Resumo: Este artigo pretende enfocar questões da Filosofia do Direito a partir da obra de autores como Philip Dick e Kafka. Entende-se que esses autores têm uma postura crítica para com o direito de suas sociedades, apontando diversos problemas, que fazem pensar sobre alguns dogmas do direito.
Palavras-chave: Direito, Ficção Científica, Literatura, Philip K. Dick, Kafka
Sumário: Introdução, 1. A necessidade do direito na sociedade, 2. Sociedade, controle e Direito, 3. Direito como repressão, 4. Quando não há garantias legais mínimas nem na ficção 5., Considerações Finais, Bibliografia
Introdução
Os estudos de Direito costumam se utilizar de alguns textos literários para ilustrar alguns dos pensamentos ou dogmas jurídicos. Isso ocorre porque as concepções de Direito também estão presentes nas obras literárias, assim como nos livros de Direito. Uma série de textos literários são utilizados para apresentar concepções diferentes de Direito, mas dificilmente se destaca que a concepção apresentada é uma dentre as muitas possíveis. A literatura reflete à sociedade com seus valores e sua concepção de Direito, por isso analisar obras literárias se torna importante para fixar conceitos ou mesmo fazer uma crítica.
É famosa a discussão que muitos professores fazem em torno do livro Antigona de Sóflocles, abordando aspectos como: lei natural e lei positivada, Direito e Moral, etc.. A questão de Sófocles certamente não era a mesma de um jurista do século XX ou mesmo de hoje, porém seus textos ainda surtem reflexos e são estudados por inúmeros estudantes de Direito. Aristófanes também apresenta uma concepção de Direito muito interessante, que pode ser vista em textos como “As nuvens”, “As vespas” e “As aves”. O texto “A farsa do advogado Pathelin” de autoria incerta escrito provavelmente na França na idade média é um texto fascinante para se discutir o papel do advogado e questões que relacionam direito e ética. Dostoievisk e seu “Crime e Castigo” também trata de temas relativos ao direito.
Machado de Assis é outro autor que é estudado nas aulas de Filosofia do Direito ou de Introdução ao estudo do Direito para abordar temas como a concepção de liberdade (com o conto “Pai contra mãe”), burocracia no Direito (Teoria do medalhão), etc.. Não menos interessante é a peça “O juiz de paz na roça” de Martin Pena, que retrata o judiciário na sociedade brasileira no início do século XIX.
François Ost em seu livro “Contar a lei” utiliza-se de diversos textos literários para discutir Filosofia do Direito. O autor traça uma análise rica de textos como Antigona, Robinson Crusoé e o Processo de Kafka, com o objetivo de retratar fontes do imaginário jurídico. Essa proposta de buscar na literatura uma compreensão do Direito não é nova, mas sempre é interessante, em especial como método didático nas aulas iniciais de Direito. A literatura auxilia a fazer a ponte entre o conhecido e o desconhecido mundo dos conceitos jurídicos. A filosofia do Direito parece algo menos distante do aluno iniciante quando apresentada por meio de textos literários. Desses textos costuma-se abordar uma concepção geral de Direito. Isso também pode ser feito por meio de filmes, porém nesse caso há uma dificuldade em adequar a concepção de Direito de filmes, geralmente americanos, para o Brasil. Porém, se nos filmes a contextualização histórica da sociedade que tem aquele direito dificilmente pode ser esquecida, os textos literários são comumente apresentados sem esse cuidado e acabam por aparentar como portadores de concepções universais de Direito, o que não se confirma.
O objetivo desse artigo é apresentar a concepção de Direito de Kafka e Philip K. Dick, por meio da análise de algumas de suas obras. Esses autores apresar de terem uma reputação muito diferente, apresentam em suas obras concepções de Direito semelhantes.
Kafka é um aclamado escritor praguense do início do século XIX que escreveu uma série de contos e novelas, que tem como foco principal um Direito policialesco e com pouquíssima participação social. Kafka tem ainda um ponto interessante, pois teve estudos formais em Direito. Como informa um de seus tradutores, Kafka:
“Trabalhou como advogado, a princípio na companhia particular Assicurazioni Generali e depois no semi-estatal Instituto de Seguros contra Acidentes do Trabalho”[1].
Dick é um escritor americano do século XX, que tem como obra uma profusão de textos de ficção científica, com uma abordagem social e com uma concepção de Direito também policialesca. Dick é autor de ficções científicas em que o futuro não é descrito com foco principal na tecnologia, mas sim na sociedade. Assim, esse autor torna-se um crítico social, ao representar nas sociedades futuras, muitos dos anseios e problemas da sociedade moderna. Muitos de seus livros foram vertidos para o cinema, devido ao seu forte apelo popular.
Apesar de muito diferentes os dois autores, tem em comum possuirem uma literatura em que o caráter onírico é fortemente presente. O onírico leva a uma extrapolação da realidade, que propicia ao leitor a uma crítica das instituições de sua sociedade. Há também uma crítica à sociedade que está presente nos dois autores, e é destacada pelo próprio Dick, que diz ter tido como inspiração as obras de Kafka. Os dois autores também apresentam algumas concepções parecidas do que vem a ser Direito, em especial quanto a necessidade de garantir direitos de proteção à pessoa.
A relação da ficção com o Direito também pode ser vista em outras obras de autores que tem uma visão policialesca do Direito, como “1984” de George Orwell, “Admirável mundo novo” de Aldous Hxley, “Nós” de Yevgeny Zamyatin ou “Fahrenheit 451” de Ray Bradburry. Kafka não apresenta uma sociedade do futuro, como Dick e os autores citados acima o fazem, porém é possível uma aproximação entre esses autores por estabelecerem uma crítica social, uma busca pelo onírico e pelo absurdo e uma concepção do direito pautada no controle social.
Restringiu-se somente a dois autores, que tem uma relação direta, para que o conceito de Direito e sua relação com a concepção de sociedade apresentada no texto fosse melhor detalhada. Serão analisados o conteúdo dos textos, deixando de fora uma análise histórica de sua criação. Os textos selecionados são: “Minority report” e “O homem duplo” de Dick e “O processo” e “Colônia penal”.
As sociedades ficcionais apresentadas tem um papel fundamental na concepção de direito que está presente nessas obras. O direito é uma instituição imaginária da sociedade e como tal é produto e produtor de uma determinada sociedade que é historicamente definida. A obra ficcional é ao mesmo tempo produto de uma determinada sociedade e apresenta um fator de extraordinário ao poder ir além da realidade histórica. Por essas e outras razões essas obras são uma importante fonte de reflexão, especialmente para os estudos de Filosofia do Direito.
1. A necessidade do direito na sociedade
Cada sociedade em uma época e local apresentam um determinado Direito. Esse Direito é ao mesmo tempo fruto e reflexo dessa sociedade. Cada um desses direitos pode ser entendido como um Direito diferente. A sociedade moderna apresenta um Direito que é tido por alguns como universal, porém não é essa a realidade, uma vez que cada direito tem suas particularidades próprias. O que há de comuns em diversos direitos de sociedades ocidentais são as regulações e valores que estas sociedades entenderam como necessárias. As declarações de Direitos humanos, o capitalismo, o machismo são instituições adotadas por diversas sociedades e os direitos presentes nessas sociedades refletem essas instituições e as garantem. O direito é produto humano em uma dada sociedade. Pode-se dizer que há Direito onde há sociedade e que a criação é simultânea.
O Direito é tido por muitos estudiosos, como algo que é fruto da comunicação humana. O Direito é expresso pela comunicação, mas não se restringe a ela. O Direito pode ser mais bem entendido como uma instituição imaginária social. Nesse sentido o Direito nunca é, ele é sempre um vir a ser, ou seja, não há como capturar esse ser em eterna transformação a não ser momentaneamente.
Essa eterna transformação é apontada por Kafka em seu texto “Colônia Penal”. Esse texto fala de uma situação em que os direitos estavam mudando, porque a sociedade não mais legitimava aquele tipo de direito. Há a mudança de um direito em que a pena era exibida nos corpos dos condenados, para um direito em que isso não era mais aceito. O direito antigo não era mais aceito e deveria ser transformado. O investigador se espanta ao descobrir como o antigo direito era exercido e se choca com a forma da sanção aplicada.
O Direito não pode ser entendido como um contrato entre pessoas para o estabelecimento de leis. Um contrato seria algo extra-social e o próprio direito é social. O Direito também não pode ser entendido como algo natural, quando se entende que natural se diferencia do que é humano. Não há um direito que não seja humano, nem mesmo o direito divino, uma vez que mesmo este tem de ser expresso na linguagem humana.
2. Direito como repressão
O Direito tem sido entendido modernamente a partir de seu caráter repressivo. Grande parte das concepções filosóficas que abordam o conceito de direito na atualidade acabam definindo-o como um instrumento de repressão social. Essa não é a única definição possível do Direito, nem mesmo do ordenamento jurídico, porém é a definição quase hegemônica nos meios acadêmicos.
A compreensão de um direito como instrumento de repressão do comportamento social, pode ser datada como um fenômeno do século XIX no mundo ocidental. Em outras épocas e lugares é possível identificar um direito com um caráter repressivo, porém isso é diferente do direito ser definido como sanção. Definir o direito como sanção é próprio de uma sociedade que não exerce seus poderes políticos, ou seja, é autônoma. Longe de poder dar os rumos de sua própria sorte a população se vê refém de regras que não foram estipuladas por ela e que são acatadas como uma espécie de único remédio para a cura de uma doença gravíssima. Alguns juristas chegam a dizer que o direito, entendido como sanção, é um mal necessário para que a sociedade não se desintegre, não adentre em um estado de barbárie. Esta concepção é própria daqueles que entendem que o homem não consegue viver sem freios, e só sob os grilhões de uma lei heterônoma se sente feliz. A noção de um direito que somente é definido como repressão é uma noção anti-democrática, totalitária e distingue os governados dos governantes, dando a estes últimos um direito que é definido como instrumento de poder e mudança.
Kafka apresenta em quase todos seus textos um conceito de Direito como repressão. Em “O Processo” o Direito é apresentado como um instrumento de repressão social, sem que outra alternativa seja oferecida. Joseph K. sofre com um direito que o reprime, que atua como sanção e não como promotor de uma vida boa. K. não tem garantidos nem aqueles direitos que ele supõe que tem. Depois de ter sido anunciado por dois homens que K. estava preso, ele não crê na situação que se encontra, pois parece ferir toda a concepção de um processo no âmbito do direito.
“K. ainda vivia num Estado de Direito, reinava paz em toda a parte, todas as leis estavam em vigor, quem ousava cair de assalto sobre ele em sua casa?”[2]
Nesse mesmo texto há um confronto entre o conceito de lei das pessoas que prendem e o conceito de Joseph K. O primeiro é de um direito repressivo sem face, sem conhecimento da população, ou seja, um direito secreto dos governantes que seria apenas apresentado aos governados em situações de crime. O direito nesse sentido se transforma em força, que é exercida sem medidas.
“-Essa lei eu não conheço – disse K.
– Tanto pior para o senhor – disse o guarda.
– Ela só existe nas suas cabeças – disse K, querendo de alguma maneira se infiltrar nos pensamentos dos guardas, revertê-los em seu favor ou neles se instalar.
Mas o guarda, num tom de rejeição, disse apenas:
– O senhor irá senti-la”[3].
No texto “Colônia Penal” o Direito também é um direito que é entendido como um instrumento de repressão. Nesse caso a repressão é exercida com requintes de crueldade, pois aplicar a pena é a mesma coisa que matar o condenado. Kafka repete aqui a mesma fórmula do Direito como algo que é sentido pelo condenado. Isso se dá novamente na fala do oficial da colônia, ao explicar o procedimento da execução:
“- Compreende o processo? O rastelo começa a escrever; quando o primeiro esboço de inscrição nas costas está pronto, a camada de algodão rola, fazendo o corpo virar de lado lentamente, a fim de dar mais espaço para o rastelo. Nesse ínterim as partes feridas pela escrita entram em contato com o algodão, o qual por ser um produto de tipo especial, estanca instantaneamente o sangramento e prepara o corpo para novo aprofundamento da escrita. Então, a medida que o corpo continua a virar , os dentes na extremidade do rastelo removem o algodão das feridas, atiram-no ao fosso e o rastelo tem trabalho outra vez. Assim, ele vai escrevendo cada vez mais fundo durante as doze horas. Nas primeiras seis horas o condenado vive praticamente como antes, apenas sofre dores. Depois de duas horas é retirado o tampão de feltro, pois o homem já não tem mais força para gritar (…) Mas o condenado fica tranqüilo na sexta hora! O entendimento ilumina até o mais estúpido (…) Mais nada acontece, o homem simplesmente começa a decifrar a escrita, faz bico com a boca como se estivesse escutando. O senhor viu como não é fácil decifrar a escrita com os olhos, mas o nosso homem a decifra com seus ferimentos”[4].
Kafka aponta para um Direito que tem sentenças com punições físicas, como era comum até a cerca de um século no direito moderno ocidental. Ainda hoje as sentenças que buscam castigar o físico estão presentes. Sentenças como a pena de morte, o açoite, o apedrejamento, chibatadas, ainda são sentenças válidas em muitos países ocidentais e orientais. A violência estatal se expressa até hoje pela força e não é apenas uma violência simbólica. Kafka choca seus leitores, com o que é comum, corriqueiro, porém é indesejado. Em “Colônia Penal” o que está em jogo é justamente a mudança de paradigma das sentenças. O oficial é a última figura que defende na colônia penal uma execução da pena com requintes de tortura, que não é mais querida por outros funcionários do governo.
“-Nossa sentença não soa severa. O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com o rastelo. No corpo deste condenado, por exemplo – o oficial apontou para o homem – será gravado: Honra o teu superior!”
Dick apresenta o Direito como um instrumento repressor em suas ficções científicas de caráter social. Em “Minority report” há uma extrapolação da esfera do Direito, que busca regular minuciosamente a vida das pessoas, além de fiscalizar seus comportamentos. A fiscalização entra inclusive na mente das pessoas, prevendo ações. As penas dificilmente são aplicadas, uma vez que dificilmente há crimes, porém quando isso acontece, as penas se mostram muito duras. A pena da personagem John não é nada mais nada menos do que o banimento para uma outra sociedade muito menos desenvolvida do que a que vivia.
A situação construída por Dick nessa ficção aponta para uma utopia de muitas pessoas: a não existência de crimes. Em uma sociedade em que as regras jurídicas são sempre respeitadas não se tem crime e sem crime não é necessário um aparato para julgamento das pessoas. O direito se restringe nesse caso em um código de leis que é cumprido pela população e fiscalizado por uma polícia.
“-Você está a par da teoria da prevenção do crime, é claro. Suponho que isto seja ponto pacífico.
– A informação que tenho é a que está disponível publicamente- replicou Witxer – Com a ajuda de seus mutantes precognitivos, você conseguiu, audaciosamente, abolir o sistema punitivo pós-crime de cadeias e multas. Como todos sabemos, a punição nunca foi grande impedimento, e provavelmente nunca ofereceu conforto à vitima já morta.
-Deve ter percebido o inconveniente legal básico da metodologia pré-crime. Prendemos indivíduos que nunca infringiram a lei.
– Mas que certamente infringirão- afirmou Witwer com convicção.
-Felizmente não. Nós os pegamos primeiro, antes que comentam qualquer ato de violência. Desse modo a comissão do crime, em si mesma, é uma metafísica absoluta. Alegamos que são culpados. Eles, por sua vez, afirmam eternamente ser inocentes. E, de certa maneira, são inocentes.” (trecho do texto somente com o diálogo)
O Direito se restringe às leis e à fiscalização. A punição não deixa de existir, porém ela antecede à própria ação criminosa, pois na sociedade criada por Dick não se pode correr o risco de aplicar a sanção a posteriori, que é tida como ineficaz. A questão que Dick apresenta de forma extrapolada, está presente na fala de muitas pessoas que querem uma atuação maior do poder de fiscalizar os crimes, ou mesmo impedi-los antes que estes acontecessem. Dick mostra o ridículo dessa situação em uma sociedade, que paga um preço caro para não ter crimes. A violência não é exercida pelas pessoas nos crimes, porém é exercida pelo Estado de uma forma totalitarista, à medida que não há outra verdade. O direito nessa situação não pode ser modificado, nem discutido e se torna a verdade. A legislação passa a ser um dado e não algo construído coletivamente. Dick apresenta uma sociedade em que o direito é ao mesmo tempo controlador de tudo, mas que somente se restringe a uma parte do que é o direito em uma sociedade não-ficcional, que engloba a parte de discussão sobre a elaboração das leis, suas modificações, as discussões no procedimento judicial, etc..
No romance ficcional “O homem duplo”, Dick também aponta para uma sociedade policialesca e para um direito repressor. Tratando da questão das drogas, Dick prefere uma abordagem do problema como um problema social e não individual. Apontando como um Estado repressor lida com as drogas, ao mesmo tempo em que as aceita, de alguma maneira, Dick ressalta mais uma vez o caráter da punição. Assim diz o autor ao fim do livro:
“Esta novela tratou de pessoas que foram punidas demasiadamente pelo que fizeram. Queriam passar uns bons momentos, mas eram como crianças brincando na rua; podiam ver que de vez em quando uma delas era morta – atropelada, aleijada, destruída – mas continuavam a brincar, de qualquer maneira”.
O Direito possui uma dimensão que é a da repressão, quando visa regular o comportamento social visando a paz, porém essa não é a única dimensão do Direito. Mesmo nessa dimensão o Direito não pode ser encarado como uma instituição social heterônoma, ou seja, este deve ser instrumento social de mudança exercido pela sociedade na esfera pública democraticamente. Um direito que reprime o crime é diferente de um direito entendido como repressão e fruto de um governo totalitário.
3. Direito e burocracia judiciária
Weber foi um dos autores que trata da importância da formação da burocracia para o desenvolvimento de um Direito moderno. Para o sociólogo, o Estado moderno começa a formar a partir do século XIX um aparato burocrático que tem competências fixas, rege-se pelo princípio da hierarquia de cargos e está baseada em regras que especificam todos os atos a serem tomados minuciosamente[5]. A necessidade do funcionário seguir essas regras, leva a uma quase anulação de sua autonomia, porém por outro lado, gera uma uniformidade nas ações individuais decorrente da previsibilidade nas condutas e uma uniformização dos procedimentos estatais.
“A peculiaridade da cultura moderna, especialmente a de sua base técnico-econômica, exige precisamente esta ‘calculabilidade’ do resultado. A burocracia em seu desenvolvimento pleno encontra-se, também, num sentido específico, sob o princípio sine ira ac studio. Ela desenvolve sua peculiaridade específica, bem-vinda, ao capitalismo, com tanto maior perfeição quanto mais se desumaniza, vale dizer, quanto mais perfeitamente consegue realizar aquela qualidade específica que é louvada como sua virtude: a eliminação do amor, do ódio e de todos os elementos sentimentais, puramente pessoais e, de modo geral irracionais, que se subtraem ao cálculo, na execução das tarefas sociais. Em vez do senhor das ordens mais antigas, movido por simpatia pessoal, favor, graça e gratidão, a cultura moderna exige para o aparato externo em que se apóia o especialista não-envolvido pessoalmente e, por isso, rigorosamente ‘objetivo’, e isto tanto mais quanto ela se complica e especializa. E tudo isto a estrutura burocrática oferece numa combinação favorável. Sobretudo é só ela que costuma criar para a jurisdição o fundamento para a realização de um direito conceitualmente sistematizado e racional, com base de leis, tal como o criou, pela primeira vez, com alta perfeição técnica, a época imperial romana tardia”[6].
Kafka em seus textos enfatiza a burocratização de muitos aspectos da vida, em especial no “O processo” e no texto “Diante da lei”. No romance “O Processo” a burocracia é um dos personagens principais. Os policiais, juízes e outros funcionários que lidam com o direito são retratados como pessoas que seguem regras e protocolos, porém que não sabem de onde vêm essas ordens. Eles somente sabem que estas leis devem ser cumpridas. A hierarquia se alonga de determinada maneira, que a pessoa que ordena uma determinada ação dificilmente pode ser identificada. Isso pode ser visto em uma das falas do investigador que interroga Joseph K.:
“-Estes senhores aqui e eu somos totalmente secundários no seu caso, na verdade não sabemos quase nada dele. Poderíamos estar com os uniformes mais regulamentares e o seu caso não seria em nada pior. Não posso absolutamente lhe dizer que é acusado, ou melhor, não sei se o é. O senhor está detido, isto é certo, mais eu não sei. Talvez os guardas tenham tagarelado outra coisa, mas aí foi só tagarelice”[7].
O conteúdo do direito se perde no meio de uma burocracia que foi inicialmente desenhada para garantir um direito mais abstrato e sem tanta interferência dos sentimentos daqueles que lidam com esse direito. K. inicialmente toma a ação dos burocratas como uma afronta pessoal, para depois entender que a situação que passou repete-se com milhares de pessoas. As ações dos funcionários regradas em atos oficiais excluem essas pessoas do que é mais humano no homem, que é ter e expressar emoções. A burocracia faz com que os homens sejam considerados como instrumentos do Estado, programados para executar tarefas determinadas. Porém, na função de instrumentos os homens se desumanizam no seu trato com o público e também tem diminuída sua condição de homem. O direito tem de lidar com essa complicada equação de quem é competente a proporcionar que direitos sejam transformados em realidade, não são considerados como pessoas frente á máquina burocrática.
Philiph Dick também trata em suas ficções científicas de cunho social na questão da burocracia. Em “O homem duplo” é um traje especial que permite que o rosto dos funcionários estatais não sejam identificados como indivíduos particulares no ambiente de trabalho. A tentativa de tornar a burocracia impessoal atinge aqui o seu auge, pois a pessoalidade é apagada por parte daquele de quem presta o serviço estatal, quanto para aquele que recebe. Com isso se pode também conter mais ainda os sentimentos. A personagem de Donna ao fim da ficção se diz arrependida pelo que fez ao seu amigo, dando-lhe drogas que o incapacitaram para que ele fosse internado em um campo de reabilitação que tinha como atividade o cultivo de drogas. Donna visava com isso descobrir quem eram aqueles que plantavam as drogas, porém para isso teve de levar seu amigo a ruína. Donna era uma funcionária pública e fez isso como seu trabalho. A seguir um diálogo mantido entre os dois colegas de trabalho, sobre como se sentem frente aos seus atos:
“-Há muito que trabalhamos nisto juntos- lembrou Donna numa voz moderadamente firme. –Não quero continuar assim por muito tempo. Quero ver isso acabado. Por vezes à noite, quando não posso dormir, penso, trampa, somos mais frios que ele, o adversário.
-Quando olho para ti não vejo uma pessoa fria – retorquiu Westaway – Ainda que creia que na verdade não te conheço tão bem como isso. O que vejo, e vejo claramente, é que és uma das pessoas mais ardentes que conheço.
-Sou ardente por fora, no que as pessoas vêem. Olhos quentes, rosto quente, este quente e tramadamente falso sorriso, mas por dentro sou sempre fria e cheia de falsidades. Não sou o que pareço ser; sou medonha. – A voz da jovem permaneceu firme e enquanto ela falava sorria. As suas pupilas eram maiores, mais meigas e sem malícia. –Mas não há nada a fazer. Dei com isso há muito e fiz-me assim. Não é verdadeiramente mau. (…)”[8].
Dick aponta para o dilema do funcionário público que se vê desumanizado ao cumprir suas funções. O funcionário ao não expressar suas emoções ao público, acaba sofrendo com isso em sua vida pessoal. Esse, porém, é um dos requisitos da burocracia e é através dessa burocracia e seus procedimentos que o Direito atual se concretiza. O Direito ao tentar ser abstrato, passa a não considerar o destinatário das normas como alguém individualizado. Essa especificidade do Direito moderno, que é em um grau positiva, também tem sua face negativa, pois é essa recusa à individualização e a personificação que levam a um Direito que não parece adaptado ao humano.
4. Agigantamento da abrangência da normatização
O Direito entendido como legislação que regula a conduta social, tem por premissa que não pode regular todas as condutas humanas existentes, ficando muitas delas de fora dos regramentos. Isso decorre da própria incapacidade de tudo regrar e também da não necessidade de regrar algumas condutas, pois elas não têm repercussão jurídica, podendo ser estabelecidas livremente entre as pessoas.
O agigantamento da abrangência da normatização começou a crescer no século XIX. O direito positivado com as diversas condutas proibidas era um direito voltado para as grandes cidades industriais, as relações sociais distantes, a um modelo burguês de família e a uma economia capitalista que crescia.
“A redução do jurídico ao legal foi crescendo durante o século XIX, até culminar no chamado legalismo. Não foi apenas uma exigência política, mas também econômica. Afinal, com a Revolução Industrial, a velocidade das transformações tecnológicas aumenta, reclamando respostas mais prontas do direito, que o direito costumeiro não podia fornecer”[9].
O direito como normatividade tem crescido tanto, que é difícil se encontrar uma esfera da vida humana em que ele não regre. O espaço de liberdade em que o homem pode agir sem regramentos legais tem sido restringido década após década, em especial nos países que se utilizam de um direito codificado. Quase todos os aspectos da vida do homem comum passam pelo regramento jurídico. O mesmo se dá com a cidade e com os bens.
Foucault retratou em seus livros o crescimento da esfera do Direito e o crescimento de um biopoder, que tem controle não somente de um nível macro do controle social, mas que se desenvolve no micro-social, atingindo uma regulação refinada das ações humanas. Enquanto o poder disciplinar recaia sobre os corpos dos homens, o biopoder exerce uma disciplina que é semelhante ao poder disciplinar, porém é válida para todas as esferas da vida dos homens. Tudo passa a ser visto, sancionado e analisado. Porém, esse biopoder é que regula os detalhes, mas que não se encontra no conteúdo de um direito. Assim, o biopoder regula a esfera micro que o Direito não regula, mas que sem ela este não funcionaria. Nas palavras de Foucault:
“Mais rigorosamente: a partir do momento em que as coações disciplinares tinham que funcionar como mecanismos de dominação e, ao mesmo tempo, se camuflar enquanto exercício efetivo de poder, era preciso que a teoria da soberania estivesse presente no aparelho jurídico e fosse reativada pelos códigos. Temos, portanto, nas sociedades modernas, a partir do século XIX até hoje, por um lado, uma legislação, um discurso e uma organização do direito público articulados em torno do principio do corpo social e da delegação de poder; e por outro, um sistema minucioso de coerções disciplinares que garanta efetivamente a coesão deste mesmo corpo social. Ora, este sistema disciplinar não pode absolutamente ser transcrito no interior do direito que é, no entanto, o seu complemento necessário”[10].
Pode-se falar que Foucault se refere ao Direito aqui, como um direito normatizado pelo Estado. Ao se ampliar o conceito de Direito para tudo aquilo que visa uma regulamentação social em uma esfera ampla poderia-se chamar as regras do biopoder, de Direito no sentido amplo, mesmo não sendo suas regras normas jurídicas propriamente ditas, mas normas sociais.
Kafka parece entender essas regras sociais como parte de um Direito, incluindo nelas aquelas regras minuciosas que detalham as ações humanas em diversas esferas da vida do homem. Nesse sentido pode-se falar que Kafka rompe com o conceito tradicional de Direito de sua época, quando faz uma crítica ao Direito. Kafka aponta para uma vida amplamente legislada e fiscalizada nos últimos detalhes, em um paralelo àquilo que Foucault muitos anos depois chamaria de biopoder.
Kafka acrescenta um outro problema ao agigantamento da normatização, que é o não conhecimento dessas regras pelas pessoas. Quando existem muitas regras é muito provável que não as pessoas não tenham conhecimento delas, porém, um dos pilares do direito moderno é que não se pode alegar o desconhecimento da lei. Isso ocorre para que não se descumpra uma lei, alegando não conhecê-la.
Dick no “Minority Rerport” fala de uma normatização que se agigantou para tomar todas as esferas da vida. Tudo é normado e regrado de um modo pré-definido e que não é alterado. Apesar do agigantamento da normatização dos comportamentos humanos não se pode falar de um agigantamento do Direito, o que reforça a idéia de que o Direito não pode ser restringido somente à lei. Não há autonomia que é a possibilidade das pessoas se darem as suas próprias leis. Não há democracia, também aqui no sentido grego antigo da palavra.
Nessa ficção a vida também é regrada em todos os seus aspectos e o que a torna digna de nota é que o regramento impede inclusive que aquilo que está regrado se realize. As pessoas não comentem crime, pois eles simplesmente são previstos por adivinhos que tem a capacidade de ver um futuro próximo, e com isso são evitados antes mesmo que aconteçam. Dick aponta para uma sociedade extremamente regrada, mas que não há garantias para a defesa. O direito se agiganta em regras para punir os comportamentos humanos e ao mesmo tempo se encolhe, quando se trata de proporcionar direitos de defesa.
5. Quando não há garantias legais mínimas nem na ficção
Um dos papéis do Direito é assegurar garantias a determinados sujeitos, via uma formalização escrita na legislação de direitos conquistados por movimentos sociais. Essa formalização de direitos parte de uma posição política da sociedade. Diversos direitos foram cristalizados nas legislações e passaram a ser exigidos como forma de conduta normal pela sociedade ocidental moderna. O respeito a esses direitos conquistados são exigidos a todo tempo diferentes pessoas da sociedade, mesmo em situações não propriamente jurídicas. Eles figuram como uma garantia ao não desrespeito de muitas pessoas, em especial quando sentem que aqueles direitos podem não ser respeitados ou o são efetivamente. Essas garantias que foram transformadas em direitos podem ser consideradas como uma instituição imaginária da sociedade atual.
As garantias figuram como Direito em quase todas as legislações. No Direito Internacional elas fazem parte do conteúdo de diversas declarações e convenções de Direitos. No âmbito do Direito de cada país, essas garantias figuram em especial nas constituições nacionais. A Constituição Federal brasileira de 1988 tem em seu conteúdo uma série de garantias e seu rol mais conhecido está no artigo 5 desse documento.
Em “O processo”, Kafka trata de diversas garantias legais que são parte da vida de diversas pessoas, em especial do protagonista. Joseph K. exige ao longo de sua jornada que sejam respeitados uma série de garantias que estão presentes na sociedade moderna. Uma das principais garantias que não são respeitadas pelas pessoas que prendem K., são: respeito ao devido processo legal, garantia do contraditório e ampla defesa, garantia da inocência até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, garantia de que a prisão deve ser feita por autoridade competente.
A existência dessas garantias está tão presente na sociedade moderna, que quando elas não são respeitadas, como é o caso desse livro do Kafka, a situação parece tão anormal, quanto uma situação de sonho. Essas garantias transformadas em Direito fazem parte da sociedade de uma certa maneira, que é quase que impossível se pensar a sociedade moderna sem elas. Kafka poderia remeter a situação de suspensão dessas garantias como uma situação de mudança de postura política, como por exemplo, a mudança de um governo que suspende os direitos que estavam consolidados nas legislações. Porém, a suspensão das garantias remete a uma situação de sonho, como se as leis aceitas socialmente fossem parte de uma situação de realidade, enquanto que a não existência dessas garantias não fosse normal. O onírico apresenta uma situação em que alguns acontecimentos e regras ocorrem normalmente, enquanto outros não. O sonho geralmente apresenta uma realidade ou uma realidade distorcida. No caso do “Processo” a realidade está distorcida pela falta dos direitos consolidados na sociedade moderna. Joseph K. exige que esses direitos sejam respeitados, porém as pessoas ao seu redor parecem não compartilhar dessa necessidade e K. tem a impressão de estar sonhando.
Em “Colônia Penal” Kafka também repete no diálogo do explorador e do oficial, representantes de dois tipos de Direito, a discussão das garantias mínimas. Kafka destaca quase os mesmos direitos presentes no “Processo”, como a necessidade do condenado saber da sentença e de poder se defender.
“- Ele não conhece a sentença?
-Não – disse o oficial, e logo quis continuar com as suas explicações.
Mas o explorador o interrompeu.
-Ele não conhece a própria sentença?
-Não – repetiu o oficial e estacou um instante, como se exigisse do explorador uma fundamentação mais detalhada de sua pergunta, depois disse:
-Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentar na própria carne ”[11].
“-Mas ele certamente sabe que foi condenado, não?
– Também não – disse o oficial e sorriu para o explorador, como se ainda esperasse dele algumas manifestações insólitas.
-Não- disse o explorador passando a mão pela testa – Então até agora o homem não sabe como foi acolhida sua defesa?
-Ele não teve oportunidade de se defender – disse o oficial, olhando delado como se falasse consigo mesmo e não quisesse envergonhar o explorador com o relato de coisas que lhe eram tão óbvias.
-Mas ele deve ter tido a oportunidade de se defender – disse o explorador erguendo da cadeira”[12].
A noção de Kafka de um Direito em que o Estado pode tudo e o indivíduo não pode nada, ressalta a necessidade de uma certa igualdade, para que se possa evitar injustiças. Kafka mostra como é importante a atuação forte do homem perante do Estado e aponta para uma oposição de interesses, que não deveria existir, pelo menos se quer se construir uma sociedade democrática. A oposição indivíduo e Estado, quanto aos interesses, é uma oposição que causa diversos atritos, e via de regra, vai exigir do Estado a utilização da força. Em uma situação em que o homem tem autonomia e participa da política, os ideais do Estado são os seus ideais e não há oposição de interesses. Porém, isso exige dos homens uma participação política, que cada dia mais é deixada de lado quando uma boa parte desses homens optam por uma vida narcísica.
Os direitos fazem parte de uma determinada sociedade e é possível reconhecer essa sociedade pela existência de alguns desses direitos. Philiph Dick em “Minority report” apresenta uma outra sociedade em que muitas das garantias presentes na sociedade atual não existem. Aqui não se trata de uma situação onírica, como em Kafka, mas da não existência de algumas garantias porque a sociedade se apresenta de outra maneira. Nessa ficção de Dick não há garantias como: necessidade do devido processo legal, garantia do contraditório e da ampla defesa, necessidade de sentença penal condenatória para a pessoa ser considerada culpada, existência de uma ação considerada como ilegal predefinida em lei. Essas e outras garantias não são consideradas na sociedade de “Minority report” como necessárias ao Direito, pois se tornou impossível o descumprimento das normas penais.
6. O poder das leis como um poder sem face
O Estado detém o monopólio da criação e publicação de grande parte das leis de caráter jurídico, porém muitas vezes a lei é entendida por grande parte da população como emanada de um poder sem face. Nesse sentido é possível uma aproximação das leis que antigamente eram ditadas por governantes que se diziam representantes do transcendente. Isso porque em ambos os casos as leis aparecem como um objeto sobre-humano, ao qual grande parte da população não tem influência nenhuma.
Kafka trata da questão das leis em diversos textos, mas é no “Diante da lei” que aborda o tema da lei entendida como um objeto quase transcendente. Nesse texto um camponês fica esperando que um guarda abra a porta da lei, que nunca é aberta apesar de todos os esforços.
“O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele”[13].
Nesse conto Kafka aponta para a dificuldade do acesso do povo à lei, mas também mostra o distanciamento existente entre aqueles que criam as leis e aqueles que têm de obedecê-las. Esse texto não destaca que a criação das leis deveria passar pelo povo, pelo contrário. Kafka apresenta uma sociedade altamente regulada por leis que não tem participação popular na sua feitura e que parecem emanar de um centro de poder sem face. Trata-se de uma situação de intensa heteronomia, em que as leis não são discutidas pela população em uma situação democrática.
Essa mesma situação de heteronomia em relação às leis ocorre no texto “O processo”. Nesse texto a personagem principal, Joseph K., não sabe ao certo que crime cometeu, nem as regras para ser processado. K. não sabe que leis serão aplicadas a ele, nem por quem serão aplicadas. O centro do poder é totalmente difuso. A imagem de Hanna Arendt para o poder moderno pode muito bem ser aplicada nesse caso. Arendt fala de um poder sem centro, como se fosse uma cebola.
“(…) a imagem mais adequada de governo e organização totalitários parece-me ser a estrutura da cebola, em cujo centro, em uma espécie de espaço vazio, localiza-se o líder; o que quer que ele faça – integre ele o organismo político como em uma hierarquia autoritária, ou oprima seus súditos como um tirano – , ele o faz de dentro, e não de fora ou de cima”[14].
A noção de um governo autoritário existe a todo tempo nos textos de Kafka e conforme aponta Arendt, tem um poder que é exercido de dentro, ocultando o próprio centro do poder. As leis emanadas desse poder têm a característica de não serem leis que tiveram uma participação social na sua construção.
Em “Colônia Penal” Kafka propõe uma situação em que a lei é escrita nas pessoas como sentença, por meio de uma máquina que imprime na pele do condenado a lei através de agulhas que perfuram seu corpo e levam o sentenciado à morte. A lei está impressa, porém não se segue um processo que permita a defesa do condenado ou mesmo a ciência do crime que cometeu. A lei é aplicada fisicamente e o poder final apesar de estar na mão do carrasco, apresenta-se difuso e sem face, pois ele é exercido de forma autoritária por diversos funcionários públicos. Kafka aponta para uma mudança de paradigmas na aplicação dessa lei.
Dick apresenta no texto “Minority Report” essa mesma concepção de poder sem face e de uma lei que é heterônoma. O personagem principal desse texto, John Anderton, trabalha em uma organização policial chamada “pré-crime”, que tem como objetivo prever crimes antes que estes aconteçam. A previsão é feita por adivinhos, que emitem relatórios, que são seguidos pelos policiais. Nessa concepção de Dick as leis penais não são nem necessárias, pois fica quase impossível que uma pessoa cometa um crime, uma vez que a ação criminosa nunca chega a se realizar. O texto ressalta o poder dos adivinhos em formularem os relatórios. Esse poder é um poder quase sem face e totalmente heterônomo. Isso porque os relatórios desses adivinhos são tidos como verdades incontestáveis. A população não tem o menor acesso a esses relatórios, nem pode discutir a sua validade, pois há uma legitimação estatal da previsão dos adivinhos.
Considerações Finais
Kafka e Philip Dick podem ser considerados como críticos de uma sociedade em que o Direito apresentava sérios problemas, não apenas enquanto instituição estatal, mas como uma instituição imaginária social. A crítica desses dois autores é feita utilizando-se da ficção, porém, suas críticas podem ser muito bem remetidas às sociedades de que faziam parte. No caso desses dois autores a crítica é feita de fora do mundo do Direito e por duas pessoas que tinham conhecimento do direito (Kafka estudou formalmente direito, enquanto que Dick conhecia pela própria experiência, como o direito era aplicado em uma pessoa marginal com diversos problemas com a lei). As personagens desses autores retratam um mundo do Direito, em que dificilmente há participação popular nas discussões políticas, na manufatura das leis e nos procedimentos de sua aplicação.
Os dois autores estabelecem uma ligação muito forte entre direito e política, como esperas interligadas. Porém, nenhum dos dois autores consegue ver um futuro, em seus textos, de um direito autônomo e exercido em uma democracia. O direito é entendido como repressão e a sociedade está fadada ao extremo controle normativo que é exercido de uma maneira totalitária. A situação apresentada pelos dois autores é semelhante também na questão da possibilidade de alteração da situação relativa à sociedade e ao direito: não há saída ou ela está muito distante. Não se tratam de utopias fantásticas. Porém, utopias são necessárias para se continuar a viver e possibilitam uma fonte de esperança de transformação.
Esses textos ficcionais têm um papel importante na formação do estudante de Direito, pois apresentam o Direito em outras sociedades (ficcionais) e levam a pensar sobre a situação do Direito na atualidade. O direito com outros pressupostos, outras regras, outros mitos, pode ser melhor entendido como uma instituição imaginária social. Fica mais claro, que o direito que Kafka retrata reflete e é produto da sociedade que esse autor descreve, e o mesmo vale para Dick. Essa utilização de textos de literatura é diferente da que invoca textos clássicos buscando dar a impressão de que o Direito é universal e atemporal. Mesmo os clássicos devem ser contextualizados, para utilização do estudo do Direito, uma vez que as instituições imaginárias sociais são diferentes.
A literatura e o direito apresentam muitos pontos em comum, pois ambos são frutos da criação humana. A literatura é fruto do imaginário-radical que é a criação do novo. O direito a princípio é fruto desse imaginário, mas uma vez instituído ele se cristaliza na sociedade. A literatura pode muito bem ser encarada como um instrumento de crítica a um direito que cada vez mais é heterônomo.
Bibliografia
DICK, Philip K. Minority report: ou a nova lei. São Paulo: Record, 2002.
_____. O homem duplo. Lisboa. Ed. Livros do Brasil. Sd
KAFKA, Franz. Diante da lei. In: O processo. Rio de Janeiro: Globo, 2003.
_____. Sobre a questão das leis. In: Narrativas do Espólio. (trad. Modesto Carone). São Paulo, Cia das Letras, 2002.
_____. O processo. Rio de Janeiro: Globo, 2003.
_____. Na Colônia Penal. trad. Modesto Carone. São Paulo, Cia das Letras, 1998.
WEBER, M. Economia e Sociedade vol.2. UNB, Brasília, 1999.
Notas:
[1] CARRONE, Modesto. Sobre o autor. In: O veredicto e colônia Penal. P. 83
[2] KAFKA. O processo. P. 10
[3] KAFKA. O processo. P. 12
[4] KAFKA. Colônia Penal. P, 44
[5] WEBER, M. Economia e Sociedade. “Natureza, pressupostos e desenvolvimento da dominação burocrática”
[6] WEBER, M. Economia e Sociedade. Natureza, pressupostos e desenvolvimento da dominação burocrática. P. 212.
[7] KAFKA. O processo. P. 16
[8] DICK, P. O homem duplo. P. 251-252
[9] FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito (Cap. 2.6). p. 76
[10] FOUCAULT, M. Microfisica do poder. “Soberania e disciplina”. p, 106
[11] KAFKA. Colônia penal. P. 36
[12] KAFKA. Colônia penal. P. 37
[13] KAFKA. Diante da lei.
[14] ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. P, 136.
Informações Sobre o Autor
Gisele Mascarelli Salgado
Pós Doutora em Direito pela FD-USP Doutora e Mestre em Direito pela PUC-SP bacharel em História Direito e Filosofia
http://lattes.cnpq.br/7694043009061056