O pior mal já está feito quando se tem pobres para defender e ricos para conter. É apenas sobre a mediocridade que a força das leis se exerce por completamente: elas são igualmente impotentes contra os tesouros do rico e contra a miséria do pobre; o primeiro as engana, o segundo as escapa. Um rompe a rede, o outro passa através dela. (Rousseau, in Discours sur l’Economie Politique)
Sumário: 1. Introdução; 2. Lei penal para quem? 3. O mito do Direito Penal Igualitário e o processo de criminalização primária; 3.1. Igualdade desigual do direito penal; 3.2. O Direito Penal abstrato e a criminalização primária; 3.3. Inversão de valores e Apartheid Social; 4. Conclusão.
Resumo: O presente artigo pretende realizar uma avaliação crítica da seletividade da norma penal brasileira, que demonstra inegável tendência a preservar os interesses das elites do poder econômico, funcionando, nesse contexto, como um instrumento de dominação de classes. A princípio, os tipos penais são apresentados como igualitários, atingindo de forma isonômica as pessoas em função de seus comportamentos. São também oferecidos como justos, na medida em que buscam prevenir novos delitos por meio da prevenção geral. Na prática, contudo, o contexto de operacionalização da lei penal brasileira é bem diferente. O Direito Penal abarca desempenho tão somente de cunho repressivo, reflexo da sociedade que institui e espelha a exclusão mediante a seletividade já na formulação técnica das normas legais penais. Depreende-se assim, um latente paradoxo: por um lado a igualdade formal defendida abstratamente; por outro, a cuidadosa produção legislativa, atuando seletivamente para aplicação do direito material, cuja maior ou menor reprimenda pauta-se na posição ocupada pelo indivíduo na escala social.
Palavras-chaves: Sistema Penal, Norma penal; Criminalização primária; Seletividade.
1. Introdução:
O Sistema Penal[1] se dirige quase sempre contra certas pessoas, raramente contra certas condutas. Uma parcela de privilegiados possui a capacidade de impor ao sistema uma quase que total impunidade das próprias condutas criminosas. Os pobres são constantemente atingidos pelas agências de repressão não porque delinqüem mais, mas porque têm maiores chances de serem criminalizados. Por esta razão, antes de falar-se em criminalidade, devemos tentar compreender o processo de criminalização preconizado pelo sistema penal. Esse processo pode ser dividido em processo primário e processo secundário de criminalização.
O primeiro designa o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas. O segundo é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa que se supõe tenha praticado certo ato criminalizado primariamente. [2] Aquela é realizada pelos legisladores, quando da produção da norma; esta, pelas agências estatais, tais como Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário e sistema penitenciário.
A pesquisa cujos resultados ora são relatados preocupou-se fundamentalmente com a criminalização primária, isto é, os aspectos de seletividade na produção da norma. A criminalização secundária é objeto de exame superficial, pois o aprofundamento exigiria uma pesquisa específica com técnicas diferentes daquelas aplicadas no presente trabalho.
Ver-se-á, neste contexto, que o desvio e a criminalidade não são uma qualidade intrínseca da conduta, mas uma qualidade atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de seleção. E todo esse aparato já pode ser diagnosticado a partir da produção da norma penal, que não raras às vezes, vem ao mundo jurídico objetivando atingir determinados grupos de pessoas, notadamente àqueles pertencentes aos mais baixos extratos sociais, conservando assim, a reprodução das desigualdades sociais intrínsecas ao próprio sistema.
2. Lei Penal para quem?
Em 1997, Galdino de Jesus dos Santos, um chefe indígena que estava de visita em Brasília, foi queimado vivo enquanto dormia numa parada de ônibus. Cinco rapazes de boa família, que andavam farreando, jogaram álcool nele e lhe tocaram fogo. Pensamos que era um mendigo, justificaram eles.[3] Um ano depois, a justiça brasileira lhes aplicou penas alternativas, pois não se tratava de um caso de homicídio qualificado. O relator do Tribunal de Justiça do Distrito Federal explicou que os rapazes tinham utilizado apenas a metade do combustível que possuíam e isto provava que tinham atuado movidos pelo ânimo de brincar, não de matar.
Alguns anos mais tarde, Maria Aparecida de Matos, 24 anos, empregada doméstica que só sabe desenhar o nome, mãe de dois filhos pequenos, completou mais de onze meses na prisão. Ela foi acusada de tentativa de furto de um xampu e um condicionar, no valor de R$ 24,00 de uma farmácia de São Paulo. [4]
Maria Aparecida foi protagonista de uma discussão jurídica sobre a prisão para crimes de valor irrisório e de baixa periculosidade. Após esse longo período de isolamento, Ministros do Supremo Tribunal Federal defenderam a aplicação do princípio da insignificância[5]. Em 2004, o mesmo Tribunal suspendeu processos contra dois jovens, um de São Paulo e outro de Mato Grosso do Sul, em situações semelhantes à de Maria Aparecida. Um deles tinha sido condenado a dois anos pelo furto de um boné no valor de R$ 10,00. Outro recebeu a pena de oito meses pelo furto de uma fita de videogame avaliado em R$ 25,00.
Quanto a Maria Aparecida, a Liberdade Provisória foi negada. No pedido, a defesa solicitou ao Tribunal de Justiça a mesma avaliação que fez ao caso do promotor de Justiça Thales Ferri Schoedl. Ele havia sido preso em flagrante por ter matado com disparos de arma de fogo um jovem, além de ferir outro, em dezembro de 2004. Na ocasião, Schoedl alegava legítima defesa. Em 16 de fevereiro de 2005, o Tribunal de Justiça concedeu liberdade provisória ao promotor[6].
Em outubro de 2007, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu pedido de Habeas Corpus para que o morador de rua, Marciano Schott Fraga, do Rio de Janeiro, para responder em liberdade a acusação de furtar um shampoo, avaliado em R$ 13,00. Ele estava preso desde abril daquele ano, ou seja, há seis meses. Dado importante: o acusado possuía os treze reais para devolver.
Poderíamos elencar aqui, inúmeros acontecimentos como esses. Situações que dia a dia confirmam a razão de ser do sistema penal brasileiro. Um sistema de valores que exprime e reflete o universo moral próprio de uma cultura burguesa e individualista. Uma cultura que dá máxima ênfase à proteção do patrimônio privado (mesmo quando for ínfimo o seu valor de mercado) e se orienta, predominantemente, para atingir as condutas de desvio típicas dos grupos socialmente fragilizados do ponto de vista econômico.
Em determinados casos, o sistema penal apresenta-se em pleno funcionamento. É o Estado presente, participativo, atuante quando da ocorrência do fenômeno criminal. É, nas palavras de Loïc Wacquant[7], à maciça expansão do seu punho penal. Em outros, a intervenção parece ser tão ínfima que quase não percebemos sua atuação.
Mas, por que alguém que pratica um furto de um shampoo permanece tanto tempo encarcerado enquanto um jovem de classe média é solto depois de matar ou ferir gravemente uma pessoa? Quem deveria ser realmente penalizado, a pessoa que atenta contra o patrimônio privado ou quem interrompe a vida de alguém? As respostas partem da estrutura de todo o sistema penal (Leis, Polícia, Ministério Público, Justiça e Prisão), que demonstra uma inegável tendência a preservar os interesses das elites do poder econômico, funcionando, nesse contexto, como um instrumento de dominação de classes.
O Direito em nosso Mundo Jurídico é descrito de várias formas e segundo Eros Grau[8] destaca-se alguma das maneiras de descrever tal Direito:
“[…] descrevê-lo como sistema de normas que regula – para assegurá-la – a preservação das condições de existência do homem em sociedade. Mas, de outra parte, posso descrevê-lo, exemplificativamente também, desde uma perspectiva crítica, introduzindo, então, a velha questão, do expositor e do censor (crítico) do direito, daquele que explica o direito, tal como o entende, e daquele que indica o que crê deva ser o direito – a separação entre o que é e o que deva ser o direito” (Bentham).
Já faz um século que José Hernandes[9] comparou a lei como uma faca, que jamais fere quem a maneja. Os discursos oficiais invocam a lei como se ela valesse para todos, e não só para os infelizes que não podem evitá-las, atendendo o princípio da igualdade. Denota-se, contudo, que o cenário do cotidiano é bem diferente: os delinqüentes pobres são os vilões do filme, os delinqüentes ricos escrevem o roteiro e dirigem os atores[10].
3. O mito do direito penal igualitário e o processo de criminalização primária
3.1. Igualdade desigual do direito penal
Para que existisse um Direito Penal[11] realmente igual para todos, Alessandro Baratta[12] formulou duas proposições fundamentais. Em primeiro lugar, o Direito Penal deveria proteger igualmente todos os cidadãos contra ofensas aos bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, caracterizado pelo princípio do interesse social e do delito natural; e em segundo lugar, a lei penal deveria ser igual para todos, ou seja, todos os autores de comportamentos anti-sociais e violadores de normas penalmente sancionadas teriam iguais chances de tornarem-se sujeitos, e com as mesmas conseqüências, do processo de criminalização, este, então, sustentado pelo princípio da igualdade.
A rigor, portanto, a norma penal seria dirigida a todas as pessoas, não importando a classe social a que pertença. Não precisamos, contudo, de um raciocínio muito apurado a constatar que a realidade do Direito Penal é outra: ela própria já distingue os autores dos crimes segundo suas classes sociais.
Por esta razão, Baratta considera o direito penal igualitário um mito, talvez, porque foi algo nunca realmente buscado. Neste contexto, descreveu as verdadeiras características sustentadas pelo modelo penal, trazendo aspectos profundamente seletivos:
a) o direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quanto pune as ofensas aos bens essenciais faz com intensidade desigual e de modo fragmentário;
b) a lei penal não é igual para todos; o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos; e
c) o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade.[13]
Há quase 30 anos Eugênio Raúl Zaffaroni elabora profunda crítica aos ordenamentos jurídicos penais. O autor destacava a partir daí, que a lei penal estabelecia tratamento diferenciado de censura de pessoas, dependendo do papel que estas ocupassem na estrutura social, notadamente, em virtude de poder do consumo:
“[…] reprovar com a mesma intensidade pessoas que ocupam situações de privilégio e outras que se encontram em situações de extrema pobreza é uma clara violação do princípio da igualdade corretamente entendido, que não significa tratar todos igualmente, mas tratar com isonomia quem se encontra em igual situação”.[14]
Assim, o Direito Penal não pode mais ser considerado somente como sistema estático de normas, mas sim como sistema dinâmico de funções. Esse sistema comporta mecanismos que objetivam a produção de um processo de criminalização. Segundo Baratta, esse processo possui três características básicas: a) o mecanismo da produção das normas, conhecido por criminalização primária; b) o mecanismo da aplicação das normas, isto é, o processo penal, compreendendo a ação dos órgãos de investigação e culminando com o juízo, conhecido do processo de criminalização secundária; e finalmente, c) o mecanismo da execução da pena ou das medidas de segurança.[15]
Pode-se dizer, assim, que a função essencial do sistema penal é a de reprodução das relações sociais e de manutenção da estrutura vertical da sociedade, criando-se barreiras à integração dos setores mais baixos e marginalizados do proletariado ao tempo em que surgem os processos marginalizadores.
Essa pesquisa procurou-se fundamentalmente com a criminalização primária, isto é, os aspectos de seletividade na produção da norma. A criminalização secundária é objeto de exame superficial, pois o aprofundamento exigiria uma pesquisa específica com técnicas diferentes daquelas aplicadas no presente trabalho.
3.2. O Direito Penal abstrato e a criminalização primária:
A criminalização primária consiste no ato de selecionar bens jurídicos relevantes que mereçam proteção impostas pelo Direito Penal material. Quem está encarregado de efetuar a escolha dos bens jurídicos penalmente relevantes a ponto de serem protegidos pelo Direito Penal são os deputados e senadores, enfim, o Congresso Nacional.
O decreto-lei nº. 3.914, de 9 de dezembro de 1941[16], em seu artigo 1º, conceitua crime da seguinte forma:
“Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas alternativa ou cumulativamente”.
Zaffaroni[17] conceitua tipo penal como um instrumento legal, logicamente necessário e de natureza predominantemente descritiva, que tem por função a individualização de condutas humanas penalmente relevantes.
A princípio, esses tipos penais são apresentados como igualitários, atingindo igualmente as pessoas em função de seus comportamentos. Veremos, no entanto, que esse processo é profundamente seletivo, atingindo apenas determinado grupo de pessoas.
As leis são também apresentadas como justas, na medida em que buscam prevenir novos delitos por meio da prevenção geral. Na prática, entretanto, seu desempenho é tão somente de cunho repressivo.
Além disso, nas palavras de Nilo Batista[18], as leis penais deveriam apresentar-se comprometidas com a dignidade humana. Fazendo referência a Roxin, o autor registra que a pena deveria ser vista como o serviço militar ou o pagamento de impostos, quando na verdade, é estigmatizante, promovendo uma degradação na figura social de sua clientela.
O Direito Penal abstrato, portanto, refere-se ao conteúdo e também, ao não-conteúdo das leis penais.[19]
A seleção criminalizadora ocorre mediante as diversas formulações técnicas dos tipos penais, aliadas as espécies de conexão que eles determinam com o mecanismo das agravantes/atenuantes, qualificadoras/efeitos privilegiadores. Veja-se, por exemplo, que o furto simples, tipificado no artigo 155, caput do Código Penal[20] é capitulação rara nas peças acusatórias do nosso país. Quase sempre esse crime é qualificado por uma daquelas situações apresentadas no parágrafo 4º. Esse tipo de delito é, notadamente, praticado por pessoas pobres, razão pela qual a aplicação de qualificadoras que majoram a pena vem bem a calhar.
Percebe-se, também, que as malhas dos tipos penais são, em geral, mais sutis no caso dos delitos próprios de “colarinho branco”. Analisemos o art. 16 do mesmo diploma legal, que trata do instituto do arrependimento posterior:
“Art. 16 – Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços”.
Refere-se aos crimes patrimoniais praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa. O agente é beneficiado com uma redução de pena quando, por ato voluntário, repara o dano ou restitui o objeto do delito. Em sua grande maioria, pessoas dos baixos extratos sociais são beneficiados por esse instituto, pois são elas que, geralmente, praticam delitos contra o patrimônio.
Em sentido inverso, realizamos a análise da Lei n. 8.137/90, que dispunha no artigo 14, que os crimes previstos em seus artigos 1.º[21], 2º[22] e 3.º[23] teriam extinta sua punibilidade quando o agente (contribuinte ou servidor público) promovesse o pagamento do tributo ou contribuição social antes do recebimento da denúncia. Não bastasse tamanho benefício, com o advento da Lei n. 10.684/2003, a extinção da punibilidade passou a ocorrer em qualquer fase do processo, e não antes do recebimento da denúncia.[24]
Vale lembrar que os crimes de sonegação fiscal afetam o Estado de forma drástica, vez que o dinheiro que deixou de ser arrecadado poderia ter sido utilizado na realização de projetos sociais e outras finalidades de efeito coletivo. Não há como negar, dessa forma, que a extinção da punibilidade do agente em qualquer fase do processo transforma a justiça penal em mero instrumento de coação ao pagamente de impostos. Assim, comportamentos altamente lesivos à sociedade e que, notadamente, culminam em prejuízos coletivos, por vezes, irreparáveis, como as retenções de tributos de investimentos emergenciais à saúde e educação, não serão punidos se essas quantias forem restituídas ao erário.
Neste contexto, pergunta-se: por que o delinqüente patrimonial não é beneficiado com a extinção da punibilidade, tal como ocorre no caso dos crimes de sonegação fiscal? De forma coerente e lógica, os benefícios cedidos pela lei penal dos delitos tributários deveriam alcançar os delitos patrimoniais praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa, precipuamente, em atenção ao princípio da igualdade.
Observa-se, aqui, uma lei de tendência, que procura não criminalizar as ações anti-sociais realizadas por integrantes das classes sociais hegemônicas, ou então, que se apresentam funcionais às exigências do processo de acumulação de capital. Criaram-se, com essa legislação fiscal, zonas de imunização para os comportamentos de sonegação, cuja danosidade se volta particularmente contra as classes menos favorecidas.
Difícil negar, portanto, que existe uma tendência a dirigir o processo de criminalização, principalmente, para as formas de desvios típicos das classes subalternas.
3.3 Inversão de valores e apartheid social:
No início do século passado, o filósofo Max Scheler, ao tratar da hierarquia dos valores, já previa uma preponderância do capital sobre o social, política que descura da esfera humanista: A mais profunda da hierarquia valorativa que a moral moderna carrega consigo é, porém, a subordinação que vai se insinuando cada vez mais, dos valores vitais aos valores de utilidade[25]. Em uma leitura contemporânea, a utilidade a que se refere o autor certamente está relacionada aos valores de propriedade.
Sabe-se que a qualidade e, principalmente, a quantidade da pena cominada possui relação diretamente proporcional ao bem ou interesse jurídico protegido. Ver-se-á, no entanto, que o Código Penal Brasileiro é altamente patrimonialista, valorizando mais a coisa do que a própria vida ou integridade física humana.
Analisemos o crime de lesão corporal de natureza grave, descrito no artigo 129, § 1º, do Código Penal[26]. Tomemos como exemplo o inciso III, que indica: se da lesão corporal resulta debilidade permanente de membro, sentido ou função. A pena prevista para esta infração é de 1 (um) a 5 (cinco) anos de reclusão. Dessa forma, se alguém, dolosamente, arranca um dos olhos de alguém, sofrerá a reprimenda estabelecida nesse tipo penal.
Debrucemo-nos agora por sobre o crime de furto qualificado, conforme artigo 155, § 4º do Código Penal[27]. Abracemos a título exemplificativo o inciso I, que prescreve: se o crime é cometido com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa. Incorrerá o autor do furto a pena de 2 (dois) a 8 (oito) anos de reclusão. Assim, esta é a pena para pessoa que, após haver danificado a porta de um automóvel, subtrai um toca-fitas de seu interior.
Diante desse comparativo fica a pergunta: apoiando-se na hierarquia dos valores, a que o Direito Penal deveria dar maior proteção, a um objeto como um toca fitas ou a visão de uma pessoa?
Note-se, dessa forma, que a seletividade sempre existe. Crimes de furto são praticados por pessoas dos mais baixos extratos sociais e por isso, abarcam penalização muito maior.
Outro exemplo emblemático é trazido por Amilton Bueno de Carvalho:
“[…] imaginemos o delito de roubo (mediante grave ameaça subtraiam um relógio) em confronto com o delito de esbulho possessório (mediante grave ameaça invadam um imóvel – art. 161 do Código Penal). Os crimes são praticamente idênticos, só diferem que num o objeto é móvel, noutro é imóvel. Como valoramos mais o imóvel, este deveria ser melhor protegido. Mas não é. A pena daquele é de quatro a dez anos, e este é de um a seis meses. Pergunta-se: quem comete roubo de relógio? Algum latifundiário? Ora, a subtração de móvel é crime do pobre, o esbulho possessório é do rico. Logo, as penas são diferentes, absurdamente diferentes. Todavia, como atualmente o povo (= pobre) está invadindo terras, aparecem democratas preocupados com a segurança do país e propõe a elevação das penas do esbulho, o que por certo logo virá. […] O pobre que não trabalha é contraventor, pois não coloca no mercado de trabalho a sua força para ser explorada (art. 59 da LCP). E o rico?”[28]
Denota-se, assim, que a seletividade da norma penal é indiscutível. Essa seleção golpeia justamente as parcelas mais carentes da população. Portanto, não se pode dizer que a norma penal protege os bens de maior relevância. Ela protege sim, os interesses das classes detentoras do poder político e econômico.
Um último exemplo trazido para atestar a seletividade da norma penal é o comparativo entre os crimes previstos nos artigos 149 e 159 do Código Penal. O primeiro é um crime contra a liberdade pessoal e o segundo, um delito patrimonial. Assim prescreve o artigo 149:
“Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou à jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência”.
Note-se que para configuração do crime em apreço, pressupõe a restrição da liberdade da vítima por tempo considerável. Além disso, nesse ínterim, a vítima é submetida a situações de esforço desumano que violam profundamente os princípios constitucionais, sobretudo, o da dignidade da pessoa humana.[29] A pena prevista é de 2 (dois) a 8 (oito) anos de reclusão.
De outra parte, vejamos o que registra o Código Penal, no artigo 159:
“Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos”.
É o crime de extorsão mediante seqüestro, crime patrimonial que em suas formas mais graves, dita as mais elevadas penas do Direito Penal brasileiro. Em sua forma simples (caput), a pena mínima é de oito (oito) anos, a máxima de 15 (quinze). Contudo, basta a restrição da liberdade da vítima superar o lapso de 24 horas[30] que a pena será de 12 (doze) a 20 (vinte) anos de reclusão. Note-se que nem mesmo o homicídio simples[31] prevê pena tão gravosa.
Após esse comparativo, pergunta-se: Quem são as vítimas dos crimes de extorsão mediante seqüestro? E ainda: A que grupo social pertencem as vítimas do crime de redução à condição análoga à de escravo? Ao primeiro questionamento, podemos afirmar sem medo de errar, que muito raramente seqüestra-se pobres, ainda mais quando a especificidade do dolo abarca a extorsão. As possibilidades de ocorrência, neste caso, seriam realmente remotas; ao segundo, obviamente que as vítimas seriam aquelas pessoas que tentam se colocar no mercado de trabalho de forma precária, ou seja, pessoas nas piores condições sociais. Os autores desse crime, por outro lado, são os fazendeiros, proprietários de fábricas, empresários, entre outros.
Vê-se, assim, que é nos extratos mais baixos da escala social que a função selecionadora do Direito Penal abstrato se transforma em função marginalizadora.
A aprovação da Súmula Vinculada nº. 11[32], do Supremo Tribunal Federal, que regulamenta o uso das algemas também é motivo de análise nesse ínterim. Dispõe referida súmula:
“Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
Dessa forma, a regra é o não uso desse instrumento de contenção. Excepcionalmente, nos casos elencados no aludido dispositivo as algemas poderão ser utilizadas, devendo a autoridade que o fez justificar suas razões por escrito: a) em caso de resistência; b) em caso de fundado receio de fuga; c) em caso de perito à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros.
Obviamente, esta súmula foi feita sob medida aqueles infratores dos altos escalões, em que se supõe um mal estar provocado pelo uso das algemas quando de suas prisões. A delinqüência elitizada não precisa reagir à prisão. Não necessita empreender-se em fuga. Ademais, não é considerada uma criminalidade violenta, como bem demonstra o perfil de quem comete os chamados crimes de colarinho branco. Sabe-se que em poucos dias, os melhores advogados garantirão suas liberdades, mesmo por que, a própria lei penal, como visto em linhas anteriores, assegurará que suas penas, na hipótese de improváveis condenações, não provoque seus isolamentos.
Torna-se bastante penoso justificar a utilização de algemas nessas hipóteses. Quem está engessado, nesses casos, é a própria autoridade que cumpre a medida de prisão. Algemem os pobres, pois sua criminalidade é violenta por natureza, mesmo sabendo que o poder econômico do criminoso revele maior acesso a mecanismos de fuga, além dos seus seguranças pessoais que, não raro, afrontam ostensivamente os agentes públicos.
Esse é o contexto de operacionalização da lei penal brasileira. Reflexo da sociedade que institui e espelha a exclusão mediante a seletividade já na formulação técnica das normas legais penais. Deprende-se, assim, um latente paradoxo: por um lado a igualdade formal defendida abstratamente; por outro, a cuidadosa produção legislativa, atuando seletivamente para aplicação do direito material, cuja maior ou menor reprimenda pauta-se na posição ocupada pelo indivíduo na escala social.
O atributo de delinqüente, portanto, dificilmente é outorgado aos detentores dos meios de produção, ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista. Isso ocorre,
“não somente com a escolha dos tipos de comportamentos descritos na lei, e com a diversa intensidade da ameaça penal, que freqüentemente está em relação inversa com a danosidade social de comportamentos, mas com a própria formulação técnica dos tipos legais. Quando se dirigem a comportamentos típicos dos indivíduos pertencentes às classes subalternas, e que contradizem às relações de produção e de distribuição capitalistas, eles formam uma rede muito fina, enquanto a rede é freqüentemente muito larga quando os tipos legais têm por objeto a criminalidade econômica, e outras formas de criminalidade típicas dos indivíduos pertencentes às classes no poder”.[33]
Mantendo-se essa lógica, tais leis atuam de forma a disciplinar os diferentes, de delimitar seus espaços, certificando-se que cada grupo social permaneça exatamente onde está.
4. Considerações finais:
A pesquisa cujos resultados ora são relatados desenvolveu-se com o objetivo central de realizar uma análise do fenômeno da seletividade da norma penal brasileira. Para tanto, realizamos o enfoque comparativo de alguns tipos penais vigentes em nossa legislação, verificando, a partir daí, que as maiores penas são atribuídas àquelas condutas praticadas pelos grupos pertencentes aos mais baixos extratos sociais.
Alessandro Baratta já havia formulado as proposições necessárias para implementação de um Direito Penal realmente igualitário. Verifica-se, contudo, que a função essencial do Direito Penal é a de reprodução das relações sociais e de manutenção da estrutura vertical da Sociedade, criando-se barreiras à integração dos setores mais baixos e marginalizados do proletariado.
As leis penais são extremamente patrimonialistas, valorizando mais a coisa do que a própria vida ou integridade física humana. Neste contexto, chega-se ao absurdo de penalizar com maior intensidade furtos de objetos quaisquer do que graves ofensas corporais à pessoa, algumas delas, inclusive, de conseqüências irreversíveis.
Não há de se falar, assim, em Direito Penal igualitário. A norma penal destina-se a conservar a estrutura vertical de dominação e poder, punindo intensamente condutas que são típicas dos grupos marginalizados (delitos patrimoniais, por exemplo) e deixando isentos comportamentos gravíssimos e socialmente onerosos, como crimes de sonegação fiscal. A criminalização produzida pelos tipos penais abstratos chama-se de primária.
Essa criminalização consiste no ato de selecionar bens jurídicos relevantes que mereçam uma proteção de natureza tão drástica como as que são impostas pelo Direito Penal material. Este processo de criminalização é entabulado em razão da necessidade de se impor critérios que têm a função de selecionar bens jurídicos que devam ser tutelados, bem como, busca sancionar os indivíduos que lesionam tais bens. Tradicionalmente, é utilizado como meio de intervenção estatal na repressão de condutas socialmente indesejadas e representa, nos dias atuais, o instrumento mais utilizado pelo Estado na luta pela contenção preventiva de condutas hipoteticamente arriscadas.
Nesta avaliação, a cominação das penas (quantidade/qualidade) em determinados modelos de comportamento, o Estado já realiza inegável seleção dos indivíduos que futuramente irá punir, razão pela qual a população carcerária do nosso país é composta quase que totalmente pelas classes menos favorecidas. Essa distinção é imprescindível para a compreensão da dinâmica de atuação do sistema penal na tentativa de promover o controle social.
Dessa forma, tal como séculos atrás, guardou-se as devidas proporções com a diferenciação entre nobres e plebeus, ratificando o Direito Penal como instrumento para manter e perpetuar a estratificação de classes sociais.
Informações Sobre os Autores
Airto Chaves Junior
Mestrando do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, com concentração em Fundamentos do Direito Positivo, Linha de Pesquisa: Produção e Aplicação do Direito; Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
Marisa Schmitt Siqueira Mendes
Mestranda do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, com concentração em Fundamentos do Direito Positivo, Linha de Pesquisa: Principiologia e Hermenêutica Constitucional; Bolista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES