Resumo: O presente artigo trata da criação do Decreto 4.887/03 que veio para regulamentar o processo de identificação reconhecimento delimitação demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes dos quilombos de que trata o art. 68 do ADCT. Enfatizou-se o critério de auto-definição como um elemento essencial para atender ao direito fundamental à memória das comunidades remanescentes de quilombos.[1]
Sumário: Introdução. 1. O art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias como consagrador de um direito fundamental. 2. A importância do critério de auto-atribuição para a identificação das comunidades remanescentes de quilombos à luz do Decreto 4887/2003. 2.1. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. 3. A Ação Direta de Inconstitucionalidade n 3239. Considerações finais. Referências.
1 INTRODUÇÃO
É inegável a contribuição da cultura africana na brasileira, uma vez que não se consegue retirar do cotidiano do brasileiro vários costumes e modos de viver que encontram sua base cultural no continente africano. Não se consegue pensar em um Brasil sem o samba, a feijoada e a mistura entre as religiões afro. Entretanto, a sua contribuição não se esgota aí, uma vez que foi crucial para a economia e desenvolvimento do país. Nesse sentido, tem-se por mais que necessário, ou seja, é um dever de todos lutar para que essa presença permaneça no cotidiano brasileiro.
A importância da afirmação dos direitos dos negros constitui-se em um pilar na luta do resgate de sua cultura, enraizada no Brasil com a vinda dos africanos para servir como mão de obra escrava, inicialmente, nos engenhos de açúcar no Nordeste.
Apesar de todo o sofrimento e humilhação vividos pelos negros durante o seu processo de chegada e sua permanência no país, podemos considerar que a sua presença foi crucial para a existência da enorme sincretismo que hoje compõe a cultura brasileira.
No contexto de lutas empreendidas pelos negros para poderem conquistar um espaço de afirmação de sua identidade, tem-se a formação dos quilombos, que simbolizaram uma resistência à opressão de seus “senhores”. Ainda, segundo Daniel Sarmento (2010, p. 276), existem hoje mais de três mil comunidades remanescentes de antigos quilombos, o que denota um importante “museu vivo” presente em território nacional. Dessa forma, busca-se demonstrara importância da afirmação identitária pelas próprias comunidades.
Após 100 anos de silêncio do legislador, uma grande conquista realizada em prol dos direitos desse grupo minoritário foi realizada em 1888, período até o qual criar quilombo era considerado crime. Tal conquista encontra-se na Constituição de 1988, no Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que reconhece a propriedade dos remanescentes de comunidades de quilombo, o que se constitui em um preceito fundamental para que seja possível a existência de tais minorias.
Vale destacar também os artigos 215 e 126 da Constituição, que conferem importância ao resgate da cultura afro:
“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º – O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. […]
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: […]”
Logo, percebe-se que as diversas formas de manifestação da cultura afro encontram proteção constitucional, sendo dever do Estado garantir que as mesmas possam ser exercidas de maneira a preservar a memória dos mesmos.
Nesse sentido, criou-se também o Decreto 4.887/03, que veio para regulamentar o processo de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes dos quilombos de que trata o art. 68 do ADCT. Porém, antes da criação do referido Decreto, estava em vigência o Decreto 3.912, de 10 de setembro de 2011, que disciplinava a mesma questão e foi revogado pelo último. Com efeito, reforça o direito à terra de tais comunidades.
Não se pode deixar de mencionar que um dos importantes critérios utilizados no referido decreto é a auto-atribuição para a identificação dos remanescentes de quilombos, estabelecido pelo art. 2º, caput e § 1º, que se mostra essencial para respeitar a memória dos mesmos. Além disso, encontra-se respaldado na Convenção 169 da OIT[2], que o estabelece mesmo como fundamental para identificar os sujeitos de sua aplicação.
De acordo com Fabiana Dantas (2010, p. 66)
“[…] a memória é uma necessidade fundamental, pode-se afirmar queo direito à memória existe e consiste no poder de acessar, utilizar, reproduzir e transmitir o patrimônio cultural, com o intuito de aprender as experiências pretéritas da sociedade e assim acumular conhecimentos e aperfeiçoá-los através do tempo.”
Logo, a memória das comunidades quilombolas é um direito que encontra proteção no Decreto 4.887/03, o que possibilita que os seus integrantes possam reproduzir e ter acesso a esse patrimônio cultural.
Ciente da importância do assunto abordado, tem-se como questão central a ser tratada no presente artigo: até que ponto o critério de auto-definição atende ao direito fundamental à memória das comunidades remanescentes de quilombos?
1 O ART. 68 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS COMO CONSAGRADOR DE UM DIREITO FUNDAMENTAL
Antes de adentrar propriamente no critério de auto-atribuição, necessário se faz tecer algumas considerações a respeito do Art. 68 do ADCT, que diz: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Tal artigo configura um preceito fundamental para assegurar que seja possível a existência de um grupo minoritário, possuidor de cultura e identidade étnica própria, que está amplamente relacionado a um passado de opressão do colonizador europeu.
Vale ressaltar que sem seu território, esse grupo estaria sujeito a desaparecer e misturar-se à sociedade que os envolve, o que ocasionaria uma perda significativa para a pluralidade identitária presente no Brasil.
Dessa forma o referido artigo confere a um grupo que está à margem, isto é, que se compõe basicamente por pessoas muito pobres e discriminadas, o direito de possuir sua terra. Além disso, é uma forma encontrada para trazer de volta uma dívida que o país tem com essas pessoas, uma vez que durante séculos foram duramente oprimidas e tiveram seus direitos humanos violados.
Vale ainda destacar que a terra representa para os quilombolas não apenas um espaço físico, mas um elemento que constitui a sua identidade e que é de extrema relevância para manter a união deste grupo, que assim pode, portanto, viver conforme sua cultura, suas tradições, seus costumes e valores.
É de extrema importância destacar ainda que o art. 68 do ADCT está amplamente relacionado à dignidade humana, pois faz referência direta ao direito de moradia dos quilombolas, que integra o mínimo existencial, explicado por Gilsilene Passon P. Francischetto e Júlia Silva Carone (2009, p. 91) da seguinte forma:
“O mínimo existencial surgiu, então, com o objetivo de garantir ao cidadão o fundamento da República, denominado dignidade da pessoa humana, que possui status de princípio na ordem normativa brasileira, previsto no artigo 1o, inciso III, da Constituição Federal e, de outro lado, como uma maneira de obrigar o Estado a garanti-la. De acordo com tal princípio, o indivíduo deve ter assegurado, pelo Esta- do, um mínimo de condições para sua existência digna.”
Portanto, o mínimo existencial constitui-se em um elemento essencial para que seja garantido pelo Estado a dignidade da pessoa humana, que se reflete no art. 68 do ADCT.
Não se pode esquecer ainda que o direito dos remanescentes de quilombo à terra constitui um direito fundamental cultural (art. 215, CF). Assim, se este direito é retirado deste grupo, o mesmo perde sua identidade própria.
As consequências de permitir que tais grupos desapareçam não está relacionada apenas a eles próprios, mas também à sociedade brasileira como um todo, pois esta perde um patrimônio cultural nacional.
Nesse mesmo sentido Gilsilene Passon e Júlia Carone (2009, p. 110) também discorrem que:
“Isto é, acesso à moradia deve ser analisado sob um prisma garantista, sob a perspectiva de um conjunto de direitos fundamentais, e não a partir de uma visão estreita que abarcaria tão somente a casa em si. A moradia envolve dignidade, bem-estar, segurança.”
Assim, a moradia deve ser vista como um direito fundamental garantido para as comunidades remanescentes de quilombo através do artigo 68 do ADCT, como uma forma de possibilitar um mínimo de dignidade para tais comunidades.
Portanto, pode-se concluir que uma vez que se caracteriza pelo direito fundamental, este artigo possui aplicabilidade imediata, conforme o art. 5º, § 1º da CF/88. Aliás, segundo Daniel Sarmento (2010, p. 282), o artigo 68 é denso de forma suficiente para permitir a sua própria aplicabilidade imediata.
À luz dessa discussão, André Luiz Videira de Figueiredo, (1996, p.78) afirma que: “A disposição constitucional acerca dos quilombos” seria “um dispositivo de natureza constitucional e preservacionista, afirmando um direito cujo sujeito pode ser entendido como a sociedade brasileira como um todo, sugerindo uma política de reconhecimento da diversidade cultural brasileira”.
Logo, deve-se entender que o artigo 68 do ADCT contribui para proteger a própria sociedade brasileira e garantir as diversas formas de manifestações culturais, estabelecidas pela própria Constituição.
De acordo com André Luiz Videira de Figueiredo (1996, p. 80)
“[…] o direito relativo aos remanescentes de quilombos não apenas constitui direito coletivo, mas direito étnico; portanto direito que, mais que o sentido de reparação de injustiças raciais, traz consigo significados relativos ao reconhecimento de formas próprias de organização da vida social”.
Vê-se, portanto, que o direito à terra conferido aos remanescentes de quilombo abrange uma grande quantidade de sentidos, os quais fazem referência primordialmente à proteção de uma determinada forma de organização social presente no Brasil. A propriedade quilombola possui um aspecto coletivo e não meramente voltado à interesses particulares.
Desse modo, o art. 68 do ADCT, ao mesmo tempo em que confere proteção aos direitos fundamentais dos remanescentes dos quilombos, objetiva salvaguardar os interesses da sociedade brasileira.
Não se pode olvidar também que a moradia constitui um direito fundamental a todos os brasileiros, portanto, deixar as comunidades quilombolas de lado seria o mesmo que não cumprir um dos caros preceitos constitucionais. Isto porque a moradia está incluída no art. 6º como um direito social que deve ser garantido e protegido pelo Estado.
2 A IMPORTÂNCIA DO CRITÉRIO DE AUTO-ATRIBUIÇÃO PARA A IDENTIFICAÇÃO DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS À LUZ DO DECRETO 4887/2003
Cabe enfatizar que anteriormente ao implemento do Decreto 48887/03, vigia o artigo 8.912/01 e ambos tratam sobre o processo de titulação e reconhecimento da terras provenientes de antigas comunidades quilombolas. No mesmo sentido, no art. 2º do Decreto 4887/03 consta que:
“Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.”
Vale destacar a enorme importância do referido artigo, que traz consigo um caráter democrático para o processo de titulação das terras quilombolas, isto é, o critério de auto-atribuição.
Segundo Dantas (2010, p.66),
“Tomando por base o conceito material de direitos fundamentais… a memória é uma necessidade fundamental, pode-se afirmar que o direito fundamental à memória existe, e consiste no poder de acessar, utilizar, reproduzir e transmitir o patrimônio cultural, com o intuito de aprender as experiências pretéritas da sociedade e assim acumular conhecimentos e aperfeiçoá-los através do tempo.”
Nesse sentido o critério de auto-atribuição constitui-se em um recurso para tornar possível a efetivação de um direito fundamental à memória dos descendentes de quilombo, isto é, de terem sua terra preservada para poderem continuar cultivando sua cultura. Assim, não somente o passado será resguardado, como o presente também será utilizado em benefício dos próximos descendentes de quilombo.
Vale destacar o seguinte poema de Míriam Alves (1985, p. 23):
“Nas casas e quintais
esmagam flores do passado
antes de murcharem
Calam minha boca
antes muito antes
das palavras brotarem
Esmagam a superfície
não extirpam as raízes
nem as flores
nem as palavras
Teimosamente
numa lei de resistência
elas brotam sempre
sempre
numa nova primavera
de plantas
e palavras.”
Assim, percebe-se que o eu lírico demonstra um sentimento de opressão que sofre enquanto tenta se manifestar diante de seu opressor, o qual impede que ele possa ter acesso à sua memória. As suas experiências passadas estão sujeitas a uma ação repressora e, com isso, sua resistência acaba por ser árdua.
No mesmo sentido, a situação vivida pelas comunidades quilombolas é perfeitamente retratada pelo sentimento do eu lírico, tendo em vista que estão ligadas a um passado de opressão e a um presente que quer calá-los a qualquer custo.
2.1 A CONVENÇÃO 169 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), vigente no ordenamento jurídico brasileiro, discute sobre povos cujos aspectos sociais, culturais e econômicos os diferem das demais esferas da sociedade, e que se apresentam conduzidos, total ou parcialmente, por suas próprias culturas ou hábitos, ou por legislação específica. Dessa forma, o dispositivo acima abrange os remanescentes de quilombos.
Dessa forma, a referida convenção abre portas para que os direitos dos remanescentes de quilombos não estejam apenas no plano jurídico escrito, mas para que sejam realmente aplicados, uma vez que conta com o Sistema Internacional para poder exigir o seu cumprimento. Assim, é também levado em consideração a realidade circundante da sociedade brasileira. Como tal convenção é considerada lei, é dotada de significativa importância, no sentido de que também complementa a Constituição, tendo em vista que está em acordo com seus preceitos.
Cabe mencionar que o artigo 14 da referida Convenção garante o direito à propriedade das regiões tradicionalmente ocupadas, bem como o dever dos Estados de estabelecer métodos apropriados de acordo com o sistema jurídico nacional para resolver conflitos envolvendo propriedades estabelecidas pelos povos interessados.
Sendo assim, a Convenção 169 apresenta subsídio normativo para a edição do Decreto 4.887/03. Cabe destacar que a mesma, como os demais dispositivos internacionais, teve a presença de duas esferas do poder, a executiva e a legislativa, para serem incorporados pelo país. Nesse sentido, houve pleno consentimento para inclusão das disposições presentes na Convenção 169 da OIT ao ordenamento interno.
Apesar de a Convenção 169 ter sido promulgada em 2004, após a edição do Decreto 4.887/03, e de que, segundo o STF, o tratado internacional só será inserido ao direito interno após sua promulgação, é inaceitável atribuir inconstitucionalidade a um dispositivo compromissado com a proteção e promoção dos direitos humanos, devido à antecipação de um procedimento formal. Tal atitude representa uma postura extremamente formalista e inadmissível com o dever moral, internacional e constitucional dos Estados de garantir proteção aos direitos humanos.
Vale ressaltar que, ao ratificar um tratado relativo aos direitos humanos, o Estado membro deve ajustar o seu ordenamento interno às disposições internacionais de proteção dos direitos humanos. Para isso, pode acrescentar ou alterar normas jurídicas. Nesse sentido, se o Brasil adota tal postura para efetivação do tratado internacional ao qual está inserido, é contraditório o Estado suprimir o dispositivo internacional em questão.
3 A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 3239
A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239 proposta pelo PFL, hoje denominado como Democratas, envolve contestação da validade do Decreto nº 4887/03 e teve seu julgamento suspenso, devido a um pedido de vista da ministra Rosa Weber. A referida ADI ainda aponta a possibilidade dos processos de desapropriação de áreas particulares sejam revisados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o que mostra se mostra como um retrocesso para todo o processo de conquistas realizadas para possibilitar a efetivação do direito fundamental à memória das comunidades remanescentes de quilombo.
Conforme mencionado, tal Decreto regulamenta “o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes dos quilombos de que trata o art. 68 do ato das Disposições Constitucionais Transitórias”.
De acordo com Daniel Sarmento (2010, p. 275) a ADI baseou-se em quatro fundamentos: não é possível fazer um regulamento autônomo para a questão devido ao princípio da legalidade; uma vez que a constituição já transferiu a propriedade das terras de seus antigos proprietários para os remanescentes de quilombos, seria inconstitucional usar de desapropriação segundo o art. 13 do Decreto 4.887/03, bem como indenização aos detentores de títulos incidentes sobre as áreas quilombolas; inconstitucionalidade do emprego do critério de auto atribuição para identificação dos remanescentes de quilombos; e a inconstitucionalidade da forma como são caracterizadas as terras quilombolas, julgando como amplo o conceito a ela atribuído no art. 2º, §2º do Decreto 4887/03, além da impossibilidade da utilização de critérios dos próprios quilombolas para demarcação das suas terras, pois isto sujeitaria o procedimento administrativo aos indicativos fornecidos pelos próprios interessados.
Ainda nas palavras de Daniel Sarmento (2010, p. 276), levando em consideração que se estima que existem hoje mais de três mil comunidades remanescentes de quilombo distribuídas pelo território nacional, que envolvem centenas de milhares de pessoas, com sua identidade étnica própria e em sua maioria pobres, acolher as teses da ADI 3239 seria acabar com qualquer possibilidade de tutela atual dos direitos dessas pessoas, ocasionando um risco à sobrevivência das comunidades quilombolas, bem como suas tradições culturais, que abrangem o patrimônio imaterial da Nação.
Portanto, percebe-se que o critério de auto-atribuição é a melhor forma encontrada para atender ao direito fundamental à memória das comunidades remanescentes de quilombo, tendo em vista que para que se defina quem são as mesmas, não há ninguém melhor que os próprios. Não faria sentido pedir para alguém de fora, que não conhece a realidade das comunidades, para poder defini-la.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se demonstrar a importância do tema, cuja discussão é de interesse social, em um contexto de exclusão e subestimação das minorias étnicas. Cabe destacar que os excluídos da sociedade brasileira nunca tiveram oportunidade de participar das decisões institucionais do país, nem ao menos tiveram acesso aos meios de produção e a propriedade da terra.
Essa raiz histórica se arrasta até os dias atuais, em que se vê os descendentes de escravos, predominantemente negros, se submetendo a formas degradantes de trabalho para garantir sua subsistência. Nesse sentido cabe ressaltar a dívida social do país em relação a essa minoria étnica, que reivindicao seu direito mínimo existencial à terra.
Como é possível notar, todo sofrimento e violação do princípio da dignidade humana através dos maus tratos a que os escravos eram submetidos ao longo da história do Brasil reforça o argumento de que há uma dívida histórica em face dos descendentes desse grupo, uma vez que as terras em que constituíam os quilombos representavam não apenas um espaço físico, mas um elemento definidor de sua identidade.
Conclui-se que essa dívida histórica deve ser quitada para com as famílias de descendentes de quilombolas, aqueles que contribuíram imensamente e sem nenhuma forma de remuneração, não somente para a construção da história do povo brasileiro, da identidade e da cultura nacional, como também, para uma economia e um modo peculiar de trabalho e luta pela terra.
Assim, torna-se necessária uma reparação que se faz através do reconhecimento e efetivação dos direitos das comunidades advindas dos antigos escravos, oportunizando-lhes, finalmente, a titulação da propriedade de suas terras.
Por conseguinte, também se conclui que o critério de auto-atribuição para a definição das comunidades quilombolas se constitui em um preceito essencial para o processo de titulação das referidas terras quilombolas. Nesse contexto, vê-se que a invisibilidade das comunidades quilombolas deve ser tratada seriamente e medidas menos morosas devem ser efetivadas para que o processo de titulação de suas terras possa realmente ser realizado.
Assim, confirmar as teses da ADI Nº 3239 seria o mesmo que ensejar a invisibilização das referidas comunidades, o que apenas contribui para acabar com a conquista de direitos tão arduamente adquiridos após um longo período de repressão dos negros no país.
Cabe ressaltar o histórico das lutas empreendidas pela conquista de direitos do referido grupo no país, sempre tratado com descaso pelos grupos majoritários. Até mesmo a abolição da escravidão se insere nesse contexto, tendo em vista que ainda tardia, nada contribui para possibilitar a inserção do negro na sociedade brasileira.
Não se pode deixar de mencionar que o art. 68 do ADCT, ao conferir o direito à terra das comunidades quilombolas, possibilita que o direito à memória, a possibilidadede poder reproduzir a sua cultura, possa ser efetivado. Vale também relembrar que a terra para os quilombolas representa não apenas uma noção individualista de propriedade, mas uma baseada na ideia de compartilhamento da terra.
Nesse sentido, o referido artigo seria também um meio de tornar o processo de titulação menos moroso e trazer mais facilidade para as comunidades quilombolas.
Cabe, pois, concluir que apesar do histórico de injustiça com as comunidades quilombolas, a falta de preocupação do Estado com as mesmas e a sua invisibilidade, torna-se necessário assinalar a devida importância do critério de auto-atribuição no processo de identificação das comunidades quilombolas estabelecido pelo Decreto 4.887/03, de extrema relevância para garantir o direito fundamental à memória das comunidades remanescentes de quilombo.
Informações Sobre o Autor
Martha Assis Dutra
Acadêmica de Direito na Faculdade de Direito de Vitória – FDV