A criança e o Direito à saúde: Conflitos judiciais com o Estado

Resumo: Este artigo traz uma reflexão acerca da relação entre o direito à saúde, protegido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, e sua aplicabilidade advinda de litígios judiciais entre a criança e seus responsáveis e a entidade estatal. A saúde tem sido brutalmente negligenciada, negando às crianças e adolescentes não só esta garantia constitucional, mas também a certeza de um estado que promova o crescimento destes a quem o ECA sabiamente denomina “pessoa em desenvolvimento”. Tem-se buscado no poder judiciário meios para realizar esse direito, materializando em sentenças e acórdãos, uma realidade outrora distante. Dessa forma medicamentos e tratamentos de alto custo são realizados. Finalmente, procura-se retratar a legislação que dispõe sobre o direito à saúde priorizado às crianças e adolescentes, sua aplicação e os embates judiciais que buscam solucionar a discrepância entre estes dois pólos. Este trabalho foi orientado pela Profª Maitê Damé Teixeira Lemos.


Palavras-chave: ECA. Direito. Saúde. Jurisprudência. Criança e adolescência.


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Resumen: En este artículo se reflexiona sobre la relación entre el derecho a la salud, protegidos por la Niñez y la Adolescencia, y su aplicabilidad a las controversias jurídicas que surjan entre los niños y sus padres y la entidad estatal. La salud ha sido gravemente desatendidas por negar a los niños y adolescentes no sólo esta garantía constitucional, sino también la certeza de un Estado que promueve el crecimiento de aquellos a quienes el ECA sabiamente llama “la persona en desarrollo”. Se han buscado en el Poder Judicial medios para hacer realidad este derecho, se materialice en las sentencias y resoluciones judiciales, una vez que una realidad distante. Así, las drogas y tratamientos de alto costo se llevan a cabo. Por último, intenta retratar a la legislación que establece el derecho a la salud prioridad a los niños, niñas y adolescentes, su aplicación y el tribunal batallas tratar de resolver la discrepancia entre estos dos polos.


Palabras-clave: ECA. Derecho. Salud. Decisiones. Los niños y adolescentes.


Introdução


A Constituição Federal se encarrega, logo no início de seus artigos, de elencar todos os direitos sociais a serem protegidos a todos de forma indistinta. Esta garantia constitucional expressa, em seu curto texto, o resultado de toda busca de dignidade, no sentido mais amplo da palavra, que os cidadãos esperam de um Estado Democrático de Direito.


“São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (CF, art. 6º)


Esse rol de direitos demonstra a moderna formação do Estado, cujo maior empenho deve ser a proteção e viabilização destas garantias. Apenas apresentar o direito e não proporcionar a todos e a cada um o acesso é ignorar toda luta que, historicamente se empreendeu no sentido de torná-los realidade. Assim lembra Ihering, na obra A luta pelo direito:


“A ideia de que a formação do direito segue um processo indolor e espontâneo, independente de qualquer esforço, tal qual o crescimento de uma planta, tem feição nitidamente romântica, já que repousa sobre uma falsa idealização de situações passadas; a realidade nua e crua revela um quadro bem diferente”. (Ihering, 1872).


É certo que todo direito é conquistado à duras penas por aqueles que o buscam, e essa é uma luta contínua, perpetrada diariamente por pessoas comuns, que sentem faltar-lhes o apoio que somente o Estado, no uso de suas atribuições legais, pode oferecer.


Dentre as garantias que a Constituição arrola, observa-se o imprescindível direito à saúde. E, é na busca por tal direito que se percebe quão atual é o texto do jurista alemão acima citado. Embora a saúde seja um direito garantido a todos, sua efetivação não tem a amplitude que deveria ter e, frequentemente, pessoas recorrem ao judiciário para verem realizados, em seus casos concretos, o que Carta Magna prevê.


1. O direito à saúde voltado à criança


Muitas vezes para ter garantido os direitos constitucionais é necessário que os cidadãos, representados ora pelo Ministério Público, ora pela Defensoria Pública, ingressem junto ao Judiciário. Essas demandas, normalmente encontram guarida no Judiciário, que ratifica o que está escrito tanto na Constituição Federal, quanto no Estatuto da Criança e do adolescente.


“Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL,1988).


Art. 7º – A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.” (ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 1990).


O Estatuto da Criança e do Adolescente foi elaborado logo após a promulgação da Constituição de 1988 e, em seu texto traz a especificidade do direito à saúde no tocante aos seus tutelados. Além de expressar a existência do direito à saúde, o artigo 7º do referido estatuto ainda faz referência ao modo como o poder público deve garantir sua concretização, criando políticas públicas direcionadas à saúde, preventiva e restaurativa, da criança e do adolescente bem como sua aplicação.


O legislador percebeu que o Estado precisa organizar e priorizar essas políticas, de maneira que não se perca essa garantia na abstração da lei. Percebe-se que a saúde é vista não só como ausência de doenças, mas como um fator de desenvolvimento humano permitindo a dignidade e a harmonia. Tais condições de desenvolvimento são, antes da negativa de enfermidades, a presença efetiva de políticas que favoreçam um pleno crescimento do ser humano. Nesse diapasão, o artigo 9º do ECA é um exemplo bastante elucidativo:


“O Poder público, as instituições e os empregadores propiciarão condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas a medida privativa de liberdade” (ECA, 1990)


Ao proteger o aleitamento materno, a lei está garantindo o desenvolvimento da criança a partir de uma medida que, conhecidamente, fortalece a imunidade e proporciona proximidade afetiva com a mãe. A saúde, vista sob o prisma da prevenção de doenças, merece medidas que resguardem simples atitudes, como amamentar pelo período mínimo de seis meses, de modo que se, mesmo em condições adversas, como a pena privativa de liberdade, seja possível esta prática.


Atualmente nota-se que existem estas políticas públicas direcionadas à saúde da criança e do adolescente nas diversas esferas federativas, entretanto, há casos onde a necessidade se apresenta de forma excepcional e urgente, não contempladas no âmbito de abrangência de tais políticas, como os casos de doenças raras e de difícil tratamento.


Também é bom lembrar que existe solidariedade entre a União, os Estados e os Municípios quando se trata de saúde pública, cabendo ao necessitado escolher quem deverá lhe fornecer o pedido pleiteado.


“Art. 198, § único – O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).


Porém, são recorrentes as situações de resposta negativa ou tão somente omissiva aos administrados que, por vezes, não possuem condições para custear tratamentos ou medicações de alto custo.


Os argumentos do Estado, como serão vistos nos casos analisados posteriormente, está a falta de previsão orçamentária que permita arcar com as despesas do tratamento ou medicamento solicitado, o chamamento de outro ente federativo a esta responsabilidade, o uso da discricionariedade para determinar quais os procedimentos e remédios que serão disponibilizados e a necessidade de licitação para aquisição do remédio pleiteado.


Entre essas razões apresentadas, encontram-se também o questionamento da legitimidade, ora do Ministério Público, ora da Defensoria Pública, para intentar a ação civil pública que busca direito individual de acesso à saúde. Pouco prospera os recursos interpostos pela administração pública, tendo, seus administrados, encontrado judicialmente, a efetivação da garantia constitucional à saúde. Nesse sentido manifesta-se o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no seguinte julgado:


“APELAÇÃO. ECA. REALIZAÇÃO DE EXAME PATOLÓGICO. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DIREITO À SAÚDE ASSEGURADO. I – Por atribuição constitucional (CF, art. 127, caput) e expressa previsão legal (ECA, art. 201, V e 208, VII), o Ministério Público é parte legítima para intentar ação civil pública em favor de direito individual heterogêneo de crianças e adolescentes, como, por exemplo,  o direito à saúde e à educação. II – A saúde é direito  garantido pela Constituição Federal, devendo a atuação do judiciário se dar no sentido de reparar as omissões do Estado, principalmente em se tratando do direito à saúde de criança, em cumprimento ao princípio da absoluta prioridade à criança e ao adolescente. (grifo nosso)


NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME”. (TJRS, 2007)


 Certamente o que se espera do poder público é a realização de uma política social voltada à infância e á juventude. E para que isso ocorra é imprescindível o cuidado destes a fim de que se tenham um desenvolvimento integral e sadio daqueles que são considerados futuro de uma nação.


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A sociedade como um todo precisa mobilizar-se de maneira a alcançar a concretização do direito à saúde ao maior número possível de menores que necessitem, uma vez que este direito guarda primazia perante aos demais.


Nesse contexto,


As palavras primazia, precedência, preferência, privilegiada e prioritária guardam a mesma sintonia semântica implicando na constatação de que o reconhecimento de direitos às crianças e adolescentes não é mera repetição do reconhecimento dos direitos fundamentais efetuado a todos os seres humanos pelo artigo 5º da Constituição Federal. Instituindo um reconhecimento de direitos às crianças e adolescentes, qualificado pela precedência no gozo de direitos diante de qualquer outro grupo social, o artigo 227 da CF em cotejo com o art. 4º do ECA não significa que outros grupos não possam acessar direitos ou que não os possam acessar na mesma intensidade que crianças e adolescentes. Significa, sim, o reconhecimento da fase peculiar de desenvolvimento que é a infância e a adolescência. (SEGUNDO, 2003).


Reconhecer essa fase peculiar é perceber quão importante é esse período da vida humana, ao ponto que, precisa de um tratamento diferenciado perante aos demais. Caso fosse aplicado, nestes casos, o princípio da igualdade formal, haveria considerável desigualdade material porque desconsideraria a particularidade da fase de desenvolvimento da pessoa humana.


2. Jurisprudência a favor do direito à saúde


Para que se perceba quão pertinente é o tema abordado neste artigo, analisar-se-á alguns casos concretos onde a jurisprudência tem demonstrado sua posição quanto ao direito à saúde, no intuito de ilustrar, casuisticamente, a efetiva aplicação desta garantia constitucional.


Esta mostra que em geral, o Poder Judiciário, em suas decisões, vai ao encontro das necessidades de crianças e adolescentes, que ficam muitas vezes aguardando por atendimento, medicamentos, tratamentos e cirurgias, e escutam respostas negativas, ou simples omissão, em hospitais e postos de saúde.


Pelo fato de terem urgência em serem atendidas nas suas necessidades, seus representantes tem que ingressar com pedido junto ao Ministério Público ou a Defensoria Pública, para que um destes dirija-se ao Judiciário e busque a efetivação do direito que está na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.


Como acima referido, esse atendimento jurídico, quando necessário, pode ser requerido pelo Ministério Público ou por um advogado nomeado sem custo algum para o necessitado.


“Art. 141 – É garantido o acesso de toda criança ou adolescente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, por qualquer de seus órgãos.


§ 1º – A assistência judiciária gratuita será prestada aos que dela necessitarem, através de defensor público ou advogado nomeado”. (ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 1990)


Tanto o Ministério Público, como os Defensores Públicos têm se mostrado muito prestativos quando se trata de demanda que visa tutelar o direito à saúde de criança e adolescente, amparada pelas disposições do ECA, em interpretação sistemática das disposições de nosso ordenamento jurídico referentes ao direito à saúde e das crianças e adolescentes, mostrando-se viável e relevante o ajuizamento de ação para a defesa de interesses individuais homogêneos de menor, como é o caso da saúde.


Os Juízes, de modo geral, contemplam as necessidades, e isso não é nenhuma vantagem destinada a uma faixa da sociedade, mas simplesmente para corrigir os erros da administração Municipal, Estadual e até da União, que não prevêem em seus orçamentos recursos necessários para cobrir as despesas com estas necessidades, seja de crianças e adolescentes, ou até de adultos e idosos em geral que tem contemplados esses direitos seja na constituição, no Estatuto da Criança e do Adolescente, e também no Estatuto do Idoso.


Como é sabido, no Brasil, o sistema de saúde é bastante precário, pois falta atendimento digno nos hospitais, as filas para atendimento são intermináveis, faltam médicos para atender a população e principalmente, faltam medicamentos básicos para o tratamento de inúmeras doenças, e as crianças e os adolescentes sofrem com esta situação problemática.


Nesse âmbito temos uma decisão já em segundo grau da sétima câmara cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em que o Município de Caxias do Sul apela contra a decisão em primeira instância que dava provimento ao pedido do Ministério Público para que fosse feito novos exames necessários no menor A., a fim de esclarecer a natureza da enfermidade do menor.


“APELAÇÃO. ECA. REALIZAÇÃO DE EXAME PATOLÓGICO. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DIREITO À SAÚDE ASSEGURADO. I – Por atribuição constitucional (CF, art. 127, caput) e expressa previsão legal (ECA, art. 201, V e 208, VII), o Ministério Público é parte legítima para intentar ação civil pública em favor de direito individual heterogêneo de crianças e adolescentes, como, por exemplo,  o direito à saúde e à educação. II – A saúde é direito  garantido pela Constituição Federal, devendo a atuação do judiciário se dar no sentido de reparar as omissões do Estado, principalmente em se tratando do direito à saúde de criança, em cumprimento ao princípio da absoluta prioridade à criança e ao adolescente.


NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME”. (TJRS, 2007).


O voto do relator Des. Luiz Felipe Brasil Santos, no que se refere aos direitos do menor, citando o art. 7º do ECA, lembra que “O direito à saúde, como consectário natural do direito à vida, é assegurado com absoluta prioridade às crianças e adolescentes pela Constituição Federal.” (TJRS, 2007)


Menciona também, no tocante à responsabilidade do poder público pela promoção efetiva da saúde da criança e do adolescente, o art. 11, caput e no parágrafo 2º do ECA:


“Art. 11 – É assegurado atendimento médico à criança e ao adolescente, através do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde.


(…)


§ 2° – Incumbe ao Poder Público fornecer gratuitamente àqueles que necessitarem os medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação.”


Neste ponto há algo importante a ser frisado. A garantia, conforme acima citado, diz respeito ao atendimento médico, porém, como ressalta Ishida


“a Lei nº 11.185, de 7 de outubro de 2005, alterando o caput do art. 11, substitui a expressão atendimento médico por atendimento integral à saúde. Este último conceito é muito mais amplo, não se limitando apenas ao cuidado médico, mas também a todo cuidado atinente à saúde da criança e do adolescente.” (2008).


Há, portanto, um alargamento no conceito da aplicação dessa garantia. Não se pensa mais somente no aspecto do atendimento médico propriamente dito, mas também numa integralidade da saúde, acolhendo a pessoa em desenvolvimento na sua plenitude, dando-lhe total garantia de acesso no tocante à saúde.


Del-Campo e Oliveira afirmam que


“em se tratando de direito fundamental da pessoa humana, a saúde deve ser garantida pelo Estado em todos os seus planos e aspectos, que vão do preventivo à manutenção e recuperação. O atendimento integral à saúde abrange tanto a assistência médico-hospitalar, como o fornecimento de medicamentos, o apoio psicológico, o tratamento para dependentes químicos e outros”. (2009).


Lembra ainda, o ilustre desembargador em seu voto, que a Constituição Federal em seu art. 196,  


“conjugado com o principio da dignidade da pessoa humana, fundamento republicano, impõe que a atuação do judiciário se dê no sentido de reparar as omissões do Estado, principalmente em se tratando do direito à saúde de criança, em cumprimento ao princípio da absoluta prioridade à criança e ao adolescente.” (TJRS, 2007).


O município de Caxias do Sul, entretanto, alegou em sua defesa que tomou todas as providências para cumprir suas atribuições legais, proporcionando os exames necessários e, inclusive duas cirurgias, opondo exceções à afirmativa de que não havia cumprido o acesso ao direito à saúde.


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Porém, afirma o relator, ficaram evidenciadas mediante prova documental, as dificuldades enfrentadas pela família do menor em obter um diagnóstico seguro e consistente, prejudicando seu quadro clínico e impossibilitando aos médicos o correto tratamento da enfermidade.


Assim o magistrado, em seu voto, entende ser imprescindível novo exame na expectativa de ser submetido ao tratamento mais adequado.


Em outro caso, a mesma câmara, ao julgar a apelação interposta pelo município de Lajeado, irresignado com a condenação a ele imposta de proporcionar ao menor Willian L. S., portador síndrome Kearns Sayre, doença extremamente rara que, entre outros sintomas, apresenta a baixa acuidade visual, disfunção cardíaca em metade dos casos e fraqueza muscular nos membros superiores e inferiores. Não existe tratamento que a cure, apenas paliativos que aliviam os sintomas nos pacientes. Por se tratar de uma rara doença, os medicamentos são de alto custo, motivo este que obrigou os pais de Willian a buscarem, diante da omissão do estado, o tratamento via judicial.


“apelação. eca. direito à saúde da criança e do adolescente assegurado com absoluta prioridade pela constituição federal. medicamentos. tratamento. Conexão. desistência em relação a um co-réu. litisconsórcio facultativo.


Pode haver a desistência da ação em relação a um co-réu, por se tratar de litisconsórcio facultativo, não se impondo a necessidade de consentimento do co-obrigado remanescente.


Conjugando-se a já sedimentada idéia de dever discricionário e função jurisdicional com a principiologia vertida na Constituição Federal, dando prioridade absoluta aos direitos da criança e do adolescente, não há discricionariedade quando se trata de direito fundamental da criança e do adolescente (vida, saúde, dignidade). Está o poder público necessariamente vinculado à promoção, com absoluta prioridade, da saúde da população infanto-juvenil. O direito à saúde, superdireito de matriz constitucional, é dever do Estado (União, Estados e Municípios) como corolário do direito à vida e do princípio da dignidade da pessoa humana. Direito fundamental que é, tem eficácia plena e aplicabilidade imediata, como se infere do §1º do art. 5º da Constituição Federal.


NEGARAM PROVIMENTO AOS RECURSOS. UNÂNIME.” (TJRS, 2006)


 Nota-se, logo no início da ementa, que o direito à saúde é assegurado com absoluta prioridade, não cabendo nenhum argumento de relativize sua viabilização. Sendo assim, nenhuma falta de previsão orçamentária pode servir de empecilho para que o município a que foi solicitado o tratamento de escuse de sua obrigação de garantidor perante os administrados.


Aliás, como lembra Flávio Galdino em sua obra “Legitimação dos Direitos Humanos”, a falta de previsão orçamentária apresenta-se como uma justificativa um tanto quanto suspeita.


“O que verdadeiramente frustra a efetivação de tal ou qual direito reconhecido como fundamental não é a exaustão de determinado orçamento, é a opção política de não se gastar dinheiro com aquele mesmo direito”. (2002)


Esta opção política, feita no sentido contrário à prestação de um direito constitucional, atinge de forma gravosa toda possibilidade de tornar realidade uma garantia dirigida à todos, sem comportar exceções.


Como lembra a ilustre juíza de direito, membro da Associação Brasileira dos Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude, Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima, a saúde deve ter


“(…) a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, a precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, a preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas além da destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”. (LIMA, acesso em 2010).


Caso fosse admitido o argumento de que somente aqueles medicamentos e tratamentos previstos nas listagens oficiais fossem viabilizados, a realidade do direito à saúde seria relativizada na sua totalidade e, casos onde há uma doença rara, ficariam desprotegidas; teríamos uma possibilidade de direito à saúde, e não a garantia absoluta de tal.


A condenação ao fornecimento do tratamento neste caso demonstra quão falha é, em alguns casos, a concretização das garantias expressas pela Constituição, corroboradas no Estatuto da Criança e do Adolescente. Conforme dispositivo legal, este fornecimento é atribuição do Poder Público, sendo direcionado a todos que necessitarem, sendo assim pouco importa se o medicamento ou tratamento encontra-se previsto. Fato é que se tem casos onde a saúde, bem jurídico amplamente defendido, está a perigo e deve ser urgentemente protegido. Aqui está a essência do Estado garantidor onde, mesmo a administração pública não realizando essa atribuição claramente expressa em texto legal, o judiciário supre a omissão não permitindo que o sujeito pereça em decorrência da falha estatal.


“Os direitos fundamentais vinculam o Estado em toda sua extensão. Ainda que a concretização dos direitos fundamentais seja, em primeiro lugar, como refere Konrad Hesse, a ausência de legislação infraconstitucional ou mesmo a deficiência da legislação existente autoriza o Poder Judiciário a concretizar de maneira imediata o direito fundamental à tutela jurisdicional”. (MITIDIERO, 2007).


Cita-se ainda a decisão do Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves que acolhe recurso do Ministério Público com referência a decisão que deferiu em parte o pedido liminar, para determinar que o Município de Charqueadas, arque com 50% dos custos para a aquisição das fitas reagentes ou disponibilize 50 fitas reagentes, e a família suporte os outros 50%, nos autos da ação civil pública que move contra o Município de Charqueadas, em favor do adolescente L. C. N. F.


“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ECA. DIREITO À SAÚDE. MEDICAMENTO. OBRIGAÇÃO DO MUNICÍPIO DE FORNECÊ-LO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. CABIMENTO. COMPROVAÇÃO DA HIPOSSUFICIÊNCIA ECONÔMICA.1. O ECA estabelece tratamento preferencial a crianças e adolescentes, mostrando-se necessário o pronto fornecimento do tratamento de que necessita o infante. 2. A antecipação de tutela consiste na concessão imediata da tutela reclamada na petição inicial, desde que haja prova inequívoca capaz de convencer da verossimilhança da alegação e, ainda, que haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, o que vem demonstrado nos autos. Inteligência do art. 273 do CPC. 3. Cabe a antecipação de tutela quando fica comprovado que os responsáveis pelo adolescente não têm condições de arcar com o custo do medicamento. Recurso provido”. (TJRS, 2010).


Transcreve-se, em parte, o voto do nobre Desembargador:


“Primeiramente, observo que foi ajuizada a presente ação contra o Município de Charqueadas, apontando a necessidade do adolescente Luiz Carlos, com 17 anos de idade, portador de Diabetes Melitus Tipo I (CID E 10), fazer uso de fitas reagentes para dosagem de glicose, sendo necessário 100 unidades ao mês, a fim de garantir-lhe condições de vida mais saudável e digna, atento ao que dispõe os arts. 7º e 208 do ECA, bem como ao que prevê o art. 127 da Carta Magna, pois sua família não tem condições econômicas para a sua aquisição.” (TJRS, 2010).


Segue ainda o Desembargador em seu voto: “O atendimento à saúde de crianças e adolescentes constitui prioridade legal, nos termos dos art. 4º, parágrafo único, e art. 11, §2º, do ECA”. (TJRS, 2010)


Muitos são os casos onde a jurisprudência tem se posicionado de modo semelhante a estes aqui apresentados, mostrando que a Constituição tem força ímpar na estrutura jurídica do Brasil. Enquanto o Estado divide em três os modos de exercer seu poder, que é uno e indivisível, e estes possuem autonomia entre si, sem perder a capacidade de interpenetrar-se entre si, o judiciário supre a omissão do poder público, efetivando aquilo que o legislador transformou em dispositivo legal.


Estes três casos confirmam a tendência do Judiciário, seja em primeira instância, seja em grau em recurso, de que crianças e adolescentes tem prioridade no atendimento de suas necessidades quanto a saúde em virtude do Estatuto da Criança e do Adolescente que os contempla com prioridade no atendimento de suas necessidades e também pela Constituição Federal que também cita esse atendimento prioritário.


Conclusão


Na atual ordem constitucional, doutrinadores em geral entendem que a Constituição Federal de 1988 conquistou grande força normativa, isto é, deixou a Constituição de ser uma carta meramente política e passou a ter o atributo da imperatividade. Com isso, os direitos fundamentais sociais ali previstos convertem-se em direitos subjetivos, e caso o Estado por meio do Poder Executivo não os efetive, caberá ao cidadão, titular destes direitos, através de uma ação judicial, pedir que o Poder Judiciário determine que o poder público atue, de modo a efetivar o direito social previsto na Constituição. No entanto, com a atuação do Poder Judiciário para fazer efetivar esse direito fundamental a saúde, surgem algumas questões que tem sido tema de bastante discussão na doutrina e jurisprudência, tais como: direito constitucional à saúde e escassez de recursos.


Em diversos casos se alega a falta de recursos de determinado município ou estado para custear tratamento ou fornecer prótese, porém,


“entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões ético-jurídicas impõe ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida.” ( TJSC – 2008).


Conclui-se, após analisar, tanto a legislação quanto a jurisprudência que, a necessidade de efetivar o direito à saúde é uma causa emergencial, que aplica caso a caso. De modo contrário, não existe este direito se um tratamento ou medicamento for negado a crianças ou adolescentes necessitados de cuidados.


Mesmo existindo políticas sociais que visam abranger o maior número de casos e de enfermidades, fato é que, diante de um caso especial, o poder público não pode, em nenhuma hipótese e sob nenhum argumento, negar tão importante garantia.


O poder judiciário, no uso de suas atribuições, merece todo louvor por fazer com que o direito se materialize, tirando-o do papel e tornando realidade a todos os que necessitam de seus efeitos.


 


Referências bibliográficas:

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DEL-CAMPO, Eduardo Roberto Alcântara; OLIVEIRA, Thales Cézar. Estatuto da Criança e do Adolescente. 6. Ed. São Paulo: Atlas, 2009. 443 p.

GALDINO, Flávio. Custo dos Direitos. In: TORRES, Ricardo Lob (org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. São Paulo: Martin Claret, 2008. 96 p.

ISHIDA, Válter Kenjii. Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina e jurisprudência. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2008. 507 p.

MITIDIERO, Daniel. Processo Civil e Estado Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. 109 p.SEGUNDO, Rinaldo. Construindo a relação entre o direito da criança e do adolescente e o direito orçamentário. 27 de novembro de 2003. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/ revista/texto/ 4541/construindo-a-relacao-entre-o-direito-da-crianca-e-do-adolescente-e-o-direito-orcamentario>. Acesso em 25 nov. 2010.


Informações Sobre os Autores

Tiago de Oliveira Valim

Estudante de Direito.

Rogério Colissi Alves

Estudante de Direito


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