Resumo: A presente pesquisa aborda a temática da bioética latino-americana numa perspectiva histórica. Pretende-se evidenciar a importância dos elementos diversidade cultural e religiosidade na trajetória e construção dessa nova área do conhecimento na América Latina. Para tanto, utiliza-se o método histórico e comparativo, por meio da pesquisa bibliográfica e documental, com a leitura e fichamento crítico dos textos, ao buscar traçar paralelos entre a evolução da bioética estadunidense e o desenvolvimento desse saber nos países latino-americanos.
Palavras-Chave: Bioética; América Latina; Diversidade Cultural; Religiosidade.
Sumário: Introdução. 1. O Surgimento da Bioética. 2. A Bioética na América Latina. 2.1 O contexto Latino-Americano: Diversidade Cultural e Religiosidade. 3 Entre paralelos e perspectivas importantes da Bioética Latino-Americana. Conclusão. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O século XXI marcado pelo fenômeno da globalização, com o desenvolvimento das tecnologias vive um paradoxo. De um lado os avanços e novidades a partir da tecnociência a revolucionar os mais diversos setores relacionados à vida, e de outro as consequências advindas do uso da própria tecnologia quando gera malefícios a humanidade. Diante disso, aparece a Bioética, enquanto área específica do conhecimento a nos instigar à reflexão e a postura ética.
A bioética na América Latina desenvolve-se num “ethos muito original”, em sua peculiaridade mais flexível e ampla ante as realidades políticas e sociais do continente. Logo, a bioética inicialmente vai apresentar-se com características a partir do humanismo médico norte-americano, ao que se soma o caráter inclusivo de novos temas e problemas e a presença de movimento social, o que se configura com os diversos grupos sociais, profissionais e minorias na realidade latino-americana[1].
No sentido de compreensão acerca das perspectivas atuais dos estudos da bioética no continente latino-americano, que o presente trabalho procura evidenciar alguns elementos consideráveis da história e formação desse campo de estudo na região, com destaque para a questão da diversidade cultural e da religiosidade nesse processo, apontando também para algumas distinções da bioética na América Latina em relação à desenvolvida pelos pioneiros na América do Norte e na Europa.
1 O SURGIMENTO DA BIOÉTICA
O nascimento do termo e o conceito de bioética na literatura remetem à publicação de Van Rensselaer Potter, de Bioethics: Bridge to the Future no ano de 1970, onde a caracteriza como a ciência da sobrevivência[2], bem como a fundação do Instituto Kennedy de Ética na Universidade de Georgtown, no ano de 1971 por André Hellegers, com ajuda do Sargento Shriver e da família Kennedy[3], com os novos estudos na área de reprodução humana[4].
No entanto, novas pesquisas apontam para Fritz Jahr, um pastor protestante, filósofo e educador na Alemanha, que em 1927 na publicação do artigo Bio-Ethics: A Review of the Ethical Relationships of Humans to Animals and Plants, ou seja, Bio-ética: uma revisão do relacionamento ético dos humanos com os animais e plantas, no periódico científico alemão Kosmos[5]. No referido artigo, Jahr propõe um “imperativo biético”, onde defende o respeito a todo o ser vivo essencialmente como um fim em si mesmo e o consequente tratamento deste, como tal[6].
A origem da bioética[7] norte-americana possui estreita relação com os dilemas éticos criados em função dos grandes avanços e desenvolvimento da medicina. Aparecem nesse contexto, temas relacionados à pesquisa em seres humanos, o uso humano da tecnologia, dúvidas sobre a morte e o morrer (eis que surge o conceito de morte encefálica) e transplantes, entre outros. Porém, das questões originais da bioética houve um alargamento nesse campo de estudo, com a inclusão de temas sociais, como saúde pública, alocação de recursos em saúde, saúde da mulher, questão populacional e ecologia, desenvolvimento sustentável, são exemplos[8].
Nesse sentido, importa referir que a contribuição de Potter[9] acompanha o desenvolvimento dos estudos da bioética, além do momento inicial. Em 1970, caracteriza a Biética como ciência da sobrevivência, qualificando-a nessa fase, como Ponte, “no sentido de estabelecer uma interface entre as ciências e as humanidades que garantiria a possibilidade do futuro”. Depois, ao final da década de 1980, enfatizando a característica interdisciplinar e abrangente da Bioética, identifica-a como global, no sentido de enfatizar a importância acerca das discussões e reflexões da medicina e da saúde, mas de forma a ampliar o estudo aos novos desafios ambientais. E ainda, em 1998, redefine a Bioética como uma Biética profunda, ou seja, “a nova ciência ética, que combina humildade, responsabilidade e uma competência interdisciplinar, intercultural, que potencializa o senso de humanidade” [10].
Assim, a partir de tais ideias desenvolveu-se a bioética na América Latina, onde autores como James Drane, Pedro Laín Entralgo, Diego Garcia, Alfonso Lhano, José A. Mainetti e Fernando Lolas, entre outros passaram a enfrentar tais discussões em relação a uma realidade bem diversa, marcada pela desigualdade social, o que “deve ter criado algum tipo de conflito moral e seguramente foi muito claro para os que lideravam a reflexão latino-americana naquela época que uma bioética latino americana não poderia ser um simples reflexo da bioética feita nos Estados Unidos”[11]. É o que passamos a verificar a seguir.
2 A BIOÉTICA NA AMÉRICA LATINA
Pode-se dizer que os estudos acerca da Bioética na América Latina datam da década de 1970, com José Alberto Mainetti, na Argentina. Embora, apenas em 1994 por ocasião do Segundo Congresso Mundial da International Association of Bioethics (IAB), em Buenos Aires, que a Bioética cria raízes definitivas na região, esclarece Volnei Garrafa[12]. É importante salientar que a partir desse momento, de maneira mais articulada surgem os grupos de pesquisa, disciplinas nas Universidades sobre o tema, eventos científicos, revistas acadêmicas especializadas, entre outras iniciativas.
Dessa forma, o surgimento da Bioética na América Latina, em sua fase inicial, apresenta a tensão, entre a perspectiva de uma bioética norte-americana centrada na autonomia e nos direitos individuais do paciente em detrimento de uma atitude mais paternalista, advinda da visão católico-romana na prática médica, presente na América Latina. Mas, “a busca de um ‘humanismo médico’ […] alimentou a reflexão da prática social da medicina” (2007, p. 330), influenciando os trabalhos pioneiros nos Estados Unidos de Tristan Engelhardt Jr. e Edmund Pelegrino. E o que veio a influenciar a bioética latino-americana, destacando-se três traços característicos da bioética latino-americana nascente: o caráter teórico vinculado às humanidades, o caráter inclusivo à participação de grupo de temas e problemas e por fim, o caráter de movimento social[13].
Nos demais países, como no caso da Bolívia aparecem questões como a respeito da heterogeneidade do que seria uma bioética nacional ou latino-americana. No Chile, com o Programa Regional de Bioética criado a partir de 1994 com a Organização Pan-Americana da Saúde, organiza-se e prevê várias atividades e publicações. Aliás, no Chile as instituições católicas logo se interessaram pela bioética, bem como aliá-la às normas católicas, visto ser um país fortemente católico. Nesse cenário, destaca-se que “cada uma das nações latino-americanas é muito subdividida social e culturalmente pelos recursos econômicos, apesar de apreciáveis esforços humanitários” (LEPARGNEUR, 2007, p. 351)[14].
Numa linha de desenvolvimento da bioética nos países no continente podemos considerar: Argentina por ocasião do II Congresso Mundial de Bioética em 1994, Colômbia, Peru, México e o Brasil, ocasião em que hospedou o 1º Congresso latino-americano de bioética em 1998 e o II Congresso Mundial de bioética em 2002 no Distrito Federal. Além disso, o Chile a partir da Organização Pan Americana de Saúde juntamente com a atuação da principal Universidade do país[15].
Então, na reflexão acerca da bioética América Latina num primeiro momento, como no caso da Colômbia, emerge a discussão para além dos direitos dos pacientes, entrelaçada com a questão de autonomia e beneficência. Por sua vez, outras questões sobre justiça sanitária demonstraram-se prejudicadas ante a ênfase excessiva no principialismo, numa discussão deslocada do contexto das realidades do mundo em desenvolvimento e das relações internacionais[16].
Em síntese, a bioética latino-americana demonstrou-se desde as primeiras reflexões, inclinada às questões globais, mas que no desafiante contexto latino enseja ir além da invocação dos ideais morais, sendo necessário atentar ao contexto ético-político e ao significado das temáticas problematizadas para proposições que superem o “ethos liberal norte-americano”[17].
2.1 O CONTEXTO LATINO-AMERICANO: DIVERSIDADE CULTURAL E RELIGIOSIDADE
A tradição médica humanista e as condições sociais de países periféricos marcam o desenvolvimento da bioética na América Latina, distinguindo-a da norte-americana. Dessa forma, a realidade da América Latina “exige uma perspectiva de ética social com preocupação com o bem comum, justiça e equidade antes que em direitos individuais e virtudes pessoais”, onde a necessidade diante da pobreza é de “equidade na alocação de recursos e distribuição de serviços de saúde”[18].
A diversidade cultural e a religiosidade são elementos presentes na América Latina e que a distinguem. A história dos povos latino-americanos desde a colonização marcou-se pelos valores católicos cristãos, diferenciando-se do pluralismo característico da cultura norte-americana.
De acordo com Edmundo Pellegrino, “três questões nervurais que a bioética terá que enfrentar no futuro”: resolver a diversidade de opiniões sobre o que é a bioética e seu campo de abrangência; relacionar os vários modelos de bioética, sendo possível falar em bioéticas diante da pluralidade de visões bioéticas; o lugar da religião e da bioética teológica em debates e temas públicos (como aborto, por exemplo)[19].
3 ENTRE PARALELOS E PERSPECTIVAS IMPORTANTES DA BIOÉTICA LATINO-AMERICANA
Na origem e formação dos estudos acerca da bioética norte-americana afirmou-se que a tecnologia médica desencadeou o desenvolvimento da bioética clínica. De igual maneira, isso ocorre também na formação da bioética na América Latina. De acordo com Pessini, na fase inicial dos estudos nos Estados Unidos, as perguntas repetiam-se em torno do uso humano de determinada nova tecnologia, como o uso ou a retiradas de aparelhos em pacientes críticos, a aceitação ou não do consentimento informado do paciente[20].
Em situação adversa, as questões na América Latina não vão estar no uso da tecnologia médica, mas sim quanto aos destinatários desse acesso. Pois, em determinados países da região, a existência de tecnologias e centros de cuidado médico avançados resulta na evidência de questões relacionadas à discriminação e injustiça da assistência médica, no tocante ao acesso a ela. Assim, “um forte saber social qualifica a bioética latino-americana”, com destaque para conceitos culturais fortes, como “justiça, equidade e solidariedade [que] deverão ocupar na bioética latino-americana, um lugar similar ao princípio da autonomia nos EUA” [21].
Assim, a América Latina desde a colonização convive com a pobreza e a exclusão no âmbito social, o que implica em pensar:
“Uma bioética pensada a nível “macro” (sociedade) precisa ser proposta como alternativa à tradição anglo-americana de uma bioética elaborada a nível “micro” (solução de casos clínicos). A bioética sumarizada num “bios” de alta tecnologia e num “ethos” individualista (privacidade, autonomia, consentimento informado) precisa ser complementada na América Latina por um “bios” humanista e um “ethos” comunitário (solidariedade, equidade, o outro)”[22].
Numa avaliação geral, a América Latina teve dificuldade em receber os princípios[23] da prática bioética dos Estados Unidos da América, que são: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça, pois que são princípios de caráter mais individualista e analítico do que costuma ser o comunitarismo latino-americano[24]. Assim, há necessidade de desenvolver-se “uma mística, ou melhor, horizonte de sentido para a bioética”, indo além do principialismo norte-americano. Exatamente porque, “as dimensões morais da experiência humana não podem ser capturadas numa única abordagem”, tornando-se imprescindível o diálogo e a tolerância ante as diversidades[25].
CONCLUSÃO
Para pensar a bioética na América Latina faz-se importante retomar os precursores do movimento, bem como o desenvolvimento da bioética no continente. Nessa perspectiva crítica valorizar o consolidado pelos estudos, com um olhar atento ao importar tal disciplina e os princípios desta para a realidade e peculiaridades, dada a diversidade cultural dos povos latino-americanos.
Nessa abordagem ressalta-se e evidencia-se o aspecto humano, da necessidade de uma mística de sentido para bioética. E na linha de raciocínio a partir das referências teóricas utilizadas, salienta-se a importância da bioética como a área do conhecimento que necessita dialogar com os cientistas, juristas, antropólogos, teólogos e com a sociedade civil (como um todo, incluindo os grupos minoritários/excluídos) para encontrar respostas às questões tão conflitantes, onde a ética, a solidariedade, a justiça e a tolerância possam ser conceitos a ser entendidos de forma a defender o bem comum e a vida digna para todos.
Tal intento, na América Latina parece possível dada à diversidade cultural e os paradigmas contemporâneos que direcionam ao diálogo intercultural em substituição e que superam as visões anglo-americanas e eurocêntricas da cultura ocidental.
Mestranda em Direito e Justiça Social do PPGD da FURG
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