Natália Ciriani J. de Araújo Freitas – Advogada. Pós-graduada em Processo Civil pela Universidade Anhanguera de Ribeirão Preto e Especialista em Direito Militar. Graduada pela Universidade de Uberaba. Endereço eletrônico: nataliaciriani@januarioadvocacia.com.br.
Resumo: O Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sessão realizada no dia 29.04.2020, por videoconferência, suspendeu a eficácia dos artigos 29 e 31 da Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020, que autoriza empregadores a adotarem medidas excepcionais em razão do estado de calamidade pública decorrente da pandemia do novo coronavírus (covid-19). Assim, passou-se a adotar o entendimento de que esses trabalhadores de atividades essenciais expostos ao risco, não necessitam comprovar o nexo causal com a atividade para fazer jus a qualquer amparo. A abordagem desse tema, tem como desígnio a aplicação do entendimento do Pretório Excelso com as atividades realizadas pelos militares das Forças Armadas, nessa época em que foi declarada o estado de calamidade pública pelo Decreto Legislativo nº 06, de 2020, bem como os direitos decorrentes desse enquadramento.
Palavras-chave: Covid-19. Doença ocupacional. Militares Forças Armadas. Reforma grau hierárquico imediato.
Abstract: The Plenary of the Supreme Federal Court, in a session held on April 29, 2020, by videoconference, decided to suspend the effectiveness of Articles 29 and 31 of Provisional Measure No. 927, of March 22, 2020, which authorizes employers to adopt exceptional measures due the state of public calamity resulting from the new coronavirus (covid-19) pandemic. Thus, it was adopted the understanding that these workers of essential activities exposed to risk, do not need to prove the causal link with the activity to be entitled to any protection. The approach to this theme is designed to apply the understanding of the Pretorium Excelso with the activities carried out by the military of the Armed Forces, at that time when the state of public calamity was declared by Legislative Decree No. 06, 2020, as well as the rights arising that framework.
Keywords: Covid-19. Occupational disease. Military Armed Forces. Immediate hierarchical degree reform.
Sumário: Introdução. 1. O entendimento do Supremo Tribunal Federal e a covid-19 como doença ocupacional. 2. O enquadramento legal pela contaminação da covid-19 e a aplicação do princípio constitucional da igualdade. 3. O direito à reforma ex-officio no grau hierárquico imediato. Conclusão. Referências.
Introdução
De acordo com as informações lançadas pelos veículos de comunicação, a primeira contaminação pelo vírus da covid-19 no Brasil foi em 26 de fevereiro de 2020. A partir daí, precisamente em 11.03.2020, devido a rápida disseminação do vírus pelo mundo, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou uma pandemia global de covid-19, e, com isso, uma série de medidas foram tomadas.
Dentre tais medidas para a contenção da dissipação do vírus da covid-19 está o fechamento do comércio, sendo permitida a abertura somente das atividades consideradas essenciais. Os trabalhadores incluídos nessa categoria e os que estão na linha de frente no combate a pandemia, por não terem opção de escolha, infelizmente são expostos ao risco diário.
Visando regulamentar a situação trabalhista desses profissionais durante o estado de calamidade pública, foi editada a Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020, que previa em seu art. 29, que os casos de contaminação pelo vírus da covid-19 somente seriam considerados doença ocupacional mediante a comprovação do nexo causal.
Tendo em vista a situação de perigo dessas pessoas que estão na linha de frente e as que exercem atividades essenciais, foram ajuizadas 07 (sete) Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI’s) contra a referida medida provisória, cujo o tema central foi a afronta aos direitos fundamentais dos trabalhadores.
Em razão de tal situação, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no dia 29.04.2020, em sessão realizada por vídeo conferência, suspendeu a eficácia do artigo 29, e, os casos de contaminação pela covid-19 passaram a ser considerados como doença ocupacional, independentemente de comprovação do nexo causal, exceto se houver prova de que a contaminação ocorreu fora do serviço.
Embora essa medida provisória regule somente as relações trabalhistas, o tema desse estudo é a aplicação do entendimento do Supremo Tribunal Federal aos militares das Forças Armadas, que, como qualquer cidadão que está atuando na linha de frente, coloca a própria vida em risco, bem como os direitos decorrentes da aplicação desse entendimento.
No dia 29.04.2020 (quarta-feira), o Egrégio Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu, por maioria, que é possível caracterizar a covid-19 como doença ocupacional sem que os trabalhadores tenham que comprovar o nexo de causalidade com o trabalho, afastando, assim, a eficácia do art. 29 da Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020 que assim dispunha, verbis:
“Medida Provisória nº 927, DE 22 de março de 2020
Dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), e dá outras providências.
(…)
Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal. ”
No momento delicado em que o país se encontra, exigir que a parte vulnerável comprove, com precisão, a origem da contaminação pelo novo coronavírus, é extremamente difícil, quiçá impossível. É o que se chama de “prova diabólica” e que, inclusive, é rechaçada pelo Código de Processo Civil, nos termos do §2º, do art. 373, verbis:
“Art. 373. O ônus da prova incumbe:
(…)
No caso dos militares, que também estão na linha de frente no combate à pandemia, tem o direito de ter aplicado o mesmo entendimento do Egrégio Supremo Tribunal Federal, que, embora tenha se manifestado sobre a inconstitucionalidade do art. 29 da Medida Provisória nº 927, que trata apenas das medidas trabalhistas, fundamentou seu posicionamento na justiça social.
De fato, exigir que a parte frágil da situação prove onde foi contaminado é cruel, até porque aqueles que estão se contaminando são aqueles que não possuem as mínimas condições financeiras de permanecerem em suas residências, em isolamento total, e, por isso, necessitam sair às ruas para colocar comida na mesa, bem como os que estão na linha de frente no combate à pandemia com a própria vida.
Aliás, foi esse o parecer do ministro Luiz Edson Fachin, quando proferiu o seu voto na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.342 ajuizada por partidos políticos e entidades sindicais, devido a incompatibilidade das medidas trabalhistas estabelecidas pela Medida Provisória n. 927, de 22.03.20, vejamos:
“A Justiça Social como vetor e fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, IV, da CRFB) positivado e espraiado pelas normas da Constituição de 1988 é a diretriz segura de que a valorização do trabalho humano objetiva assegurar a todos e todas uma existência digna (art. 170 da CRFB), bem como de que o primado do trabalho é a base da ordem social brasileira, tendo por objetivos o bem-estar e a justiça social (art. 193 da CRFB). ” (grifo nosso).
Enquanto a justiça tradicional é cega, a justiça social deve tirar a venda para ver a realidade e compensar as desigualdades que nela se produzem.
Desse modo, nada mais justo que aqueles militares que foram destacados para estarem na linha de frente no combate à pandemia, caso venham a se tornar incapacitados para o trabalho, em razão da contaminação pelo novo coronavírus, tenham o direito ao amparo do Estado, pois essa categoria não tem escolha e nem o direito de preservar sua saúde na luta diária pelo bem da população.
Portanto, a fim de evitar um tratamento desigual para aqueles que exercem a mesma função no combate à pandemia, idêntica abordagem deve ser dispensada as categorias.
No caso específico dos militares das Forças Armadas, caso esses militares que estão na linha de frente venham se tornar incapacitados definitivamente para o serviço militar, essa incapacidade deve ser enquadrada no inciso II, do art. 108, da Lei nº 6.880/80, ou seja, enfermidade contraída em campanha ou na manutenção da ordem pública.
Preservar a ordem pública, é trabalhar para evitar situações de conflito e desobediência à lei, preservando a ordem do Estado para manter uma convivência pacífica em sociedade. Na situação de calamidade em que nos encontramos, essa é a função que esses militares vêm desempenhando para evitar a rápida disseminação do novo coronavírus, como, por exemplo, a fiscalização do cumprimento de vários decretos que foram baixados recomendando o fechamento do comércio, outros, recomendando a abertura parcial, porém com uso de máscaras, distanciamento mínimo de 02 metros e disponibilização de álcool em gel para os consumidores.
Mas não é só. Além desse contato direto, eles ainda ajudam em várias linhas de frente, como na construção de hospitais, disponibilizam seu corpo clínico para ajudar no tratamento dos infectados, recebem e organizam os kits recebidos para a distribuição de cestas básicas, fornecem alimentos para os caminhoneiros que não tem como se alimentar, em razão dos restaurantes e bares se encontrarem fechados, fazem doação de sangue, transportam testes, vacinas e respiradores por todo o país, desinfetam vias e locais onde há grande circulação de passageiros, trabalham em pontos de triagem, na frente dos hospitais para ajudar os profissionais da saúde, além de contribuírem na produção de máscaras.
Portanto, aqueles militares que foram destacados para estarem na linha de frente atuando para manter a ordem pública, nada mais justo que caso venham a contrair a covid-19 e se tornem incapacitados definitivamente para o serviço militar, sejam tratados com todos os direitos decorrentes do inciso II do art. 108 da Lei nº 6.880/80 (Estatuto dos Militares), ou seja, “enfermidade contraída em campanha, ou na manutenção da ordem pública. ”
Mas por que o enquadramento no inciso acima e não por doença decorrente da prestação do serviço militar, nos termos do inciso IV do art. 108 da Lei nº 6.880/80?
O inciso IV do art. 108 da Lei nº 6.880/80 dispõe expressamente que:
“Lei nº 6.880, de 09 de dezembro de 1980
Dispõe sobre o Estatuto dos Militares
(…)
Art. 108. A incapacidade definitiva pode sobrevir em consequência de:
(…)
IV – doença, moléstia ou enfermidade adquirida em tempo de paz, com relação de causa e efeito a condições inerentes ao serviço; ”
Veja bem. O inciso IV dispõe sobre a enfermidade contraída com relação de causa e efeito a condições inerentes ao serviço.
Numa primeira leitura, poder-se-ia pensar que o combate das Forças Armadas na disseminação do novo coronavírus é condição inerente ao serviço, no entanto, o que o legislador quis demonstrar nesse inciso é que as condições inerentes ao serviço se referem as atividades tipicamente militares.
E quais seriam essas atividades?
No site do Exército Brasileiro, as características da profissão militar são bem definidas, sendo uma delas o vigor físico, isso porque:
“As atribuições que o militar desempenha, não só por ocasião de eventuais conflitos, para os quais deve estar sempre preparado, mas, também, no tempo de paz, exigem-lhe elevado nível de saúde física e mental. O militar é submetido, durante toda a sua carreira, a periódicos exames médicos e testes de aptidão física, que condicionam a sua permanência no serviço ativo. ”
Assim, conclui-se que a incapacidade do militar, seja ela física ou temporária, quando decorrente das atividades diárias do quartel, de sua função exercida, bem como dos testes físicos diários, que é condição para a permanência na carreira, ela deve ser enquadrada no inciso IV do art. 108 da Lei nº 6.880/80.
Além disso, se fosse enquadrar o militar incapacitado definitivamente em razão da contaminação pelo novo coronavírus no inciso IV do art. 108 da Lei nº 6.880/80, ter-se-ia que comprovar o nexo causal entre a incapacidade desse militar e a prestação do serviço militar, o que se frise, não é o entendimento adotado pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal.
No caso concreto, como a função dos militares no combate à pandemia do novo coronavírus é destinada a manutenção da ordem pública, o enquadramento correto é o inciso II do art. 108 da Lei nº 6.880/80.
Importante destacar ainda que embora o entendimento adotado pelo Pretório Excelso se refira apenas às medidas trabalhistas, pois é o que dispõe a Medida Provisória nº 927, de 22.03.2020, não se pode limitá-lo apenas aos trabalhadores civis, isso porque, adotar um parecer diferente para categorias que exercem a mesma função no combate a pandemia, é violar o princípio constitucional da igualdade.
Ora, se o princípio da igualdade pressupõe que as pessoas colocadas em situações diferentes sejam tratadas de forma desigual, pessoas colocadas em situações iguais devem ter o mesmo tratamento.
Para MELO (1993, p.10):
“A Lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo assimilado pelos sistemas normativos vigentes”.
BUENO (1958, p. 412), ao comentar tal princípio afirmava que:
“qualquer que seja a desigualdade natural ou casual dos indivíduos a todos os outros respeitos, há uma igualdade que jamais deve ser violada, e é a da lei, quer ela proteja, quer castigue, é a da justiça, que deve ser sempre uma, a mesma, e única para todos sem preferência, ou parcialidade alguma”.
Ressalte-se, ainda, que o tratamento desigual somente deve ser permitido em situações temporárias, e nunca definitivas, para corrigir situações discriminatórias infames até que se alcance a igualdade pretendida.
Permitir que critérios de desigualdade sejam exercidos por tempo indeterminado, é favorecer o surgimento de novas situações discriminatórias, senão vejamos o entendimento do Egrégio Supremo Tribunal Federal:
“Ementa: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.
I – Não contraria – ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.
II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade.
(…)
VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos.
VIII – Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente.
(ADPF 186, Relator (a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 17-10-2014 PUBLIC 20-10-2014).”
Ainda, de acordo com o ilustre administrativista Bandeira de Mello:
“a lei não pode tomar tempo ou data como fator de discriminação entre pessoas a fim de lhes dar tratamentos díspares, sem com isso pelejar à arca partida com o princípio da igualdade. O que pode tomar como elemento discriminador é o fato, é o acontecimento, transcorrido em certo tempo por ele delimitado.
Nem poderia ser de outro modo, pois as diferenças de tratamento só se justificam perante fatos e situações diferentes.
(…)
Se são iguais, não há como diferençá-los, sem desatender à cláusula da isonomia. Portanto, se a lei confere benefício a alguns que exerceram tais ou quais cargos, funções, atos, comportamentos, em passado próximo e os nega aos que os exerceram em passado mais remoto (ou vice-versa) estará delirando do preceito isonômico, a menos que existam, nos próprios atos ou fatos, elementos, circunstâncias, aspectos relevantes em si mesmos, que os hajam tornado distintos quando sucedidos em momentos diferentes. ”
Como se vê, a diferença de tratamento só se justifica perante situações diferentes. Nos casos dos militares temporários e os de carreira, a única diferença entre as categorias é a forma de ingresso, pois, os deveres são idênticos.
Aliás, tanto é assim, que o art. 142 da Constituição Federal de 1988 não faz qualquer diferenciação entre militar temporário ou de carreira, vejamos:
“CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988
(…)
CAPÍTULO II
DAS FORÇAS ARMADAS
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. ”
Enfim, como não há diferença entre as categorias em relação aos deveres e a Constituição veda, em situações idênticas, como é o caso, qualquer forma de discriminação, conclui-se que o enquadramento legal e justo para aqueles que se tornaram incapacitados para o serviço militar, em razão da contaminação pelo novo coronavírus, é o inciso II do art. 108 da Lei nº 6.880/80, ou seja, enfermidade adquirida em campanha ou na manutenção da ordem pública, pois esta independe da comprovação do nexo causal, como é o entendimento aplicado aos trabalhadores civis nas mesmas condições.
Tal entendimento deve ser aplicado em respeito ao princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana, insculpido no texto constitucional como garantias fundamentais e uma das bases de sustentação do regime democrático.
É sabido que as sequelas decorrentes da contaminação pelo vírus da covid-19 ainda é uma incógnita, contudo, a incapacidade definitiva para o serviço militar, em razão da contaminação por esse vírus não pode ser descartada, isso porque, muitos estudos ainda vêm sendo realizados sobre os danos que pode deixar no organismo humano.
No começo das pesquisas, o que mais se comentava era sobre as sequelas respiratórias, como a fibrose pulmonar. Com os avanços das pesquisas, foi descoberto que o vírus da covid-19 se trata de uma doença sistêmica, que causa distúrbios a vários órgãos.
Uma pesquisa realizada pelo site “O Globo” com vários especialistas na área, foi mostrado que:
“A Covid-19 é uma doença sistêmica. Passamos algumas semanas tratando-a como uma doença fundamentalmente respiratória, ligada a uma pneumonia viral, mas logo em seguida se viu o quanto a doença comprometia outros sistemas do corpo. A observação mostrou que havia, junto com ela, um comprometimento vascular e cardiovascular, levando com muita frequência à insuficiência renal, e também um comprometimento na coagulabilidade do sangue, caracterizando-se por um fenômeno de trombogênese, com tendência a trombose e a embolia. Além disso, foi percebida uma série de manifestações de natureza neurológica, como a perda do olfato e a perda do paladar. O fenômeno inflamatório é de tal ordem que pode causar até encefalite, que seria a inflamação no cérebro. ” (grifo nosso)
Tais complicações acima, de acordo com os estudos que vem sendo realizados, podem deixar sequelas definitivas naqueles que contraíram a doença, senão vejamos a continuação da pesquisa realizada pelo site “O Globo”:
“A infecção pelo virus Sars-CoV-2 é bastante nova e ainda desconhecida. Estamos aprendendo a cada dia, com dados novos que surgem muito rápido. Mas se trabalha com a possibilidade da ocorrência de sequelas em estudos de diferentes áreas. Estima-se que 81% das pessoas vão ter a forma leve da doença, sem indicação de danos permanentes aos órgãos. Já cerca de 19% vão ter a forma grave da Covid-19 e, desses, 5% podem apresentar um quadro bem crítico, evoluindo com choque e disfunção de múltiplos órgãos. Dependendo do tipo de dano causado, o paciente pode desenvolver disfunções definitivas. ” (grifo nosso).
Isto posto, como a função exercida pelos militares das Forças Armadas nesse momento de pandemia enquadra-se no inciso II do art. 108 da Lei nº 6.880/80, nada mais justo que, caso venham a se tornar incapacitados definitivamente para o serviço militar, em razão de sequelas definitivas adquiridas pela contaminação do novo coronavírus, tenham o direito a reforma ex-officio no grau hierárquico imediato, conforme determina o Estatuto dos Militares, verbis:
“Lei nº 6.880, de 09 de dezembro de 1980
Dispõe sobre o Estatuto dos Militares
(…)
Art. 108. A incapacidade definitiva pode sobrevir em consequência de:
(…)
II – enfermidade contraída em campanha ou na manutenção da ordem pública, ou enfermidade cuja causa eficiente decorra de uma dessas situações;
Art. 109. O militar de carreira julgado incapaz definitivamente para a atividade militar por uma das hipóteses previstas nos incisos I, II, III, IV e V do caput do art. 108 desta Lei será reformado com qualquer tempo de serviço. (Redação dada pela Lei nº 13.954, de 2019)
(…)
Art. 110. O militar da ativa ou da reserva remunerada, julgado incapaz definitivamente por um dos motivos constantes dos incisos I e II do art. 108, será reformado com a remuneração calculada com base no soldo correspondente ao grau hierárquico imediato ao que possuir ou que possuía na ativa, respectivamente. ”
A reforma no grau hierárquico imediato deve ser concedida nos termos acima, primeiro porque é o correto enquadramento legal da situação, e segundo, porque, independentemente se esse é o risco da profissão, é uma forma de compensar aqueles que foram obrigados a colocar a própria vida em risco para salvar a da população.
No caso dos militares temporários, ou seja, aqueles que não adquirem a estabilidade nas fileiras militares e são licenciados do serviço militar após 08 (oito) anos de prestação do serviço, não há alternativa senão a reforma nesse inciso, pois com as alterações promovidas no Estatuto dos Militares pela Lei nº 13.954, de 16.12.2019, se a incapacidade para o serviço militar for enquadrada em doença decorrente da prestação do serviço militar, ou seja, no inciso IV do art. 108 da Lei nº 6.880/80, a reforma só ocorrerá se foi julgado inválido, vejamos:
“Lei nº 6.880, de 09 de dezembro de 1980
Dispõe sobre o Estatuto dos Militares
(…) Art. 106. A reforma será aplicada ao militar que: (Redação dada pela Lei nº 13.954, de 2019)
(…)
II – se de carreira, for julgado incapaz, definitivamente, para o serviço ativo das Forças Armadas;
II-A. se temporário:
Dessa maneira, o militar temporário, mesmo que portador de sequela decorrente de doença ocupacional, será lançado no meio civil doente, sem condições para o trabalho, sem direito a reforma ou mesmo aposentadoria, já que não contribuiu para o INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social), em flagrante violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido no art. 5º, caput da carta Magna, verbis:
“Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
[…]
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(…)
III – a dignidade da pessoa humana; ”
E, ainda, o inciso III do art. 28 do Estatuto dos Militares (Lei nº 6.880/80), vejamos:
“Art. 28. O sentimento do dever, o pundonor militar e o decoro da classe impõem, a cada um dos integrantes das Forças Armadas, conduta moral e profissional irrepreensíveis, com a observância dos seguintes preceitos de ética militar:
(…)
III – respeitar a dignidade da pessoa humana; ”
Nesse sentido, PIOVESAN aduz que (2004, p. 92):
“É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. Consagra-se, assim, dignidade da pessoa humana como verdadeiro super princípio a orientar o Direito Internacional e o Interno. ” (grifo nosso).
Além do mais, é importante considerar que os militares temporários das Forças Armadas, atualmente correspondem a mais de 50% (cinquenta por cento) do efetivo total, são pessoas de origem humilde, de poucas instruções, e que, na sua maioria, ingressaram na carreira por meio do serviço militar obrigatório e permaneceram em razão dos reengajamentos que foram deferidos.
Saliente-se, ainda, que essa categoria é designada para fazer os serviços braçais que exigem demasiado esforço físico, e, diante das sequelas que o novo coronavírus pode deixar, especialmente as respiratórias, muito provavelmente não existirá atividade que possa realizar no meio civil.
CONCLUSÃO
A pesquisa teve como escopo a demonstração de que aos militares das Forças Armadas, por estarem na linha de frente no combate a pandemia, devem ser garantidos os mesmos direitos concedidos aos civis ou servidores públicos que exercem a mesma função.
É fato que a Medida Provisória nº 927, ao condicionar como doença ocupacional a contaminação pelo vírus da covid-19 somente nos casos de comprovado nexo causal com a atividade, aproveita-se da condição de vulnerabilidade daqueles que estão na linha de frente e não podem escolher ficar em casa com suas famílias. Se a eficácia do artigo 29 da referida medida fosse mantida, todos os trabalhadores civis seriam demasiadamente prejudicados, o que poderia se estender a outras categorias, como a dos servidores civis, e, quiçá, dos militares.
Como a eficácia do art. 29 da Medida Provisória 927, de 22.03.2020 foi suspensa, o mesmo entendimento deve ser estendido a outras categorias que atuam da mesma forma nos casos de combate a disseminação do vírus da covid-19.
A aplicação de um entendimento diverso do Supremo Tribunal Federal aos militares das Forças Armadas, deixará essa categoria jogada a própria sorte no meio civil, pois tornando-se incapacitado definitiva ou temporariamente para as atividades laborais, o militar temporário das Forças Armadas, que são a maioria do efetivo, não terá direito a reforma ou reintegração às fileiras militares, para fins de tratamento médico e soldo até a recuperação do seu estado de saúde, em razão das alterações promovidas no Estatuto dos Militares pela Lei nº 13.954, de 16.12.2019.
Tal situação viola flagrantemente o art. 28 do próprio Estatuto dos Militares (Lei nº 6.880/80), que trata do respeito à dignidade da pessoa humana, a Constituição Federal de 1988, e, ainda, o princípio da igualdade.
Mediante exposto, como medida de inteira justiça, o mesmo tratamento deve ser dispensado a todas as categorias que enfrentam com a própria vida essa situação de calamidade declarada em que nos encontramos, para preservar a população.
REFERÊNCIAS
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