A circuncisão – O rito litúrgico, a garantia constitucional de sua prática e a legislação penal brasileira

Resumo: O artigo trata o rito judaico da circuncisão, sua proteção constitucional e a eventual ocorrência de ilícito penal.


Palavras-chave: Circuncisão. Rito religioso. Mohel


Sumário: 1. A circuncisão (Brit Milah) [1] no rito religioso e o ato do mohel [2] 2. A visão médica 3. A proteção constitucional e a legislação penal brasileira. 4. Conclusão.


1. Como rito religioso[3] judaico, a circuncisão[4] remonta ao período pré-histórico. Os judeus começaram a se instalar no Canaã (posterior Palestina) no início da Idade do Ferro, mas praticavam a circuncisão desde a Idade da Pedra, como prova o uso ritual de faca de pedra na execução da operação, ainda nos templos bíblicos: a narrativa da circuncisão das crianças israelitas (Jos 5,2-3) menciona o uso de facas especiais de sílex para esse fim. Segundo a Bíblia, a circuncisão estabelecia como identificação visível, selada na carne, a aliança, pacto, entre os filhos de Abraão e Deus Todo-Poderoso e Único.[5]


Para se entender, enfim, como se processa a circuncisão, isto é, a excisão do prepúcio, é preciso conhecer a anatomia dos tecidos envolvidos: o órgão masculino termina numa formação cônica e carnuda denominada glande. A pele que recobre o órgão se prolonga numa dobra característica de uma membrana mucosa que, ao ser desdobrada, também cobre a glande. A parte da pele que se prolonga com seu revestimento é chamada prepúcio. Neste não há grandes vasos sanguíneos, daí a razão da circuncisão não ser seguida de hemorragias, exceto na falta de perícia na operação cirúrgica ou utilização incorreta do instrumental cirúrgico.


2. A visão médica ¬ MOYSÉS COHEN[6] nos diz que entre os judeus, em geral, continua a circuncisão sendo executada por pessoas que aprenderam de outros a técnica necessária e desenvolveram a perícia na prática, através da experiência, sendo os acidentes raros. Esses religiosos (mohel) são judeus capacitados pela prática costumeira e autorizados para realizar o brit milah. [7]


“Essa operação, no rito judaico,[8]consiste de três partes: riturch, periá e metzitzá, a saber:


 “Riturch – Tendo sido a criança colocada numa almofada que se encontra no colo do padrinho, o mohel expõe as partes removendo as roupas e instrui o sandek como deve segurar as pernas da criança. O mohel segura o prepúcio entre o indicador e o polegar da mão esquerda, exercendo tração suficiente para afastá-la da glande e colocado o escudo numa posição logo à frente da glande. Ele pega o bisturi, ou a faca, e com um só movimento excisa o prepúcio.”


“Periá – Depois de completada a excisão, o mohel segura o revestimento interno do prepúcio, que ainda cobre a glande, entre a unha do dedão e o dedo indicador de cada mão, e rasga-o até que ele possa desdobrar por cima da glande, deixando-a completamente exposta. O mohel geralmente mantém sua unha devidamente preparada para esta finalidade. Em casos excepcionais, o revestimento interno do prepúcio adere em quase toda a sua extensão à glande, dificultando a pronta remoção, mas um esforço persistente vencerá o problema.”


“Metzitzá – Até o início do século XX, era executada da forma seguinte: O mohel colocava um pouco de vinho na boca e aplicava seus lábios à parte envolvida na operação exercendo sucção bucal, após o que expelia a mistura de vinho e sangue em um receptáculo especial. Este ato repetia-se várias vezes e completava a operação. Atualmente usam-se os remédios para o controle do sangramento, como adstringentes ou a tintura de clorito de ferro, anti-séptico reconhecidamente eficiente. A solução é aplicada por meio de pequenos pedaços circulares de gaze com aberturas no centro, onde a glande é colocada e uma atadura é aplicada na parte inferior do órgão, mantido na posição por meio de algumas voltas de uma pequena gaze. Uma fralda é então colocada e a operação está terminada. As ataduras permanecem até o terceiro dia. Quando o curativo for removido, a ferida, na maioria dos casos, já cicatrizou. Para prevenir supuração ou erisipelas, os órgãos devem ser lavados antes da operação com sabão e água e depois com uma solução anti-séptica. O mohel procede da mesma maneira com suas mãos e especialmente com suas unhas, usando uma escovinha apropriada. (…).”


3. A proteção constitucional – Na Constituição federal vigente, no capítulo das garantias fundamentais, que diz da inviolabilidade de crença, está também assegurada, na forma da lei, a proteção dos locais de culto e suas liturgias (art. 5º VI). Vale isso dizer, sem maior dificuldade de interpretação, que essa proteção, a ser entregue pelo legislador ordinário, terá limites para não destoar do sistema constitucional e muito menos poderá infirmar sanção decorrente da prática de ato ilegal na liturgia religiosa, eis que a lei penal não afronta a inviolabilidade do livre exercício do culto religioso, quando reprime o exercício ilegal da medicina.[9]


De fato, o tipo penal descrito no artigo 282, do Código Penal em vigor, reprime a prática profissional por pessoa sem a devida habilitação médica e diplomação correspondente, como acontece com o mohel[10] quando realiza ele o Brit Milah, em substituição ao pai da criança.[11] Mas, ainda, para a caracterização do crime de exercício ilegal da medicina, necessária também a habitualidade no exercício da prática, sendo insuficiente qualquer ato isolado que corresponda à atividade profissional (TJSP-RT 675/368). Assim, sem comprovação da habitualidade, não há falar no delito.[12] Ainda, sobre tipo subjetivo, o dolo do crime previsto no art. 282 é a vontade de exercer ilegalmente profissão médica ou de exceder os limites para ela prefixados na lei, ainda que gratuitamente, e o fim de lucro qualifica o crime, aplicando-se, além da pena aflitiva, a multa. Ocorrendo morte ou lesão corporal (como no caso concreto da circuncisão), aplica-se o art. 258 diante do disposto no art.285 do Código Penal.


Ainda, sobre o caso específico da circuncisão, note-se que Conselho Regional de Medicina (SP), no Parecer nº 136282, [13] entende que esse ato é médico e como tal é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), não devendo ser praticado por pessoa que não possua essa habilitação.


4. Conclusão  ¬ O artigo não deixa dúvidas que a prática do ato cirúrgico da circuncisão, quando praticado por Mohel não possuidor de habilitação médica, constitui infração penal descrita no artigo 282, do diploma repressivo, inadmitidas excludentes de criminalidade. Atente-se que a Carta Política assegura o livre exercício dos cultos religiosos, enquanto não forem contrários à ordem, tranqüilidade e sossego públicos, bem como compatíveis com os bons costumes (STF – RTJ 51/344). Dessa forma, a questão das pregações e curas religiosas devem ser analisadas de forma a não obstaculizar a liberdade religiosa garantida constitucionalmente, nem tampouco acobertar práticas ilícitas (STJ – RT 699/376).Obviamente, assim como as demais liberdades públicas, também a liberdade religiosa não atinge o grau absoluto, não sendo, pois, permitido a qualquer religião ou culto atos atentatórios à lei, sob pena de responsabilidade civil e criminal. [14]


No presente trabalho só tratamos do aspecto jurídico relativo à prática do exercício ilegal da medicina, no ato da circuncisão masculina, deixando para outra oportunidade a apreciação desse ritual religioso com relação às mulheres, que envolve um plus no desenvolvimento psico-sexual e o estabelecimento da identidade da mulher judia. A Etnologia nos informa que os ritos de iniciação femininos, que consistem em mutilações genitais, são quase tão difundidos como os rituais masculinos, e são, conforme a Organização Mundial de Saúde (OMC): clitorectpmiaextirpação da pele em volta do clitóris[15], com ou sem a extração de parte ou de todo o clitóris; excisãoremoção de todo o clitóris e de parte ou da totalidade dos pequenos lábios; infibulação – remoção de parte ou de toda a genitália externa e a costura do orifício vaginal, deixando-se apenas uma pequena abertura; várias outras práticas, incluindo perfurações, incisões ou retalhamento do clitóris.


 


Bibliografia

ALMEIDA JR., A., Lições de Medicina Legal, Cia. Editora Nacional, 13ª ed.,1976 S à Constituição Brasileira.P.

FERREIRA, Pinto – Comentários à Constituição Brasileira, Saraiva SP, 1989

MIRABETE, Julio Fabrini – Código Penal Interpretado, Atlas SP, 2001

MORAES, Alexandre de – Constituição do Brasil Interpretada, Atlas, 2004

TRACTENBERG, Moisés – A circuncisão-o rito e o mito, ed.Documentário,RJ-1ª ed.1974.


Notas:

[1] A denominação hebraica de circuncisão é brit-milá: o pacto da circuncisão, ou, simplesmente, brit, pacto.

[2] Mohel é a pessoa devidamente capacitada, pela prática constante, para realizar um Brit Milah. Qualquer judeu, mesmo sem qualificação médica, pode tornar-se um mohel. Durante séculos, os conhecimentos e a técnica para a realização da cerimônia do Brit Milah passam de pai para o filho.

[3] Cf. no (site) www.circuncisao.com.br: “Todos os pais judeus têm a obrigação de circuncisar seus filhos no 8º. dia após o seu nascimento, conforme está escrito na Torah, em Genesis, ou designar um representante para fazê-lo em seu nome. É isto o que acontece durante a cerimônia conhecida como Brit Milah – o Pacto da Aliança, geralmente realizada por um mohel, profissional devidamente capacitado para isto. O Brit Milah é talvez o ritual mais importante do judaísmo. Uma cerimônia equivalente também existe para as meninas e é conhecida como Brit Bat. Por razões óbvias, o Brit Bat não envolve qualquer procedimento cirúrgico associado. O Brit Milah é descrito como a promessa feita por D’s que garante a continuidade do povo judeu. Assim, esta cerimônia é centrada na parte do corpo responsável pelas novas gerações. Por outro lado, o Brit Bat é focado no nome da menina recém-nascida. O Brit Milah deve acontecer no oitavo dia após o nascimento do bebê, mesmo que isso ocorra num Shabbath ou até mesmo em Rosh Hashaná ou em Yom Kippur. Assim, se uma criança nasce numa terça-feira, até as 18h, seu Brit Milah deverá ocorrer na terça-feira seguinte e assim por diante. Existem casos específicos para nascimentos ocorridos de parto cesáreo: se isto acontece, por exemplo, num Shabbath, o Brit Milah será no domingo seguinte e não no Shabbath seguinte. O Brit Bat por sua vez não tem uma data estipulada para acontecer.

E porque o oitavo dia? Aqui encontramos diferentes interpretações: alguns rabinos acreditam que quando uma criança nasce, ela deve experimentar os sete dias da criação do mundo e, portanto, seu Brit Milah ocorreria no oitavo dia após seu nascimento; outros acreditam que toda criança deve conhecer a “doçura”de um Shabbath. Existem algumas teorias médicas relativas à presença de maiores quantidades de coagulantes sanguíneos ao redor do oitavo dia do nascimento de uma criança, o que explicaria a rápida recuperação após a cirurgia, mas nenhuma delas foi cientificamente comprovada. Quando por razões médicas a criança não pode ser submetida à circuncisão, o Brit Milah será adiado até a total recuperação do bebê. (…)

A cerimônia do Brit Milah inclui duas partes: a circuncisão, ato cirúrgico que é geralmente realizado por um mohel, treinado para este fim e o momento quando o bebê recebe seu nome em hebraico, quando são feitas as rezas e bênçãos para ele e toda sua família. O mohel não é necessariamente um rabino. Atualmente, muitos mohalim são médicos, o que ajuda muito no desempenho do procedimento cirúrgico. A presença de um rabino não é indispensável, mas caso a família opte por ter seu rabino presente, ele é sempre muito bem vindo.

O Minian (grupo de 10 judeus maiores de 13 anos) não é indispensável para a realização do Brit Milah, porém todos os presentes devem usar kippah. A cerimônia do Brit Milah encerra geralmente com a Seudat Mitzvah, uma refeição festiva. O Talmud diz que tão importante – é quase um mandamento – quanto a realização do Brit Milah é a sua comemoração festiva com uma refeição, que pode ser tão somente um bolo e vinho como uma festa grandiosa para 100 ou mais pessoas.

5. Cf. Aulete: Med. Retirada total do prepúcio, pele que cobra a cabeça do pênis, por motivos religiosos ou higiênicos. Postectomia; Postetomia.

[5] V. “A Circuncisão – o mito e o rito“, Heládio Correia Laurini e outros- Editora Documentário, Rio de Janeiro, 1974, 1ª ed., p.53.

[6] Op.cit. supra, p.145- Moysés Cohen, médico e professor aposentado da Clínica Urológica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É filho e neto de Mohel.

[7] Os Movimentos Reformistas e Conservativos só conferem o título de Mohel a médicos legalmente habilitados. No entendimento desses Movimentos, além dos aspectos religiosos envolvidos no Brit Milah, que exigem do Mohel uma profunda ligação espiritual, existe também um ato médico, com todas as suas implicações legais. No Brasil existe o parecer nº 1362 (na Consulta nº 1.362-08/82), do Conselho Regional de Medicina do Estado de S.Paulo cuja ementa é: “A circuncisão é ato médico e como tal é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde, não devendo ser praticado por outro profissional que não é médico.” (sic)

[8] Existe entre os árabes a circuncisão. Ao que parece, Maomé denominou a circuncisão (khitan ou tathis) como costume nacional sem importância religiosa. Por isso não a menciona no Corão, julgando supérflua a prática que vinha sendo efetuada pelos árabes desde tempos imemoriais.

[9]  Artigo 282, do Código Penal.

[10] Vide nota 3.

[11] De acordo com o Talmud, a mitzvah é do pai, mas como este normalmente não possui conhecimentos técnicos necessários para realizá-lo, um mohel pode ser chamado.

[12] Cfr. RT 524/404, JTACRIM 61/332, JTACRIM 49/289, JTACRIM 32/179, 78/368,RT 430/384, e 449/443,

[13] Literis: “Consulta 1.362-08/82-Assunto: A circuncisão é ato médico praticável, portanto, apenas por médico.- Relator: Conselheiro Telesforo Bacchella- O presente parecer consulta tem origem em carta subscrita por um rabino, na qual anexa carta de um importante centro médico do exterior, assinada pelo residente chefe do departamento de cirurgia, na qual informa que é prática estabelecida na cidade de Nova York, a presença do reverendo para o ritual da circuncisão nos recém-nascidos judeus nos hospitais. O Rabino em segunda carta, detalha a circuncisão judaica, informando que esta é realizada pelo reverendo que: executa o corte do prepúcio do pênis, com faca cirúrgica esterilizada; aplica medicação local imediatamente após o corte; enuncia bênçãos religiosas. Informa ainda que deverão estar presentes no recinto: o Rabino, o Reverendo, a criança propriamente dita e o padrinho da criança. Conclui a segunda carta, dizendo que “por tratar-se de um ato religioso e, apesar de estar ligado à medicina, haveria a possibilidade de um médico presenciar o ato. A circuncisão é ato médico e como tal é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde, não devendo ser praticado por outro profissional que não é médico. Aprovada na 124ª “em 21/04/87.”

[14] Alexandre de Moraes, “Constituição do Brasil Interpretada”, art. 5º, VI, ed.2004, Atlas.

[15]  Protuberância carnuda e erétil na parte anterior e superior da vulva, entre os pequenos lábios, homóloga, ao pênis (cfr. Caldas Aulete).

Informações Sobre o Autor

Sergio Miranda Amaral

Advogado (OAB 34438/SP) Procurador do Município (aposentado)


Equipe Âmbito Jurídico

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