O Direito é importante, no entanto, mais importantes que o Direito são o Sol, a Vida, a Natureza, as pessoas…
(Sebastião Marsicano Ribeiro)
Quando se fala em ortodoxia e heterodoxia normalmente se dá a esses conceitos um tom pejorativo e, assim, ninguém aprecia ser taxado de ortodoxo nem de heterodoxo, pois, no primeiro caso, passamos por retrógrados e, no segundo, por irresponsáveis ou rebeldes.
Dependendo da realidade onde se vive os padrões naturalmente são diferentes e, assim, ortodoxos e heterodoxos são, respectivamente, aqueles que, num determinado contexto, pensam e agem conforme a maioria, no primeiro caso, e de forma diversa da maioria, no segundo caso.
Vejamos a seguinte situação: um cidadão que se sente incomodado por um vizinho procura a justiça para solucionar o problema. Se estiver num país onde vigora a teoria de Rudolf von Ihering da luta pelo direito, sua conduta será tida como adequada, pois entende-se nesse país que ninguém é obrigado a suportar as injustiças. Esse cidadão não pode recorrer às vias de fato, mas ali se acha natural querer a punição das pessoas importunas através do braço da justiça. Caso, ao contrário, esteja, por exemplo, no Japão, esse cidadão que processou seu vizinho será tido como pessoa desajustada, pois deveria dialogar com o vizinho e encontrar uma solução à base do diálogo. No primeiro país, preconizam-se as soluções de força contra aqueles que violam as regras da boa convivência, enquanto que no último valorizam-se as soluções pacíficas conseguidas através do diálogo. No primeiro caso, aplica-se, em outras palavras, o Direito Romano com as influências germânicas, ou seja, a matemática fria da ordem instituída, ignorando a grande lição trazida pelo Direito Canônico, representada pela figura ímpar da conciliação, lançada por São Paulo como o grande instrumento de solução das discórdias entre os cristãos, que deveriam procurar um confrade mais esclarecido e generoso para solucionar os desentendimentos entre cristãos ao invés de demandar na justiça. No segundo caso, a influência é do Budismo e de outras correntes orientais semelhantes, que valorizam a evolução interior dos seres humanos acima dos interesses puramente materiais do patrimônio, prestígio social etc. e, por isso, entendem que as querelas inferiorizam as pessoas ao invés de dignificá-las.
Na época atual, em que a globalização é uma realidade irreversível, cada vez mais diminuem as diferenças entre as pessoas, regiões, países e até entre Ocidente e Oriente. O Direito vai-se tornando um só no mundo inteiro. Veja-se, por exemplo, o caso da União Européia, cujo quadro ampliou-se para 25 países e que, mais cedo ou mais tarde, acabará tendo sua Constituição e um direito único, como já tem uma moeda única (o euro).
A teoria da luta pelo direito cumpriu sua fase no processo evolutivo da humanidade. Serviu para que as pessoas acordassem contra as injustiças gritantes que ocorriam e prevaleciam sem que os injustiçados pudessem fazer algo para sobreviver naquela verdadeira selva, onde a lei era somente a vontade arbitrária dos mais agressivos e astutos. No entanto, mais evoluída a humanidade atualmente, esse modelo já não serve. As pessoas sofrem atualmente pela falta da paz. As guerras, a violência, as vinganças e o terrorismo, a nível individual ou coletivo, tudo isso tem sido entendido como conseqüência da falta de humanidade nas instituições existentes. A frieza é tão dura de suportar quanto a violência e a injustiça. A força do direito é pouco melhor que o direito da força se o direito é mecânico e frio como geralmente ainda tem sido.
O direito foi feito para o homem e não o homem para o direito. As regras jurídicas têm de ser pensadas em função das pessoas, que nascem, crescem e morrem à procura da felicidade e da paz. Não faz sentido entronizar-se o direito como ciência, como um ente autônomo, com vida própria. Todas as ciências devem ser subordinadas ao grande ideal de servir ao ser humano, não só ao coletivo, mas a cada pessoa individualmente. Pois, muitas vezes, por trás da aparente utilidade está a crueldade mais dura e calculada.
Nós que somos operadores do direito não podemos nos distanciar dos ideais de São Paulo, do Budismo e de outras correntes realmente pacifistas. Não podemos nos transformar em instrumentos da luta entre pessoas, classes e nações, em ferramentas para que as pessoas humilhem umas às outras e se vinguem reciprocamente. Não devemos fazer o papel de vingadores estatais, procurados para satisfazer a sede de vingança de uns contra outros. Grandes deformações do direito ocorreram na Alemanha nazista, na União Soviética comunista, na Itália fascista e em outras nações, inclusive a nossa… E, infelizmente, há ainda aqueles que querem a continuidade da lei de talião como forma de resolver os problemas.
Lembro-me do caso de uma juíza estrangeira que esteve no Brasil há alguns anos e assombrou-se com a grande vocação que temos para as soluções conciliatórias nos processos. Disse ela sobre isso em tom de desprezo pela nossa grandeza. Falou dessa nossa virtude como se fosse um defeito. No entanto, essa é a maior contribuição que devemos dar ao direito mundial. Não teremos, muitas vezes, prestígio nas teorias jurídicas que ganham os espaços dos outros países e continentes, mas temos o exemplo da conciliação para dar como sendo a mais importante atuação da justiça em favor dos cidadãos. Não devemos desmerecer esse espírito fraternal que temos pela origem da nossa nacionalidade, representada pelos portugueses (o povo mais humilde da Europa), negros e índios, três correntes culturais voltadas para a fraternidade, não aquela proclamada muitas vezes por mera conveniência estatal, mas sim aquela do dia-a-dia das pessoas que aqui nascem e vivem. Nós somos o povo mais fraterno do planeta, sem sombra de dúvida.
Podemos ter certeza de que a conciliação não é uma solução inferior à consubstanciada nas sentenças dos juízes e acórdãos dos tribunais. Representa, ao contrário, um desfecho muito mais importante, pois aí, sim, resolvem-se as lides, encerram-se os problemas e, muitas vezes, apaziguam-se os ânimos. Maior é o juiz que, dentro da humildade que deve ter, dialoga por horas a fio com os advogados e as partes, numa atitude democrática e termina os processos por acordo das partes. Esse é mais vocacionado que aquele outro que está preocupado com sua brilhante erudição manifestada em sentenças ricas de citações de doutrina e jurisprudência mas que não enxergou os corações inseguros das partes batendo descompassados por detrás das falas dos seus advogados. Grande é o advogado que leva seus clientes às soluções conciliatórias, pois mostram que acima do seu interesse nos honorários coloca o interesse dos seus clientes, que carecem, não da luta interminável e desgastante contra seus adversários, mas das soluções verdadeiras e definitivas, que se representam no encerramento das lides, cujo caminhos se encurtam pela celebração dos acordos.
Lembro aqui três entusiastas da conciliação: Fátima Nancy Andrighi, Antonio Hélio Silva e Oldyr Mazocoli, a primeira que é a muito conhecida ministra do Superior Tribunal de Justiça, autora de vários artigos doutrinários incentivadores da conciliação, inclusive publicados no seu site na Internet, o segundo que é desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e criador dos juizados de conciliação e o terceiro que é juiz aposentado de Minas Gerais e que, quando juiz da 4ª vara cível de Juiz de Fora, realizava audiência de conciliação em todos os processos antes de determinar a citação dos réus.
Tenho, graças ao bom Deus, procurado nos processos de minha vara, incentivado a conciliação, designando audiências fora dos ritos, e, por força dessa prática, tenho conseguido muitíssimos acordos entre as partes, que saem da minha sala de audiências felizes e em paz.
Alguns dizem que o número de acordos não chega nem a 50% e que essa fase conciliatória pode atrasar o andamento dos processos, mas acredito que é mais importante conversar com as partes e advogados pessoalmente e procurarmos todos, numa grande mesa redonda, a solução para os problemas do que mantermo-nos todos distantes uns dos outros e sem encontrar a solução para as lides, contribuindo para atulhar os tribunais de recursos nos processos intermináveis.
Há quem diga que o juiz que procura conciliar as partes é simplesmente indolente e foge ao seu dever de sentenciar. Mas esquecem-se de que a finalidade da justiça é solucionar os problemas. Causa demorada é ruim para todos.
A propósito de processos que não terminam por acordo, lembro-me de pessoas que contraíram doenças graves (câncer, diabetes etc.) graças à tensão emocional decorrente de processos em que figuravam como partes. Acima das regras processuais, dos autos, das formalidades, encontram-se as pessoas que comparecem à sala de audiências esperando conseguir a paz.
Se, no nosso país, a tendência é para a fraternidade, a compreensão humana, a conciliação dentro dos processos, não é menos verdade que muitos pensam que o juiz não pode designar audiências de conciliação em qualquer fase dos processos. Se amam o acordo não amam menos o formalismo. Talvez amem mais a própria vaidade intelectual de que se ornamentam. Talvez pensem pouco nas pessoas que precisam das soluções.
Sendo mais heterodoxo neste ponto, acredito estar servindo melhor à causa das pessoas.
* Este artigo é dedicado a todos os operadores do direito que acreditam na conciliação.
Informações Sobre o Autor
Luiz Guilherme Marques
Juiz de Direito da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora – MG