A crença na norma fundamental e a violência simbólica

Resumo: O estudo busca apresentar algumas reflexões em torno do dogma da validade do sistema por meio da pressuposta existência de uma norma fundamental, presente na tradição jurídica e de como a violência simbólica pode estar presente neste discurso que vem sendo repetido com aspecto de verdade absoluta, impondo símbolos e significações para uma coletividade, que, em um estado semelhante de um anestesiado, deixou de exercitar o juízo crítico ao que está sendo posto como verdadeiro, legítimo e etc.

Palavras-chaves: teoria pura do direito, norma fundamental, violência simbólica.

Abstract: The study seeks to present some reflections on the dogma of the validity of the system through the presupposed existence of a fundamental norm, present in the legal tradition and of how the symbolic violence can be present in this discourse that has been repeated with aspect of absolute truth, imposing symbols, and meanings to a collectivity, which, in a similar state of an anesthetized, has ceased to exercise the critical judgment of what is being posited as true, legitimate, and so on.

Keywords: pure theory of law, fundamental norm, symbolic violence

Sumário: Introdução. 1. A Teoria Pura do Direito e a Norma Fundamental. 2. A Norma Fundamental e o Problema da Cadeia Explicativa de Aristóteles. 3. A Norma Fundamental na perspectiva do Princípio da Autoinclusividade. 4. A Crença na existência da Norma Fundamental: O Papel Místico. 5. A Relação da Norma Fundamental com a Violência Simbólica. Conclusão. Referências Bibliográficas

INTRODUÇÃO

De acordo com a Teoria Pura do Direito a norma fundamental é pressuposta, uma vez que o rigor lógico formal a exige como condição para fechar o sistema.

Ainda que esta afirmação tenha sido desenvolvida dentro de uma cadeia explicativa lógica formal, é importante que se exerça uma reflexão sobre o seu caráter absoluto: se ela é passível de uma nova compreensão quando confrontada com outros elementos e circunstâncias.

A violência simbólica, por sua vez, é fortalecida na medida em que deixamos de investir em reflexões sobre a cadeia explicativa de determinado fenômeno; quando não há preocupação de revisar, confrontar com novas ideias ou até mesmo realizar a desconstrução do sentido para a confirmação do significado apresentado para a coletividade como verdadeiro.

É por esta razão, que o questionamento a respeito da existência da norma fundamental, e consequentemente sua a sua função de fechamento do sistema, deve ser objeto de constante estudo e debate, de modo que, na hipótese de ser comprovada a sua existência, no mínimo ela seja valorizada, assim como seja possível dizer o que ela é, qual é a sua justificativa e qual é a razão de seguirmos esse modelo teórico e apoia-lo.

Deste modo, o tema que é abordado neste trabalho busca provocar a reflexão do leitor, e claro, sem pretender promover um pronunciamento final ou solução última sobre as questões apresentadas.

1. A Teoria Pura do Direito e a Norma Fundamental

A necessidade lógica da norma fundamental na Teoria Pura do Direito, para desempenhar a função de fechamento do sistema hierarquizado de normas, já foi duramente criticada. Norberto Bobbio, realizando a análise das diversas críticas lançadas, compreendeu que o fechamento lógico apresentado por Hans Kelsen, por meio da norma fundamental, é de fato um expediente engenhoso.

A Teoria Pura do Direito propõe a compreensão de que a norma fundamental, aparentemente, foi concebida como um fato bruto; um fato que existe em si e por si próprio, para que deste modo, seja assegurada a coerência lógica da teoria pura, esta que não admite a incidência de circunstâncias externas ao sistema como condição para a existência.

Diferentemente da tradição encontrada na época da elaboração da teoria, Hans Kelsen optou pela inclusão da norma fundamental no topo da estrutura do sistema ao invés do poder. Obviamente, ele procurou desvincular o fechamento da teoria pura de uma causa metafísica.

A partir desta construção teórica, o poder passou a ser compreendido como algo que compõe o sistema – assim como as outras normas – e não mais como elemento inaugural do sistema, ele é legitimado a partir da norma fundamental ao invés de legitimar a existência da norma fundamental.

O poder, a partir desta perspectiva, não encontra mais seu fundamento na metafísica, o que se fosse admitido corromperia a construção lógica da teoria pura. A nova realidade apresentada passa a ser: o poder é algo que é exercido, e, que a condição de sua existência e exercício dentro do sistema é a legitimidade conferida pela norma fundamental. Deste modo, a o debate sobre a existência do poder, na teoria pura, não se socorre de circunstâncias externas do sistema, pois conclui que seu fundamento está na norma fundamental, que dá legitimidade, autoriza, permite e delega o seu exercício.

O que se evidencia, portanto, é que a Teoria Pura do Direito possibilitou a reorientação do entendimento sobre a relação da norma e do poder. A norma assume uma posição de destaque dentro do sistema, como condição inicial e fundamental para o exercício do poder, e, obviamente, o poder é deslocando como consequência necessária e posterior à norma fundamental; assume uma perspectiva dentro do sistema de poder-função, qual seja: a produção de outras normas jurídicas.

Não é por outra razão que Celeste defendeu que, “observando os caminhos traçados pela teoria do direto positivo, chega-se à conclusão de que o que existe é ao mesmo tempo uma teoria do direito como norma e do direito como poder”. Este é um ponto essencial para compreensão da Teoria Pura do Direito. Observar que o poder não é exercido sobre a norma fundamental, mas sim, que é a norma fundamental quem exerce sobre o poder um efeito de normalização – uma conformação da necessidade do exercício do poder – e que permite o exercício legítimo do poder para a produção de outras normas, motivo pelo qual, neste esquema, a produção de normas revela-se um ato de poder.

O poder para a produção de outras normas é fundamental, pois é o nexo do sistema que possui um ordenamento jurídico que regula a sua própria produção, ou seja, sem o exercício do poder não haveria a produção de normas, e, consequentemente, o sistema não haveria como produzir suas próprias normas, o que descaracterizaria o status dinâmico.

Nesta perspectiva, para que uma norma seja jurídica ela deve ser produzida em conformidade com outra norma, ou seja, deve existir um ato de poder legítimo que faça uma escolha, e a partir dela, idealize um comando normalizador. Concomitantemente ao ato de poder, deve-se atentar para que ele seja exercido na forma regulada por uma norma que regula a produção da norma jurídica, assim como se a sua escolha também esteja em conformidade com aquela.

É neste ponto que se demonstra pertinente a retomada do estudo em relação a norma fundamental. Ela é uma norma pressuposta, com função lógica formal para assegurar o fechamento do sistema proposto por Kelsen. Logo, a teoria pura propõe o fechamento do sistema sem qualquer demonstração de qual norma decorre a legitimidade da norma fundamental, o que em tese, obscurece a cadeia explicativa sobre o fechamento do sistema, este que exige que determinada norma seja regulada por outra, senão fosse a compreensão de que a norma fundamental é um fato bruto.

2. A Norma Fundamental e o Problema da Cadeia Explicativa de Aristóteles

Entre as diversas histórias que são contadas entre filósofos, uma em especial é narrada como a lenda de Bertrand Russel. Reza a lenda que o filósofo fazia uma palestra sobre cosmologia quando foi interrompido por uma senhora na plateia dizendo: “o senhor só está dizendo bobagens. O Mundo na verdade é plano e é sustentado por um gigantesco elefante de pé nas costas de uma tartaruga”. Bertrand, procurando compreender o que a senhora estava tentando demonstrar, perguntou o que poderia estar dando sustentação à tartaruga que equilibrava o gigantesco elefante e o Mundo plano. A resposta obtida foi em tom direto: “São tartarugas até lá embaixo”.

Partindo da metáfora apresentada, Kelsen aparenta ter observando o risco de tornar-se um adepto de uma solução do tipo “são tartarugas até lá embaixo”; ou melhor expressando, “são normas até lá em cima”, motivo pelo qual se preocupou com uma construção lógica em que afirmasse que a norma fundamental carecia de qualquer explicação própria.

O fato de não ser possível encerrar a investigação em busca de uma explicação sobre qual é a norma que regula a norma fundamental, fez com que o autor da Teoria Pura do Direito utiliza-se de um recurso lógico formal para dar coerência à teoria pura. Kelsen, portanto, utilizou-se da presunção de que a legitimidade da norma fundamental carece de qualquer explicação própria; bastando ela para que o sistema encontre o seu fechamento lógico, não sendo possível encontrar no plano metafísico qualquer explicação que fundamente a norma fundamental, sob pena da teoria admitir seu fundamento em uma circunstância externa, o que romperia com a pureza teórica pretendida.

É por meio deste expediente lógico formal que Kelsen finaliza a busca por um princípio fundamental, anterior a própria norma fundamental, que explique absolutamente todo o sistema, e mais, inclusive que seja capaz de explicar a própria norma estabelecida por ele, qual seja: a norma fundamental.

O que se faz necessário admitir, diante desta exposição, é que ao estabelecer o fechamento do sistema pressupondo a existência de uma norma fundamental, e de que ela é o ponto de supremacia dentro do sistema, Kelsen sabia que no fim da investigação sobre a cadeia explicativa sobre a legitimidade da norma fundamental não existiria uma “supertartaruga” autossustentável dando suporte para ela, o que inviabilizaria a compreensão lógica da legitimidade da norma fundamental como ponto de sustentação de todo o sistema, do mesmo que estaria prejudicada a compreensão de pureza da teoria diante da necessidade de um elemento externo – com grande probabilidade de ser metafísico- para tornar justificável a legitimidade da norma fundamental.

 Desse ponto, ao menos o que se percebe, é que Hans Kelsen ao desenvolver sua teoria pura se deparou com o mesmo problema enfrentado por Aristóteles, concebido como o problema da cadeia explicativa nas questões lógicas, que se faz presente na obra Analíticos Posteriores. Neste trabalho que compõe o Organon, é descrito três caminhos que podem ser encontrados diante de uma cadeia de explicativa: i) andar em círculos; ii) seguir para sempre; iii) número finitos de passo.

Na primeira hipótese, a cadeia explicativa pode andar em círculo: A é verdadeiro em razão de B, e B é verdadeiro em razão de A. Já no segundo caminho, a cadeia explicativa pode encontrar uma sucessão ao infinito: A1 é verdade porque A2 é verdadeiro, assim como A2 só é verdadeiro porque A3 é verdadeiro e assim por diante. A última opção que se constata como caminho para a cadeia explicativa é a que termina com um número finito de passos: A1 é verdade porque A2 é verdadeiro, assim como A2 só é verdadeiro porque A3 é verdadeiro e assim por diante, até que um derradeiro X da verdade.

O primeiro caminho que pode ser encontrado, circularidade, não se demonstra como a melhor opção para explicar logicamente um fenômeno, uma vez que representa uma maneira de afirmar que A é por causa de A, como uma causa que explica a si mesma. Já o segundo caminho, Aristóteles observou que o interminável retrocesso não é capaz de proporcionar ao conhecimento uma base explicativa final. O terceiro caminho apresentado, levanta o questionamento sobre que tipo de verdade pode ser o X, e de que modo que é possível cogitar que ele poderia ser um fato bruto, carecendo de qualquer explicação própria.

Para Aristóteles, o terceiro caminho possível para a cadeia explicativa é a única maneira satisfatória de chegar ao fim de uma cadeia de explicações, ou seja, é a única forma lógica que possibilita enfrentar o problema da circularidade, do retrocesso ao infinito ou qualquer outra explicação que se torne um penduricalho injustificável.

Quando se analisa a afirmação de que a norma fundamental possui a função de fechamento lógico do sistema e confronta-se ela com a solução lógica do problema da cadeia explicativa apresentada por Aristóteles, é possível identificar uma estreita semelhança entre a solução proposta por Kelsen – para o fechamento lógico da teoria pura – com o terceiro caminho apresentado por Aristóteles como solução lógica para o problema da cadeia explicativa.

Neste cenário, a sabedoria nos versos de Mario Quintana[1] parece explicar com maior profundidade o que representa essa identidade entre os autores, na solução lógica na cadeia explicativa: “A mente humana sempre as mesmas voltas dá (…) Tolice alguma nos ocorrerá (…) Que não a tenha dito um sábio grego outrora (…).

Ao final, o que nos resta melhor compreender é se realmente é possível uma verdade logicamente necessária – tal como a norma fundamental – de fato explicar alguma coisa. Como poderia uma verdade logicamente necessária explicar a existência da norma fundamental que se demonstra logicamente contingente?

3. A Norma Fundamental na perspectiva do Princípio da Autoinclusividade

Ainda que Aristóteles tenha concluído que a solução mais plausível para o problema da cadeia explicativa seja o terceiro caminho apresentado, de existir um fato bruto que carece de qualquer explicação própria, deve-se ponderar que: se a existência da norma fundamental pode ser deduzida de uma verdade logicamente necessária, ela também é logicamente necessária. Mas não é. Muito embora a teoria pura do direito reconheça a existência da norma fundamental, ela é hipotética, o que, por consequência lógica, deixa espaço para a conclusão de que ela não existe. A inexistência da norma fundamental não é possível de ser descartada como possibilidade lógica.

A busca por uma compreensão total sobre o que torna legítima a norma fundamental, novamente nos coloca diante da incompletude da cadeia explicativa, levando-nos de volta para os três caminhos apontados por Aristóteles: circularidade, retrocesso ao infinito e fato bruto.

Dos três caminhos apresentados, tanto para Aristóteles quanto para Kelsen, pressupor a existência de um fato bruto demonstrou-se a melhor opção por ser ela passível de menor objeção. Mas. Existiria outra forma para fazer com que o fato bruto parecesse menos arbitrário no final da cadeia explicativo? Uma mitigação do “bruto”? É possível encontrar um caminho para demonstrar uma verdade que explica a si mesma? Como vencer o fenômeno detectado desde Aristóteles até os filósofos contemporâneos de que a cadeia explicativa é irreflexiva?

Parte-se então, a partir destes questionamentos, da reflexão proposta por Robert Nozick sobre a possibilidade lógica de deduzir uma verdade dela mesmo.

Antes, expõe-se um pouco sobre o Nozick. Ele incontestavelmente influenciou e ainda instiga a inúmeras reflexões na seara da filosofia política contemporânea. Apesar de suas reflexões não terem sido amplamente divulgada, se comparada com outros autores do liberalismo como John Rawls e Ronald Dworkin, certamente sua relevância é tão notável e de essencial contribuição para a revisão crítica de “verdades”, por exemplo, do surgimento natural do Estado e da inevitável interferência estatal na vida dos indivíduos.

Para Robert Nozick é possível deduzir uma verdade dela mesmo por meio da seguinte formulação: Qualquer lei que tenha a característica C é verdadeira. Deste modo, vamos considerar a norma fundamental como P. Assim, P explica por que as outras normas são verdadeiras: porque elas têm características C. Agora, permite-se imaginar que P também se revele dotado de característica C. Nesta situação, a verdade seria que P logicamente seria derivada do próprio P. Portanto, P é autoinclusivo, conforme definição atribuída por Robert Nozick[2].

Na prática podemos explorar a formulação de Nozick da seguinte maneira: A norma fundamental explica porque as outras normas são verdadeiras, porque elas possuem como característica o exercício do poder e a eficácia contínua. A norma fundamental também possui como característica o exercício do poder e a eficácia contínua, uma vez que existe uma continua obediência do sistema. Logo, a norma fundamental é verdadeira e logicamente derivada de si própria.

Mesmo realizando um esforço para demonstrar a compreensão lógica da existência da norma fundamental que sustenta o sistema, é necessário reconhecer que a autoinclusividade é uma maneira “muito estranha” de explicar a existência da algo por si mesmo. Contudo, não se pode negar que ela é uma alternativa que não parece tão má assim em relação às explicações da circularidade, do retrocesso ao infinito e do fato bruto. A autoinclusividade não é capaz de eliminar por si só todas as pendências explicativas em torno da norma fundamenta; não é uma garantia de que norma fundamental seja suprema e definitiva, porém, pode ao menos ser uma indicação de que essas qualidades existem.

Em última instância, uma atenta reflexão permite que seja observado que a autoinclusividade possui uma relação com teoria formulada por H.L.A Hart. Na sua obra, O Conceito de Direito, ele afirma que a regra de reconhecimento – com semelhante função da norma fundamental – é uma questão de fato; de modo que sua existência é demonstrada por meio da sua aplicação fática. Em relação a regra de reconhecimento não se questiona a validade, mas sim a sua utilização (eficácia); portanto, sendo possível identificar a construção lógica no sentido de que “qualquer norma que seja utilizada para o fim que se destina é existente; a regra de reconhecimento é utilizada para o fim que se destina; portanto ela existe”. Ao menos, a regra de reconhecimento, seguindo o pressuposto lógico da autoinclusividade, evita na cadeia normativa a circularidade, do retrocesso ao infinito e do fato bruto.

Ao final, mesmo que se tenha utilizado de alternativas lógicas para explicar a norma fundamental, a persistência do princípio omnivalente da razão suficiente – válido para todas as formas do saber – faz com que algo que invoca a si mesmo seja uma afronta à cadeia de explicações, e, certamente, ao desenvolvimento do conhecimento. Diante do princípio da razão suficiente, não é possível se esquivar do que realmente está em jogo: a norma fundamental, no fim de toda cadeia de explicação, não é apenas algo místico?

4. A Crença na existência da Norma Fundamental: O Papel Místico

Existente ou não, porém, existe algo de especial na norma fundamental, que é a sua função lógica formal, para dar fechamento ao sistema, é eficaz e proporciona uma dinâmica manutenção do ordenamento jurídico positivo. Guardadas as devidas proporções, a norma fundamental desfruta da crença de que existe.

E, dando sequência ao tema crer na existência da norma fundamental, é possível raciocinar da seguinte maneira: supondo que a norma fundamental seja algo concebido apenas por meio da crença de que existe; do imaginário. Um algo que pertence ao reino das “não coisas” – como afirmava Santo Agostinho (De Magistro).

Neste cenário apresentado, seria então possível conceber que existe outra norma com igual característica a da norma fundamental; em que os indivíduos também acreditem, por exemplo uma Constituição escrita. E, como do ponto de vista das explicações lógicas é mais importante existir na realidade do que só na imaginação, essa Constituição seria algo mais relevante do que a norma fundamental que sustenta o sistema – o que de certo seria um absurdo para a dogmática jurídica. Logo, a única solução que se poderia admitir é e que a não existência da norma fundamental apresenta-se como uma impossibilidade lógica: ela existe.

Admitir a existência da norma fundamental por meio desta linha de pensamento, é reconhecer a validade de um argumento semelhante ao ontológico formulando por Santo Anselmo no século XI; o que significa que o pressuposto lógico para explicar a existência da norma fundamental não seria tão diferente do pressuposto lógico invocado por Santo Anselmo para explicar a existência de Deus.

Este raciocínio lógico, compreendido como válido na filosofia, também pode ser observado nas formulações de Descarte e de Leibniz, este que apenas retocou a teoria da cadeia explicativa para concluir como algo possível.

Esta relação com a crença de que a norma fundamental existe, reaviva a especulação do aspecto místico em torno dela. Sobre o tema, já foi expressado por Montagne uma crítica ao fundamento místico das coisas, adotando o entendimento de que na verdade os indivíduos possuem “féde que estão sob uma autoridade, e, por essa razão, é aceitam um fato como a existência presumida de uma nora fundamental, de onde decorre a autoridade.

Este ponto de vista, que em até determinado limite desconstrói o místico em volta da norma fundamental, se alinha com a importante lição deixada por Jacques Derrida, na obra Força de Lei, e que nos ajuda a reforçar a compreensão de que “a autoridade das leis repousa apenas no crédito que lhes concedemos. Nelas acreditamos, eis seu único fundamento”.

A partir do pensamento provocativo de Derrida, têm-se que a construção lógica formal – que pressupõe a existência da norma fundamental – encontra o seu limite no ponto em que ela se revela apenas uma crença; o que permite o exercício de uma interessante reflexão sobre o vetor do Direito Natural e a norma fundamental que sustenta o sistema no Direito Positivo, quando empregado o verbo crer para justificar a existência de algo maior; que é capaz dar legitimidade à autoridade que produzirá normas jurídicas. Na perspectiva do Direito Positivo, o discurso encontra ali o seu limite – na norma fundamental –, nele mesmo, em seu próprio poder performativo, semelhantemente ao Direito Natural que encontra o limite do seu discurso do divino, este limitado em si mesmo; apresentando-se também como causa sui.

No final de tudo, lançando-se em uma profunda reflexão, as diversas voltas teóricas e artifícios lógicos lançados, para explicar o fechamento lógico formal do sistema, o que se revela é o fato de que a crença na existência da norma fundamental nada mais é do que uma generalização temporal de motivos, ou seja, algo que ao longo do tempo continua-se acreditando na existência; porque sempre foi assim ensinado, e, por uma questão dogmática, continua-se a compreender de que haverá sempre de ser assim.

5. A Relação da Norma Fundamental com a Violência Simbólica

A questão provocada no parágrafo anterior nos serve de referência para refletir sobre a aceitação do sentido dado à norma fundamental, de modo que, atualmente, o resultado sobre os destinatários é a aceitação do sentido que é afirmado; de que muito embora seja apenas pressuposta, ela é capaz de validar um sistema de hierarquias e de dar legitimidade ao exercício do poder também na forma hierarquizada.

Em uma das passagens da obra Poder Jurídico e Violência Simbólica, Maria Celeste cita uma interessante reflexão apresentada por Tércio Sampaio Ferraz Jr, sobre o texto infantil Alice no País das Maravilhas, em que a rainha de Copas insiste no sentido diverso que está dando para uma mesa, chamando-a de cadeira, até que em determinado ponto Alice responde: “mas isto não é uma cadeira e todo mundo sabe que é uma mesa”. Ao que a rainha responde: “pois eu chamo de cadeira e isto é uma cadeira”.

É claro que dentro da dogmática jurídica não encontraremos uma afirmação truculenta como a da rainha de Copas. Entretanto, existe uma perspectiva no Direito de que as coisas sempre foram assim e que carecem de uma explicação sobre o verdadeiro sentido, seja em relação a própria existência ou do valor que determinado instituto representa.

Isto demonstra, ao menos em tese, que a construção da crença de que há uma norma fundamental que sustenta todo o sistema está relacionada com a capacidade da dogmática jurídica de impor a vigência dessa significação; como existente e logicamente admissível para o fechamento do sistema.

Em última análise, é por meio da violência simbólica que se promove a sustentação do sistema que está posto, assim como toda sua cadeia explicativa do poder exercido sobre a coletividade e privilégios que são tutelados por meio das normas produzidas a partir da delegação do poder, sob o discurso de ser uma condição do para o seu funcionamento prático e de uma estrutura como o Estado Democrático de Direito.

A violência simbólica, na sua significação, não propõe um ato extremo que chegue ao limite de uma imposição de violência física. Sua funcionalidade, como observou-se, se dá por meio da capacidade de impor um significado, que no fundo é um ato de poder sobre o todo, se assemelhando a um anestésico que dopa a capacidade reflexiva da coletividade de questionar a legitimidade do significado de algo, tal como: por que a convivência social exige submissão a um poder? E nesta submissão “necessária”, quanto há de voluntário no processo de legitimação do poder? Existe uma forma de eliminar o sistema hierarquizado entrelaçado com o poder sem gerar o caos?

A norma fundamental que dá fechamento ao sistema é pressuposta, do mesmo modo que nosso entendimento pressupõe que todos os significados apresentados representam a verdadeira essência das coisas. A vida coletiva estruturada a partir de algo pressuposto não se distancia muito de uma vida pressupondo que as sombras ao fundo da caverna, da alegoria de Platão, sejam verdadeiras. Neste ponto, parece que arte é capaz de nos ajudar a entender um pouco mais sobre esse processo, no refrão da música, Crônica assim é destacado: “(…) você que tem ideias tão modernas é o mesmo homem que vivia nas cavernas”.

Apostar na anomia coletiva, na retirada da consciência do processo de construção dos significados das coisas que interagem no mundo com o homem, parecer ser a condição de subsistência da violência simbólica. Na certeza de que conseguirá impor significações, generalização temporal de motivos ao ponto de que a coletividade esteja anestesiada e satisfeita de que é muito melhor supor que o sistema funciona assim, que as coisas sempre foram assim ou que não é possível encontrar uma melhor solução; do que pressupor que o poder exercido é legítimo porque existe uma norma fundamental que o delegou para ser exercido.

Não se está pretendendo descredenciar o trabalho e teoria produzida por Hans Kelsen, até mesmo porque não é possível acreditar que ele tenha desenvolvido o rigorismo metodológico em busca da pureza do Direito com vistas a promover a violência simbólica. Do mesmo modo que Santos Dumont projetou o avião, e diversos físicos se dedicaram ao estudo da fissão nucelar, sem almejar que todo o desenvolvimento servisse para bombardear Hiroshima e Nagasaki e matar milhares de pessoas, o pressuposto lógico formal de Kelsen, em tese, foi sendo utilizado para fundamentar outras propostas distantes daquela idealizada.

A crítica em si repousa sobre a anomia coletiva que permite que o Direito também seja uma fonte de símbolos e significados que auxiliam a perpetuação da contemplação da servidão, de ficções tomadas como verdadeiras, ao invés de ser fonte de inspiração para retomarmos o significado do que é liberdade e vetor da construção de uma sociedade em que seja possível a entrega da menor fatia possível desta liberdade.

Conclusão

Existe um fato Histórico que ocorreu na Romênia em 1989, ocasião em que o ditador querendo dar uma demonstração de força organizou um evento de enorme proporção para discursar. Toda a população estava obrigada a sintonizar os televisores e rádios nas estações que transmitiriam o discurso. O ditador discursou com toda a imponência que sua posição proporcionava. Inesperadamente, uma pessoa entre aquelas que ali estavam presentes começou a vaiar. A possibilidade de negar o significado do discurso proposto pelo ditador contagiou as demais oitenta mil pessoas, e, uma vez negado o significado do discurso o símbolo caiu; o ditador não conseguiu mais controlar o povo romeno e a população desmistificando o símbolo daquele regime odioso decidiu colocar um fim no sistema que imperava.

É provável que para provocar uma fissura no sistema, que proporciona uma série de privilégios para aqueles que auxiliam com seus braços e olhos a manutenção de uma corrente que está pendurada em algo inexistente, exigirá muito mais do que uma vaia ao discurso promovido pelas instituições que simbolizam o poder.

Mesmo assim, é necessário fazer coro junto com aqueles que buscam novas perspectivas para a humanidade, e, que reconhecem que os significados dos símbolos que estamos automatizados a aceitar como certos ou verdadeiros não são tão claros quanto imaginávamos.

E se existir outras respostas, outros significados e símbolos?

De certo, para que se descubra, teremos que romper com satisfação de que é muito melhor supor que o sistema funciona assim mesmo, que as coisas sempre foram assim ou que não é possível encontrar uma melhor solução. É necessário ser um homem moderno e com ideias diferentes daqueles que vivam na caverna!

Os dogmas precisam ser questionados; a norma fundamental, a democracia, o Estado de Direito, o Direito, a Justiça, entre outros que circulam nosso dia-a-dia e funcionam como vento na vela do veleiro, impulsionando-o para uma direção em um mar de possibilidades. Questionar não para se associar a defesa de uma tese oposta, mas para encontrar a razão pela qual devemos seguir neste caminho determinado ou modelo proposto, bem como para apoiar; se for o caso.

O distanciamento das sombras da alegoria da caverna exige a insatisfação do indivíduo com aquilo que está posto como verdade última. E, mesmo quando a verdade última se apresentar, o questionamento deve persistir entre as gerações que se sucederem ao descobrimento dela, de modo que no mínimo ela seja valorizada, assim como seja possível dizer qual ela é e qual é a sua justificativa; refutando a atitude, comparável a covardia, de retirar a própria consciência sobre o processo de dar sentido ao mundo, limitando-se à crença de que tudo é como é, porque sempre foi assim e não há nada que possa ser feito para mudar.

Conclui-se esperando ter alcançado o objetivo de destacar a importância de serem realizadas constantes reflexões sobre os dogmas que constituem a tradição jurídica e de como a violência simbólica pode estar presente nos mais diversos discursos, impondo símbolos e significações para uma coletividade, que em um estado semelhante de um anestesiado não exerce qualquer oposição ao que é posto como verdadeiro, legítimo e etc.
 

 

Referências
ANSELMO, Santo. The Ontolological Argument. Nova York: Achor Books.
ARISTÓTELES. Órganon. São Paulo: Edipro, 2010.
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. 6. ed. São Paulo: Edipro, 2016
GONZAGA, Alvaro de Azevedo et al. Vade Mecum Doutrina Humanístico. 4. ed. São Paulo: Método, 2014.
HART, H.L.A. O Conceito de Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
KELSEN, Hans. O problema da justiça. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 149.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Tradução de João Baptista Machado.
LABOÉTIE, Étienne de. Discurso Sobre a Servidão Voluntária. São Paulo: Edipro, 2017.
NOZICK, Robert. Philosophical Explanations. Cambrige: Harvard University Press.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 749 p.
RUSSELL, Bertrand. História do Pensamento Ocidental. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008.
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. Violência Simbólica e Poder Jurídico. 1984. 279 f. Tese (Doutorado) – Curso de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1984.
Notas
[1] Quintana, Mario. Do exercício da filosofia.
[2] “A autoinclusividade é a maneira como um princípio volta-se sobre si mesmo, submete-se, aplica-se a si mesmo, refere-se a si mesmo”.

Informações Sobre o Autor

Diego Dall’ Agnol Maia

Advogado. Mestrando em Filosofia do Direito. Especialista em Direito Público


Equipe Âmbito Jurídico

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