A coisa julgada inconstitucional e seu controle por meio de ADPF

Sumário: 1. Introdução ao tema. 2. A decisão judicial inconstitucional – a superação do caráter dogmático da coisa julgada. 3. Meios de controle da coisa julgada inconstitucional. 4. A Argüição de descumprimento de preceito fundamental: origens e disciplina no Direito Pátrio. 4.1. Conceito de ‘ato do Poder Público’ e enquadramento da sentença no mesmo. 4.2. Princípio da subsidiariedade. 4.3. Conceito de ‘preceito fundamental’. 5. Conclusões.

1. Introdução ao tema

Aborda-se através do presente o problema da coisa julgada inconstitucional, não apenas sob o enfoque processual civil normalmente emprestado ao tema, defendendo-se, porém, a possibilidade do uso da argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) prevista no §1.º do art. 102 da Constituição Federal e disciplinada pela Lei Federal n.º 9.882, de 3 de dezembro de 1999, como meio para desconstituição da decisão judicial trânsita em julgado violadora de preceito fundamental da Carta Política.

Afasta-se, desde logo, o tema referente à argüição INCIDENTAL do descumprimento de preceito fundamental, isto é, a técnica de defesa que a doutrina vem reconhecendo como possível por meio da qual o réu argüiu no bojo de um processo a violação a preceito fundamental, podendo chegar à análise do Supremo Tribunal Federal por via de um recurso extraordinário, técnica idêntica ao controle difuso de constitucionalidade, só que tendo como parâmetro um preceito fundamental.

Defendemos aqui sim, o uso da AÇÃO de descumprimento de preceito fundamental, a ser ajuizada diretamente perante o Supremo Tribunal Federal, com o desiderato de desconstituição de coisa julgada viciada pela nódoa da inconstitucionalidade, a qual, entretanto, não é aquela violadora de qualquer norma da Carta Suprema, mas sim de preceito fundamental da mesma.

Para a exposição didática do tema, há necessidade de abordar-se o atual entendimento doutrinário acerca da coisa julgada e a relativização do dogma que sempre foi a sua proteção, verificando-se que a argüição de descumprimento de preceito fundamental pode servir como meio eficaz e juridicamente válido para controlar vício de constitucionalidade presente em coisa julgada, tratando-se, nesta hipótese, de meio muito mais eficaz do que aqueles atualmente apontados pela doutrina para tal fim (ação rescisória, ação declaratória e embargos à execução).

2. a decisão judicial inconstitucional – a superação do caráter dogmático da coisa julgada

Pautada no princípio da segurança das relações jurídicas, a doutrina historicamente conferia à coisa julgada caráter dogmático, praticamente absoluto e sem exceções.

Chegava-se a dizer que a coisa julgada era capaz de “transformar o quadrado em redondo e o preto em branco”[1] ou, no clássico brocardo latino, res judicata facit de albo ningrum (a coisa julgada faz preto do branco).

Entretanto, nota-se na doutrina atual clara repulsa à idéia de uma coisa julgada absolutamente imutável e intangível.

São notáveis os estudos acerca da flexibilização da coisa julgada realizadas por jurista do porte do constitucionalista português Paulo Manoel Cunha da Costa Otero (na obra “Ensaio sobre Caso Julgado Inconstitucional, Lisboa: Lex, 1993) e de vários brasileiros que têm dado contribuição decisiva ao tema, entre eles, José Augusto Delgado (“Efeitos da Coisa Julgada e os Princípios Constitucionais”[2]), Paulo Roberto Oliveira Lima (“Teoria da Coisa Julgada”, Revista dos Tribunais, 199, pág. 112), Cândido Rangel Dinamarco (“Relativizar a Coisa Julgada Material” – v. nota de rodapé n.º 1, abaixo) e Humberto Theodoro Júnior (in Revista da AGU, do Centro de Estudos Victor Nunes Leal. Brasília: 2001), entre outros, como já dito.

Partindo-se, todavia, do óbvio de que nem mesmo na física prevalece o absoluto, a doutrina e a jurisprudência estão passando a reconhecer que o dogma da coisa julgada deve ceder diante de erro material ou diante do absurdo, em casos especiais.

Foi com perplexidade que os meios jurídicos a partir do início da década de 90 passaram a verificar os absurdos que a aplicação dogmática do processo civil ocasionava, por exemplo, em situações como ações de investigação de paternidade, face à evolução dos estudos científicos acerca da identificação do ácido desoxirribonucléico – o DNA.

É fato que vários foram os casos de ações investigatórias de paternidade cujos pedidos foram julgados improcedentes por falta de provas, isto é, por falta de condições da parte autora de fazer prova de suas alegações, sobretudo naquelas ações fundadas em relações sexuais fortuitas, nas quais era tarefa extremamente difícil fazer a parte autora prova do encontro sexual, dada a evidente clandestinidade do mesmo em certas situações.

Em casos tais, a sentença não gerava pacificação social, porque a falta de provas só fazia eternizar a dúvida e a angústia dos filhos e da família quanto à conduta da genitora do autor, sem falar no sofrimento moral impingindo à própria genitora, haja vista a perpetuação de tal dúvida.

Na prática, até tornar-se acessível o exame de DNA, era a instrução da ação de investigação de paternidade uma tarefa hercúlea para a parte autora nas ações fundadas em relações sexuais fortuitas, o que não ocorria evidentemente quando fundada a ação em um concubinato duradouro e público.

A jurisprudência antes do DNA, tinha forte corrente a admitir a prova da relação sexual baseada em indícios e presunções, entretanto, parte da doutrina tinha restrições à prova indiciária, valendo citar Fernando Simas[3] quando lecionava que “em ações de investigação de paternidade, a prova terá que ser robusta, pois a paternidade apenas possível, não pode ser sinônimo de paternidade concreta, judicialmente comprovada por critérios objetivos. Só o conjunto uniforme de elementos seguros, pode levar à declaração de filiação contestada, pois se é desumano não ter o filho, direito à paternidade, injusto também é a declaração de uma filiação inexistente. O reconhecimento forçado só se compreende quando há certeza de paternidade.”

Pior que isso, era a corrente doutrinária e jurisprudencial conservadora e muitas vezes até preconceituosa na qual se exigia “honestidade da mulher”, como entendeu o STF no RE n.º 104.893-0/RS, de cujo voto do Preclaro Ministro Relator Djaci Falcão, verifica-se citação do entendimento doutrinário de Arnoldo Medeiros da Fonseca que em sua clássica obra “Investigação de Paternidade”[4] asseverava que “no caso de basear-se a ação investigatória nas relações sexuais, desse fato por si só, não decorre nenhuma presunção de paternidade. As relações sexuais são apenas um pressuposto necessário da procriação; tornam a paternidade apenas possível. Para que esta delas se possa inferir, é essencial um outro elemento: a honestidade da mãe, que é demasiado presumir, e que falha quando da mulher é prostituta ao tempo da gravidez. Esta circunstância portanto, basta para excluir a ação, a não ser em casos excepcionalíssimos, quando o próprio pai manifestar inequivocamente, que considera seu, o fruto dos amores mercenários”.

Com a evolução científica e notadamente com a facilitação em termos financeiros do acesso ao exame de DNA, ressurgiu o interesse dos filhos de terem reconhecida a paternidade, especialmente naqueles feitos nos quais concluiu-se pela improcedência do pedido de reconhecimento de filiação à mingua de elementos probatórios.

Do ponto de vista do processo civil tradicional, contudo, havia um óbice: a coisa julgada.

A doutrina, por vários artigos e obras de relevo, pautadas no princípio da verdade real e dos fins sociais da norma, entre outros fundamentos, não enxergava óbice a uma nova ação investigatória, arrimada na pretensão de submissão das partes ao exame de DNA.

O Superior Tribunal de Justiça em “leading case” decidiu, enfim, neste sentido, admitindo uma segunda ação, rompendo-se, assim, a visão dogmática da coisa julgada. Vale conferir a respeito o julgamento do RESP 226.436/PR da 4a. Turma, com relatoria afeta ao Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, decisão publicada no DJ de 04.02.2002, pág. 370, especialmente o voto do relator no qual de forma brilhante há um completo enfrentamento do tema da relativização da coisa julgada em ações de investigação de paternidade, com citação de vasta fonte doutrinária[5].

Mas, a necessidade de relativização da coisa julgada não está apenas ligada ao caso da investigação de paternidade e ao progresso científico referente ao DNA.

Casos há em que a supremacia da Constituição é ferida por decisões judiciais trânsitas em julgado.

Configuram-se nessas situações, mais do que uma coisa julgada contrária à verdade real ou ao ideal de Justiça: há a coisa julgada inconstitucional.

O fato é que a partir da visão hierárquica do ordenamento jurídico e da supremacia da Constituição, nenhum ato pode ser contrário à Carta Excelsa. Uma Lei não pode e, até mesmo uma Emenda Constitucional pode ser declarada inconstitucional, sendo pacífico a possibilidade do controle de constitucionalidade de tal espécie normativa[6].

Como é cediço, a doutrina brasileira e mundial são vastas em matéria de controle de constitucionalidade de leis e atos normativo em geral, sendo, entretanto, parcas no tema de controle de constitucionalidade de atos judiciais. Todavia, a supremacia constitucional exige conformidade tantos de atos normativos, como evidentemente também de atos concretos. Neste sentido, claríssimo é o magistério do sempre preciso Humberto Theodoro Júnior[7], em artigo em co-autoria com Juliana Cordeiro de Faria:

 “Porém, ao longo de mais de duzentos anos, o que se observa é que, em tema de inconstitucionalidade, as atenções e preocupações jurídicas sempre se detiveram no exame da desconformidade constitucional dos atos legislativos. Verifica-se, assim, que a grande parte dos estudos produzidos desde então centra-se na análise da constitucionalidade/ inconstitucionalidade dos atos legislativos, não havendo uma maior preocupação com os atos do Poder Judiciário, em especial suas decisões que, sem a menor dúvida, são passíveis de serem desconformes à Constituição.

Paulo Otero, constitucionalista português que desponta no cenário jurídico, bem detectou as razões do esquecimento, consoante se depreende da seguinte passagem de sua notável obra:

‘As questões de validade constitucional dos atos do poder judicial foram objeto de um esquecimento quase total, apenas justificado pela persistência do mito liberal que configura o juiz como ‘a boca que pronuncia as palavras da lei’ e o poder judicial como ‘invisível e nulo’ (Montesquieu)’[8]

Com efeito, institucionalizou-se o mito da impermeabilidade das decisões judiciais, isto é, de sua imutabilidade a ataques, ainda que agasalhassem inconstitucionalidade, especialmente após operada a coisa julgada e ultrapassado, nos variados ordenamentos, o prazo para a sua impugnação. A coisa julgada, neste cenário, transformou-se na expressão máxima a consagrar os valores de certeza e segurança perseguidos no ideal do Estado de Direito. Consagra-se, assim, o princípio da intangibilidade da coisa julgada, visto, durante vários anos, como dotado de caráter absoluto.”

Acrescentaríamos que a ausência de estudos acerca da inconstitucionalidade dos atos judiciais deve-se, também à idéia equivocada de que a “formação jurídica” do magistrado lhe deixaria imune à prática da inconstitucionalidade, que, nesta visão, seria fato comum no Legislativo e no Executivo, composta por políticos a grande maioria das vezes sem qualquer preparo acadêmico na área jurídica.

Ledo engano, como se vê.

Realmente, como registra a doutrina, não existe e não pode existir hierarquia entre atos administrativos, legislativos e jurisdicionais.

No ponto, vale citar o excelente magistério de Carlos Valder do Nascimento[9] quando leciona que “pensar que a decisão jurisdicional, coberta pelo manto da irreversibilidade, faz-se ato jurisdicional intocável é relegar a regra geral, segundo a qual todos os atos estatais são passíveis de desconstituição. Não há hierarquia entre os atos emanados dos Poderes da República, pois, todos eles são decorrentes do exercício das funções desenvolvidas pelos agentes políticos em nome do Estado. Tanto os atos jurisdicionais quanto os legislativos e administrativos têm o mesmo peso, em face do princípio constitucional de que os Poderes da República (Judiciário, Legislativo e Executivo) são ‘independentes e harmônicos entre si’. De sorte que a submissão dos atos praticados pelo Legislativo e Executivo ao crivo da Constituição não afasta o exame daqueles de responsabilidade do Judiciário, que atentem contra as normas dela emanadas.”

Ou seja, caminha-se para concluir que se nenhum outro ato normativo, político ou administrativo fica isento do dever de cumprir o comando normativo da Constituição, não pode da mesma forma uma sentença deixar de fazê-lo.

Assim, do mesmo modo que para contestar-se a constitucionalidade de uma Lei ou outro ato normativo qualquer não se subordina a correspondente ação direta de inconstitucionalidade a prazo decadencial ou prescricional, o mesmo ocorre com a coisa julgada inconstitucional, já que o vício da inconstitucionalidade não se convalida pelo decurso de prazo[10].

3. Meios de controle da coisa julgada inconstitucional

Constatado o reconhecimento cada vez mais pacífico da doutrina no sentido de que a coisa julgada não possui caráter absoluto e que se admite o controle de sua constitucionalidade, cabe analisar os meios apontados pela doutrina através do qual se impugna em Juízo essa desconformidade.

Evidentemente que quando uma sentença ou decisão judicial recorrível possui um vício jurídico qualquer, entre eles o da inconstitucionalidade, deve valer-se a parte dos recursos cabíveis e vastamente previstos no ordenamento jurídico para a reforma da decisão.

O problema que estamos a enfrentar é da decisão trânsita em julgada, da qual não se cogita mais qualquer espécie de recurso, no sentido técnico do termo.

A doutrina processual civil tem apontado a possibilidade de ação rescisória, se ainda presente o prazo de dois anos para ajuizamento da mesma, ou, caso ultrapassado tal prazo, ação declaratória desconstitutiva de coisa julgada inconstitucional, ou seja, uma ação comum de rito ordinário a ser ajuizada em 1.º grau de jurisdição, através da qual se pede ao Poder Judiciário a desconstituição da coisa julgada violadora da Constituição Federal, admitindo-se a mesma pretensão em sede de embargos à execução da sentença inquinada da inconstitucionalidade.

Parte-se do mesmo princípio orientador da clássica “querela nulitatis”, cujo meio de impugnação seria uma ação autônoma para delatar-se a nulidade absoluta de um outro processo em razão de vício insanável de citação ou mesmo através de embargos à execução, quando estivesse sendo executada a sentença portadora do mencionado vício.

Apesar de reconhecer que o problema da inconstitucionalidade de uma sentença atinge o plano da validade e não o da existência, de sorte que a sentença seria NULA (e não inexistente), Humberto Theodoro Júnior no já citado artigo em co-autoria com Juliana Cordeiro de Faria[11] tem defendido um outro caminho, que seria a ação rescisória, ainda que superado o prazo de dois anos, defendendo-se que “a decisão judicial transitada em julgado desconforme a Constituição padece de vício da inconstitucionalidade que, nos mais diversos ordenamento jurídicos, lhe impõe a nulidade. Ou seja, a coisa julgada inconstitucional é nula e, como tal, não se sujeita a prazos prescricionais ou decadenciais. Ora, no sistema das nulidades, os atos judiciais nulos independem de rescisória para a eliminação do vício respectivo. Destarte pode ‘a qualquer tempo ser declarada a nula, em ação com esse objetivo, ou em embargos à execução’ (STJ, Resp n.º 7.556/RO, 3a. T., Rel. Min. Eduardo Ribeiro, RSTJ 25/439).”

Enfim, a doutrina tem apontado – em rol disjuntivo – os seguintes meios de controle de constitucionalidade da coisa julgada:

a) ação rescisória, se ainda presente o prazo de dois anos a que alude o art. 495 do CPC;

b) ação rescisória, ainda que superado o referido prazo (Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria);

c) ação autônoma declaratória desconstitutiva de coisa julgada inconstitucional; ou

d) embargos à execução da sentença que contém o citado vício da inconstitucionalidade.

Quanto à hipótese da letra “a”, calha citar o entendimento pacífico da jurisprudência no sentido de que quando o art. 485, inciso V do CPC assevera que cabe a rescisão quando a sentença rescindenda “violar literal disposição de lei”, está-se usando o termo “lei” em sentido que abarca a Constituição Federal[12], sendo absolutamente correta esta tese à luz do elemento teleológico, eis que se o objetivo da norma é impedir a consolidação de sentença contrária à Lei, não teria o CPC interesse em preservar uma sentença contrária à Lex Major.

E, quanto à hipótese, da letra “d”, ganhou a mesma força no Direito Positivo a partir da edição da Medida Provisória n.º 2.180-35/2001, em vigor em face da cláusula de convalidação prevista no art. 2.º da Emenda Constitucional n.º 32/2001, cujo ato normativo prevê a seguinte regra no âmbito do CPC:

“Art. 741. Na execução fundada em título judicial, os embargos só poderão versar sobre:

(…)

II – inexigibilidade do título;

(…)

Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal.”

Portanto, não há dúvida de que a parte executada em uma ação que tenha por objeto a aplicação do comando de uma Lei já declarada inconstitucional ou “em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal” pode perfeitamente se valer dos embargos à execução parar desconstituir a sentença (“título judicial”) que inconstitucionalmente encampou a tese contrária ao entendimento do Pretório Excelso.

Todavia, como se passa a demonstrar a seguir, os meios de impugnação da coisa julgada inconstitucional não se restringem às quatro fórmulas citadas acima, cabendo também o uso da argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) para tal fim, quando viola a sentença preceito fundamental da Carta Política.

4. A argüição de descumprimento de preceito fundamental: origens e disciplina no direito pátrio

Naquela que consideramos a obra mais completa sobre argüição de descumprimento de preceito fundamental na doutrina brasileira, André Ramos Tavares (“Tratado da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental”[13]), disserta com profundidade sobre o tema, deixando patente que a ADPF é uma novidade da Constituição Federal de 1988 no ordenamento jurídico brasileiro e que, no Direito Estrangeiro, tem, entre outros, como fontes:

1) o writ of certiorari do Direito norte-americano;

2) a Verfassungsbeschwerde do Direito alemão;

3) a Popularklage no Direito da Baviera;

4) o recurso de amparo, o recurso de inconstitucionalidade e o incidente (ou questão) de inconstitucionalidade autônomo e no amparo, todos, do Direito espanhol;

5) a “auto-remissão” do sistema constitucional italiano; e

6) a ação popular de inconstitucionalidade do Direito venezuelano;

Uadi Lammêgo Bulos[14] verifica na Verfassungsbeschwerde alemã a fonte principal da ADPF, citando que na Alemanha tal instituto “funciona como meio de queixa jurisdicional perante o BundesverfassungsgerichtI, almejando a tutela de direitos fundamentais e de certas situações subjetivas lesadas por um ato de autoridade pública.”

Até o advento da Lei n.º 9.882/99 o Supremo Tribunal Federal, entendendo cuidar-se de norma de eficácia limitada a regra insculpida no §1.º do art. 102 da CF, não admitia a argüição. Assim decidiu a Corte Excelsa no AgRegPet n.º 1140-7/TO, Rel. Min. Sidney Sanches, decisão: 2-5-1996, DJ 1, de 31—5-1996. p. 18803 e da mesma forma na Pet n.º 1.369/8, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 1, de 8-10-1997, p. 50468.

Em 3 de dezembro de 1999, porém, foi editada a Lei n.º 9.882, dispondo sobre o processo e julgamento da ADPF (a chamada “Lei da Argüição”).

Citada Lei, possui vários de seus aspectos questionados no âmbito do STF através da ação direta de inconstitucionalidade n.º 2231/DF proposta pelo Conselho Federal da OAB, cujo julgamento encontra-se atualmente suspenso dado pedido de vista desde a sessão de 05/12/2001[15].

Verifica-se que na citada ADIN n.º 2231 a OAB impugna a íntegra do referido diploma legal, e em especial o parágrafo único do art. 1.º, o §3.º do art. 5.º, o art. 10, caput e seu §3.º e o art. 11, havendo, inclusive, o então Relator, Min. Néri da Silveira, votado pela declaração de inconstitucionalidade do inciso I do parágrafo único do art. 1.º, em julgamento, repita-se, que está suspenso.                  A par da citada ADIN, existem na presente data[16] apenas 56 (cinqüenta e seis) argüições em tramitação no STF, não havendo até hoje nenhuma delas sido conhecida e julgada quanto ao mérito, havendo 31 (trinta e uma) em tramitação e 25 (vinte e cinco) que não foram conhecidas e estão arquivadas[17].

Mas, das 31 (trinta e uma) em tramitação, há pelo menos 03 (três) com liminares concedidas (ADPF’s 10, 33 e 54) e várias delas estão, por decisões monocráticas dos respectivos relatores, com julgamento suspenso aguardando o desenlace da ADIN n.º 2231.

4.1. Conceito de “ato do Poder Público” e enquadramento da sentença no mesmo

Como é cediço, a Constituição Federal não esclareceu qual seria o objeto da ADPF, dizendo apenas:

“Art. 102 (…)

§1.º A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.”

Por outro lado, também a Lei n.º 9.882/99 não deu o exato conceito do objeto da ADPF, prevendo-se o seu cabimento apenas contra “ato do Poder Público”, deixando certamente à doutrina e à jurisprudência a tarefa de conceituar o objeto da ADPF.

O que se enquadraria, porém, como “ato do poder público”?

Seriam apenas atos normativos?

O problema envolve um prévio esclarecimento acerca da ADIN 2231 e da principal controvérsia posta nos referidos autos.

Pela análise das 44 (quarenta e quatro) laudas da petição inicial da ADIN n.º 2231 proposta pelo Conselho Federal da OAB, percebe-se que o pomo da discórdia está na seguinte norma (com destaques nossos):

“Art. 1o A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.

Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental:

I – quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição;

II – (VETADO).”

Defende-se na ação que o legislador ordinário teria permitido a argüição INDEPENDENTEMENTE de lesão a preceito fundamental, mas tão-somente na ocorrência de relevante “fundamento” de “controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”.

Ou seja, pela interpretação da inicial da ADIN, o legislador ordinário teria ampliado a autorização constitucional para abarcar outras hipóteses que não aquela de descumprimento de preceito fundamental.

Cita-se na inicial, inclusive, Alexandre de Moraes[18] que entende que

“Essa hipótese de argüição de descumprimento de preceito fundamental, prevista no parágrafo único do artigo 1º, da Lei n.º 9.882/99, distanciou-se o texto constitucional, uma vez que, o legislador ordinário, por equiparação legal, também considerou como descumprimento de preceito fundamental qualquer controvérsia constitucional relevante sobre lei ou ato normativo federal, estadual, ou municipal, incluído os anteriores à Constituição.

O texto constitucional é muito claro quando autoriza à lei o estabelecimento, exclusivamente da forma pela qual o descumprimento de um preceito fundamental poderá ser argüido perante o Supremo Tribunal Federal. Não há autorização constitucional para a ampliação das competências do STF.

Controvérsias entre leis ou atos normativos e normas constitucionais, relevantes que sejam, não são hipóteses idênticas ao descumprimento pelo Poder Público de um preceito fundamental, e devem ser resolvidas em sede de controle de constitucionalidade, tanto difuso quanto concentrado.

O legislador ordinário utilizou-se de manobra para ampliar, irregularmente, as competências constitucionais do Supremo Tribunal Federal, que conforme doutrina e jurisprudência pacíficas, somente podem ser fixadas pelo texto magno. Manobra essa eivada de flagrante inconstitucionalidade, pois deveria ser precedida de emenda à Constituição.”

Tal entendimento é o que está prevalecendo no julgamento da ADIN, pelo menos provisoriamente, pois como foi noticiado pelo STF através de seu informativo n.º 253, iniciando o julgamento da referida ADIN (com destaques nossos):

“O Min. Néri da Silveira, relator, em face da generalidade da formulação do parágrafo único do art. 1º, considerou que esse dispositivo autorizaria, além da argüição autônoma de caráter abstrato, a argüição incidental em processos em curso, a qual não poderia ser criada pelo legislador ordinário, mas, tão-só, por via de emenda constitucional, e, portanto, proferiu voto no sentido de dar ao texto interpretação conforme à CF a fim de excluir de sua aplicação controvérsias constitucionais concretamente já postas em juízo (“Parágrafo único – Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental: I – quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição;”). Conseqüentemente, o Min. Néri também votou pelo deferimento da liminar para suspender a eficácia do § 3º do art. 5º, por estar relacionado com a argüição incidental em processos em concreto (“A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada.”). ADInMC 2.231-DF, rel. Min. Néri da Silveira, 5.12.2001.(ADI-2231)”

Ou seja, a visão do então Ministro Relator é no sentido de impedir a utilização da ADPF como ação autônoma e de competência do STF para dirimir conflitos concretos já postos em juízo, só cabendo, assim, para resolução de controvérsias abstratas, semelhantemente a uma ação direta de inconstitucionalidade.

Data venia ao entendimento do ilustre e culto Ministro Relator e de juristas do porte de Alexandre de Moraes, tal interpretação não pode subsistir porque senão se equipararia a ADPF à ação direta de inconstitucionalidade, tendo a primeira âmbito bem mais restrito, já que seria possível apenas tendo como norma parâmetro um preceito fundamental, cuja conceituação, veremos adiante.

Destarte, a conseqüência do entendimento da relatoria é o total esvaziamento da ADPF que não passaria de uma ADIN especial para cotejo entre atos normativos do Poder Público e aquelas normas constitucionais que têm conteúdo principiológico.

O fato é que a Constituição não restringiu tanto o alcance da ADPF e não se pretende transformá-la em uma segunda espécie de ADIN, ou praticamente inutilizá-la.

O problema, a nosso sentir, é facilmente resolvido por uma interpretação sistemática e pela análise em conjunto da regra do caput do art. 1.º e seu parágrafo único da Lei da Argüição.

Como se sabe, é princípio clássico de hermenêutica de que os parágrafos não possuem autonomia normativa, abrindo geralmente exceção a uma regra geral exposta no caput ou tendo caráter explicativo da mesma regra geral.

Entendemos que o parágrafo único do art. 1.º da Lei da Argüição não possui caráter autônomo, tendo apenas escopo explicativo, deixando claro que caberá a ADPF “quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”, mas evidentemente sem afastamento do caput do dispositivo.

Por outras palavras, sempre será obrigatório para o cabimento da ADPF a ocorrência de um ato do Poder Público que viole preceito fundamental, ocorrendo isto, também caberá a ADPF quando “for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”.

Ou seja, numa interpretação sistemática e conforme a Constituição, conclui-se que não há mancha de inconstitucionalidade na norma, cabendo apenas uma interpretação que não confira autonomia normativa ao parágrafo único, subordinando-o inteiramente ao caput do dispositivo, o que normalmente se dá na interpretação de um parágrafo.

Importante, assim, é o acompanhamento do julgamento da ação direta em tela, dado que a prevalência da tese da relatoria transformará a ADPF em um verdadeiro nada jurídico, perdendo-se, assim, um excelente instrumento de controle de constitucionalidade.

A par dessas breves considerações acerca do ADIN n.º 2231, cumpre-nos voltar ao objeto específico deste trabalho e verificar se UMA SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO seria ou não ato do Poder Público.

No ponto, cabe o primeiro registro de que o “ato do Poder Público” a que alude a Lei da Argüição não é apenas ato normativo.

O primeiro passo, pois, é demonstrar que a ADPF não possui como objeto apenas “ato normativo” e, depois, demonstrar-se também que atos dos três poderes podem ser objeto da argüição.

Realmente, doutrinadores como Uadi Lammêgo Bulos[19] explicitamente esclarecem que a ADPF “permite, também, o controle de constitucionalidade de atos não normativos, bem como de atos anteriores à promulgação do Documento Supremo.”

O que defendemos é que exigir que a ADPF seja usada apenas em face de atos normativos esvazia totalmente o seu conteúdo, equiparando-a a uma ADIN, e tornando o seu uso medida inócua, o que evidentemente não é o objetivo do constituinte.

Encerrando a controvérsia, André Ramos Tavares[20], depois de esclarecer que o Supremo Tribunal Federal não admite o cabimento de ADIN para impugnação de atos estatais de efeitos concretos, citando-se os julgamentos das ADIN’s 842 e 769 e em seguida os ensinamentos de Ferreira Mendes, aborda de forma esclarecedora o tema referente ao objeto da ADPF:

“Realmente, os argumentos do mestre são plenamente aplicáveis ao caso da ação direta de inconstitucionalidade, mas já não se prestam para vestir a teoria da argüição de descumprimento de preceito. Sua assimilação, neste campo, seria deletéria do próprio objetivo constitucional ao instituir a medida especial.”

(…)

 “Observe-se que a Carta Constitucional, na hipótese da argüição de descumprimento, desconsidera a normatividade do ato ou comportamento sindicável (ao contrário do que ocorre com as ações diretas). Ou seja, esta é irrelevante para fins de admissão do instituto constitucional da argüição.”

(…)

Por fim, nada impede – aliás, a realidade aponta justamente para o oposto – que certos atos materiais do Poder Público lesem inúmeras pessoas, ou que envolvam diversos direitos. Independentemente de cogitar-se do interesse individual de cada um, ou mesmo do direito do Poder Público envolvido, é possível analisar em tese a hipótese material ocorrida e verificar se ela é ou não compatível com a Constituição. O benefício individual que daí decorra, contudo, é não apenas inafastável como também desejável.” (destacamos).

Entendemos, destarte, perfeitamente possível a argüição em face de atos concretos e não apenas atos normativos.

Cumpre analisar se atos oriundos do Poder Judiciário estariam neste rol.

No ponto, impossível é deixar de reconhecer, também com forte no magistério de André Ramos Tavares (obra citada, pág. 209) que

“Como ponto de partida, pode-se afirmar que Poder Público, no caso da argüição será o Estado brasileiro. Utiliza-se, neste sentido, uma delimitação em relação aos demais poderes públicos (estrangeiros ou supranacionais).

Dentro daquela expressão ampla de ‘Estado’, compreende-se, como não poderia deixar de ser, tanto a União, quanto os Estados, os Municípios e o Distrito Federal. Engloba ela, também todos aqueles entes que exercem o poder de império, próprio do Poder Público.

Assim, os Poderes Executivos, Legislativo ou Judiciário, de quaisquer dos níveis federativos, restam absorvidos pela expressão.”.(destacamos).

Nem se afirme que só caberia a argüição em face de atos do Poder Judiciário enquanto administrador público. Não. Na realidade, ontologicamente já se disse com acerto que a atividade Administrativa em muito pouco se difere da Judicial. Ambas têm por fim a aplicação da lei e a prevenção ou resolução de conflitos intersubjetivos.

Seja por meio de um ato de natureza judicial ou mesmo através de ato de cunho administrativo, tem o Poder Judiciário o dever de respeitar os preceitos fundamentais da Constituição, não estando imune a tal obrigação.

É evidente que cabe a ressalva já feita. Se a sentença é recorrível, o meio próprio de impugnação à mesma serão os recursos previstos no ordenamento jurídico, por isso mesmo a Lei da Argüição expressamente consignou que a ADPF é regida pelo princípio da subsidiariedade.

Agora, quanto à coisa julgada inconstitucional, verifica-se perfeitamente a possibilidade de cabimento de ADPF para seu controle, até porque não existem recursos contra a mesma, nem é passível de mandado de segurança, consoante clássico entendimento (súmula n.º 268 do STF, datada de 16/12/1963).

4.2. Princípio da subsidiariedade

Está expresso o princípio da subsidiariedade da ADPF na Lei da respectiva regulamentação quando a mesma estabelece:

“Art. 4.º (…)

§ 1o Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.”

A norma tem o objetivo justamente de impedir a miscigenação entre o processo objetivo representado pela ADPF e uma lide (ou lides) em discussão na via difusa, evitando-se o uso da ADPF como apenas um recurso a mais, dentro do sistema.

Temos que a ADPF é incompatível com impugnação a decisões judiciais provisórias, como as que concedem medidas de natureza antecipatória ou cautelar, pois não se trata de recurso nem substitui os recursos previstos no CPC.

Perceba-se que a hipótese é diferente no caso da coisa julgada inconstitucional, contra a qual, a princípio, não existe meio eficaz.

certo que vimos acima que poderá caber ação rescisória, entretanto, sabe-se que corrente significativa da doutrina não enxerga a possibilidade de uso da rescisória após dois anos do trânsito em julgado da decisão inconstitucional.

Restaria, assim, a ação declaratória de natureza ordinária desconstitutiva de sentença.

Aqui parece evidente que mesmo que caiba a ação declaratória desconstitutiva, a qual, logicamente sempre será cabível à luz do princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional (CF, art. 5.º,  XXXV), tal fato não impede o uso da ADPF, porque senão daria-se ao princípio da subsidiariedade um conteúdo que conduziria à conclusão de que a ADPF nunca seria cabível!

É que sempre poderá qualquer cidadão brasileiro dirigir-se ao Judiciário exercendo o seu direito autônomo e abstrato de ação, inclusive através de ação ordinária com pedido de tutela antecipada.

Mas isso, logicamente, isso não pode impedir a via da ADPF para corrigir a violação a preceito fundamental perpetrado por uma sentença inconstitucional trânsita em julgado.

Não chegamos aqui data venia, tal como o Preclaro Ministro Gilmar Ferreira Mendes[21], a ver na ADPF um meio de controle hábil a barrar a chamada “guerra de liminares” e concentrar no STF a defesa da Constituição em certas demandas de massas que geralmente têm a Fazenda Pública como ré, quando presente interesse público relevante.

Temos, ao contrário, que a ADPF via de regra deve depender do esgotamento das instâncias ordinárias, exatamente como ocorre com a coisa julgada já formada. O contrário, transformaria na prática a ADPF num recurso a mais, o que seria extremamente indesejado e contrário aos atuais reclames da sociedade, justamente pela diminuição racional dos meios recursais.

4.3. O conceito de “preceito fundamental”

A esta altura, cabe uma indagação: o que seria preceito fundamental?

A resposta não é simples e para o esgotamento da controvérsia exigiria um trabalho autônomo para tal fim, de sorte que preferimos a definição sintética e casuística de Uadi Lammêgo Bulos[22]:

“Podem ser considerados preceitos fundamentais, as diretrizes insculpidas no pórtico do art. 1.º da Constituição de 1988, quais sejam, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, da livre iniciativa, do pluralismo político. Outro exemplos podem ser listados: o princípio republicano (art. 1.º, caput), princípio da separação dos Poderes (art. 2.º), princípio presidencialista (art. 76), princípio da legalidade (art. 5.º, II), princípio da liberdade (art. 5.º, IV, VI, IX, XIII, XIV, XVII, etc), princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5.º, XXXV), princípio da autonomia das entidades federadas (arts. 1.º e 18), princípio do juiz e do promotor natural (art. 5.º, XXXVII e LIII), princípio do devido processo legal (art. 5.º, LIV), princípio do contraditório (art. 5.º, LV), princípio da publicidade dos atos processuais (art. 5.º, LX, e 93, IX), princípio da legalidade administrativa (art. 37, caput), princípio da impessoalidade (art. 37, caput), princípio da moralidade (art. 37, caput), princípio da publicidade (art. 37, caput), princípio da ocupação de cargos através de concurso público (art. 37, II), princípio da prestação de contas (arts. 70, parágrafo único, 34, VII, d, e 35, III), princípio da independência funcional da magistratura (arts. 95 e 96), princípio da capacidade contributiva (art. 145, III), princípio da defesa do consumidor (art. 170, IV), princípio da autonomia universitária (art. 207), etc).”

Pode-se afirmar que “preceito fundamental” são as vigas mestras do Texto Constitucional, são os comandos com conteúdo principiológico que emanam conseqüências várias para o ordenamento jurídico.

Em conclusão, pode-se defender que “preceitos fundamentais” são, assim, aquelas disposições que não se encerram em si mesmo (meras regras), mas que originam conseqüências na atuação do Estado, seja enquanto Administrador Público, enquanto Juiz, ou enquanto agente repressor da violência.

5. Conclusão

Restaria apenas afastar um argumento que certamente se apresentará contra a tese aqui defendida do cabimento da ADPF como meio de controle de coisa julgada inconstitucional violadora de preceito fundamental, qual seja, o de que tal uso configuraria violação ao princípio da segurança jurídica decorrente da coisa julgada e do papel de pacificação social que a mesma em tese exerce.

Na verdade, a problemática não seria contra a tese do presente trabalho, mas sim contra a própria tese da coisa julgada inconstitucional, porque a alegação pura e simples de segurança jurídica acima de qualquer outro valor acabaria por inviabilizar a tese da invalidade da coisa julgada formada com vício de constitucionalidade.

O fato é que a coisa julgada formada em contrariedade à Carta Política não cumpre sua função. Não gera pacificação social porque a pecha da inconstitucionalidade lhe atinge em ponto fundamental, gerando muitas vezes sim revolta e desprestígio ao Poder Judiciário.

Na prática, só tomando com exemplo a Administração Pública, o que se tem visto é que aquele detentor de um título inconstitucional é visto como um privilegiado, como alguém que espertamente conseguiu algo que outros não conseguiram, ou seja, alguém que fez valer a “lei de Gerson” e atingiu o seu fim e que fruto ou não da imaginação popular possui “um padrinho forte” por trás, como se diz usualmente.

Por vezes, dentro de uma mesma repartição pública, lado a lado executando o mesmo trabalho, têm-se servidores públicos com salários totalmente diferentes, em face de um ter conseguido um benefício por meio de sentença transitada em julgado.

Um exemplo é a questão do “teto remuneratório”, na qual são incontáveis as injustiças e absurdos causados por sentenças, especialmente aquelas que asseguram “incorporações” ou que na prática acabam ocasionam um vedado “efeito repicão”.

Data venia, o valor segurança jurídica e a conseqüente força de encerrar o litígio, não pode servir de pretexto para a eternizarem-se injustiças e ferir-se o princípio da isonomia, entre outros.

Mais uma vez, valemo-nos do magistério dos mestres que primeiro enfrentaram a problemática da coisa julgada inconstitucional e refutaram a invocação da segurança jurídica, entre eles, destacam-se os argumentos de José Augusto Delgado[23], quando leciona que “a injustiça, a imoralidade, o ataque à Constituição, a transformação da realidade das coisas quando presentes na sentença viciam a vontade jurisdicional de modo absoluto, pelo que, em época alguma, ela transita em julgado. Os valores absolutos da legalidade, moralidade e justiça estão acima do valor segurança jurídica. Aqueles são pilares, entre outros, que sustentam o regime democrático, de natureza constitucional, enquanto este é valor infraconstitucional oriundo de regramento processual.”

Calha o registro, todavia, mais uma vez, de que não se quer aqui defender o uso indiscriminado de ADPF’s contra sentenças transitadas me julgado, como se fora a argüição uma última tentativa de modificação do acórdão, um recurso a mais. Não.

É preciso ficar claro que a coisa julgada com o vício da inconstitucionalidade não é a regra, muito pelo contrário, são situações pontuais.

Esse caráter extraordinário da desconstituição de coisa julgada marcada pela inconstitucionalidade é citado por doutrinadores como Cândido Rangel Dinamarco[24], com o qual encerramos o nosso trabalho:

“Propõe-se apenas um trato extraordinário destinado a situações extraordinárias com o objetivo de afastar absurdos, injustiças flagrantes, fraudes e infrações à Constituição – com a consciência de que providências destinadas a esse objetivo devem ser tão excepcionais quanto é a ocorrência desses graves inconvenientes. Não me move o intuito de propor uma insensata inversão, para que a garantia da coisa julgada passasse a operar em casos raros e a sua infringência se tornasse regra geral.”

Enfim, a nossa juízo, mostra-se plenamente compatível como objeto e com os fins do §1.º do art. 102 da CF o utilização da argüição de preceito fundamental como meio para desconstituição de coisa julgada violadora de preceito fundamental.

6. Referências Bibliográficas
1. Otero, Paulo Manoel Cunha da Costa. “Ensaio sobre Caso Julgado Inconstitucional, Lisboa: Lex, 1993;
2. Delgado, José Augusto. “Efeitos da Coisa Julgada e os Princípios Constitucionais”);
3. Oliveira Lima, Paulo Roberto. “Teoria da Coisa Julgada”, Revista dos Tribunais, 199, pág. 112;
4. Dinamarco, Cândido Rangel. “Relativizar a Coisa Julgada Material” – Revista da AGU, do Centro de Estudos Victor Nunes Leal, Brasília: 2001;
5. Theodoro Júnior, Humberto. Revista da AGU, do Centro de Estudos Victor Nunes Leal. Brasília: 2001;
6. Nascimento, Carlos Valder do (organizador). “Coisa Julgada Inconstitucional”, coordenada por Carlos Valder do Nascimento, com a colaboração de Humberto Theodoro Júnior, José Augusto Delgado, Juliana Cordeiro de Faria e Leonardo Faria Beraldo, ed. América Jurídica – 3a. edição;
7. Simas, Fernando. A prova na investigação de paternidade, ed. Juruá, 6ª. edição;
8. Tavares, André Ramos. “Tratado da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental”, ed. Saraiva, 2001;
9. Bulos, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada, ed. Saraiva, 4a. edição;
10. Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional, 7a. edição, ed. Atlas;
11. Mendes, Gilmar Ferreira. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: demonstração de inexistência de outro meio eficaz. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 43, jul. 2000. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=236>. Acesso em: 18 set. 2004.
Notas:
[1] Frases relembradas por CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, in  “Relativizar a Coisa Julgada Material” – Revista da AGU, do Centro de Estudos Victor Nunes Leal, Brasília: 2001.
[2] Constante da obra “Coisa Julgada Inconstitucional”, coordenada por Carlos Valder do Nascimento, com a colaboração de Humberto Theodoro Júnior, José Augusto Delgado, Juliana Cordeiro de Faria e Leonardo Faria Beraldo, ed. América Jurídica – 3a. edição.
[3] FERNANDO SIMAS, in A prova na investigação de paternidade, ed. Juruá, 6ª. edição, págs. 69/70
[4] Pág. 221, 3a. edição.
[5] Disponível em <www.stj.gov.br>. Acesso em 18 de setembro de 2004.
[6] ADIn n.º 829-3/DF – Rel. Min. Moreira Alves; ADIn n.º 939-7/DF, entre outras
[7] “A Coisa Julgada Inconstitucional e os Instrumentos Processuais para seu Controle”. Integrante da obra “Coisa Julgada Inconstitucional”, coordenada por Carlos Valder do Nascimento, com a colaboração de Humberto Theodoro Júnior, José Augusto Delgado, Juliana Cordeiro de Faria e Leonardo Faria Beraldo, ed. América Jurídica – 3a. edição.
[8] OTERO, Paulo. Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional. Lisboa: Lex, 1993, p. 9.
[9] No artigo “Coisa Julgada Inconstitucional” integrante da obra com o mesmo título, coordenada pelo citado autor.
[10] Neste sentido, STF – ADIN n.º 1.247-9/PA – medida liminar – Rel. Min. Celso de Mello, Diario da Justiça, 8 de setembro d 1995, pág. 28354, citando a súmula 360.
[11] Idem, pág. 108.
[12] Neste sentido, é o ensinamento, entre outros, de LUIZ GUILHEME MARINONI e SÉRGIO CRUZ ARENHART: “é irrelevante saber a categoria da regra jurídica em discussão (se constitucional ou infraconstitucional)”, in Manual do Processo de Conhecimento, 3a. edição, ed. RT, pág. 701.
[13] Editora Saraiva, 2001.
[14] Constituição Federal Anotada, ed. Saraiva, 4a. edição, pág. 931.
[15] Dados colhidos no site do STF, em <www.stf.gov.br>. Acesso em 18 de setembro de 2004.
[16] Idem.
[17] Curioso é o fato de que mais de 10% do número total das ADPF’s em tramitação no STF (exatamente 08 – ADPF’s 21, 22, 23, 25, 27, 28, 30 e 31) são de autoria de uma pessoa física, de nome Marcos Rogério Batista, cujas ações foram sistematicamente extintas, dada a evidente ilegitimidade ativa, já que os legitimados para a ADPF são os mesmos para a ADIN – art. 2.º, I da Lei n.º 9.882, de 3 de dezembro de 1999.
[18] In Direito Constitucional, 7a. edição, ed. Atlas, pág. 614. (Destacamos)
[19] Constituição Federal Anotada, ed. Saraiva, 4a. edição, pág. 932.
[20] In Tratado da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ed. Saraiva, 2001, págs. 205 a 208.
[21] MENDES, Gilmar Ferreira. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: demonstração de inexistência de outro meio eficaz. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 43, jul. 2000. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=236>. Acesso em: 18 set. 2004.
[22] Obra citada, pág. 938.
[23] “Efeitos da Coisa Julgada e os Princípios Constitucionais”. In Revista Virtual do Centro de Estudos Victor Nunes Leal da AGU. <www.agu.gov.br>.
[24] “Relativizar a Coisa Julgada Material”, fonte já citada.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Fausto F. de França Júnior

 

Promotor de Justiça no Estado do Rio Grande do Norte

 


 

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