SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Ação Civil Pública e Ação Coletiva – 3. Competência na Ação Civil Pública – 4. Competência na Ação Coletiva – 5. Conclusão – 9. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
A defesa dos interesses/direitos transindividuais ou metaindividuais[1], com a chegada – verdadeira necessidade – do Estado Democrático de Direito, ganhou foros de cidadania. Atualmente, portanto, é fecunda a doutrina pátria, bem como a resposta firme e, na maioria das vezes, acertada da jurisprudência na defesa de interesses que, há bem pouco tempo, era impensável no Direito brasileiro.
Com a aparição de novos interesses/direitos, fez-se mister o surgimento de novas formas de proteção, sendo incumbência da Ciência Processual adequar os institutos do Direito processual clássico – inspirado ainda em princípios e institutos surgidos no século XVIII – para a defesa desses direitos coletivos.
Para tanto, foram editadas algumas leis, ao longo dos anos, que previram a defesa de alguns direitos coletivos lato sensu. Porém, é de se colocar em evidência a aparição das Leis nº 7.347/85 – que instituiu a Ação Civil Pública – e 8.078/90 – que instituiu o Código de Defesa do Consumidor – que, de seu turno, além dos aspectos materiais, deu maior desenvolvimento à defesa dos interesses coletivos em sentido amplo.
Não obstante a inegável importância que esses diplomas legais possuem hoje no cenário jurídico nacional – como verdadeiras concretizações do Estado Democrático de Direito no aspecto processual – muita celeuma foi criada durante os anos das respectivas aplicações, mormente no tocante ao redimensionamento de velhos institutos processuais que tiveram que ser readaptados à nova realidade das demandas coletivas, em razão, obviamente, da natureza dos novos interesses/direitos perseguidos no bojo da relação jurídica processual.
Dentre as muitas divergências que ainda causam os textos legislativos mencionados, a competência para apreciação e julgamento das demandas propostas pelo rito processual instituído no Cap. II, do Tít. III do CDC entendemos, merece melhor reflexão, seja da doutrina, seja da jurisprudência.
Neste sentido, o presente trabalho tem por escopo precípuo a análise da competência instituída para as chamadas ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos, que, a nosso sentir e apesar da dicção legal, possui semelhanças com aquela tratada pela Lei nº 7.347/85, mormente após o advento da Medida Provisória nº 2.180, como se tentará demonstrar na seqüência.
2. AÇÃO CIVIL PÚBLICA E AÇÃO COLETIVA
Sem embargo da ocorrência de semelhança no que toca à competência, as ações sob comento – civil pública e coletiva – possuem particularidades que as distinguem, o que, por corolário, ensejará diverso tratamento interpretativo.
Consoante melhor doutrina, a denominação dada às ações é reminiscência do período imanentista da teoria do processo, segundo o qual para cada direito existe uma ação específica (legis actiones).[2]
Não obstante o acerto da afirmação, é cediço que os procedimentos são criados ante a necessidade de concretização dos direitos materiais, daí a aparição de diversos ritos processuais especiais que instrumentalizam a efetivação dos direitos
de fundo, afinal, processo é meio de realização material da função jurisdicional do Estado.
É o que ocorre, a nosso aviso, com o procedimento previsto no Cap. II do Tít. III do CDC (arts. 91 usque 100) que prevê as ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos.
Ao contrário do que ocorre na Lei de Ação Civil Pública (LACP) – art. 3º – a ação coletiva prevista no CDC tem por objeto imediato do pedido tão-somente a condenação do Réu – única providência jurisdicional admitida nesta seara – ao pagamento de quantia – objeto mediato – que deverá ser apurada em seu quantum no respectivo processo de liquidação (arts. 91 e 95 CDC).
Tem-se, pois, que o âmbito de abrangência da primeira (ACP) é maior que o da segunda, no momento em que aquela serve como instrumento à satisfação não só de condenação à determinada quantia, porém e ainda, à condenação referente a obrigações de fazer ou não fazer.
Mesmo que perfunctoriamente, somente por este ponto, vislumbram-se, cabalmente, diferenças intrínsecas entre uma e outra, que dão ensejo a tratamento diverso, no particular.
Ademais, somente após o advento do Código de Defesa do Consumidor, a Ação Civil Pública tornou-se instrumento eficaz, também, à defesa dos interesses individuais homogêneos, o que, antes do Código consumerista, consistia clara impossibilidade jurídica da demanda (cf. art. 21 LACP, posteriormente alterado pelo art. 117 do CDC).
Por outro lado, parece ser entendimento sedimentado doutrinariamente o fato de que a Ação Coletiva somente poderá servir de instrumento à defesa de interesses consumeristas, ao passo que a ACP, à de qualquer interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo.[3]
“A condenação em ação civil pública ou coletiva por lesão ao consumidor só poderá ter como objeto o dano global e diretamente considerado (p. ex., o dano decorrente da aquisição em si do produto defeituoso ou impróprio para os fins a que se destina, ou sua substituição ou a respectiva indenização). A tutela coletiva não poderá alcançar danos individuais diferenciados e variáveis caso a caso, de indivíduo para indivíduo (p. ex., danos emergentes e lucros cessantes)”.[4]
À guisa de ilustração, as diferenças sumariamente comentadas ensejam, a nosso ver, diferenças ontológicas entre as ações em cotejo, o que, no concernente à competência do juízo, traduzir-se-á em ponto de aproximação, desde que se dê interpretação consentânea aos seus objetivos.
3. COMPETÊNCIA NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Consoante dispõe o art. 2º da LACP, as Ações Civis Públicas serão proposta no foro onde ocorrer ou deva ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional, portanto, absoluta, para o conhecimento e julgamento da demanda.
Já em seu parágrafo único – introduzido pela MP 2.180 – dispõe a lei que a propositura da ação prevenirá a jurisdição (rectius: competência) do juízo para as demais demandas que sejam idênticas.[5]
Da assertiva pode-se inferir que definir-se-á o juízo competente para o conhecimento e julgamento das Ações Civis Públicas não pelos elementos subjetivos da demanda – domicílio do autor ou do réu – todavia por seu elemento objetivo, qual seja, o fattispecie que ensejou o surgimento do objeto litigioso: o dano.
Temos, assim, que os objetivos da norma jurídica, ao determinar a competência do juízo do local do dano, são claros: a prevalência da importância da res iudicium deducta sobre as partes em lide; a facilidade na colheita de provas.
Ocorre o primeiro em razão de se cogitar, em regra, nos processos coletivos, de interesses que não dizem respeito ao indivíduo, como ser atomizado[6], mas como membro de uma sociedade, cujos interesses – interesses sociais – em um Estado Democrático de Direito, sobrepujam os meramente individuais.
Por outro lado, a definição do local do dano como determinação da competência do juízo tem por fim, sob o aspecto prático, a facilitação na colheita de provas, visto que o Juiz estará mais perto – e por conseqüência terá maior facilidade na sua captação e entendimento – dos indícios oriundos da probabilidade da ocorrência do dano e dos vestígios deixados pelo dano efetivamente causado, surgentes da conduta delitiva.[7]
Daí que, com a introdução do parágrafo único ao art. 2º pela MP 2.180, se os efeitos do dano (potencial ou efetivo) transbordarem dos limites de uma comarca, ou até mesmo de um Estado-membro, competente será – nas Ações Civis Públicas, repise-se – aquele juízo onde ocorrer a primeira citação válida, segundo as regras insertas no Código de Processo Civil sobre prevenção (art. 219).
Entretanto, ao lançar escólios sobre a matéria, afirma Hugo Nigro Mazzilli que:
“Se os danos se estenderem a mais de um foro, mas não chegarem a ter caráter estadual ou nacional, o inquérito civil deverá ser instaurado e a ação civil pública proposta seguindo os critérios da prevenção; se os danos se estenderem ao território estadual, ou nacional, o inquérito civil deverá ser instaurado e a ação civil pública proposta na respectiva Capital.” [8] (g.n.)
Com a vênia devida ao ilustrado Mestre, pensamos que tal raciocínio não possui supedâneo legal. De efeito, na lei (LACP) não há norma jurídica que franqueie tal entendimento. Isto porque, mormente após a inserção do parágrafo único ao art. 2º da Lei nº 7.347/85, é explícita a determinação da competência pela prevenção – que deverá subsidiar-se nas normas processuais gerais previstas no CPC sobre tal instituto – entre as comarcas envolvidas no evento danoso. Ademais, não existe texto legal expresso que determine a competência de outro juízo – que não o prevento – em casos de dano cujo âmbito seja regional ou nacional (nem mesmo há previsão de dano de âmbito regional ou nacional), acolhendo a assertiva do jurista paulistano, ao contrário do que ocorre com o CDC, em seu art. 93, onde resta clara a determinação legal da competência do foro da Capital do Estado ou do Distrito Federal em casos de dano cujo âmbito seja regional ou nacional, respectivamente, o que, se demonstrará, não pode ser interpretado, também, de forma estritamente literal.
Frise-se que, em se tratando de Ação Civil Pública, em hipótese alguma, não importando a dimensão que os efeitos do dano possam alcançar, será competente o foro da Capital do Estado ou o Distrito Federal, e sim, como dito, o juízo, dentre somente as comarcas envolvidas, que primeiro realizar citação válida, simplesmente por inexistir norma jurídica que de forma diversa o preveja, e, ao revés, haver comando legal que assim o determine.
Desta forma, um dano ambiental que envolva os Estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro – como recentemente de fato ocorreu – competente será o juízo da comarca que primeiro realizou a citação válida para o conhecimento e julgamento da Ação Civil Pública eventualmente proposta, independentemente do Estado a que pertença tal comarca, não havendo que se falar em competência da Comarca da Capital de uma das entidades federadas, caso não esteja envolvida pelos efeitos do dano. E mesmo neste caso – de ser a Comarca da Capital de um dos Estados ou de ambos atingida pelos efeitos danosos – esta somente será sede do juízo competente se citação válida foi realizada antes de qualquer outro, o que a tornará preventa.
Não calha a argumentação segundo a qual a norma aplicável à espécie seria o CDC; a uma, porquanto o disposto no art. 93 do Codex consumerista somente poderá ser aplicado em se tratando de relações jurídicas materiais de consumo; a duas, porque na LACP há norma, como visto, que trata expressamente da competência nestas ações, não sendo lícito argumentar, portanto, com o artigo 21 da mesma LACP, haja vista que a incidência deste somente ocorrerá no que for cabível.
De qualquer forma, fazendo uma pequena digressão, em se tratando de relações jurídicas de consumo cujo objeto imediato do pedido seja a condenação ao pagamento de determinada quantia, aplicável, aí sim, o CDC, mais especificamente o seu art. 93 no que concerne à competência, em razão do princípio da especialidade, ficando afastada a incidência da Lei de Ação Civil Pública.
De efeito, sendo o Código de Defesa do Consumidor lei posterior e especial no cotejo com a norma que instituiu a Ação Civil Pública, pensamos que aquela derrogou esta no que diz respeito à defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos nas relações jurídicas de consumo. Isto porquanto, segundo os ditames do parágrafo 1º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), lei posterior – acrescentamos, de mesma ou superior hierarquia – derrogará anterior quando regule inteiramente a matéria de que tratava esta.
Insta frisar, entretanto, como dissemos, que a inaplicabilidade da LACP somente ocorrerá quando se pleitear a condenação do Réu ao pagamento de determinada quantia. A contrario sensu, quando o pedido imediato da demanda for a condenação em obrigação de fazer ou não fazer será perfeitamente viável a utilização da Ação Civil Pública, consoante determina o artigo 83 do CDC.
Assim, tratando-se de relação jurídica material de consumo, aplicável sempre o CDC, devidamente subsidiado pela LACP e pelo CPC – nesta ordem – naquilo em que for omisso. Desta forma, inapropriada a utilização de Ação Civil Pública quando se tratar de violação a direito consumerista, ressalvado o que dissemos supra.
Tal raciocínio ficará mais patente no que diz respeito à competência, pois, como afirmado, não há na LACP, ao contrário do que ocorre no CDC, determinação daquela em razão do âmbito alcançado pelos efeitos do dano.
Em suma, forçoso admitir que, em se tratando de Ação Civil Pública, nos casos de competência concorrente entre dois ou mais juízos, determinar-se-á aquela pela prevenção em quaisquer casos, não havendo de se cogitar da amplitude dos efeitos do dano perpetrado.
4. COMPETÊNCIA NAS AÇÕES COLETIVAS
Sem embargo, nas Ações Coletivas previstas no CDC, repete o legislador ser o dano causado o critério legitimador da competência do juízo, porém com algumas nuanças, verbis:
Art. 93 – Ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a justiça local:
I – no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local;
II – no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente.
Divergindo do entendimento amplamente majoritário, tanto em doutrina, como em jurisprudência, algumas observações, buscaremos fazer sobre o preceito legal transcrito, com vistas ao melhor tratamento hermenêutico que, a nosso sentir, o dispositivo exige.
4.1. COMPETÊNCIA EM CASO DE DANO EM ÂMBITO LOCAL
Consoante o dispositivo transcrito, ressalvado a competência da Justiça Federal, será competente para o conhecimento e julgamento da Ação Coletiva a Justiça local do foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano.
Tecendo comentários ao inciso I do art. 93 do CDC, assevera a Profª. Ada Pellegrini Grinover:
“Quando de âmbito local, a competência territorial é do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano (inc. I do art. 93)”.
Será o caso de danos mais restritos, em razão da circulação limitada de produtos ou da prestação de serviços circunscritos, os quais atingirão pessoas residentes num determinado local.
Sem embargo, nos parece que, mesmo nos casos de dano em âmbito local, algumas ressalvas se impõem.
De efeito, a interpretação literal do preceptivo insculpido no inciso I do art. 93 do CDC poderá levar o intérprete à conclusão de que, transbordando os efeitos do dano dos limites de determinada comarca e alcançando outra, competente será o foro da Capital do Estado.
Não obstante, tendo em vista que a eleição pela lei do local da ocorrência ou da possibilidade de ocorrência do dano tem por escopo, dentre outros, maior aproximação do Juiz aos vestígios do dano causado, bem como a facilidade na colheita de sua prova, pensamos que será aplicável, por subsidiariedade, a norma insculpida no parágrafo único do art. 2º da LACP.
Assim, ocorrido o dano consumerista cujos efeitos ultrapassem as fronteiras de determinada comarca, alcançando outra ou outras, a determinação da competência será realizada pela prevenção, ou seja, competente será o juízo que primeiro realizar citação válida no processo (art. 219 CPC).
Urge ressaltar, entretanto, que, aqui, estamos tratando de dano de âmbito local cujos efeitos, não obstante, transbordaram dos limites de uma única comarca, alcançando outras. Em outras palavras, não estamos tratando de dano onde os respectivos efeitos ganharam foros de regionalidade ou nacionalidade, hipóteses expressamente previstas no inciso II do artigo sob comento.
Daí, com acerto no tocante à Ação Coletiva, Hugo Nigro Mazzilli asseverar que não será qualquer dano que ultrapasse os limites da comarca que ensejará a competência do juízo da Capital do Estado para conhecer e julgar ações coletivas.
“Assim, nas ações civis públicas ou coletivas, quando o dano ou a ameaça de dano ocorra ou deva ocorrer em mais de uma comarca, mas sem que tenha o caráter estadual ou nacional, a prevenção será o critério de determinação da competência”.[9]
Com efeito, pensamos, na linha do raciocínio acima exposto, que, para que seja determinada a competência da Capital do Estado, o dano deverá ganhar foro de regionalidade e, evidentemente, o fato de serem atingidas uma, duas ou três comarcas não caracterizará tal aspecto, resolvendo-se, neste caso, pelas regras da Lei de Ação Civil Pública (art. 2º, parágrafo único) combinada com Código de Processo Civil (art. 219) a competência concorrente, quais sejam, as regras que prevêem a prevenção.
Em um caso concreto, poderemos imaginar um dano consumerista cujos efeitos restrinjam-se a duas comarcas contíguas, cuja localização diste quilômetros da Capital do Estado. Conseqüentemente, seguindo o disposto no inciso I do art. 93 do CDC, com a subsidiariedade da LACP e do CPC, competente será o juízo que primeiro realizou a citação válida para o processamento e julgamento da demanda.
Assim, em compêndio, para o dano de âmbito local cujos efeitos atinjam mais de uma localidade (comarca), sem que possuam dimensão de regionalidade, a determinação da competência restará condicionada à prevenção do juízo que primeiro realizou a citação válida no processo.
4.2. COMPETÊNCIA EM CASO DE DANO EM ÂMBITO REGIONAL OU NACIONAL
Em verdade, a par das observações que fizemos quanto ao inciso I do art. 93 do CDC – competência em caso de dano em âmbito local – a grande celeuma reside efetivamente no inciso II do mesmo preceptivo consumerista, daí tentarmos nos deter mais profundamente neste particular.
Com efeito, assevera Ada Pellegrini Grinover na 4ª edição do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, sobre o inciso ora estudado:
“Cabe, aqui, uma observação: o dispositivo tem que ser entendido no sentido de que, sendo de âmbito regional o dano, competente será o foro da Capital do Estado ou do Distrito Federal. Mas, sendo o dano de âmbito nacional, a competência territorial será sempre do Distrito Federal: isso para facilitar o acesso à Justiça e o próprio exercício do direito de defesa por parte do réu, não tendo sentido que seja ele obrigado a litigar na Capital de um Estado, longínquo talvez de sua sede, pela mera opção do autor coletivo. As regras de competência devem ser interpretadas de modo a não vulnerar a plenitude da defesa e o devido processo legal”.[10]
Na 7ª edição da referida obra, a ilustre Professora paulistana ratifica seu posicionamento, reconhecendo, porém, a existência de alguns arestos em divergência às suas lições doutrinárias.
De seu turno, Hugo Nigro Mazzilli adere à posição majoritária quando ensina que:
“Nos termos dessa disciplina, portanto, e ressalvada a competência da Justiça Federal, os danos de âmbito nacional ou regional em matéria de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos serão apurados perante a Justiça estadual, em ação proposta no foro do local do dano; se os danos forem regionais, no foro da Capital do Estado; se nacionais, no foro do Distrito Federal, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil nos casos de competência concorrente”.[11]
Sem embargo, estamos que, primeiramente, deve ser dispensado tratamento diverso quanto ao dano de âmbito regional e o de âmbito nacional, ousando divergir do entendimento majoritário, a despeito de sua mais alta autoridade.
4.2.1. COMPETÊNCIA EM CASO DE DANO EM ÂMBITO REGIONAL
No particular, tratando-se de dano cujos efeitos sejam de âmbito regional, aplicável o que foi dito quanto ao dano de âmbito local.
Com efeito, somente será competente para conhecimento e julgamento da demanda coletiva a Capital do Estado quando os efeitos produzidos pelo dano consumerista ganharem foros de regionalidade, independentemente se a comarca da Capital do Estado sofreu ou não tais efeitos, visto que, nesta hipótese, ante o número razoável de comarcas atingidas por aqueles efeitos, traduzir-se-á em interesse da sociedade do Estado a resolução do conflito, importando que a Capital seja sede da demanda face à relevância configurada pelo vulto do dano.
Dessa forma, lícito afirmar que a grandeza do dano fará a distinção entre a incidência do inciso I ou do II (âmbito regional) do art. 93 do CDC, sendo que, para que ocorra a primeira hipótese (dano de âmbito local), independe o número de localidades atingidas – desde que o dano não ganhe interesse estadual – a competência será definida pela prevenção, havendo juízos concorrentes; já para que ocorra a hipótese do inciso II (dano de âmbito regional), mister se faz que o dano (rectius: os seus efeitos) seja de tal grandeza que interesse à maioria significativa da população do Estado-membro. [12]
Com este raciocínio, cremos que resta evidente que o Juiz da Capital – em caso de interesse regional – não terá dificuldades na colheita de provas – mesmo que o Município, Capital do Estado, não tenha sido atingido pelos efeitos do dano –, sendo que, com tal exegese, o escopo legal de facilitação naquela colheita não restará prejudicado.
4.2.2. COMPETÊNCIA EM CASO DE DANO EM ÂMBITO NACIONAL
Em se tratando de dano cujos efeitos sejam de âmbito nacional, a solução para a concorrência de competências não será a mesma das hipóteses de dano de dimensão regional, explanada no tópico anterior.
De efeito, o fato de efeitos danosos ultrapassarem os limites territoriais de um Estado-membro alcançando outro ou outros, contíguos ou não, não dará ensejo, a nosso sentir, à competência do foro do Distrito Federal para o conhecimento e julgamento da demanda coletiva, consoante as lições doutrinárias acima transcritas.
E mais.
Nem mesmo quando os efeitos do dano tiverem amplitude tal que atinja todos ou quase todos os Estados da Federação – incluindo o Distrito Federal – a competência será deste, como Capital da República, para o conhecimento e julgamento de eventual demanda coletiva.
Inexiste, in casu, a simetria vislumbrada pela maioria dos autores.
Assim, é possível forjarmos exemplos para melhor elucidação: a) determinados produtos comercializados ou serviços prestados no chamado eixo Rio-São Paulo que venham causar danos às populações destes Estados, cujos efeitos ficaram restritos aos limites dos mesmos; em um segundo exemplo: b) os mesmos produtos ou serviços foram comercializados ou prestados em todo território nacional, causando os mesmos danos antes mencionados, agora por todo país.
Em ambas hipóteses, entendemos que, não atingindo os efeitos do dano âmbito nacional (exemplo “a”), ou, mesmo que tal amplitude seja alcançada por tais efeitos (exemplo “b”), a solução para a concorrência entre juízos competentes será a mesma: definir-se-á o juízo competente pelo critério da prevenção, qual seja, o primeiro a realizar citação válida no processo coletivo (art. 219 CPC).
Tal raciocínio tem por fundamento a inexistência de hierarquia entre as entidades federadas – Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 1º e 19 III da CF/88).
Explicamos.
A competência nas Ações Coletivas será, ressalvada a da Justiça Federal, da Justiça local.
Pois bem.
Por tal expressão entende-se a justiça estadual comum que, por exclusão, deterá competência para as causas não previstas na Constituição Federal como de competência da Justiça federal, comum ou especializada (art. 109 CF/88).
Em conseqüência, havendo dano de âmbito nacional, e, não sendo hipótese prevista dentro na competência da Justiça federal, caberá à Justiça local do foro da Capital de cada Estado ou do Distrito Federal que tenha sido atingido pelo evento danoso o processamento e julgamento da demanda coletiva.
Ora, os critérios de determinação de competência (ratione materiae, loci, personae, etc.) dos Juízos Estaduais são de mesma equivalência aos do Juízo Distrital, sendo que, cada qual, tem seu âmbito ordinário de incidência coincidente com os seus próprios limites territoriais. Na hipótese extraordinária de dano nacional, de competência da Justiça local, qualquer capital de Estado ou o Distrito Federal estará, em igualdade de condições, apta(o) a conhecer e julgar a causa.
Ou seja, para não dificultar a defesa do Réu, determina o CDC – havendo diversas demandas coletivas propostas – a concentração em um, e tão-somente um, foro, que poderá ser o da Capital estadual ou o do Distrito Federal, cuja decisão proferida terá efeitos em todo território nacional.
Para o desate da questão, a própria lei determina a utilização das regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente, qual seja, também neste caso, a prevenção, haja vista não ocorrer relação hierárquica entre as Justiças locais dos Estados e a do Distrito Federal.
Daí que, existindo diversas demandas já propostas, definir-se-á a competência da Justiça local no foro da Capital do Estado – ou no do Distrito Federal, se este for atingido pelos efeitos do dano e houver demanda coletiva aí proposta – em que tenha havido a primeira citação válida (art. 219 CPC).
Raciocínio diverso – como o esposado pela doutrina majoritária – levará à uma hierarquia entre as entidades federadas inexistente no texto constitucional, malferindo-o.
Com efeito, dispõe o inciso III do art. 19 da Constituição Federal ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criar preferências entre si.
Em comentário ao referido inciso, Alexandre de Moraes assevera que:
“Criar preferências entre si – como corolário desse princípio, […], sendo a federação uma associação de Estados, que se encontram no mesmo plano, não há que se falar em relação de súdito para soberano, de poder reciprocamente”.[13]
Dessarte, pois, a lei federal (CDC), como produto da competência legislativa da União, não poderá criar distinções entre as entidades federadas, dando preferência, seja de que espécie for, ao Distrito Federal.
Via de conseqüência impõe-se uma exegese da norma infraconstitucional que não implique violação do texto maior, sendo dever do exegeta optar por uma interpretação que mais aproveite o texto da lei, eis que a sua concordância com as cláusulas constitucionais deve ser presumida.
Lado outro, ademais, sob o aspecto prático, não convence o argumento segundo o qual a competência será sempre do foro do Distrito Federal em casos de dano de âmbito nacional para facilitar a plenitude de defesa, pois que em regra acontece do Réu não ter representação jurídica na Capital da República, sendo sua assessoria jurídica situada na sede da empresa.
A outro giro, sendo a concorrência de competências definida pela prevenção, ensejará maior facilidade na colheita de prova pelo Juiz, eis que sua comarca – da Capital – estará sofrendo os efeitos da conduta danosa, concretizando, assim, o objetivo precípuo da lei quando determina ser competente para a demanda o foro do local do dano.
Como seria possível facilitar a colheita de prova pelo Magistrado se, v. g., fosse definida a competência do Distrito Federal em quaisquer casos, mesmos naqueles em que a Capital da República não tenha sofrido os efeitos da conduta danosa?
Em últimas conseqüências, a tese majoritária pode nos levar a determinados absurdos como aquele em que haja demandas propostas em todos ou quase todos Estados, à exceção do Distrito Federal, porém, a se seguir o raciocínio da maioria, este – o foro do Distrito Federal – seria o competente para a apreciação e julgamento da demanda.
A nosso aviso, portanto, a interpretação mais viável – seja sob o aspecto teórico da inconstitucionalidade, seja sob o prático da facilitação na colheita de prova – seria aquela segundo a qual, ao se referir aos Estados e ao Distrito Federal, a norma legal quis tão-somente discriminar, e não hierarquizar, as entidades federadas que possuem Justiça local – o que não ocorre com os Municípios que, não obstante entidades federadas (art. 18 CF/88), não possuem Poder Judiciário – como, amiúde, ocorre no texto constitucional e em leis infraconstitucionais.
Destarte, para uma interpretação consentânea com os princípios da Nova Hermenêutica, bem como pela necessidade de se adequar os princípios e normas do processo civil liberal-burguês às demandas coletivas lato sensu – verdadeiras ações sociais dirimentes de desigualdades – devemos, ademais, sobrepor o interesse social como primeiro critério definidor da competência em litígios desse jaez. [14]
Somente assim, entendemos, poder-se-á chegar ao equilíbrio exigido pelo texto legal, onde a determinação da competência do foro da Capital do Estado e do Distrito Federal não ficará em divergência com a aplicabilidade de dispositivo constitucional (art. 19, III CF/88), bem como da parte final do inciso II do artigo 93 do CDC, posto concorrerem, em tom de igualdade, aquelas entidades federadas pela competência para conhecimento e julgamento das demandas coletivas, exsurgindo como critério técnico definidor a prevenção, pela primeira citação válida realizada.
5. CONCLUSÃO
À guisa de conclusão ousamos asseverar que, muito mais que uma defesa plena – que na realidade em nada será prejudicada –, traduzir-se-á em concretização do Estado Democrático de Direito sob o aspecto processual a preocupação, que necessita ser constante, na satisfação dos interesses sociais postos em litígios nas demandas coletivas, pois que somente assim poderemos almejar a realização efetiva de uma democracia material com o preenchimento, em todas as suas dimensões, do princípio do acesso à Justiça.
Ademais, viceja a necessidade de preenchimento axiológico da expressão Estado Democrático de Direito no sentido de que as normas legais produzidas deverão ter como limite os fatos que lhes ensejam a existência, direcionadas pelos valores predominantes à época de sua produção, assim como de sua interpretação, o que lhes poderá cambiar o comando.
Com efeito, sobrepuja a importância dos interesses sociais em detrimento daqueles individuais ou públicos hodiernamente, e, assim entendemos que as normas jurídicas devem ser interpretadas.
Janeiro / 2004
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Informações Sobre o Autor
Renato Franco de Almeida
Promotor de Justiça. Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça. Membro da Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade da Procuradoria-Geral de Justiça de Minas Gerais. Mestre e Doutor em Direito. Membro do Conselho Editorial da Revista De Jure do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Editorial do periódico MPMG Jurídico. Professor de Graduação e Pós-Graduação lato sensu. Autor do livro Constituição e Políticas Econômicas na Jurisdição Constitucional