A cessão fiduciária de cotas de sociedades limitadas como forma de garantia de cumprimento de obrigações

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Resumo: Neste artigo discute-se a utilização da cessão fiduciária de cotas de sociedades limitadas como forma de garantir o cumprimento, por parte do adquirente das mencionadas cotas, de obrigações contratualmente estabelecidas, em caso de operações de transferência de cotas.

Palavras-chave: Cessão fiduciária. Sociedade limitada. Transferência de cotas.

Abstract: In this paper, it is discussed the use of the fiduciary assignment of quotas of limited companie as a way of ensure the fulfillment, by the acquirer of the mentioned quotas, of established contractual obligations, in case of operation of transfer of quotas.

Keywords: Fiduciary assignment. Limited companie. Tranfer of quotas.

Sumário: Introdução. 1. A transferência de quotas em sociedades limitadas. 2. A cessão fiduciária. 2.1. A cessão fiduciária como forma de garantir cumprimento de obrigações em contratos de transferência de quotas. Conclusão. Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como escopo analisar e avaliar o instituto da cessão fiduciária aplicada aos contratos de transferência de quotas de sociedades empresárias, como forma de garantia de cumprimento total das obrigações constantes no contrato firmado entre as partes.

No âmbito do direito empresarial, existem diversos fatores que influenciam para aumentar o risco na ocasião de transferência de quotas em sociedade limitada e imputar responsabilidades ao sócio transmitente, podendo-se citar como exemplos a data do termo legal da quebra na falência, que pode retroagir até antes da transferência das quotas, o avanço da mitigação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito trabalhista e, ainda, o próprio código civil, que prevê a responsabilidade solidária do cedente pelo prazo de 02 (dois) anos após a cessão[1].

Nesse ínterim, busca-se novas formas de mitigação do risco envolvido nessa modalidade de operação, mais especificamente a utilização da cessão fiduciária de bens móveis como forma de reduzir eventuais responsabilidades do sócio transmitente.

1. A TRANSFERÊNCIA DE QUOTAS EM SOCIDADES LIMITADAS

A quota de uma sociedade limitada significa a menor parte indivisível de seu capital social de propriedade de uma determinada pessoa.

Nos dizeres de José Edwaldo Tavares Borba:

“A cota social representa uma fração do capital social e, em consequência, uma posição de direitos e deveres perante a sociedade.

Ainda que controvertida a sua natureza, pode-se afirmar tratar-se de um bem classificável, para os efeitos legais, como móvel, integrando a categoria dos bens incorpóreos (art. 83, inciso III, do Código Civil).” (2012, p. 47).

Assim, trata-se de um bem móvel, incorpóreo, de titularidade de uma pessoa natural ou jurídica, para que dela se utilize de direitos e deveres perante a sociedade.

De acordo com o novel Código Civil, as quotas de uma sociedade limitada podem ser transferidas gratuita ou onerosamente, para outros membros do quadro social ou terceiros, desde que com a concordância dos demais sócios, é o que se infere do artigo 1.057[2].

Indo além Nelson Abraão ensina que é incabível a colocação de qualquer cláusula de proibição de transmissão, senão veja-se:

“O fato de as quotas serem insuscetíveis de representação por títulos negociáveis e de implicar sua transferência, mesmo a não sócio, alteração do contrato social não significa que elas não possam ser cedidas. Qualquer proibição legal ou contratual à transmissibilidade das quotas atentaria contra a própria essência da sociedade limitada e levaria a uma situação radical e absurda de ter-se que dissolver a sociedade, caso apenas um de seus integrantes não mais desejasse nela permanecer, menosprezando-se a importância social da empresa e as necessidades normais da vida econômica, que são pela sua preservação”. (2012, p. 118).

Assim, para que se opere a transferência de quotas para terceiros, basta que haja a anuência dos demais sócios, salvo se houver disposição contrária em contrato social.

Contudo, necessário frisar que não basta a assinatura do competente instrumento contratual de transferência de quotas, o mesmo deverá ser levado à registro no órgão competente, conforme leciona Osmar Brina Corrêa:

“Diferentemente do caput do artigo 1.057, o seu parágrafo único é norma imperativa. O contrato nada pode dispor em contrário. Uma cessão de cota, embora válida,somente produz efeitos quanto à sociedade e a terceiros depois de averbada no registro público competente”. (2006, p. 50).

Dessa forma, estando o instrumento contratual devidamente assinado e levado à registro perante a Junta Comercial competente, a transmissão das quotas passará a produzir efeitos perante a sociedade e à terceiros.

2. A CESSÃO FIDUCIÁRIA

A partir das linhas tecidas sobre a forma como se dá a transferência de quotas de uma sociedade limitada e suas consequências, passa-se a analisar o instituto da cessão fiduciária, instituído pela Lei n° 10.931/2004.

A cessão fiduciária é o negócio jurídico pelo qual o devedor, também conhecido como devedor fiduciante, transfere para o credor fiduciário, a propriedade de um determinado bem, até que aquele cumpra devidamente uma obrigação assumida. Cumprida a obrigação, a propriedade do bem se resolve, ou seja, retorna para o devedor fiduciário.

Nos dizeres de Melhim Namen Chalhub, citado por Jean Carlos Fernandes:

“O negócio jurídico inominado pelo qual uma pessoa (fiduciante) transmite a propriedade de uma coisa ou titularidade de um direito a outra (fiduciário), que se obriga a dar-lhe determinada destinação e, cumprindo esse encargo, retransmitir a coisa ou direito ao fiduciante ou a um beneficiário indicado no pacto fiduciário” (2000, p.38).

Segundo Igor Gomes:

“Este efeito duplo surge no momento da realização do negócio, isto é, o fiduciante transfere a propriedade do bem ou a titularidade de determinado direito (efeito real) e ato contínuo, surge o dever do fiduciário de dar ao bem o destino querido pelo alienante, bem como de devolvê-lo após a ocorrência de determinada causa (efeito obrigacional).” (2011, p. 47).

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No presente estudo, será objeto de análise a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito, instituída pela referida Lei, que criou o artigo 66-B na Lei n°4.728/1965[3],visto que as quotas de sociedades limitadas se enquadram na definição de coisa móvel incorpórea, conforme já ressaltado em tópico anterior.

2.1. A cessão fiduciária como forma de garantir cumprimento de obrigações em contratos de transferência de quotas

Conforme já ressaltado em tópico acima, o contrato de transferência de quotas de uma sociedade limitada é cercado de riscos, principalmente para a parte transmitente.

Dessa forma, a fim de se mitigar os riscos envolvendo a operação, sugere-se a utilização da cessão fiduciária das quotas da sociedade limitada que foi objeto do contrato de transferência de quotas.

A princípio, pode soar estranha a relação da cessão fiduciária com a transferência de quotas, contudo, a reflexão acerca da temática leva a concluir que o instituto é, de fato, benéfico para esse tipo de transação.

Com efeito, não raro os titulares de quotas de sociedades limitadas que pretendem se desligar da sociedade, ou seja, transferir suas quotas para terceiros, deparam-se com situações as quais podem lhe trazer enorme insegurança jurídica e, principalmente, prejuízos financeiros futuros.

Cita-se como exemplo o caso de uma sociedade que possui um passivo trabalhista, ainda que pequeno, e um dos sócios pretende se retirar da sociedade transferindo suas quotas para terceiros (com a aceitação dos demais sócios). Após se retirar da sociedade, o novo sócio não age com zelo e não se preocupa em liquidar o passivo existente, mas, tão somente, em obter lucros. No caso em tela, o sócio transmitente ainda estaria obrigado a arcar com o passivo trabalhista não quitado pelo novo sócio, haja vista o comando normativo comando normativo do art. 1.003[4] do Código Civil.

Gladston Mamede discorre sobre a temática:

“Alfim, recordo que até dois anos depois d averbada a modificação do contrato, responde o cedente solidariamente com o cessionário, perante a soceidade e terceiros, pelas obrigações que tinha como sócio (artigo 1.003, parágrafo único, e artigo 1.057, parágrafo único), regra que se interpreta em conformidade com a previsão de limite de responsabilidade” (artigo 1.053). (2011, p. 209).

Além disso, existe, ainda, os casos em que o termo legal de quebra, no caso de falência, retroage até a data em que o sócio transmitente ainda figurava nos quadros sociais da sociedade, nos termos do artigo 99, inciso II, da Lei 11.101/2005[5].

Nos ensinamentos de José Francelino de Araújo:

“A lei anterior fixava o termo legal em 60 dias, como se constata no inciso III, do art. 14 da LF/45. A lei atual, aumentando mais 30 dias, fixou o termo legal em 90, ampliando, assim, o período suspeito da falência, isto é, aquele período dentro do qual o devedor, sabendo ou prevendo que vai falir, pratica uma série de atos perigosos e às vezes criminosos. Esses atos são colhidos dentro do termo legal e são tornados ineficazes em relação à massa falida, permitindo ao administrador propor ação revocatória, ex vi do art. 129 e seus incisos. (…)” (2009, p. 222).

Assim, conforme se observa, tem-se, de plano, 2 (duas) hipóteses nas quais é possível que o sócio transmitente seja responsabilizado pelas dívidas da sociedade a qual não figura mais nos quadros sociais.

Pois bem, após a análise da cessão fiduciária, existe a possibilidade da celebração de um contrato de transferência de quotas de sociedade limitada com cláusula de cessão fiduciária das próprias quotas, a fim de que o credor transmitente se resguarde de eventuais inadimplementos por parte do novo sócio.

A primeira vista pode-se parecer estranha a ideia de que o adquirente compra as quotas e, contudo, não adquire a sua propriedade. Contudo, ao analisar a transferência pela ótica do transmitente, mais precisamente quando existe algum débito da sociedade não quitado, encontra-se uma saída jurídica para que o transmitente diminua os riscos do adquirente em não quitar mencionados débitos.

Na realidade, torna-se condição do próprio negócio a inclusão da obrigação de quitação de eventuais débitos existentes para que a propriedade resolúvel retorne para o devedor fiduciante (adquirente das quotas), mantendo o credor fiduciário (vendedor das quotas) a propriedade até que sejam satisfeitas todas as obrigações constantes do contrato.

Por óbvio, situação semelhante ocorre quando a forma de pagamento dos valores constantes do contrato de compra e venda de quotas for parcelada, na medida em que a propriedade plena das quotas somente irá retornar para o adquirente quando da quitação integral do contrato.

Assim, caso não haja o adimplemento das obrigações constantes do contrato celebrado, o credor fiduciário irá se tornar, novamente, o titular das quotas da sociedade empresária, a tempo de poder satisfazer os débitos não quitados pelo devedor fiduciante.

Por fim, necessário frisar que a utilização da cláusula de cessão fiduciária para abranger os 02 (dois) anos completos da responsabilidade solidária prevista no artigo 1.003 do Código Civil não se mostra nem um pouco razoável, na medida em que o adquirente somente usufruiria de sua aquisição após esse prazo, servindo com melhor eficácia nos casos em que já há um débito preexistente de conhecimento do transmitente.

CONCLUSÃO

Diante da análise da possibilidade de se transferir quotas de sociedades limitadas para terceiros e, como consequência dessa transferência é a responsabilidade do sócio transmitente pelas obrigações assumidas pela sociedade pelo prazo de 02 (dois) anos após a sua saída, tem-se que uma ferramenta útil para possibilitar uma maior segurança jurídica ao sócio transmitente é a inclusão de cláusula de cessão fiduciária das quotas até o adimplemento completo das obrigações ajustadas.

No caso da cessão fiduciária a mesma se mostra com um relevante papel nessa modalidade de negócio na medida em que permite ao sócio transmitente se resguardar de eventuais responsabilidades advindas da saída da sociedade, conquanto mantém para si a propriedade resolúvel das quotas até ulterior quitação de eventuais dívidas contraídas pela sociedade quando da de sua saída.

Dessa forma, estaria o sócio transmitente operacionalizando uma forma de garantia de satisfação de um crédito, ainda que não necessariamente seu, mas de modo a evitar que o débito contraído seja de sua responsabilidade.

 

Referências
CHALHUB, Melhim Namen. Negócio fiduciário. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
LIMA, Osmar Brina Corrêa. Sociedade limitada. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 13ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.
ARAÚJO, José Francelino de. Comentários à lei de falências e recuperação de empresas. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MAMEDE, Gladston. Direito societário: sociedades simples e empresárias. Vol. 2. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2011.
ABRAÃO, Nelson. Sociedades limitadas. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
MESQUITA, Igor Nunes. Do negócio fiduciário stricto senso. 2011. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito Milton Campos, Nova Lima, 2011.
FERNANDES, Jean Carlos. Cessão fiduciária de títulos de crédito em garantia: a posição do credor fiduciário na recuperação judicial da empresa. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, 2008.
 
Notas
[1] Artigo 1.003 – A cessão total ou parcial de quota, sem a correspondente modificação do contrato social com o consentimento dos demais sócios, não terá eficácia quanto a estes e à sociedade.
Parágrafo único – Até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, responde o cedente solidariamente com o cessionário perante a sociedade e terceiros, pelas obrigações que tinha como sócio.

[2] Art. 1.057 – Na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua quota, total ou parcialmente, a quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a estranho, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social.

[3] Artigo 66-B – O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos.
§ 1° Se a coisa objeto de propriedade fiduciária não se identifica por números, marcas e sinais no contrato de alienação fiduciária, cabe ao proprietário fiduciário o ônus da prova, contra terceiros, da identificação dos bens do seu domínio que se encontram em poder do devedor.
§ 2° O devedor que alienar, ou der em garantia a terceiros, coisa que já alienara fiduciariamente em garantia, ficará sujeito à pena prevista no art. 171, § 2°, I, do Código Penal.
§ 3° É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada.
§ 4° No tocante à cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou sobre títulos de crédito aplica-se, também, o disposto nos arts. 18 a 20 da Lei n. 9.514, de 20 de novembro de 1997.
§ 5° Aplicam-se à alienação fiduciária e à cessão fiduciária de que trata esta Lei os arts. 1.421, 1.425, 1.426, 1.435 e 1.436 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

[4] Art. 1.003 – A cessão total ou parcial de quota, sem a correspondente modificação do contrato social com o consentimento dos demais sócios, não terá eficácia quanto a estes e à sociedade.
Parágrafo único – Até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, responde o cedente solidariamente com o cessionário, perante a sociedade e terceiros, pelas obrigações que tinha como sócio.

[5] Art. 99 – A sentença que decretar a falência do devedor, dentre outras determinações:
I – conterá a síntese do pedido, a identificação do falido e os nomes dos que forem a esse tempo seus administradores;
II – fixará o termo legal da falência, sem poder retrotaí-lo por mais de 90 (noventa) dias contados do pedido de falência, do pedido de recuperação judicial ou do 1° (primeiro) protesto por falta de pagamento, excluindo-se, para esta finalidade, os protestos que tenham sido cancelados;(…)


Informações Sobre o Autor

Lucas Mattar Rios Melo

Advogado. Atualmente cursando pós-graduação stricto sensu – Mestrado em Direito Empresarial, na Faculdade de Direito Milton Campos


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