com aquele originalmente contido na aludida Medida Provisória[1].
Logo após sua edição, a aludida Medida Provisória foi alvo de duas ações diretas de inconstitucionalidade – ADI 3090 e ADI 3100, a primeira de autoria do PSDB e a segunda do PFL. Promulgada a Lei nº 10.848, os autores aditaram os pedidos junto ao Supremo Tribunal Federal no sentido de que as respectivas ADIs não viessem a perder o seu objeto, estando ambas pendentes de decisão por aquela Corte.
Na ADI 3100, dentre as diversas questões levantadas, ressaltamos, para fins deste Artigo, a que se refere especificamente à utilização da arbitragem[2]. Alega-se na ADI que a Convenção Arbitral, a ser firmada por todos os agentes de mercado, no âmbito da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, por ser mandatória, violaria a Constituição Federal, precisamente o artigo 5º, inciso xxxv, ao restringir o acesso ao Poder Judiciário.
Em voto lapidar quando do exame dos diversos argumentos em sede liminar, o Ministro Gilmar Mendes indeferiu a pretensão do autor, argumentando que o uso da arbitragem se efetivará em consonância com os termos da Lei nº 9.307, de 1996[3].
A questão relativa ao caráter obrigatório da arbitragem é complexa e já deu origem a outra ADI apresentada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil[4]. Embora pendente de decisão pelo Supremo Tribunal Federal, já se conhece o parecer do Procurador-Geral da República, opinando pela procedência do pedido de declaração de inconstitucionalidade por entender que o mesmo feriria dispositivo constitucional. Na doutrina, Pedro Batista Martins[5], adotando “uma interpretação mais dinâmica e abrangente da regra constitucional atrelada à sua visão histórica e conteúdo finalístico”, nos oferece uma justificativa para a disseminação dessa convicção de inconstitucionalidade, defendendo, com argumentos filosóficos bastante sólidos, a viabilidade do caráter mandatório da arbitragem, afastando, dessa forma, a percepção de ofensa ao texto constitucional.
Na realidade, a questão de inconstitucionalidade levantada na ADI 3100 carece, a nosso ver, de fundamento, mas a justificativa é mais complexa do que o cotejo do texto da Lei nº 10.848 com aquele da Constituição Federal. Quando afirmamos que a situação é mais complexa, o fazemos por se ter que levar em consideração o marco legal aplicável ao setor elétrico, área em que se situa a questão.
Ao se editar, em 2002, a Lei nº 10.433, oriunda da conversão em lei da Medida Provisória nº 29, transformou-se o Mercado Atacadista de Energia Elétrica – MAE, até então um ambiente virtual para comercialização de energia elétrica entre os agentes setoriais dele integrantes, em pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, mantendo-se a mesma denominação. O texto de lei já previa que as controvérsias surgidas nas relações de comercialização entre os agentes seriam dirimidas por arbitragem, nos termos da Convenção Arbitral que deveria ser firmada por todos os agentes. E esta assim foi celebrada na forma prevista na lei.
Portanto, e como se demonstrará a seguir, a questão ora levantada em relação à Lei nº 10.848 se situaria, na verdade e em primeiro lugar, no âmbito da Lei nº 10.433/2002. Se inconstitucionalidade existisse, essa deveria ser alegada em relação às disposições da legislação de 2002. Aliás, a linguagem adotada em relação à arbitragem no âmbito da CCEE é idêntica, em todos os seus termos, àquela contida na Lei nº 10.433, padecendo dos mesmos defeitos conceituais e imprecisões técnicas, como é o caso da autorização expressa às estatais para aderirem ao MAE e à Convenção de Arbitragem e a definição, por lei, de direitos disponíveis, como se isso fosse possível. Na verdade, a indisponibilidade decorre de princípios legais que são informativos à aprovação da lei, não podendo esta derrogá-los.
É verdade, e isso não se pode negar, que a arbitragem tem um caráter consensual. Ao firmarem a cláusula compromissória, as partes, de comum acordo, decidem submeter quaisquer controvérsias que venham a surgir no futuro em suas relações à solução arbitral, afastando, dessa forma, a atuação do Poder Judiciário.
No caso do MAE, a situação não se afigura distinta. Os membros do MAE, reunidos em Assembléia Geral[6], aprovaram, por unanimidade, o texto da Convenção Arbitral, a qual contém todas as regras relativas à aplicação aos casos concretos, e, em passo posterior, assinaram a referida convenção. Logo, não há como se afirmar, em sã consciência, que faltaria a essa arbitragem o caráter de manifestação de vontade.
Faz-se necessário afastar, desde já e de forma peremptória, qualquer tentação de se vislumbrar nessa celebração da Convenção Arbitral um traço de contrato de adesão. A Convenção Arbitral do MAE não é, nem pode ser vista como sendo, um contrato de adesão. Para estes casos, a Lei de Arbitragem contém normas bastante específicas e que são, em nossa opinião, de ordem pública, já que a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, trata como nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que determinem a utilização compulsória da arbitragem. Na hipótese de se tratar de contratos de adesão, a proteção legal se destina aos arranjos contratuais vinculados a relações de consumo e ao consumidor, tratado este como hipossuficiente. No entanto, entendemos que essas regras não são aplicáveis à espécie.
As relações comerciais envolvendo energia elétrica, no âmbito do MAE ou, no futuro, da CCEE, não são e não podem ser consideradas relações de consumo. Nesse mercado, estamos diante de relações comerciais no atacado, sendo que a esse mercado somente têm acesso agentes previamente qualificados por lei e detentores de autorização outorgada pelo órgão regulador setorial – a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL. Os consumidores que a ele podem ter acesso são apenas os denominados “consumidores livres” e que, por sua carga de consumo e voltagem elevada, estão longe de poder ser tratados como hipossuficientes.
Se, de um lado, o mercado é, por sua própria natureza, atacadista, opondo-se ao conceito de relação de consumo, por outro, seus agentes são pessoas jurídicas altamente qualificadas e detentoras de autorizações regulatórias para a prestação de serviço público, afastando a noção de hipossuficiência.
Por tudo isso, entendemos que a Convenção Arbitral do MAE é um ato de expressão legítima das partes signatárias, estando presente a manifestação de vontade, o que lhe retira o caráter de adesão a uma cláusula de arbitragem obrigatória.
Em determinada passagem deste Artigo, mencionamos que a Convenção Arbitral foi aprovada pelos agentes do MAE, em Assembléia Geral[7], o que poderia levar à conclusão apressada de que nossa afirmação no sentido de que ela teria contado com a manifestação de vontade das partes signatárias seria infundada, retornando à discussão a questão do caráter obrigatório. Entendemos que este, no entanto, não é o caso.
Com a edição da Lei nº 10.433, o MAE passou de um ambiente virtual a uma pessoa jurídica de direito privado. Nessa condição, o MAE passou a contar com regras de governança corporativa, inclusive as destinadas à aprovação de matérias determinadas e com quorum pré-estabelecido.
Já tivemos a oportunidade de ressaltar que os membros do MAE aprovaram, em Assembléia Geral, o texto da Convenção Arbitral, aprovação essa que exige um quorum mínimo equivalente à maioria simples, ou seja, metade mais um voto dos presentes. Vale lembrar, ademais, que essa aprovação se refere, apenas e tão somente, ao texto da Convenção Arbitral, em cumprimento a uma disposição estatutária. Veja-se que o quorum estabelecido para essa aprovação se insere no quorum geral de aprovação de matérias submetidas à Assembléia Geral e, em nenhum momento, se faz referência à unanimidade. O quorum da maioria simples é uma evidência de que a celebração da Convenção Arbitral não se faz nesse nível e sim em ato posterior. A aprovação do texto pela Assembléia Geral visa a dotar o MAE de uma Convenção, em forma e substância que atenda aos interesses das partes. A abstenção ou o voto negativo não pode ser interpretado como manifestação contrária e nem a celebração posterior, a despeito de eventual abstenção ou voto contrário, podem ser interpretados como cumprimento de mandamento legal que impõe a arbitragem obrigatória, até porque a abstenção ou voto contrário se refere ao texto e não ao mecanismo em si considerado. Portanto, nessa etapa, estamos diante de cumprimento de disposição estatutária, especialmente por envolver a autorização para que o próprio MAE viesse a subscrever legitimamente a Convenção Arbitral, contando, para tanto, com a autorização societária requerida.
Em virtude disso, não há como se afirmar que a aprovação, em Assembléia Geral, tenha subtraído o direito de manifestação de vontade dos demais agentes. Aprovada a Convenção Arbitral, abriu-se prazo para que os agentes a subscrevessem, ocasião em que se aperfeiçoou o traço da manifestação de vontade exigido por lei e pela natureza mesma da arbitragem. Por esse prisma, não há como se falar igualmente em arbitragem obrigatória.
Por último, do ponto de vista operacional, a escolha da arbitragem para solucionar controvérsias surgidas no âmbito do MAE veio ao encontro da intenção de todos os agentes do mercado atacadista. Isso porque a complexidade das regras e das operações nele realizadas exige a presença de especialistas na área e que tenham a visão de todo do mercado e de seu funcionamento. O sistema de compensação de créditos e débitos, sua contabilização e liquidação, assim como a solução de controvérsias entre dois ou mais agentes pode ter impacto sobre todo o universo de agentes participantes.
Em linha com essa realidade, as características do procedimento arbitral contribuem para que se possam ter decisões que levem em conta as especificidades do setor elétrico, o extenso marco legal e regulatório, além das peculiaridades de questões técnicas que, em muitas das vezes, estarão na raiz das controvérsias. Foi nessa mesma linha de idéias que o art. 40 da Convenção de Mercado do MAE, ao determinar a celebração da convenção de arbitragem, estabeleceu que esse mecanismo foi escolhido “em virtude da elevada especificidade do mercado e dos elementos que se afiguram como potenciais fontes de controvérsia e litígio”.
Com base nesses argumentos, poder-se-á então afirmar que os agentes do setor estão em condições de subscrever legitimamente a nova Convenção Arbitral da CCEE, com fundamento nos mesmos princípios que regeram a subscrição da Convenção Arbitral do MAE, inexistindo, de igual forma, qualquer traço de arbitragem obrigatória.
No entanto, entendemos que não se deva falar de uma nova Convenção Arbitral da CCEE. Essa afirmação poderá chocar o leitor e ser entendida como violação a uma disposição legal, mas há determinados elementos que necessitam ser analisados cuidadosamente, inclusive no que diz respeito aos efeitos inerentes à convenção arbitral, para que não se incida num equívoco e se viole, agora sim, as características inerentes à convenção arbitral.
Quando da celebração da Convenção Arbitral, ficou estabelecido, na Cláusula 1ª, § 3º que “pela presente Convenção, obrigam-se os signatários, aqueles que posteriormente vierem a aderir à presente Convenção Arbitral, o MAE e seus sucessores a qualquer título”. (grifo nosso).
Portanto, a intenção das partes signatárias sempre foi fazer com que a Convenção Arbitral do MAE viesse a perdurar, mesmo nas hipóteses de novos signatários e, sobretudo, no caso de ocorrer sucessão, a que título fosse, das partes signatárias. Isso se deu para que fosse assegurado o efeito vinculativo da cláusula compromissória. Especialmente por revestir esta, no caso em análise, a forma de uma convenção multilateral, quaisquer alterações que viessem a ocorrer em relação às partes signatárias não deveria, e nem poderia por definição e características próprias, importar extinção da referida Convenção.
O conceito de “sucessores a qualquer título”, na forma prescrita na Convenção, deve ser, em nosso entendimento, interpretada de forma ampla para englobar não apenas os sucessores propriamente ditos, a título singular ou universal, bem como os cessionários, seja por ato de vontade ou por operação de disposição legal. Assim sendo, cedido um contrato com todos os direitos e obrigações, a cláusula compromissória é assumida pelo cessionário, ainda que a cláusula compromissória seja independente do contrato. No entanto, a escolha da arbitragem como meio de solução de conflitos decorrentes do contrato cedido é um direito da parte cedente e, a um só tempo, uma obrigação em relação à parte contrária. Portanto, é por ter essa dupla face que, estando ou não inserida num mesmo contrato, mas a ele se referindo, manterá seu efeito vinculativo em relação ao cessionário.
O mesmo ocorre nos casos de operações societárias que representem uma fusão ou incorporação ou, até mesmo, uma cisão. Nesses casos, a prevalência da cláusula compromissória em relação a obrigações assumidas pela parte que se fundiu, foi incorporada ou cindida permanece vigente, devendo ser respeitada pela parte que a suceder.
Com maior razão ainda, manifesta-se esse efeito da cláusula compromissória na sucessão. Seja no caso de pessoas físicas, seja no de pessoas jurídicas, a sucessão nos direitos e obrigações engloba a manutenção da cláusula compromissória.
Essa posição é largamente majoritária, seja na doutrina nacional[8], seja na estrangeira[9]. E não poderia ser diferente. Admitir-se que a sucessão, em qualquer das formas mencionadas, representaria a extinção da cláusula compromissória, seria, ipso facto, admitir-se que o evento que tivesse dado causa à sucessão representaria uma extinção de direitos e obrigações. E sabemos bem que não é assim.
Se utilizarmos as lições da doutrina, chegaremos à conclusão que nenhuma das hipóteses de sucessão, cessão ou sub-rogação teria por efeito extinguir cláusula compromissória existente. Além disso, vale lembrar a lição da Corte de Apelação de Paris que estabelece que a cláusula compromissória constitui elemento importante de conteúdo econômico da relação jurídica presente no contrato, devendo ser igualmente transferida ao sucessor ou cessionário. Seguindo a decisão da Corte de Apelação, se o signatário deveria ter admitido legitimamente que poderia vir a ocorrer cessão do contrato, ainda que a cláusula compromissória seja silente, o que dizer, como é o caso do MAE, em que foi estabelecido que a convenção arbitral obrigaria as partes signatárias, o MAE e seus sucessores a qualquer título?
Todo esse raciocínio fará sentido se em decorrência da criação da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica vier a ocorrer cessão ou sucessão da cláusula compromissória. Certamente não se trata, neste caso, de cessão, mas de uma sucessão a título universal. A CCEE é uma sucessora do MAE. Isso decorre da linguagem expressa do art. 5º da Lei nº 10.848. Segundo aquele dispositivo e seus parágrafos, “ a CCEE sucederá ao Mercado Atacadista de Energia Elétrica – MAE…os bens, os recursos e as instalações pertencentes ao MAE ficam vinculados às suas operações até que os agentes promovam sua incorporação ao patrimônio da CCEE.”
Portanto, alinhados com a posição doutrinária e jurisprudencial relativamente ao efeito vinculativo da cláusula compromissória e, sobretudo, por ser a CCEE sucessora universal do MAE, entendemos que a Convenção Arbitral do MAE permanece em pleno vigor, descabendo falar-se de uma nova Convenção Arbitral da CCEE. Não podemos esquecer, inclusive, que essa sempre foi a intenção das partes signatárias, manifestada expressamente na redação contida na cláusula 1ª, § 3º da Convenção Arbitral do MAE. Logo, no mundo real, substituir-se-á o MAE pela CCEE, mantendo-se inalterada a Convenção original em todos os seus termos.
Se a linguagem da Lei nº 10.433 no tocante à convenção arbitral era imprecisa e defeituosa, o que dizer da inserção dessa mesma linguagem na Medida Provisória e, conseqüentemente, na Lei nº 10.848? Não há dúvida de que, assim inserida, ela torna a atividade do intérprete muito mais complicada, sobretudo pelo fato de, uma vez mantida, não poder ser tida como letra morta.
Apenas para lembrar, o § 5º do artigo 4º da referida Lei menciona expressamente que para resolução de controvérsias entre os membros da CCEE adotar-se-á o mecanismo de arbitragem, dispondo sobre a respectiva convenção. Mas a quem se destinará essa regra e qual o seu efeito?
O efeito em primeiro lugar. Entendemos que essa disposição deva ser interpretada como ratificando a utilização da arbitragem no âmbito da CCEE, a exemplo do que ocorre no MAE. Isto tem, ainda, outro efeito. Ao validar a arbitragem definida no âmbito do MAE, agora sucedido pela CCEE, mantendo-a no ambiente desta, reconhece o efeito vinculativo da Convenção Arbitral do MAE, sendo esta a que deverá ser mencionada nos atos da CCEE. Portanto, à exceção da alteração do MAE para CCEE, por sucessão, nada mais se produziu em relação às demais partes signatárias, até porque sempre foi essa a intenção das partes ao subscreverem a Convenção Arbitral do MAE.
No entanto, essa regra tem também outros destinatários. Estes serão todos aqueles agentes que devam pertencer à CCEE, em qualquer das categorias, para nela poderem operar e que, pelas mais diversas razões, não haviam aderido ao MAE. Não nos limitamos, apenas, àqueles agentes que hoje já existem, mas, inclusive, os que venham a ser criados no futuro para operar no setor elétrico e se qualifiquem como concessionários, permissionários ou autorizados.
Resta saber como se posicionará o agente que, não integrando o MAE, venha, a posteriori, a fazer parte da CCEE. Poderá ele se eximir de subscrever a Convenção Arbitral em vigor, contemplando, naquele momento, as partes originalmente signatárias e a CCEE, por via da sucessão do MAE, este sim parte original?
Entendemos que não. O novo agente que quiser aderir à CCEE deverá subscrever a Convenção Arbitral e estar sujeito à arbitragem para a solução de seus conflitos futuros. E nem por isso, estaremos diante de arbitragem compulsória. Explica-se.
O MAE, assim como o será a CCEE, é uma associação, pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos. O contrato associativo é, neste caso, multilateral, envolvendo todos os agentes integrantes do MAE, ou da CCEE, e o próprio MAE ou a CCEE, conforme o caso. Sendo uma associação, é esta um contrato aberto ao qual devem aderir todos os que se tornem agentes e cumpram os requisitos de admissão para que possam operar nesse mercado. Por se tratar de um contrato aberto, permite ele, por um lado, a adesão de novos membros, o que, no caso, é obrigatório por disposição legal, mas, por outro, não pode essa adesão alterar ou modificar as relações jurídicas preexistentes.
Essa questão foi muito bem analisada, em sede doutrinária, por Pedro Antonio Batista Martins, ao enfocar a cláusula compromissória no estatuto social das companhias[10]. É dessa lição que agora nos socorremos para justificar a assertiva com uma opinião abalizada. Ensina ele que “a eficácia da cláusula compromissória também atinge aquele investidor que adquire o status socii por força da transferência de ações. Mesmo não havendo manifestação expressa, o pacto arbitral lhe é vinculante, pois os efeitos da cláusula compromissória atingem os sucessores a título universal e singular. É essa a rigorosa inclinação da doutrina arbitral, que se alinha, por sinal, com o instituto da circulabilidade das ações.”
O leitor poderá reagir à aplicação analógica proposta, discordando de nosso entendimento, podendo afirmar que, no caso da CCEE, inexiste transferência de ações e, por conseguinte, estaria ausente o fenômeno da sucessão. Tudo isso é verdadeiro, mas nem assim podemos concordar com a conclusão de que o novo agente que viesse aderir à CCEE não estaria sujeito ao efeito vinculativo do pacto arbitral existente e expresso na Convenção Arbitral da CCEE, originalmente do MAE.
Se considerarmos as diferenças relativas existentes entre a companhia e a associação, poderemos melhor encaminhar o raciocínio. O ingresso de um novo acionista na companhia dependerá de passar ele a ser titular de ações representativas de seu capital social, seja por aquisição de ações novas decorrentes de um aumento de capital, seja por aquisição, a qualquer título, de ações já em circulação. A ação é, portanto, o meio de ingresso na companhia, adquirindo o titular a condição de acionista. No caso da associação, como a CCEE, esta não tem fins lucrativos, nem tem um capital dividido em títulos que o representem. No entanto, os membros da CCEE contribuem para o custeio administrativo e operacional, obrigação esta que está prevista no § 4º do artigo 4º da Lei nº 10.848. Mas não é certamente essa obrigação de contribuir financeiramente para o custeio que lhes dará a condição de associados. A obrigação só será imposta aos associados, mas a condição de associado decorre, no caso, de lei, mais precisamente do mandamento imperativo contido no § 1º do mencionado artigo 4º. Assim sendo, na medida em que a adesão é obrigatória por lei, não deve ela promover a ruptura das relações existentes. Ao aderir à CCEE, em etapa posterior à sua criação e, por conseguinte, à Convenção Arbitral já celebrada e em vigor por efeito da sucessão universal, os novos associados aderem às regras em vigor e que já conhecem de antemão. E não é outra a razão pela qual o § 3º da cláusula 1ª da Convenção Arbitral do MAE prevê que esta obrigará “os que posteriormente vierem a aderir à presente Convenção Arbitral.”
Não bastassem esses argumentos, invocamos a lição de Bulhões Pedreira, referida por Pedro Antonio Batista Martins, no trabalho citado, que afirma que “a companhia é hoje classificada como contrato tipo associativo, plurilateral…e como todo negócio associativo, é contrato aberto, no sentido de que permite, mesmo após conclusão pelos contratantes originais, a agregação de novas partes sem dissolução das relações jurídicas preexistentes sem necessidade de novo contrato entre antigos e novos associados.” Logo, da mesma natureza é o contrato de associação, aberto que estará sempre à adesão de novos signatários. Mas vale aqui a ressalva de que essa adesão não poderá representar uma ruptura das relações já existentes e de mecanismo de solução de controvérsia já estabelecido pelo contrato.
Parece-nos, no entanto, muito importante que examinemos com cautela o uso da expressão adesão obrigatória ao MAE, o que corresponde dizer se tratar de uma adesão compulsória a uma associação. Se, de um lado, referimo-nos a um direito de associação[11], falar-se de uma adesão obrigatória parece tratar-se de uma contradição em si mesma, especialmente em razão de norma constitucional expressa que veda qualquer ato no sentido de se compelir qualquer pessoa – e certamente nessa expressão incluem-se as pessoas jurídicas – a se associar e se manter associada. No caso, entretanto, a situação é bastante distinta.
Ao cuidarmos do MAE ou da CCEE, estamos diante do fato dessas entidades viabilizarem as operações de compra e venda de energia elétrica. Os serviços de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica se caracterizam como serviços públicos, valendo ressaltar que, na forma dos artigos 22, inciso xii (b) e 175 da Constituição Federal, caberá ao Poder Público prestar esses serviços diretamente ou por meio de concessão. A própria Constituição estabelece, no artigo 175 § único que caberá à lei estabelecer o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviço público e as regras aplicáveis à fiscalização de suas atividades. Sem dúvida e dada a importância do papel desempenhado, a comercialização de energia elétrica, seja entre geradores e distribuidores, seja entre aqueles e os clientes livres, se insere no rol das atividades sob fiscalização do órgão regulador do setor elétrico – a ANEEL.
Dessa maneira, seja a criação do MAE, seja a de sua sucessora – a CCEE – é ato de manifestação do exercício do poder regulador em relação à continuidade da prestação do serviço público. Entendeu o legislador que seria de todo conveniente que essas operações se realizassem num ambiente regulado e dotou o sistema de estrutura destinada a viabilizar essas operações, optando pela forma de uma associação sem fins lucrativos em que os custos administrativos e operacionais são arcados pelos membros integrantes. Por outro lado, decidiu o legislador determinar os agentes que devam participar obrigatoriamente da associação, atuando como o requisito de ingresso. Da mesma forma, na medida em que o agente perca a qualidade de concessionário, permissionário ou autorizado de serviço público de energia elétrica, automática será a sua exclusão da associação.
Ainda nesse caso, a vontade das pessoas jurídicas participantes é essencial para a criação da associação. A vontade há de prevalecer e ser expressa no ato de constituição. Isso não é incompatível com a natureza mesma da associação e do princípio associativo que a rege. Caio Mario da Silva Pereira, in. op. cit, ensina que “as sociedades e associações civis têm na vontade dos seus membros (affectio societatis) o princípio genético de sua constituição. Mas, nem sempre. Algumas há, cujas finalidades confinam com o interesse público, e, então, a lei exige, como requisito existencial, a prévia autorização estatal”. E este é o caso em análise. A comercialização de energia elétrica se destina a viabilizar a prestação de um serviço público assim definido pela Constituição Federal. A criação do MAE ou da CCEE confina com esse interesse público e a autorização legal se encontra prevista no texto da lei.
Surge daí uma conclusão bastante importante para a análise da questão relativa à arbitragem na CCEE. Se a natureza da arbitragem não pode prescindir da manifestação de vontade da parte que a elege para solução de controvérsias, afastando a atuação do Poder Judiciário para a formação do pacto arbitral, a subscrição deste, em etapa posterior, pelo novo integrante deverá se fazer nos exatos termos em vigor, preservando-se a integridade das relações pré-constituídas. Admitir-se que, à entrada de cada novo integrante, se devesse firmar um novo pacto arbitral, estaríamos eliminando o que a Corte de Apelações de Paris definiu como sendo este parcela integrante de conteúdo econômico da relação contratual existente, prejudicando o interesse da maioria em nome do interesse individual. Neste caso, o agente subscreve a convenção arbitral como elemento integrante dos direitos e obrigações de associado, já que a associação é um contrato aberto.
Por conseguinte, não se poderá ver na subscrição da convenção arbitral, qualquer expressão ou traço de uma arbitragem mandatória ou obrigatória. Se a Convenção do MAE passa a ser, de imediato e sem solução de continuidade ou qualquer alteração, a Convenção da CCEE, o caráter de sucessão se estende para abrigar novos membros, sem que isso exija alterações ou negociação de um novo texto, nem dê à subscrição um caráter de obrigatoriedade. Em suma, não há que se falar em violação do caráter consensual da arbitragem.
Por todas essas razões, não deixamos de repetir a importância do voto do Ministro Gilmar Mendes na apreciação do pedido liminar contido na ADI 3100. A decisão de não reconhecer o pedido formulado foi absolutamente correta, ainda mais ao estatuir que a subscrição da convenção arbitral se faria nos estritos termos da Lei nº 9.307, de 1996.
Esperamos com este Artigo dar às disposições legais interpretação coerente com o espírito que deve informar a aplicação na prática. É chegado o momento do Poder Judiciário, mais uma vez e no âmbito do Supremo Tribunal Federal, honrar a tradição que vem se solidificando no Brasil e reconhecer o efeito vinculativo da convenção arbitral em caso de sucessão universal.
Dessa forma, estaremos contribuindo para que o futuro da arbitragem, no Brasil, seja de reafirmação de princípios cardeais e consolidação definitiva do instituto.
Informações Sobre o Autor
José Emilio Nunes Pinto
Sócio responsável pela área de Arbitragem de Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados