Rodrigo Urach Bastos
Resumo: A sociedade, ao longo dos séculos, constituiu maneiras de segregação àqueles tidos como indesejáveis e criminosos, também àquelas pessoas apresentadas como “loucas”, o que influiu no surgimento das prisões e dos manicômios. Tais situações sociais, mesmo que pareçam superadas na “Era de Direitos Humanos”, acabam por apresentar similaridades com a aplicação de alguns institutos na atualidade, eis que a abrangência do conceito de “transtorno mental” tem colocando uma infinidade de pessoas em situação de vulnerabilidade. No estudo proposto, analisa-se a dignidade humana, seu desdobramento no tempo, respingando numa reflexão acerca do instituto da internação psiquiátrica compulsória, tratamento que vem sendo debatido com singela doutrina jurídica específica no Brasil, mesmo dezessete anos após a entrada em vigor da Lei Federal nº 10.216, conhecida como “Lei Antimanicomial”, Lei Federal de Psiquiatria, e que trata do tema.
Palavras-chave: Dignidade humana, Internação, Direito, Reforma Psiquiátrica.
Abstract: The society, over the centuries, was segregation of ways to those regarded as undesirable and criminals, those people also presented as “crazy”, which influenced the emergence of prisons and asylums. Such social situations, even if they seem overcome the “Era of Human Rights”, end up presenting similarities with the application of some institutes today, behold, the scope of the concept of “mental disorder” is putting a multitude of people in vulnerable situations. In the proposed study, we analyze the human dignity, its unfolding in time, splattering a reflection on the institute of compulsory psychiatric hospitalization, treatment that has been discussed with simple specific legal doctrine in Brazil, even seventeen years after the entry into force of Law Federal nº 10.216/01.
Key words: Human Dignity, Hospitalization, Law, Psychiatric Reform.
Sumário: Introdução. 1. Asilamento institucional de pessoas versus o avanço temporal do conceito de dignidade humana. 2. O processo de Reforma Psiquiátrica em perspectiva. 3. Lei antimanicomial: a interação entre o direito e a dignidade humana. Conclusão.
Introdução:
O tratamento de transtornos mentais (não há consenso no conceito) teve as mais variadas nuances no decorrer da história. Chegou a se confundir intrinsicamente com níveis desumanos de asilamento institucional, e ser aplicado indiscriminadamente a uma vasta gama de pessoas, muitas das quais sem qualquer patologia. Tais formas de internação surgiram como mecanismo social de isolamento, sendo certo que, como bem preceituava Foucault, do outro lado dos muros do internamento não se encontram apenas a pobreza e a loucura, mas rostos, bem mais variados. Tal ponderação toma rumos interessantes ao se cogitar um viável liame entre a concepção cronológica de dignidade humana e o isolamento institucional, ou melhor, com a evolução histórica dos direitos atribuídos à pessoa humana. É com essa ideia que o trabalho aborda o percurso tomado pelo Direito até o advento da Lei Federal nº 10.216/01, conhecida como Lei Antimanicomial e qual a interpretação dessa norma tão pouco debatida, mas com repercussão importantíssima na sociedade comum um todo.
Aponta-se que o pensamento de povos antigos teve papel importante na construção conceitual de que existem valores intrínsecos ao ser humano – o que o distinguia de outros indivíduos ou o igualava, positiva ou negativamente. Para Sarlet (2001, 2015), nessa avaliação sobre a noção de dignidade no tempo, fica evidente que no pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, a dignidade do homem condizia fortemente com o grau de seu reconhecimento pela comunidade, aliado a posição social, podendo se falar em quantificação e modulação do instituto da dignidade.
Não dissociada desse viés, Britto (2004) coaduna com a concepção de que o modelo de tratamento nos antigos manicômios, dispensado a um enorme contingente de pessoas, surgiu das práticas de institucionalização de cidadãos não benquistos pelo grupo dominante, visto que, na maioria dos casos, quando se considerava alguém um criminoso ou louco, seu castigo seria a detenção ou o internamento no hospital. Nesse exato sentido, referindo-se ao contexto do século XVII, esclarece a autora:
“Na França, as ordens de internações – lettre-de-cachet – eram estabelecidas pela autoridade real, e as pessoas eram recolhidas às casas de correção ou aos hospitais gerais. Estes estabelecimentos eram conceituados como instituições de reclusão e destinados a abrigar aqueles que perturbavam a ordem social – loucos, prostitutas, libertinos, doentes, pobres, ociosos, etc. Os Hospitais gerais eram instituições que não tinham conotação de instituição médica.” (BRITTO, 2004, p. 15).
Dessa reflexão, tira-se que o internamento não tinha uma aplicação essencialmente clínica do conceito que hoje há pra “hospital” (bastante peculiar naquele momento histórico, mas com resquícios ainda hoje, como se verá adiante), o que resultou em uma concepção distorcida sobre a consciência médica da loucura.
Nesse sentido, verifica-se que, enquanto mecanismo de tratamento, a “internação” tomou forma de acordo com o desenvolver do pensamento predominante em cada período, sendo possível compreender, pelo processo histórico, que passou a ter uma concepção moral, atrelada a um caráter punitivo, culminando em um ideal de “limpeza social” em que o asilamento tornou-se um regulador humano das comunidades e, por conseguinte, do Estado constituído.
Por isso, em termos de doença, pode-se dizer que a intuição era ética. Segundo Delamare (1707 apud Foucault, 2010, p. 102), em uma sociedade cheia de diferenças era preciso um mecanismo enérgico para livrar o público da “corrupção”, sendo certo que não se acharia coisa melhor, mais rápida e segura do que uma “casa de força” para ali fechar certas pessoas e fazê-las viver sob uma disciplina proporcional aos seus sexos, idades e faltas.
Assim, infere-se que o conceito de internação no século XVII estava baseado no subjetivismo do que seria “digno ou incorreto”, o que o tornou incontrolavelmente amplo, integrando multidões ao domínio da alienação mental. Por isso, ao verificar o tratamento dado ao “doente mental” (que nem sempre possuía alguma patologia) equiparando-o a um “criminoso”, cabe refletir sobre a dificuldade do processo de dissociar a delinquência da loucura:
“A passagem do cárcere ao manicômio […] é de fato o início da invalidação da voz da loucura, justamente no momento em que lhe é reconhecido o direito à palavra enquanto enfermidade. Criminalidade e loucura, entendidas como fenômenos de natureza e contranatureza, tinham em si um caráter irredutível: o cárcere segregava e punia um ato delituoso ou considerado como tal, que não se entendia ou não se podia modificar ou corrigir. Nessa segregação comum está implícito o reconhecimento à existência, no homem, de uma ou de outra possibilidade, as quais são punidas quando representam uma ameaça à coletividade e o ato que as segrega, tem apenas um significado punitivo.” (BASAGLIA, 2005, p. 262-263).
Tal passamento, infelizmente, dava como certo que delinquentes e cidadãos acometidos de doenças de ordem mental pertenceriam a uma “sub-humanidade” a que cabiam suplícios, uma internação forçada. Nesse viés, o manicômio se ergueu sobre os moldes de um sistema de cárcere, o que impediria o reconhecimento da dignidade do enfermo, estigmatizado como alguém a ser banido.
Alinhavados a essa reflexão, Gorczevski e Richter (2008) destacam que somente por meio das lutas travadas no século XXVIII, entre a burguesia e o então Estado absolutista, surgiriam condições para o reconhecimento e instituição de um rol de direitos que, mais tarde, seriam aprimorados e erigidos à categoria de fundamentais. Frisam os autores que a noção de “liberdade” e “direito individual” encontraram respaldo na Declaração de Virginia (1776) e na Revolução Francesa (1789). Além disso, é nesse período que emerge a primeira dimensão de direitos humanos, pautada no racionalismo iluminista, no jusnaturalismo[1], contratualismo e liberalismo.
Entretanto, as conquistas de direitos, custosamente sedimentadas de revolução, nem sempre trilharam o ritmo de progressão e extensão a que se propuseram, regredindo em diversos momentos, de acordo com os mais variados critérios territoriais, políticos e cronológicos. Quando se fala no século das luzes e toda a transformação que calhou na seara dos direitos e dignidade do ser humano, principalmente na nova concepção de liberdade, isso não significou a aplicação massiva do instituto como uma igualdade material, mas meramente formal. Nesse sentido:
“Quanto aos direitos humanos, a Revolução Francesa e suas extensões militares por quase todo o continente já haviam esgotado o que tinha a oferecer: igualdade civil e liberdade individual […]. Isso não foi pouco, se comparado ao modo de vida da sociedade feudal, mas deixava muito a desejar para a maioria da população que, como visto, sonhava mais alto. Os anseios de igualdade social ou, ao menos, de algo que se aproximasse disso foram ferozmente frustrados pelos revolucionários burgueses […]. Aliás, cedendo às pressões dos fazendeiros, Napoleão reestabeleceu em 1802 a escravidão nas colônias francesas do arquipélago das Antilhas, que havia sido abolida em fevereiro de 1794. (TRINDADE, 2011, p. 76)”.
Vê-se que a igualdade social, na grande maioria de suas nuances, ficaria restrita à elite econômica, prevalecendo a máxima popular de que “foi feita para o filho varão, branco e rico”. Nesse sentido, convém esclarecer que nem sempre os “direitos” são originados da revolução, uma expectativa simplória do estudo da história dos direitos humanos que, desde tempos remotos, podem e são utilizados com outros propósitos.
Cavalcanti, Simões e Costa (2004) compartilham do entendimento segundo o qual a história romanceada de que a “luta” embasa os direitos até pode emocionar plateias, mas não tem fundamento algum, visto que muitas delas foram e são travadas sem nenhuma presença dos princípios consignados pelos Direitos Humanos. Nesse contexto, o pensamento infere que algumas pelejas até se oporiam abertamente aos direitos, mas que eles não são tão consensuais quanto parecem, nem estão “na alma humana” da forma como gostaríamos.
Por isso, não é difícil perceber que a situação de segregação, em especial nas instalações do modelo hospitalocêntrico, um recorte de multiplicados fatores históricos, permaneceu presente nas mais diversas realidades culturais ainda por um longo período, transferindo-se aos domínios coloniais que, por muito tempo, submeteram-se à supremacia da organização europeia, metrópoles colonizadoras.
Prova disso é que, para Fonte (2012, s.p.), em termos de Brasil, a loucura viria a ser objeto de intervenção por parte do Estado somente com a chegada da Família Real Portuguesa, “depois de ter sido socialmente ignorada por quase trezentos anos”. Segundo a autora, com o período de modernização e consolidação da nação brasileira, passa-se a “ver os loucos como resíduos da sociedade e uma ameaça à ordem pública”, tal como ocorria na Europa.
De todo modo, Wolkmer (2013) confere ao século dezoito a consolidação de diversos direitos políticos e civis, como aqueles vinculados à liberdade e à propriedade, tidos como atributos naturais, inalienáveis e imprescritíveis, estabelecidos em face do Estado. No entanto, apenas com o processo de industrialização do século XIX e no decorrer do século XX – após as grandes crises sociopolíticas – que se solidificaram os direitos sociais, que nesse momento passam a ter como sujeito passivo o Estado, que se torna responsável pelo atendimento a todos os indivíduos, na perspectiva do que se denominaria Estado de Bem-Estar Social – organização que buscou minimizar os efeitos da desigualdade agregada pelo individualismo liberal do século XVIII.
Dessa forma, historicamente, no que tange ao asilamento institucional, ainda será preciso dar um “salto” à dentro dos anos 1900. Isso porque a prática manicomial fora apenas mitigada, passando muitas vezes de mãos privadas ao ainda inexperiente – e em desenvolvimento – poder “público”, sendo certo que a palavra “exclusão” ainda era o que melhor definia e sintetizava a política de assistência em saúde mental durante o século XX (RESENDE, 1987, p. 15-73 apud YASUI, 2006, p. 21).
Ainda, insta compreender que seus reflexos de desumanidade permaneceram arraigados na cultura ocidental e vinculavam a mesma forma arcaica de tratamento àqueles que, mesmo em um grupo um pouco mais restringido, eram acometidos de transtornos mentais comprováveis. Apenas se falará em significativas transformações desse modelo pela conjuntura de mudanças sócio-políticas pós Segunda Guerra Mundial[2], que enfim consolidaram a saúde como direito social, englobando os direitos do paciente psiquiátrico em uma perspectiva de dignidade humana (GASTAL et al., 2007).
Emergirá, em um novo momento no trato humanitário e médico propriamente dito, o chamado movimento de Reforma Psiquiátrica, processo interdisciplinar que consistiu e, de certa forma, ainda consiste em uma mobilização social pela reformulação das políticas públicas de saúde mental. Nessa concepção contemporânea do movimento, dada pelo Ministério Público Federal, ainda consta a afirmação da necessidade de se abandonar completamente o modelo asilar, substituindo-o por um conjunto de serviços abertos e comunitários capaz de garantir à pessoa com transtorno mental o cuidado necessário para viver com segurança, no convívio familiar e social tanto quanto possível (BRASIL, 2012).
O movimento antimanicomial está inscrito num contexto internacional de mudanças pela superação das formas de violência ocorridas dentro do hospital psiquiátrico. Em 1964, Franco Basaglia apresenta ao I Congresso Internacional de Psiquiatria Social, ocorrido em Londres, o texto “A destruição do hospital psiquiátrico como lugar de institucionalização: Mortificação e liberdade do ‘espaço fechado’”, lastreado em suas experiências pessoais de trabalho. Para o expoente italiano:
“[…] quando o doente está no asilo, alienado pela enfermidade, pela perda das relações pessoais com o outro e, portanto, pela perda de si mesmo, em vez de encontrar ali um lugar onde possa libertar-se das imposições dos outros sobre si e reconstruir seu mundo pessoal, depara-se com novas regras e estruturas que o impelem a objetificar-se cada vez mais, até identificar-se com elas. Isso se dá porque as consequências da loucura – que constituem o centro das apreensões dos nossos legisladores – são mais valorizadas que o doente mental enquanto homem. (BASAGLIA, 2005, p. 25).”
A difusão de pensamentos como esse influiu para que, internacionalmente, fossem concebidas formalizações legais como a Lei nº 180, de 13 de maio de 1978, conhecida como Lei Basaglia, que determinou o fim dos manicômios em todo o território italiano, demonstrando a força de uma nova ordem de tratamento aos direitos de um cidadão vulnerável, o paciente com transtornos mentais.
Em termos de Brasil, o desenvolvimento do processo de reformulação do modelo psiquiátrico, em favor da mudança no sistema de atenção e defesa da saúde coletiva, surgirá logo em seguida, cronologicamente ao lado do Movimento Sanitarista da década de 1970, também época de luta pela redemocratização do país.
Um dos marcos do nascimento do movimento nacional da luta antimanicomial no Brasil foi, em 1987, o II Congresso Nacional do MTSM (Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental), realizado em Bauru/SP, evento do qual também participaram usuários do sistema. Segundo a estudiosa, foram debatidas, nessa oportunidade, as concepções de doença e saúde mental, bem como as mudanças necessárias do modelo de assistência, sendo enfatizada a importância de revigorar a articulação entre os setores sociais e as políticas de Estado.
Salienta o Manifesto ou Carta de Bauru, documento resultado desse evento:
“Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agentes da exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeita os mínimos direitos da pessoa humana, inauguramos um novo compromisso. […] O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que sustenta os mecanismos de exploração e da produção social da loucura e da violência. […] O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. […] Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida. (BRASIL, 1987, s.p.).”
Até essa época, o “louco” não tinha voz, não era um sujeito político, fato que era consubstanciado por uma parca e confusa legislação[3], mas que a reforma psiquiátrica começa a mudar.
Na sequência histórica, o Brasil teve ideais fortalecidos em 1990, quando a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgaram o documento intitulado: A reestruturação da atenção psiquiátrica na América Latina: uma nova política para os serviços de Saúde Mental, que ficou conhecido como a Declaração de Caracas. Na visão de Machado (2004), tal documento, que envolveu contribuições de legisladores, juristas, organizações e associações engajadas, estabeleceu um apelo aos Ministérios de Saúde e de Justiça, aos Parlamentos, Sistemas de Seguridade Social, também às universidades, para que apoiassem a reestruturação da atenção psiquiátrica assegurando, assim, seu desenvolvimento exitoso em benefício das populações dessa região do globo.
Conforme explanado, a declaração de Caracas (1990) estabeleceu nortes para a reestruturação da assistência psiquiátrica ligada ao Atendimento Primário da Saúde, fomentando a promoção de modelos alternativos de tratamento, propiciando a permanência do enfermo em seu meio comunitário, de modo que os cuidados a eles dispendidos devem salvaguardar, invariavelmente, a dignidade pessoal e os direitos humanos e civis.
Já nesse ponto, agregando valores no ido dos anos 2000, amplia-se o conceito de Reforma Psiquiátrica no Brasil. Passa a ser tratada como um processo político e social complexo, composto de atores, instituições e forças de diferentes origens, já incidente nos mais diversos territórios, nos governos, nas universidades, serviços de saúde, associações de pessoas com transtornos mentais e de seus familiares. Compreende, no novo milênio, um conjunto de transformações de práticas, saberes e valores no cotidiano da vida nas instituições, dos serviços e das relações interpessoais, avançando um tempo que ainda seria marcado por impasses, tensões, conflitos e desafios (BRASIL, 2005).
Nesse contexto, ampliou-se, também, o campo da saúde mental, e a EAPS (Estratégia de Atenção Psicossocial) tornou-se uma Política Pública. A partir desse momento, o país assistiu serem implantados os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), um serviço aberto, substitutivo ao hospital psiquiátrico “fechado” que já consumia quase a totalidade de recursos destinados ao atendimento de pacientes com transtorno mental (mais de 90% dos recursos do SUS para esse fim) e vertia denúncias de maus-tratos aos institucionalizados (DELGADO, 2011, s.p.).
Mendes e Menezes (2013), ao refletir sobre a conclusão de um longo ciclo histórico de dissociação de direitos, salientam que a sociedade atual, pautada nas diretrizes dos Direitos Humanos, exigiu uma nova postura em face do paciente psiquiátrico. Na contemporaneidade, o acometido de transtorno mental passou a ser reconhecido como um sujeito de direitos pelos tratados internacionais, pela legislação dos diversos Estados, sendo imperativo um tratamento mais humanizado e fundamentado nos ideais de dignidade e de liberdade, o que se dá depois de um longo processo de luta e violações à integridade, à vida e à liberdade desses pacientes.
De acordo com conjuntura estabelecida até aqui, vê-se que o processo da Reforma Psiquiátrica brasileira não é apenas um conjunto de mudanças nas políticas governamentais e nos serviços de saúde, mas de esforços dos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, convergindo à consolidação da dignidade humana. Como visto, a transição entre os dois últimos séculos vivenciou o amadurecimento de questões que envolveram não só a necessidade de renovação da assistência em saúde mental, mas também muitos debates sobre os variados aspectos relacionados à temática da loucura e da psiquiatria.
O processo de reforma antimanicomial no Brasil foi entusiasmado por experiências como a Psiquiatria Democrática Italiana. Além disso, aqui surgiram condições para o desenvolvimento de novos mecanismos de tratamento, destacando-se a importação de ideias de Comunidade Terapêutica (Inglaterra), e de Psiquiatria Comunitária (EUA), importantes contribuições internacionais na mudança do olhar ao paciente psiquiátrico. Fez-se, no decorrer da história recente, “[…] o deslocamento da discussão acerca da loucura e do manicômio do campo técnico para a sociedade em geral.” (BRITO, 2004, p. 43-44).
Antes mesmo do advento da Lei Federal de Psiquiatria em 2001, já existiam esforços dos Poderes Estatais na minimização de riscos e ampliação de cuidados especiais ao paciente acometido por transtornos mentais. A própria Constituição Federal de 1988, em seu artigo 7°, elencou a saúde como um direito social, ampliando esse postulado entre os dispositivos 196 e 200 da Carta Magna. Também as portarias nos 189/91 e 224/92, do Ministério da Saúde, por exemplo, foram atos marcantes que repercutiram na possibilidade, até então inexistente para o implantado Sistema Único de Saúde, de financiamento a programas de assistência extramuros para os portadores de transtorno mental e seus familiares, tais como os Núcleos de Atenção Psicossociais (NAPS). (BARROSO; SILVA, 2011).
Nesse sentido, a portaria nº 224/92, em específico, oficializou diretrizes e normas para o funcionamento e estruturação dos CAPS, de acordo com critérios territoriais e demanda, especificando as suas atribuições que, a partir de então, iriam variar entre o atendimento individual (consulta, psicoterapia), grupal (atividades socioterápicas e educativas em saúde), visitas domiciliares e atividades comunitárias enfocando a inserção social[4]. (BRASIL, 1992).
Além disso, a partir da década de 1990, pelo menos nove leis estaduais entraram vigor, inspiradas na repercussão que o debate sobre direitos e, sobretudo, a dignidade de pacientes institucionalizados trouxera à tona. Dentre elas, está a pioneira Lei nº 9.716, de 7 de agosto de 1992, do Rio Grande do Sul. Assevera o artigo primeiro dessa norma, em referência expressa ao artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, que “ninguém sofrerá limitação em sua condição de cidadão e sujeito de direitos, internações de qualquer natureza ou outras formas de privação de liberdade sem o devido processo legal” quando acometido de transtornos de ordem psíquica. (BRASIL, 1992).
Embora também se esteja tratando de liberdade individual (primeira dimensão de direitos fundamentais[5]), surge na prática a segunda dimensão, uma vez que não se busca aqui uma abstenção estatal, mas uma atuação positiva do ente público para consagrar a dignidade humana por meio de prestações sociais impostas ao Estado para alcançar a justiça (finalmente uma igualdade material, e não meramente formal), abarcando o tratamento jurídico dos transtornos mentais. (SILVA, 2010).
Argumenta-se, diante de toda essa conjuntura, com a crescente valorização de questões como cidadania e direitos sociais daqueles antes tidos apenas como “loucos”, especialmente no momento histórico em que a democracia brasileira se encontrava em vias de reconstrução pós-ditadura militar, que:
“Tornou-se clara a necessidade de uma lei nacional que sustentasse a nova concepção da psiquiatria pública, ancorada nos direitos humanos, na liberdade, nos métodos modernos de tratamento, na base territorial da organização dos serviços. Como fruto desse debate, e da ação coletiva que ia sendo construída, o Deputado Paulo Delgado, do PT de Minas Gerais, apresentou à Câmara, em dezembro de 1989, o projeto de lei que veio a resultar, 12 anos e muitos debates depois, na lei 10.216. (DELGADO, 2011, s.p.).”
A Lei nº 10.216, Lei Federal de Psiquiatria, de autoria do Deputado Paulo Delgado, foi sancionada no ano de 2001. Sua aprovação na Câmara dos Deputados já havia se dado em 1991, mas, no Senado Federal, um “substitutivo” ao Projeto de Lei nº 3.657/89, apenas seria aprovado uma década depois, sedimentando doze anos de mudanças ao texto original.
Destacam Pinto e Ferreira (2010, p. 30), em reflexão crítica, que a demora à aprovação do texto normativo, bem como sua modificação precoce, especificamente para um “substitutivo” apresentado pelo Senador Sebastião Rocha, teria se dado justamente porque a norma intentou “desmantelar o aparato asilar abalizado em internações involuntárias, a maior parte delas custeadas pelo governo através do financiamento de leitos em instituições privadas”. Os autores ainda comentam, nesse sentido, que foram suprimidos durante a tramitação do projeto de lei dispositivos sobre a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos privados, que agora estariam subordinados ao aparelho judiciário.
De qualquer forma, é necessário compreender que a retomada e consequente aprovação da Lei vêm subordinada a uma série de fatores, um dos quais a influência do caso Damião Ximenes Lopes (especificamente da repercussão jurídica dele decorrente), relativo ao paciente psiquiátrico que morreu em 1999, em consequência de torturas perpetradas no interior do Hospital Psiquiátrico de Sobral, no Ceará.
Por conta desse episódio trágico, o Brasil foi levado a julgamento perante a Corte Internacional de Direitos Humanos da Costa Rica[6], sendo de extrema relevância citar alguns comentários em tradução da respectiva sentença condenatória:
“[…] Esta sentença, além de ser a primeira de mérito contra o Brasil, é também a primeira na qual a corte analisou violações de direitos humanos de pessoa com doença mental. Por isso, a corte considerou que os deveres genéricos dos Estados de respeito e garantia dos direitos previstos no Pacto de San José (artigos 1º e 2º) concretizam, no caso das pessoas com deficiência, os deveres de cuidar, regular e fiscalizar. Logo, a corte determinou que não basta que os Estados se abstenham de violar os direitos, mas que é essencial que implementem “medidas positivas”, que devem ser adotadas em função das necessidades particulares de proteção do indivíduo. (RAMOS, 2006, s.p.).”
A decisão, que reconheceu a responsabilidade do Estado perante sua prestação assistencial e de saúde, é um marco no que tange à resposta internacional à violação dos direitos humanos no campo da saúde mental, e parece ter estado na mente do legislador brasileiro ao conceber o artigo 3º da Lei 10.216/01. Segundo esse dispositivo, é responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, com a devida participação da sociedade e da família, devendo ser prestado atendimento em instituições ou unidades que ofereçam a devida assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais (BRASIL, 2001).
De modo geral, a leitura do texto normativo em análise mostra que ele repudia qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, gênero, religião, idade, recursos econômicos e, principalmente, quanto ao grau de gravidade ou tempo de evolução do transtorno. Consigna, dentre os direitos da pessoa portadora de transtorno mental, o de “ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade.” (BRASIL, 2001).
Já durante a vigência da lei antimanicomial, sobreveio uma atualização às antigas diretrizes do Ministério da Saúde, o que se deu por meio da portaria nº 336 de 2002, que atribuiu aos Centros de Atenção Psicossocial o papel central na psiquiatria comunitária brasileira, postulado coerente com a ampliação dos serviços ambulatoriais de atenção diária.
O documento em referência estabeleceu que a rede de atendimento constituir-se-ia nas modalidades CAPS I, CAPS II, e CAPS III (este último com funcionamento 24h), em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não intensivo (as especificidades atinentes ao atendimento da dependência química serão estudados na sequência). Referida orientação normativa, ainda definiu que “somente os serviços de natureza jurídica pública poderão executar as atribuições de supervisão e regulação da rede de serviços de saúde mental”, bem como que os CAPS “só poderão funcionar em área física específica e independente de qualquer estrutura hospitalar.” (BRASIL, 2002).
A importância do debate em torno da norma de proteção aos pacientes com transtornos mentais, e a criação de mecanismos de operacionalização do novo sistema, inclusive na esfera legal, não parou por aí. Quando o artigo 5º da Lei Antimanicomial (BRASIL, 2001) estabeleceu que “o paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional […] será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida”, o que se daria sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, houve a concepção de outra lei reformadora.
A legislação brasileira, que acabava de libertar os pacientes psiquiátricos do pleno isolamento institucional, precisaria, em mão dupla, realocar aqueles que, consumidos pela dependência do hospital, não conseguiriam seguir sozinhos. Por essa razão, em 31 de julho de 2003, entrou em vigor a Lei Federal nº 10.708, conhecida como “Lei do Programa De Volta Para Casa”, estabelecendo um novo impulso à desinstitucionalização de pacientes com longo tempo de permanência em hospital psiquiátrico, por meio da concessão de um auxílio financeiro para a reabilitação. (BRASIL, 2004).
A consolidação da dignidade de um paciente psiquiátrico exige que seja protegido contra qualquer forma de abuso e exploração. Nesse sentido, a Lei Federal de Psiquiatria também é cristalina ao dispor que não poderão ser realizadas pesquisas científicas para fins diagnósticos ou terapêuticos sem o consentimento expresso do paciente, ou de seu representante legal, e sem a devida comunicação aos conselhos profissionais competentes e ao Conselho Nacional de Saúde. Ademais, a evasão, transferência, acidente e intercorrência clínica grave, deverão ser comunicados pela direção do estabelecimento de saúde mental a todos os interessados, no prazo máximo de vinte e quatro horas da data da ocorrência. (BRASIL, 2001).
CONCLUSÃO:
Dessa forma, para evitar as barbáries cometidas em instituições como o Hospital Colônia em Barbacena/MG (1903-1980), onde os pacientes morriam de frio, de fome, de choque, sabendo-se que em alguns dias, os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município, a legislação precisou ser mudada e acompanhar a ascensão do principio da dignidade humana, criando-se, pelo mundo, uma série de iniciativas e movimentos como o da Reforma Psiquiátrica que, de uma forma ou de outra, em maior ou menor escala, teve seus desdobramentos em todas as partes do mundo.
A legislação brasileira, então, pautada em uma nova ordem mundial, e também em uma nova Constituição Federal, estabeleceu suas bases na consolidação do direito à saúde, pretendendo veicular qualquer internação psiquiátrica, medida subsidiária, aos mais coerentes métodos, obedecendo aos direitos fundamentais e às garantias reafirmadas pela Lei nº 10.216. Sob esse prisma, em que pese remanesçam diversas críticas à Lei antimanicomial (e a sua atuação prática), seu texto ainda pode ser considerado referência na consolidação da dignidade humana de pacientes acometidos por transtornos mentais, fato que não exclui uma imensa responsabilidade em se reavaliar o texto da lei, reconduzindo o sistema vigente a um novo patamar, ainda mais garantidor de direitos.
Embora muito tenha sido feito, e uma “evolução” tenha sido desenhada, com a dignidade da pessoa humana esculpindo um novo conceito de doente mental, pessoa que não merece ser escondida do mundo, mas auxiliada no seio comunitário, ainda existe um longo caminho que, muito além do mundo jurídico, diz respeito á atitude da sociedade perante essas questões. Também a responsabilidade e investimento do Estado, enquanto prestador de serviços e, em último caso da prestação de elementos e estrutura adequada para um tratamento de internação.
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[1] As teorias jusnaturalistas fundamentam a importância e influência no reconhecimento dos direitos fundamentais no decorrer da história. (SARLET, 2015, p. 39)
[2] O tratamento asilar foi sendo modificado, questionado e mesmo substituído desde o pós-guerra em vários países. Neste período vários movimentos de contestação ao saber e prática psiquiátrica instituída se fizeram notar no cenário mundial, dos quais se destacam os movimentos denominados Psiquiatria de Setor, na França; as Comunidades Terapêuticas, na Inglaterra; e a Psiquiatria Preventiva, nos EUA. (FONTE, 2012).
[3] O Decreto nº 1.132 de 22 de dezembro de 1903 reorganizou a assistência à loucura, sendo a primeira lei nacional que abordou a questão dos alienados. Era composto por 23 artigos que tratavam dos motivos que determinam a internação e dos procedimentos necessários para a realização desta, da guarda dos bens dos alienados, da possibilidade de alta. No entanto, ainda “bastava o risco”, não havendo preocupação com o bem estar do paciente ou prevenção da doença mental, fato também ignorado pelo Decreto nº 24.559/34. (BRITO, 2004 p. 70).
[4] Em janeiro de 1992, foi implantado, ainda, o Programa de Apoio à Desospitalização (PAD), que previa que pacientes internados por longos períodos poderiam voltar para suas famílias de origem ou outras que os acolhessem. Já em 2000, por meio da portaria 106/2000, oficializou-se outro importante serviço substitutivo, as residências terapêuticas, para abrigar pacientes psiquiátricos desospitalizados que, por algum motivo, não pudessem voltar para suas famílias. (BARROSO; SILVA, 2011).
[5] São os direitos civis e políticos. Trata-se dos direitos vinculados à liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança e à resistência às diversas formas de opressão. Direitos inerentes à individualidade, tidos como atributos naturais, inalienáveis e imprescritíveis, que por serem de defesa e serem estabelecidos contra o Estado, tendo especificidade de direitos “negativos”. (WOLKMER, 2013, p. 127).
[6] O Brasil é signatário do Tratado de São José da Costa Rica, que institui a Corte Interamericana de Direitos Humanos (os Estado Unidos, país mais poderoso do continente, não reconhece a Corte), por isso, após denúncia e os trâmites pertinentes, foi levado a julgamento em relação à responsabilidade do Estado brasileiro na morte de Damião Ximenes. (DELGADO, 2011).
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