A atividade jurídica como requisito para concursos públicos

Desde quando se soube que, em virtude da edição da Emenda Constitucional n° 45/2004, a Constituição da Republica passaria a estabelecer como requisito para o acesso às carreiras da magistratura e do ministério público o desempenho de atividade jurídica por, no mínimo, três anos, tem prevalecido o entendimento de que a norma teria eficácia limitada e, portanto, somente sua regulamentação poderia definir o que configuraria essa “atividade jurídica”[1].

De qualquer maneira, a necessidade de novos juízes e promotores faz e fará com que novos concursos sejam abertos, independentemente da regulamentação do dispositivo constitucional e, conseqüentemente, que as respectivas comissões organizadoras adotem seu próprio conceito de atividade jurídica. Foi o que se fez, por exemplo, no 27° Concurso para Promotor de Justiça Adjunto do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, cujo edital de abertura assim estabelece:

Art. 3º Poderão inscrever-se, no concurso público, bacharéis em Direito de comprovada idoneidade moral, exigindo-se do candidato, no mínimo, três anos de atividade jurídica (art. 129, § 3º da CF, alterado pela Emenda Constitucional n.º 45, de 08 de dezembro de 2004 e comprovada idoneidade moral.

Parágrafo único. A atividade jurídica, verificada no momento da inscrição definitiva, deverá ser demonstrada, juntamente com os demais documentos indicados no art. 11, por:

a) certidão da OAB, comprovando a atividade jurídica, na forma da Lei n.º 8.906, de 1994, a abranger a postulação perante qualquer órgão do Poder Judiciário, bem como atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas, sob inscrição da Ordem dos Advogados do Brasil;

b) certidão de exercício de cargo, emprego ou função pública, privativos de bacharel em Direito, sejam efetivos, permanentes ou de confiança.

Como se vê, para o MPDFT, atividade jurídica equivaleria às atividades definidas pelo Estatuto da OAB (Lei n° 8.906/1994) como “atividades privativas de advocacia”. Tanto que o art. 1° daquele Estatuto assim estabelece:

Art. 1º São atividades privativas de advocacia:

I – a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais;

II – as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas.

Com o devido respeito, o entendimento não nos parece o melhor, porque se baseia numa norma que visa, apenas, a delimitar, dentre as atividades jurídicas, quais aquelas que somente os advogados podem desempenhar e ignora, portanto, todas as demais atividades que são jurídicas mas não são privativas daqueles profissionais.

Observe-se que, nos termos do referido Edital, os professores de faculdades públicas de Direito não se enquadram no conceito de atividade jurídica mas poderiam participar do concurso por se ajustarem na alínea c do parágrafo único de seu artigo 3°, enquanto que os professores das faculdades particulares não se enquadram em nenhuma das alíneas daquele parágrafo. Mas quem poderá negar que tanto os professores de faculdades públicas quanto os de particulares desempenham atividade jurídica?

Como se vê, quando se opta pela saída mais fácil de se dizer quem pratica atividade jurídica, sem se analisarem as características das atividades efetivamente desenvolvidas pelos candidatos, torna-se grande o risco de, sob o pretexto de se atender aos ditames constitucionais, agir-se exatamente em sentido contrário, cometendo-se iniqüidades e ofendendo-se direitos que a própria Constituição garante.

A propósito, destaque-se que não é difícil encontrarem-se cargos, empregos ou funções que são privativas de advogado mas cujos titulares, de fato, não desempenham atividades jurídicas. É o que ocorre, por exemplo, com os Delegados da Polícia Federal que se dedicam a atividades administrativas, de chefia e de assessoramento que, apesar de essenciais para a  Polícia Federal, não se relacionam com o Direito. Só por isso, já não se pode afirmar que todos os Delegados da Polícia Federal, apenas por serem titulares desse cargo, desempenham atividades jurídicas.

E quanto aos Analistas Judiciários da Área de Execução de Mandados, que também são cargos privativos de bacharéis em Direito mas cujas atividades se destinam a “possibilitar o cumprimento de ordens judiciais” e compreendem “a realização de diligências externas relacionadas com a prática de atos de comunicação processual e de execução, entre outras atividades de mesma natureza e grau de complexidade[2]? Quem poderá dizer, sem mais nem menos, que seus titulares desempenham atividades jurídicas?

De outro lado, consideremos o cargo de Auditor-Fiscal da Receita Federal, que não é privativo de bacharéis em Direito. Ora, muitos dos titulares desses cargos atuam na análise e solução de processos administrativos decorrentes de impugnação de lançamento tributário e de consulta tributária (Dec. 70.235/1972), de apreensão de mercadorias (Dec.-Lei 37/1966) e de repetição de indébitos e compensações tributárias (Lei n° 9.430/1996, arts. 73 e 74).

Sabemos de renomados advogados que laboram quase que exclusivamente nesses processos desenvolvidos na Receita Federal, peticionando, expondo teses, buscando demonstrar que interpretação deve ter a lei que se aplica ao seu caso… Só porque eles não estão postulando ao Poder Judiciário se dirá que não estão exercendo atividade jurídica? Mas, então, e os auditores-fiscais que analisam aquelas petições e teses nesses processos administrativos e, aplicando a lei, decidem? Não são, também, jurídicas essas suas atividades?

Lembremo-nos, agora, dos ocupantes de cargos não privativos de advogados que elaboram informações em mandados de segurança. Essas informações não têm natureza de contestação mas, como o deferimento da segurança, normalmente, tem efeitos imediatos, a Administração tem que aproveitá-las para interpor todas as questões possíveis, inclusive aquelas meramente processuais, tentando – e muitas vezes obtendo – a extinção do processo sem o julgamento do mérito. Nessas circunstâncias, parece-nos evidente que configura exercício de atividade jurídica a elaboração dessas informações.

E os servidores públicos membros de comissões em processos administrativos disciplinares? Não são jurídicas as atividades que eles desempenham?

Mas, além e acima de tudo, há uma situação ainda mais grave. Referimo-nos aos  diversos cargos, empregos e funções públicas que não são privativos de bacharéis em Direito mas a cujos ocupantes é vedado o exercício da advocacia.

Ora, se se estabelece que cumpre o requisito constitucional apenas quem exerce a advocacia ou é titular de cargo privativo de bacharel em Direito, surge o paradoxo de se exigir desses candidatos uma condição que a própria lei lhes veda. Para esta situação, lembramos que Constituição da República garante que alguém deixe de fazer alguma coisa se a lei lhe impedir de fazê-la (interpretação do art. 5°, inc. II). Como é axiomático, se a lei veda, não pode também exigir.

Por tudo isso, pensamos que, tanto para o legislador que venha a regulamentar o dispositivo constitucional quanto para as comissões organizadoras de concursos, a melhor opção seria a definição de quais características são necessárias para que se considerem jurídicas as atividades dos candidatos, independentemente da profissão, cargo, emprego ou função a que estes se dediquem. Assim, somente após se analisarem as atividades desempenhadas por cada candidato é que se poderá dizer se ele cumpre ou não o requisito constitucional.

De antemão, é bom dizer que desta solução não deverão advir maiores trabalhos para as comissões organizadoras de concursos, que poderão se restringir apenas aos candidatos que já tiverem passado em todas as provas. Assim, ainda que haja milhares de candidatos inscritos, apenas quanto àqueles poucos que chegarem ao final das provas é que se averiguará o cumprimento do requisito.

Inclusive, até para maior comodidade das comissões, além da definição das características que devem ter as atividades jurídicas, também se poderiam relacionar alguns cargos, funções ou profissão cujos titulares seriam considerariam exercentes daquelas atividades. Mas, é evidente, esse rol nunca poderia ser considerado taxativo, já que estaria veiculando mera presunção.

Finalmente, queremos sugerir que as comissões dos futuros concursos e o legislador de uma eventual regulamentação do dispositivo constitucional optem por estabelecerem as características que devem ter as atividades jurídicas, deixando aos candidatos o ônus de demonstrar que as exercem, e evitem as nefastas discriminações que adviriam da alternativa de apenas relacionarem quais profissões, cargos, empregos e funções exercem atividades jurídicas.

Notas
[1] Vide, por exemplo, MAZZILLI, Hugo Nigro, in “A prática de atividade jurídica nos concursos” (Jus Navigandi, Teresina, 4 ago. 2004; disponível em www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5533; acesso em 03.fev.2005) e GOMES, Luiz Flávio, in “A exigência de três anos de atividade jurídica garante profissionais experientes?” (Paraná Online. Curitiba, 28.dez.2004; disponível em www.parana-online.com.br/noticias/index.php?op=ver&id=121843&caderno=5; acesso em 03.fev.2005).
[2] Conforme descrito no Edital de Abertura do concurso respectivo, do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, em 2001.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Wagner Lopes da Silva

 

Advogado e servidor público federal em Maringá/PR, Pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho

 


 

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