A Ciência Jurídica Kelseniana: uma análise crítica contemporânea

Resumo: Com a finalidade de legitimar sua teoria e afastá-la de críticas e questionamentos indesejáveis, Hans Kelsen considerou a ciência jurídica como pura, positivista e anti-ideológica, afastando-a da influência de outras ciências. Segundo o renomado doutrinador, a questão dos valores e da justiça das normas diriam respeito a outras ciências, tais como a sociologia e a filosofia. A ciência jurídica deveria apenas descrever a realidade, legitimando-se por seus próprios fundamentos. Em sua concepção atual, entretanto, a ciência jurídica deve ser entendida, não como obra pronta e acabada, mas como fenômeno em constante transformação, pois sua existência justifica-se pela necessidade de solucionar os mais diversos conflitos sociais presentes e futuros, impossíveis de serem previstas pelo legislador.


Palavras-chave: ciência jurídica; óptica kelseniana; análise crítica.


Abstract: In order to justify his theory and put it away from unwanted criticism and questioning, Legal science was considered by Hans Kelsen like a  pure, positivist and anti-ideological science and away from the influence of other sciences. According to the renowned theoretician, the question of values ​​and standards of justice would be related to other sciences such as sociology and philosophy. The legal science should just describe reality, legitimizing itself by its own fundamentals. In its current design, however, legal science must be understood not as an unchanging science, but as a phenomenon in constant transformation, because its existence is justified by the need to solve diverse present and future social conflicts which are impossible to provided by the legislature.


Keywords: legal science; Kelsen´s perspective, critical analysis


Sumário: Introdução. 1. A ciência jurídica: uma ciência pura, positiva e anti-ideológica. 2. A ciência jurídica: uma ciência normativa e descritiva. 3. A ciência jurídica e a justiça. 4. Ciência jurídica: concepção contemporânea e perspectivas para o futuro. Conclusão. Referências.


INTRODUÇÃO


O presente artigo tem como objetivo analisar, de forma crítica, a ciência jurídica sob a ótica kelseniana, estabelecendo uma comparação com a  concepção atual.


Inicialmente analisa-se a ciência jurídica sob o enfoque puro, positivista e anti-ideológico defendido por Hans Kelsen, que, com o objetivo de consevar o dogmatismo de sua teoria, procurou afastá-la da influência de outras ciências e de todo e qualquer  conteúdo ideológico. Buscou legitimar a ciência jurídica como algo inquetionável e imutável, afastando-a de qualquer compromisso de cunho social e evitando questionamentos indesejáveis que pudessem ameaçar sua autonomia e pureza.


Observa-se que Kelsen classificou a ciência jurídica como normativa e descritiva, sem considerar que a função maior do Direito não é apenas descrever a realidade, mas, principalmente, prescrever e modificar a realidade, de modo a atender a princípios inerentes ao ser humano, tais como o princípio da isonomia e da dignidade da pessoa humana.


Ademais, considerou que os valores e a justiça não deveriam ser objeto de estudo da ciência jurídica, que legitimava-se por seus próprios fundamentos. Preocupações desse tipo, segundo seu entendimento, diziam respeito à outras ciências, tais como a sociologia.


Demonstra-se, entretanto, que a finalidade existencial da ciência jurídica está em solucinar conflitos sociais e regulamentar situações, de modo a melhorar a vida dos indivíduos. Caso contrário, não há como atribuir-se validade a normas desprovidas de conteúdo valorável.


Por fim, analisa-se a ciência jurídica em sua concepção contemporânea contrapondo-a com o posicionento de Hans Kelsen. Demonstra-se que a ciência jurídica deve ser entendida, não como dogma, mas como fenômeno em constante transformação e que por isso deve se manter propositadamente inacabada, para que possa se adequar às diversas necessidades sociais presentes e futuras, advindas da modernidade e impossíveis de serem previstas pelo legislador.


1  A CIÊNCIA JURÍDICA : UMA CIÊNCIA PURA, POSITIVA E ANTI-IDEOLÓGICA


A pureza foi o principal fundamento da teoria formulada por Hans Kelsen para explicar o surgimento, a aplicação e a obrigatoriedade das normas jurídicas. Por esse motivo, sua principal obra foi por ele denominada: Teoria Pura do Direito.


Nas palavras de Hans  Kelsen (1997, p.01): “Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe a garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir desse conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.”


A primeira contradição dessa teoria está na classificação que Kelsen atribui ao seu objeto de estudo, ou seja, o Direito, pois, afirma que a pureza diz respeito apenas à ciência jurídica e não ao Direito em si.


Observa-se, pois, que teríamos que admitir que uma ciência pura teria como objeto de estudo e análise, algo impuro, ou seja, o que nos parece algo inconciliável.


O objetivo primordial de Kelsen, ao formular sua teoria, foi diferenciar a ciência jurídica e afastá-la da influência de outras ciências como as ciências sociais, filosóficas, humanas e das chamadas ciências da natureza, ou causais, tais como a física e a química. Com o objetivo de preservar a pureza do direito, Hans Kelsen preocupou-se apenas com o método. Não lhe interessava investigar o direito como um fenômeno social, pois seu objetivo era analisar a ciência jurídica de forma puramente decritiva.


Segundo Arnaldo Vasconcelos (2010, p.125): “Tal conceito rigoroso, como proposto, deverá ser alcançado mediante um processo de purificação, isto é, de exclusão do âmbito do Direito de tudo aquilo que não lhe seja essencial. Nas palavras de Kelsen; ‘Quer isto dizer que ela pretende liberar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental’ (1974:17). Ao final do processo, deverá o Direito estar reduzido a ele mesmo, ao estritamente jurídico, e nada mais. Seu objetivo programático final é este: ‘Evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto’ (1974:18). Trata-se, pois, de impedir que a ciência do Direito se confunda com a teoria política ou a ética, com a sociologia ou a psicologia. Sob outro prisma, o que Kelsen agora chama ciência jurídica livre ou genuína ciência do espírito, deveria surgir purificada: a) ‘de toda ideologia política’ e b) ‘ de todos os elementos da ciência natural’ ( 1974:04). Parece ter-se fechado o círculo da pureza.”


Dever-se-ia eliminar toda e qualquer preocupação com a questão dos valores e da justiça, pois tais questões estariam ligadas à política e não propriamente ao Direito, devendo, pois, ser tratadas por sociólogos e filósofos, e não por juristas.


Ocorre, entretanto, que não é possível conceber  a existência de uma ciência jurídica totalmente desvinculada de outras, tais como a sociologia e a história. Isso porque o Direito surgiu como forma de pacificar conflitos e regular as relações entre os indivíduos e  deve permanecer como obra inacabada, em constante transformação, procurando se adaptar às modificações ocorridas na sociedade, que jamais deixarão de ocorrer. 


Nas palavras de Miguel Reale (1978, p. 53): “Ora, mesmo quando a sociedade não apresenta sinais de mudanças bruscas ou aceleradas, a dinâmica do Direito se opera segundo ajustes e desajustes entre fatos e valores, de tal modo que os modelos legais possuem necessariamente uma existência de maior duração, segundo o tipo de situações reguladas. É claro que existem princípios jurídicos gerais hámuito tempo incorporados ao patrimônio de nossa civilização, a tal ponto que parecem inatos, ou inerentes à razão qua talis;mas constituem eles, a bem ver, o resultado de conquistas amaduracidas ao longo do processo histórico. Diga-se de passagem, que, se tais princípios adquiriram força objetiva estável, no decurso do tempo, é sinal que eles correspondem a exigências transcendentais do espírito humano como tal, o que representa a fonte inspiradora de todas as concepções do Direito Natural.”


Admitir a influência de outras ciências, como forma de complementar e enriquecer a ciência jurídica, de forma à aproximá-la da realidade fática, não aniquila sua autonomia, como acreditava Kelsen.


Na realidade, não há ciência ou teoria que possa ser denominada pura, pois, na realidade, toda criação deriva do pensamento, que está irremediavelmente impregnado de ideologias distintas adquiridas ao longo da existência humana, em decorrência das experiências sociais, históricas e metafísicas de cada indivíduo.


Kelsen (1997, p. 119), entretanto, pregava uma ciência jurídica anti-ideológica, pois acreditava que a ideologia ameaçava a idéia de pureza intensamente defendida em sua teoria. Entendia a ideologia como algo negativo, capaz de deturpar a realidade e idealizado exclusivamente para atender a interesses políticos.


No seu entender: “A ‘ ideologia’, porém, encobre a realidade, enquanto, com a intenção de a conservar, de a defender, a obscurece ou, com a a intenção de a atacar, de a destruir e de a substituir por ums outra, a desconfigura. Tal ideologia tem a sua raiz na vontade, não no conhecimento, nasce de certos interesses, melhor, nasce de outros interesses que não o interesse pela verdade – com o que, naturalmente, nada nada se afirma sobre o valor ou sobre a dignidade desses outros interesses.”


A ideologia nasce da metafísica e esta constitui algo inerente ao ser humano, como ser que pensa, pois intimamente ligada à idéia de valor. Ao observar todo e qualquer fenômeno natural ou social, o indivíduo imediatamente o qualifica e valora, utilizando-se de conhecimentos previamente adquiridos.


Nas palavras de   Arnaldo Vasconcelos (2010, p.222): “Se procurarmos um conceito de ideologia, depararemos, desce o princípio, com a dificuldade em formulá-lo. Há duas ordens principais de empecilhos: 1ª – a ideologia é um ser de muitas faces e disfarces, o que dificulta sua identificação; 2ª – não possui território privado ou específico, estando por toda parte, até nos opostos dialéticos, donde a tese do caráter ideológico das teorias anti-ideológicas.Isso posto, entendemos poder concluir-se , com Karl Manheim, que tudo está permeado de ideologia, tanto os poderes como os saberes. Na sua condição primordial de poder-saber, o Direito é um poder que sabe, e por isso quer colocar-se com pretensão de eficácia.”


Essa concepção kelseniana de ciência jurídica adveio, principalmente, de sua formação positivista, que negava toda e qualquer possibilidade de aplicação prática  da teoria jusnaturalista, caracterizada como mais uma manifestação de impureza, pois baseada em fatos concretos, valores e em ideias de justiça, ou seja, pautada no mundo da natureza, no “ser”.   


As manifestações da realidade fática  não foram, portanto, objeto da Teoria Pura do Direito, seu intuito foi analisar o “dever ser”, ou seja, o direito confundia-se com o prório Estado. Não havia diferença entre norma existente e norma válida, visto que as normas se legitimavam por sua própria existência.


O problema da validade da ordenação jurídica estava, pois, totalmente desvinculado da idéia de valor, para Kelsen, as normas jurídicas deveriam ser analisadas apenas do ponto de vista formal, o conteúdo da norma e seus efeitos sociais não deviam ser considerados preocupações inerentes à ciência jurídica.


Cientificidade era sinônimo de não-valoração, segundo a visão kelseniana as escolhas baseadas em valores eram tidas como irracionais, pois pautadas na fé e não na razão.


Kelsen (1997, p. 242), entretanto, admitiu que a norma hipotética fundamental é derivada do direito natural, pois é pressuposta e não posta.


Conforme o autor: “A norma fundamental, determinada pela Teoria Pura do Direito como condição da validade jurídica objetiva, fundamenta, porém, a validade de qualquer ordem jurídica positiva, quer dizer, de toda ordem coercitiva globalmente eficaz estabelecida por atos humanos. De acordo com a Teoria Pura do Direito, como teoria jurídica positiva, nenhuma ordem jurídica positiva pode ser considerada como nãoconforme à sua norma fundamental, e, portanto, como não válida.(…)”


Trata-se de mais uma grande contradição de sua teoria pois, ao mesmo tempo em que procurou, a todo momento, afastar a influência dos valores e do ideal de justiça sobre a ciência jurídica, não teve como negar que toda norma positivada tem origem em uma norma hipotética fundamental, criada pelos homens, com base nos valores e no ideal de justiça em última análise, o que nos leva à inevitável conclusão de que não se pode conceber a existência do Direito desvinculado da idéia de valor.


2 A CIÊNCIA JURÍDICA: UMA CIÊNCIA NORMATIVA E DESCRITIVA


Kelsen afirmava que a ciência jurídica era classificada como ciência normativa, ao contrário das ciências da natureza, classificadas como ciências causais.


Para as ciências ditas causais, regidas pelo princípio da causalidade,  à todo pressuposto (hipótese) está ligada uma consequência necessária. Estão representadas pela fórmula: Se A é, então B é.


Observa-se, pois, que o consequente, nesse caso, segue a órbita do “ser”. Se a consequência não ocorre conforme o esperado, então a proposição é tida como falsa.


Nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho (2010, p. 52): “Ou seja, se a água aquecida a cem graus não evaporar, a afirmação de o líquido nessas condições  se evapora perde inteiramente a sua pertinência (veracidade)”.


A ciência normativa, em contrapartida, é regida pelo princípio da imputação, ou seja, o consequente é previamente prescrito, não se trata de algo que ocorre independentemente da vontade humana, como no exemplo anterior. De acordo com esse princípio: Se A é, então B deve ser.


O consequente ,nesse caso, segue a órbita do “dever ser”, ou seja, o fato de a prescrição ocorrer, não torna  falsa a proposição da qual ela deveria decorrer.


 Nas palavras de Hans  Kelsen(1986, p.32)  : “Causalidade e Imputação, como já observado, são dois diferentes modos de um nexo funcional, dois diferentes modos, nos quais duas questões de fato são ligadas uma com a outra como condição e consequência. A diferença entre ambos subsiste na circunstância de que a imputação (isto significa a relação entre uma conduta determinada como condição e a sanção como consequência descrita numa lei moral ou jurídica) é produzida por um ato de vontade , cujo sentido é uma norma, enquanto a causalidade (isto significa a relação entre causa e efeito descrita numa lei) é independente de toda e qualquer intervenção.”


Em decorrência dessa concepção do direito, baseada no princípio da imputação, ou seja no “dever ser”, Kelsen acreditava que a ciência jurídica era puramente descritiva, ou seja, cabia ao legislador descrever a hipótese normativa como deveria ser, cabendo ao interprete apenas aplicar a norma, sem questioná-la.


Observa-se, pois, que Kelsen negou a capacidade criadora e renovadora do direito tentando transformá-lo em dogma, para que dessa forma pudesse manter as normas jurídicas longe de críticas e questionamentos a  cerca de sua  origem,  justiça, validade e efetividade de sua aplicação, como forma de resolver problemas sociais.


Segundo Evgeni B. Pasukanis (1988, p. 49): “O direito, enquanto fenômeno social objetivo, não pode esgotar-se na  norma ou na regra, seja ela da escrita ou não. A norma como tal, isto é, o seu conteúdo lógico, ou é deduzida diretamente das relações já existentes ou, então, representa quando é promulgada como lei estadual apenas uma sintonia que permite prever com certa probabilidade o futuro nascimento das relações correspondentes. Para afirmar a existência objetiva do direito não é suficiente conhecer apenas o seu conteúdo normativo, mas é necessário igualmente saber se este conteúdo normativo é realizado na vida, ouseja, através de relações sociais. A origem normal dos erros neste caso está no modo de pensar dogmático que confere ao conceito de norma vigente um significado específico que não coincide com aquilo que o sociólogo ou o historiador entendem por existência objetiva do direito. Quando o jurista dogmático tem de decidir se uma determinada forma jurídica está ou não em vigor, ele não procura deralmente determinar a existência ou não de um determinado fenômeno social objetivo, mas apenas a presença, ou ausência, de um vínculo lógico entre proposição normativa dada e as premissas normativas mais gerais.”


A razão de ser da existência das normas jurídicas, entretato, está em poder solucionar os problemas sociais advindos das relações humanas ao longo da história. Não se pode conceber o Direito  como uma ciência formada por normas estáticas, imutáveis e inquestionáveis.


A constante evolução humana, cada vez mais, exige um sistema jurídico composto por  normas gerais, capazes de ser interpretadas de modo a garantir a maior proteção possível aos indivíduos que se inserem em seu âmbito de incidência.


Segundo a Teoria do Direito Alternativo, por exemplo, é atribuída ao juiz a possibilidade de criar normas que atendam ao ideal de justiça no caso concreto, caso existam lacunas no ordenamento jurídico.


Trata-se de prática adotada, desde sempre, pelos magistrados do mundo inteiro que, diante da impossibilidade de deixar de julgar o caso concreto alegando lacuna ou obscuridade na lei, e da ausência de norma regulamentadora,  precisam se valer da jurisprudência, da analogia, dos costumes,  dos princípios gerais do direito, do direito comparado, entre outras formas juridicamente admitidas de solucionar o conflito, não estando limitados apenas às normas postas, que ao longo do tempo mostraram-se ineficazes de solucionar os conflitos sociais, por não poderem prever todos os casos concretos passíveis de ocorrer e pendentes de regulamentação.


Segundo Oscar D´Alva Souza  Filho (2000, p. 21): “O Judiciário há de se deparar com situações sociais gravíssimas e novas, quantitativa e qualitativamente. E não pode fechar os olhos à realidade, e tratar essa grande parcela de deserdados sociais como se fossem voluntariamente criminosos, aplicando-lhes a lei pura e seca, sem observância das circunstâncias fáticas e históricas. Nesse momentos críticos em que a realidade social  está parindo convulsões no campo e na cidade, e o juiz não encontra no ordenamento positivo soluções eficazes e justas, pode e deve, alternar entre as formulações do direito natural e do direito positivo, e julgar as questões de interesse social e político, fora de padrões envelhecidos e caducos do Código octogenário de 1916, por exemplo. No Estado Democrático de Direito, onde os magistrados, promotores de justiça e advogados, desempenham suas funções como representantes da comunidade jurisdicionada têm de buscar a legitimidade dessa representação na eficácia das soluções que articulam em conjuntocom os destinatários da atividade jurisdicional.”


A ciência jurídica não pode, pois, ser classificada como puramente descritiva, vez que, além de descrever os fatos e as sanções aplicáveis, é também construtiva, pois está em constante mutação a fim de se adequar às necessidades humanas, que mudam continuamente, de acordo com os avanços e retrocessos nas relações sociais experimentados em decorrência da modernidade.


3 A CIÊNCIA JURÍDICA E A JUSTIÇA


Hans Kelsen negava terminantemente que a questão da justiça pudesse ser objeto de análise pelas ciências jurídicas, pois tratava-se de algo não cognoscível pela razão humana.


Segundo seu entendimento, havia uma clara distinção entre  normas justas e norma de justiça. Uma norma poderia ser designada como norma de justiça quando estabelecesse um “dever ser”, apenas uma norma que prescrevesse um tratamento de um indivíduo pelo Estado, ou seja, uma norma positivada, poderia ser classificada como norma de justiça.


As normas morais , por sua vez, ainda que unanimamente aceitas pela sociedade como justas seriam questões relacionadas à realidade fática, ao “ser”, diriam respeito às ciências sociais, humanas, políticas e filosóficas, e não às ciências jurídicas.


 De acordo com a concepção  puramente positivista de Kelsen seria, portanto, possível que uma norma jurídica fosse considerada pelo direito positivo como norma de justiça ainda que não fosse justa, o que inevitavelmente resulta na conclusão de que  apenas seriam válidas, e portanto aplicáveis, as normas postas, denominadas norma de justiça, ainda que consideradas injustas pela sociedade. Ao contrário, as normas moralmente justas, se não estivessem positivadas jamais poderiam ser consideradas normas de justiça.


Segundo Hans Kelsen (1996, p. 08): “Uma norma de justiça prescreve uma determinada conduta de homens em face de outros homens. Esta conduta pode consistir na estatuição de normas. Na medida em que uma norma de justiça se refere ao direito positivo, postula um determinado afeiçoamento do conteúdo das suas normas; prescreve a estatuição de normas com determinado conteúdo. Isto, porém, significa que ela se dirige à criação do direito positivo. A conduta que ela prescreve, o seu objeto, são atos através dos quais são postas as normas. Esses atos podem corresponder à norma justiça ou contradizê-la. Correspondem à norma de justiça quando a norma que estatuem tem aquele conteúdo que a norma de justiça prescreve; contradizem a norma de justiça quando a norma que estabelecem tem o conteúdo oposto.”


A concepção kelseniana de justiça, desvinculada da ciência jurídica, esconde, na realidade, uma forte preocupação em perpetuar uma concepção dogmática do Direito. Ao construir uma teoria completamente estática, Kelsen evitava questionamentos e críticas indesejáveis às suas idéias, e dessa forma, criou o risco de legitimar o uso de normas injustas e anti- democráticas, baseadas apenas em uma legalidade meramente formal.


Ao conceber o Estado como única autoridade legitimada a dizer o que viria a ser o Direito, pregava um engessamento da ciência jurídica, de tal modo, que o Direito perdeu sua principal finalidade, qual seja, promover a paz social, garantindo a isonomia material, tudo com base no ideal de justiça.


4 CIÊNCIA JURÍDICA: CONCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA E PERPECTIVAS PARA O FUTURO


A ciência jurídica contemporânea tem como principal característica não ser algo pronto e acabado, feito para durar eternamente. Ao contrário, sua principal virtude reside na flexibilidade e na possibilidade de mudança e evolução, como forma de solucionar novas questões que a todo momento são  apresentadas à humanidade. Segundo Karl Popper (1982, prefácio): “À medida que aprendemos com os erros cometidos, nosso conhecimento aumenta”.


Conforme Arnaldo Vasconcelos (2010, p.213):  “A diferença primordial entre os dois conceitos de ciência acima conforntados revela-se, contudo, mais ampla e mais profunda. A ciência fechada de Kelsen, proclamadamente positivista e formalista, opera com conceitos lógicos irresistíveis, porque desprovidos de conteúdo, assumindo, afinal, a imagem de obra completa e acabada, perfeito exemplar desta coisa extemporânea e insólita chamada dogmática jurídica. Em sentido oposto, a ciência atual, ao admitir a metafísica e os valores, situa-se propositadamente fora do âmbito de influência das categorias positivistas e formalistas, afirmando-se como processo, algo por natureza aberto à crítica e, portanto, provisório, dado o caráter conjectural de seus enunciados fundamentais.”


Percebeu-se que a verdadeira finalidade  da ciência jurídica não está, como acreditava Kelsen, em apenas descrever a realidade, pois somente interessa ao indivíduo conhecer a realidade para aperfeiçoá-la e adequá-la com vistas à melhoria de sua qualidade de vida, à pacificação social e à solução de conflitos.


O formalismo e o dogmatismo exacerbado da ciência jurídica influenciada pelo positivismo, tal qual defendido por Hans Kelsen, não se mostrou eficaz para colmatar as lacunas normativas resultantes das mudanças trazidas pela  era da globalização e das novas tecnologias.


Cada vez mais, torna-se necessário recorrer a outras ciências, tais como as ciências sociais e as ciências da natureza, como forma a compreender o comportamento humano e melhor solucioná-lo sob uma perspectiva jurídica.


Nas palavras de Nelson Nogueira Saldanha (1974, p. 29): “Cumpre observar, por outro lado, que hoje a vida humana parece tender para elementos e preocupações diferentes dos que vinham acompanhando historicamente a idéia mesma do direito: preocupações com a demografia e as comunicações, elementos tecnológicos e ideológicos pronunciadamente novos. Não é o caso de , diante disso, de o jurista fazer lamúria, nem insistir sobre as suas prorrogativas ou denunciar crises e decadências. Deve tentar aproximar o seu saber das problemáticas sociais de outras áreas, menos presos a formas e formalismos. Nessas outras áreas, encontramos certas modernizações funcionais, ligadas à fecundação proveniente de posições doutrinárias novas, como o marxismo, o existencialismo, o estruturalismo, as quais só em muito pequena escala vêm ecoando entre os juristas.”


Observa-se, pois, que a ciência jurídica contemporânea preocupa-se com os valores  e a justiça, como formas de legitimar o Direito e como balizas para a confecção das normas jurídicas e sua aceitação como válidas, pelos indivíduos.


Não se pode mais conceber o Direito como algo estático e desligado das questões que movem o desenvolvimento social. Por essa razão, a ciência jurídica atual apresenta-se como obra propositadamente inacabada e assim deve permanecer, com ainda mais razão, no futuro.


O pensamento moderno traz, por marca de origem, a recorrente necessidade de se rever a cada passo, de reconsiderar progressos e transformações. O espírito ocidental, nos últimos séculos, adaptou-se substancialmente aos rítmos de mudança vividos pela sociedade, a tal ponto que o alterar-se ficou tido como normal, e não o excepcional como de certa forma era o caso entre os antigos (…) “(SALDANHA, 1974, p. 61)


Os ordenamentos jurídicos tendem a conter, cada vez mais, normas gerais, capazes de abranger o maior número possível de situações inimagináveis ao tempo de sua concepção, como forma de atender aos anseios da sociedade


CONCLUSÃO


A ciência jurídica, segundo Hans Kelsen, fora concebida conforme uma concepção positivista, descritiva, anti-ideológica e afastada da idéia de justiça. Tudo com o objetivo de criar uma teoria pura do direito, afastada da influência de outras ciências, tais como a sociologia e a física.


Kelsen acreditava  que não era função do Direito analisar os mundo dos fatos, ou seja, o “ser”. A função da ciência jurídica seria apenas descritiva, analisaria apenas o “dever ser”, sem a preocupação de valorar os fatos, se justos ou injustos.


Observa-se, entretanto que a função essencial da ciência jurídica é servir à sociedade, como meio de regular situações e pacificar conflitos. Não pode, pois, ser classificada como purante descritiva, pois a ciência jurídica, ao mesmo tempo que descreve a realidade, a contrói e renova constantemente.


Kelsen acreditava, igualmente, em uma ciência jurídica anti-ideológica, pois considerava a ideologia aproximava o Direito da política e de uma falsa realidade, representando um elemento de impureza.


Sabe-se, entretanto, que tudo está permeado de ideologia, pois o indivíduo ao observar um objeto ou um fato imediatamente o valora, trata-se de característica inerente à natureza humana.


 O que se buscou, na realidade,  foi afastar a metafísica da ciência jurídica. Entretanto, esvaziar o Direito de todo e qualquer conteúdo, apresentando-o como algo estático e imutável, ou seja, dogmático, jamais pode ser considerado ciência, de acordo com a concepção atual.


Na realidade, ao conceber esse modelo de ciência jurídica puramente positivista, Kelsen buscou legitimar sua teoria e afastá-la de críticas indesejáveis.


A ciência jurídica contemporânea, ao contrário do que pregava Hans Kelsen, mostra-se, propositadamente, inabada, para que dessa forma possa se ajustar às necessidades humanas.


 


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Informações Sobre o Autor

Flávia Aguiar Cabral Furtado Pinto

Mestranda em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade de Fortaleza, Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP em convênio com o curso LFG, Analista Judiciária-Execução de Mandados do Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região, Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza


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