A decisão condenatória proferida pelo conselho de sentença no Tribunal do Júri amparada exclusivamente em elementos informativos colhidas no inquérito policial: conflito entre os princípios da plenitude de defesa e da soberania dos veredictos

Nome do autor: Renan Pereira Ferrari: Juiz de Direito do estado do Pará; graduado pela Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC; ex-advogado; e pós-graduado em ciências criminais pela Universidade Estácio de Sá em parceria tecnológica com o CERS; e-mail [email protected].

Resumo: Este artigo visa esclarecer a possiblidade de a condenação proferida no Tribunal do Júri amparada exclusivamente em elementos informativos colhidos no inquérito policial, calcada na íntima convicção e na soberania dos veredictos, ferir o princípio constitucional da plenitude de defesa.

Analisou-se o procedimento dos crimes dolosos contra a vida, a maneira que se dá a colheita de provas no ordenamento jurídico criminal pátrio e sua análise no momento das decisões judiciais. Com o propósito de verificar na prática como uma decisão de condenação proferida pelo conselho de sentença com base exclusivamente em elementos informativos colhidos no inquérito policial pode ser atacada, realizou-se minuciosa pesquisa jurisprudencial acerca do assunto, para tanto, utilizou-se os Tribunais de Justiça dos estados de Minas Gerais e Santa Catarina, bem como o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, abrangendo os anos de 2008 a 2018.

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Palavras-chave: Tribunal do Júri. Provas. Inquérito. Soberania dos veredictos. Contraditório e ampla defesa.

 

Abstract: This article aims to clarify the possibility that the conviction handed down in the Court of Justice based solely on information gathered from the police inquiry, based on the intimate conviction and sovereignty of the verdicts, violates the constitutional principle of fullness of defense. The proceeding of intentional crimes against life, the manner in which evidence is collected in the national criminal justice system and its analysis at the time of court decisions were analyzed. With the purpose of verifying in practice how a conviction decision issued by the sentencing council based solely on information gathered from the police inquiry can be attacked, a thorough jurisprudential research on the subject was carried out. Justice of the states of Minas Gerais and Santa Catarina, as well as the Superior Court of Justice and the Federal Supreme Court, covering the years 2008 to 2018.

Keywords: Jury court. Evidences. Inquiry. Sovereignty of the verdicts. Contradictory and broad defense.

 

Sumário: Introdução. 1. A competência constitucional de julgamento dos crimes dolosos contra a vida. 1.1. A previsão normativa e o procedimento do Tribunal do Júri – o inquérito policial e seu valor probante. 2. A aplicação do princípio in dubio pro reo e a necessária impronúncia ou absolvição do acusado ante à inexistência de provas judicializadas. 3. A livre apreciação da prova pelo juízo natural da causa (jurados) e a não vinculação às provas judicializadas: uma afronta aos princípios constitucionais ou a simples escolha de uma das teses apresentadas? Conclusão. Referências.

 

Introdução

O presente artigo visa analisar as posições doutrinárias e jurisprudenciais acerca da violação ao princípio da plenitude de defesa nas decisões de condenação proferidas pelo Tribunal do Júri amparadas exclusivamente em elementos informativos colhidos na fase investigativa e os consequentes mecanismos para alterar decisões deste patamar sem que haja violação ao princípio da soberania dos veredictos, vez que os jurados, por não possuírem a tecnicidade jurídica, bem como por não serem “investidos no cargo” por meio de um certame público, votam, ao final do procedimento dos crimes dolosos contra a vida, de acordo com a sua íntima convicção.

Analisou-se a possível ponderação entre os princípios da ampla defesa e da soberania dos veredictos por parte do tribunal ad quem quando interposto recurso de apelação com fundamento em uma decisão manifestamente contrária a prova dos autos, o que deve ser realizado em cada caso concreto.

Outrossim, verificou-se diversas decisões proferidas por tribunais superiores sobre o tema e assuntos correlatos.

 

  1. A competência constitucional de julgamento dos crimes dolosos contra a vida

A Constituição Federal de 1988 reconheceu, como direito/garantia fundamental do homem, em seu art. 5º, inciso XXXVIII, a competência do Tribunal do Júri para julgar os crimes dolosos contra a vida.

O Júri é, então, uma garantia/direito constitucional de cada cidadão ser julgado por seus pares quando da ocorrência de um crime doloso contra a vida, no qual a análise meritória do caso concreto, no momento da decisão final, não será feita por um juiz togado, mas sim por populares, pessoas “comuns” – os jurados.

 

1.1 A previsão normativa e o procedimento do tribunal do júri – o inquérito policial e seu valor probante

O atual Código de Processo Penal foi editado no ano de 1941, ou seja, antes da promulgação da Constituição Federal de 1988. Porém, norteado pela competência mínima estabelecida na Lei Fundamental, o legislador reformou o Código de Processo Penal e editou a Lei nº 11.689, de 2008, reformulando todo o procedimento referente ao rito do Tribunal do Júri, disciplinando-o em seus arts. 406 a 497.

Praticado um crime doloso contra a vida (ou qualquer outro crime), tudo aquilo que servir para a sua elucidação pode ser considerado como meio de prova, elementos estes que são anteriores ao processo em si – os chamados “elementos informativos”.

Assim, via de regra, abre-se um inquérito policial, onde todos esses meios e fontes de provas podem ou não serem inseridos, servindo tão somente de suporte para o titular da Ação Penal oferecer a peça acusatória (denúncia ou queixa). Quando do transcurso do inquérito policial, está-se diante da fase inquisitorial, administrativa, onde não vigoram os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, por ainda não se tratar de um processo judicial.  Via de regra, o procedimento investigativo serve apenas como fonte de produção de prova e alicerce para o início da persecução penal, pois, nesta fase, existem apenas elementos informativos, e não prova propriamente dita. (LIMA, 2014, p. 71).

O inquérito policial tem algumas particularidades, dentre elas a inquisitoriedade, que é característica fundamental da fase investigativa, pois dá maior agilidade para findar a investigação.

Em suma, dizer que o inquérito policial é inquisitivo é não permitir ao imputado a ampla oportunidade de defesa consistente na produção e indicação de provas, oferecimento de recursos, alegações, etc. (NUCCI, 2014, p. 161-162).

Ademais, possui essa característica em razão de as atividades persecutórias se concentrarem nas mãos de uma única autoridade, que age sem provocação e com discricionariedade, tudo para o necessário esclarecimento do fato delituoso, quer dizer, não há respeito aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (devido processo legal). (CAPEZ, 2014, p 112).

Por esse motivo, o legislador ordinário, ao editar o Decreto-Lei nº 3.689/41 (Código de Processo Penal), inseriu o art. 155, o qual estabelece que o juiz deve formar a sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, mas nunca exclusivamente em elementos informativos colhidos na investigação.

Nesse ponto, faz-se mister distinguir os conceitos de elementos informativos e provas. Aqueles são colhidos no inquérito policial sob a ótica da inquisitoriedade, quer dizer, sem passar pelo crivo do contraditório e da ampla defesa, sem a dialética das partes. Já provas são todas aquelas produzidas em processo judicial, assegurando, assim, a ampla defesa do acusado, pois há necessidade que esteja assistido por defensor (constituído, dativo, nomeado ou público) para que possa ser processado criminalmente pelo Estado. O contraditório, pois, funciona como verdadeira condição de existência das provas.

Os princípios do contraditório e da ampla defesa não são exclusivos do sistema processual penal, aplicam-se em todo o ordenamento jurídico, sejam em processos judiciais, sejam em processos administrativos.

O contraditório nada mais é do que o direito de informação e de manifestação/participação no âmbito probatório. Além disso é o direito de ver seus argumentos considerados, quer dizer, o julgador tomar conhecimento e também considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas. Tanto é que o juiz deve manifestar-se acerca do alegado pelas partes de maneira fundamentada, em homenagem ao art. 93, inciso IX, da Constituição Federal de 1988. (MENDES, 2014, p. 480).

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Já a ampla defesa, que não se confunde com o princípio do contraditório, mas que com ele tem íntima relação, exprime que o processo penal deve garantir a amplitude de defesa para a parte que figura no polo passivo da demanda criminal (o acusado). Há, portanto, a necessidade de que cada parte tenha o direito de se contrapor aos atos praticados pela parte contrária, ou até mesmo pelo juiz. No processo penal, a ampla defesa diz respeito apenas ao réu, já o contraditório aplica-se a ambas as partes. Entende-se que o âmbito de proteção do princípio da ampla defesa deve abarcar o direito à defesa técnica e o direito à autodefesa. (LIMA, 2014, p. 57).

Diante disso, importante se faz responder a indagação: qual o valor probatório do inquérito policial? Qual o valor de uma peça investigativa em que não se observa os princípios do contraditório e da ampla defesa?

Renato Brasileiro de Lima discorre sobre o assunto dizendo que “[…] a finalidade precípua do inquérito policial é a colheita de elementos de informação quanto à autoria e a materialidade do delito” (2013, p. 73-74). Em outras palavras, servirá para que o juiz decida pelo processo ou não processo, pois na fase processual é que será formada a prova sobre a qual será proferida eventual e futura sentença (LOPES JR., 2014, p. 306).

Assim, verifica-se que os elementos fornecidos pelo caderno investigativo têm valores de meros atos de investigação, não podendo servir, de maneira exclusiva, como lastro para uma futura e eventual condenação criminal, pois inconcebível é que atos praticados por uma autoridade administrativa (polícia), sem intervenção/participação do poder judiciário, tenha relevante valor probatório para dar alicerce a um veredito condenatório. (LOPES JR., 2014, p. 305).

Portanto, provas como testemunhal, acareações, reconhecimentos, etc., devem, necessariamente, para serem caracterizadas como prova e terem valor para subsidiar uma sentença condenatória, serem produzidas na fase processual, na presença do magistrado, da defesa e da acusação. (LOPES JR., 2014, p. 306-308).

O problema é que, muito embora todo o exposto, a maioria da doutrina se cala em relação ao valor probatório do inquérito policial no cerne dos cadernos administrativos que apuram crimes contra a vida.

O doutrinador Edilson Mougenot Bonfim (promotor de justiça) defende que, diferentemente do que ocorre nos demais processos, no procedimento do Tribunal do Júri tudo é fato contributivo e concorre para o julgador (conselho de sentença) tomar sua decisão. Nesse viés, o inquérito policial teria sim força para, exclusivamente, consubstanciar uma decisão condenatória, pois, nos dias atuais, é ele realizado à luz da democracia e não mais nos “porões da repressão”. Ademais, é presidido por uma autoridade concursada (que goza de idoneidade) e é fiscalizado pelo parquet. Em outras palavras, apenas não se poderia admitir como fundamento de uma decisão condenatória o inquérito policial mal elaborado ou quando produzida prova manifestamente ilegal. Resumindo, o caderno investigativo teria o mesmo valor probatório que a prova produzida à luz dos princípios do contraditório e da ampla defesa (2012, p. 15-21).

Portanto, a regra insculpida no art. 155, caput, do Código de Processo Penal aplicar-se-ia apenas ao juiz togado, entretanto, o mesmo doutrinador nos diz que o Júri “não deve e não pode fundamentar suas decisões, agindo secuncum constientia, sujeito tão comente ao princípio da íntima convicção, como corolário da garantia da soberania dos veredictos. O que seria passível de anulação do julgamento em eventual e futuro recurso, certamente, seria a decisão ‘manifestamente contrária a prova dos autos’, a ser exercido por superior instância, conforme estatuído no art. 593, III, d, do CPP (BONFIM, 2012, p. 21)”.

Mesmo decidindo com base na íntima convicção, os jurados devem consubstanciar suas razões de julgar na lógica e na razão. Por isso, bem elaborada a peça investigativa, o conselho de sentença poderia calcar-se nela para proferir uma decisão condenatória. Assim, o inquérito policial nas investigações de competência do Tribunal do Júri ganha maior importância, vez que, como as pessoas que compõem o corpo de sentença são leigas, não sabedoras do valor probatório de provas e elementos informativos, podem ter como base apenas esses últimos para proferir sua decisão, até mesmo sobressaindo-se sobre provas judicializada. (BONFIM, 2012, p. 21-24).

Todavia, é de saber notório que, não raras vezes, a polícia segue pistas enganosas, criadas para confundir as investigações e desarticular a estrutura do crime (BONFIM, 2012, p. 24).

Portanto, é de se pensar que mesmo a peça investigativa sendo presidida por uma autoridade concursada, leia-se: delegado de polícia, e fiscalizada pelo parquet (fiscal da lei e titular da ação penal pública) (BONFIM, 2012, p. 15-21), embora muito bem elaborada em não raras vezes, essas figuras no processo penal fazem parte da acusação e, como visto anteriormente, nenhum dos princípios inerentes ao devido processo legal é respeitado na fase policial, portanto temerário o pensamento de que o valor probatório do caderno investigativo teria o mesmo peso de uma prova judicializada no procedimento do Tribunal do Júri, muito embora seja essa a posição predominante (nos poucos doutrinadores que abordam o assunto).

 

  1. A aplicação do princípio in dubio pro reo e a necessária impronúncia ou absolvição do acusado ante à inexistência de provas judicializadas

O problema aqui aventado já se inicia no momento da decisão do juiz sumariamente ao fim da primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri, que pode tomar 4 decisões distintas, absolver sumariamente o réu, desclassificar a conduta, pronunciar ou impronunciar o réu, eis que prevalece o entendimento de que vigora o princípio do in dubio pro societae quando o juiz estiver em dúvida entre a impronúncia ou a pronúncia. (LIMA, 2014, p. 1327-1328).

Ora, como princípio norteador do direito processual penal e balizador da regra probatória (ônus da prova), o porquê de não se aplicar obrigatoriamente o princípio do in dubio pro reo também nos procedimentos de competência do Tribunal do Júri? Principalmente naqueles em que não há provas judicializada?

O supracitado princípio deve ser aplicado em todos os procedimentos penais, vez que o inciso VII do art. 386 do Código de Processo Penal é claro e nítido em dispor que o réu deverá ser absolvido quando não existirem provas suficientes para a sua condenação.

Então, num raciocínio simples e lógico, quando não existirem provas judicializadas, seja no procedimento comum, seja no especial do Tribunal do Júri, deve sim o juízo natural (magistrado singular ou conselho de sentença) proferir uma decisão absolutória ou de impronuncia.

Isso porque, como bem coloca Paulo Rangel: “[…] estando o juiz diante de prova para condenar, mas não sendo esta suficiente, fazendo restar a dúvida, surgem dois caminhos: condenar o acusado, correndo o risco de se cometer uma injustiça, ou absolvê-lo, correndo o risco de se colocar nas ruas, em pleno convívio com a sociedade, um culpado. A melhor solução será, indiscutivelmente, absolver o acusado, mesmo que correndo o risco de se colocar um culpado nas ruas, pois antes um culpado nas ruas do que um inocente na cadeia” (2012, 303).

Essa é a problemática muitas vezes enfrentada nos processos de competência do Tribunal do Júri Brasil à fora, pois, em muitos casos, existem somente elementos informativos e não provas judicializadas, em virtude de que, ainda majoritariamente, utilizando-se de argumentos de autoridade, os tribunais pátrios e magistrados singulares entenderem ser aplicável o princípio do in dubio pro societate (na dúvida em favor da sociedade) quando houver dúvidas acerca da existência de provas para pronunciar o réu.

A interpretação dada ao disposto no art. 413, caput, do Código de Processo Penal, entretanto, é feita de maneira errônea pela doutrina e jurisprudência majoritárias. Se não convencido da materialidade do fato delituoso, o magistrado deve impronunciar o réu, ou seja, deve ele estar suficientemente convencido da existência de um crime contra a vida. Já no que se refere à autoria delitiva, muito embora a Lei Processual use a expressão “indícios suficientes”, não quer dizer ela que quando o juiz estiver com dúvida deverá pronunciar o acusado (LIMA, 2014, p. 1295-1296).

Na verdade, ao se expressar dessa maneira, o legislador quis se referir à prova semiplena, ou seja, aquela mais tênue, de valor persuasivo menor. Resumindo, quando existirem dúvidas acerca da materialidade e autoria delitivas, deve o magistrado, com fundamento no princípio do in dubio pro reo, impronunciar o acusado. (LIMA, 2014, p. 1295-1296).

Corroborando o entendimento supraexposto, Paulo Rangel nos brinda com maestria ao lecionar que: “[…] se há dúvida, é porque o Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou em sua denúncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, não sendo admissível que sua falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a júri, onde o sistema que impera, lamentavelmente, é o da íntima convicção. O processo judicial, em si, instaurado, por si só, já é um gravame social para o acusado, que, agora, tem a dúvida a seu favor e, se houve dúvida quando se ofereceu denúncia, o que, por si só, não poderia autorizá-la, não podemos perpetuar essa dúvida e querer dissipá-la em plenário, sob pena dessa dúvida autorizar uma condenação pelos jurados (2012, p. 304)”.

Sobre o tema, o egrégio Tribunal de Justiça do estado de Santa Catarina ainda diverge, pois, em alguns casos, quando não há provas suficientes acerca da materialidade e autoria delitivas, ou até mesmo inexistir provas judicializadas, aplica o princípio do in dubio pro reo e em outros aplica o princípio do in dubio pro societate. Vejamos.

Aplicando o princípio do in dubio pro societate tem-se o Recurso Criminal n. 2014.001399-0, de relatoria do Desembargador Paulo Roberto Sartorato, julgado no ano de 2014, que possui a seguinte ementa:

“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA. HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO (ART. 121, § 2°, I E IV, DO CÓDIGO PENAL). RECURSO DA DEFESA. PRETENDIDA A IMPRONÚNCIA DO RÉU. IMPOSSIBILIDADE. MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA DEVIDAMENTE CONSTATADOS. ALEGADA ILICITUDE DE INDÍCIOS COLHIDOS NO DECORRER DO INQUÉRITO. TESE INFUNDADA. REQUISITOS DO ART. 413 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL PLENAMENTE PRESENTES. PRONÚNCIA QUE CONSTITUI MERO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE. ALMEJADA EXCLUSÃO DAS QUALIFICADORAS REFERENTES AO MOTIVO TORPE E AO EMPREGO DE MEIO QUE DIFICULTOU A DEFESA DAS VÍTIMAS. INVIABILIDADE. INDÍCIOS QUE DÃO MARGEM À INCIDÊNCIA DAS QUALIFICADORAS. EVENTUAIS DÚVIDAS QUE DEVERÃO SER DIRIMIDAS PELA CORTE POPULAR. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. MANUTENÇÃO DA PRONÚNCIA QUE SE IMPÕE. DECISÃO MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO […](MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de processo penal interpretado. 8ª. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 921)” (SANTA CATARINA, 2014) (grifo nosso).

Já aplicando o princípio do in dubio pro reo, em virtude da inexistência de provas judicializadas a embasar a decisão de pronuncia, tem-se o Recurso Criminal n. 2014.093050-0, de relatoria da Desembargadora Salete Silva Sommariva, julgado em 07.07.2015, com a seguinte ementa:

“APELAÇÃO CRIMINAL – CRIMES DE HOMICÍDIO QUALIFICADO (ART. 121 §2º, I E IV DO CP) E DE CORRUPÇÃO DE MENORES (LEI N. 8.069/90, ART. 244-B) – IMPRONÚNCIA DECRETADA NA ORIGEM – RECURSO DA ACUSAÇÃO – ALEGADA PRESENÇA DE INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA – INADMISSIBILIDADE – ACUSAÇÃO LASTREADA EXCLUSIVAMENTE EM DEPOIMENTO PRESTADO NA DELEGACIA DE POLÍCIA – TESTEMUNHA QUE NÃO RATIFICOU O TEOR DA NARRATIVA EM JUÍZO – INOBSERVÂNCIA DO ART. 155 DO CPP – RECURSO DESPROVIDO.  […]”  (SANTA CATARINA, 2015) (grifo nosso).

Como bem fundamentado pela Desembargadora do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Salete Silva Sommariva no julgado acima, não se pode admitir que um acusado seja pronunciado com base exclusivamente em provas colhidas no inquérito policial, ou seja, sem ao menos existir uma prova (judicializada) sequer.

Portanto, apesar de ser um posicionamento minoritário, decidiu corretamente o aludido Tribunal, pois, desta feita, estar-se-ia resolvendo a futura problemática do réu ser condenado pelo conselho de sentença com base em provas colhidas exclusivamente no inquérito policial, em virtude de, decidindo desta maneira, o acusado jamais seria submetido ao plenário do Júri na hipótese discutida neste artigo.

 

  1. A livre apreciação da prova pelo juízo natural da causa (jurados) e a não vinculação às provas judicializadas: uma afronta aos princípios constitucionais ou a simples escolha de uma das teses apresentadas?

Em suma, quando nos deparamos com processos remetidos ao Plenário do Júri podemos estar diante de duas possibilidades distintas: a) a prolação de uma sentença condenatória por parte dos jurados sabidamente lastreada em elementos informativos, mas que há alguma prova (por menor que seja) produzida sob o crivo do contraditório e da ampla defesa; b) a prolação de uma sentença condenatória por parte dos jurados calcada exclusivamente em indícios colhidos no inquérito policial, ante à inexistência de prova judicializada.

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No primeiro caso, verifica-se que os jurados apenas escolhem uma das teses apresentadas, pois, por ínfima que seja a prova judicializada, ela existe, dando, portanto, substrato aos elementos informativos colhidos no decorrer do inquérito policial, que, nesta hipótese causídica, podem ter relevância maior em relação às provas e servirem para uma sentença condenatória (BONFIM, 2012, p. 15-21). Mas, frisa-se, é necessário que haja uma mínima prova sequer que tenha passado pelo crivo do contraditório e da ampla defesa, ou que sejam os elementos informativos ratificados em juízo, sob pena de violação a esses princípios.

Os jurados optam, portanto, por uma vertente do contexto probatório e, para considerar como tal, a tese apresentada pelas partes necessariamente deve ser compatível com alguma prova produzida, sob pena de contrariedade à prova dos autos. (DEMERCIAN; MALULY, 2014, p. 439).

E não destoa o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que assim decidiu ao julgar o Habeas Corpus n. 173.965, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, em 01/03/2012:

“HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. CONDENAÇÃO COM BASE EM ELEMENTOS COLETADOS EXCLUSIVAMENTE DURANTE O INQUÉRITO POLICIAL. ART. 155 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. 1. SIGILO DAS VOTAÇÕES. PRINCÍPIO DA ÍNTIMA CONVICÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DEIDENTIFICAÇÃO DOS ELEMENTOS UTILIZADOS PELOS JURADOS PARA CONDENAR A PACIENTE. 2. APELAÇÃO. ART. 593, INCISO III, ALÍNEA D, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. JUÍZO DE CONSTATAÇÃO. DECISÃO QUE ENCONTRA ARRIMO NAS PROVAS PRODUZIDAS EM JUÍZO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. INEXISTÊNCIA. 3. ORDEM DENEGADA. 1. A Lei n.º 11.690/2008, ao introduzir na nova redação do art. 155 do Código de Processo Penal o advérbio “exclusivamente”, permite que elementos informativos da investigação possam servir de fundamento ao juízo sobre os fatos, desde que existam, também, provas produzidas em contraditório judicial. Noutras palavras: para chegar à conclusão sobre a veracidade ou falsidade de um fato afirmado, o juiz penal pode servir-se tanto de elementos de prova – produzidos em contraditório – como de informações trazidas pela investigação. Apenas não poderá se utilizar exclusivamente de dados informativos colhidos na investigação. 2. Os jurados julgam de acordo com sua convicção, não necessitando fundamentar suas decisões. Em consequência, é impossível identificar quais elementos foram considerados pelo Conselho de Sentença para condenar ou absolver o acusado, o que torna inviável analisar se o veredicto baseou-se exclusivamente em elementos coletados durante a investigação criminal ou nas provas produzidas em juízo. 3. O art. 593, inciso III, alínea d, do Código de Processo Penal deve interpretado como regra excepcional, cabível somente quando não houver, ao senso comum, material probatório suficiente para sustentar a decisão dos jurados. De efeito, em casos de decisões destituídas de qualquer apoio na prova produzida em juízo, permite o legislador um segundo julgamento. Prevalecerá, contudo, a decisão popular, para que fique inteiramente preservada a soberania dos veredictos, quando amparada em uma das versões resultantes do conjunto probatório. 4. […].” (BRASIL, 2012).

Portanto, como visualizado no julgado acima, por decidirem com a sua íntima convicção, em havendo provas judicializadas, não é possível determinar se o conselho de sentença proferiu sua decisão calcado em elementos informativos ou nas provas produzidas em audiência (judicializadas) – é uma simples escolha das teses apresentadas pela defesa e acusação.

Neste caso, os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa não são violados.

Já na segunda hipótese, naquela em que a decisão é baseada somente em elementos informativos colhidos no decorrer do inquérito policial, em virtude de inexistir prova judicializada, há a nítida violação aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa: a plenitude de defesa (LOPES JUNIOR, 2014, p. 238-239).

Os jurados, sete do povo escolhidos para julgarem as demandas criminais de competência do Tribunal do Júri não decidem com a tecnicidade jurídica pertinente aos magistrados togados, pelo contrário, decidem de acordo com sua íntima convicção. Não são eles totalmente imparciais e independentes, pois, em muitas vezes são mais suscetíveis de sofrerem pressões e influências, principalmente a midiática. Os jurados não são juízes, mas sim pessoas investidas como tal precária e temporariamente, pois não desfrutam das garantias orgânicas da magistratura, as quais dão suporte para a independência funcional. (LOPES JR., 2014, p. 1035)

Fernando Tourinho, ao discorrer sobre a maneira que o conselho de sentença profere sua decisão, diz que “Conhecendo os costumes do povo, o que ele sente em determinadas situações de valoração cultural, o fato de muitas vezes a lei estar dissociada do pensamento da sociedade, as conversas de rua, que nem sempre ou quase nunca chegam aos autos, o conhecimento que as pessoas têm das circunstâncias que antecederam o fato delituoso, a vida pregressa do cidadão, a natureza do crime […] os jurados, mais soltos, mais libertos, sem a obrigação de dizerem como e por que votaram desta ou daquela maneira, estando assim mais à vontade, justificam a conduta do(a) acusado(a), dando asas ao seu coração, aos seus sentimentos” (2012, p. 146).

Muito embora as bonitas palavras do brilhante doutrinador Fernando Tourinho e não desmerecendo os escolhidos para exercerem a função de jurados, tampouco engrandecendo o juiz togado, mas àqueles não detém o profissionalismo e a estrutura psicológica necessária para julgar demandas de tal tamanho que esses possuem. (LOPES JR., 2014, p. 1035-1036).

Os jurados, Segundo Aury Lopes Junior, “carecem de conhecimento legal e dogmático mínimo para a avaliação dos diversos juízos axiológicos que envolvem a análise da norma penal e processual aplicável ao caso, bem como uma razoável valoração da prova. É o grave paradoxo apontado por FAIREN GUILLEN: “un juez lego, ignorante de la Ley, no puede aplicar un texto de la Ley porque no la conoce”. (2014, p. 1035)”.

Assim é que, como votam de acordo com a sua íntima convicção, os jurados podem decidir um processo criminal valendo-se de argumentos extrajurídicos, ou seja, por fatores estranhos ao processo. (LOGAN, 2015, p. 8).

 

Conclusão

Diante de todo o exposto, os estudiosos apontam diversas maneiras de solucionar o problema aventado neste artigo.

Alguns defendem a ideia de que o inquérito policial não deveria ser levado ao Plenário do Júri, evitando-se, assim, a condenação com base exclusivamente em elementos informativos, nutrindo a esperança do réu de ser julgado com base apenas na prova judicializada.

Nesse passo, recentemente a Lei 13.964/19, popularmente conhecido como “Pacote Anticrime”, ao instituir o “juiz das garantias”, retirou do processo judicial os autos do inquérito policial, os quais ficarão acautelados na secretaria do juízo, à disposição das partes, nos termos do art. 3º-C do CPP.

Porém, tal dispositivo, atualmente, está com sua eficácia suspensa pela decisão proferida monocraticamente pelo Ministro Luix Fux nos autos das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305.

Destarte, temerário é o processo remetido ao plenário do Júri sem lastro probatório produzido em audiência, pois, como bem assevera Paulo Rangel: “Um promotor bem falante, convincente em suas palavras, pode condenar um réu, na dúvida. Júri é linguagem” (2012, p. 304). Em outras palavras, mesmo não havendo provas judicializadas, um acusador com uma boa oratória poderá alcançar facilmente o objetivo de condenar o réu.

A Espanha enfrentou a problemática e a resolveu ao editar a Ley del jurado, que exclui o inquérito policial do plenário do júri e criou um mecanismo de fundamentação, consubstanciado em um simples formulário, com perguntas diretas e estruturas de modo a que se tenha um mínimo de demonstração dos elementos de convicção dos jurados (LOPES JR., 2014, p. 4-5).

Outros defendem que o ideal é, em princípio, aplicar o princípio do in dubio pro reo quando o juiz tiver dúvidas quanto à materialidade e autoria delitivas, com a consequente impronúncia do réu, ou decretar sua absolvição sumária.

Entendo que deve haver uma reforma profunda no procedimento do Tribunal do Júri para incluir mecanismos de fundamentação (por menor que seja) nas decisões dos jurados, bem como para excluir (ou manter a exclusão) o inquérito policial do Plenário do Júri, ou, ao menos, os elementos informativos que não constitua perícias, provas não repetíveis ou cautelares.

Ainda, deve-se combater a decisão de condenação proferida pelo conselho de sentença aqui discutida utilizando-se do recurso de apelação, fundamentado no art. 593, III, d), do CPP, ou seja, por contrariedade à prova dos autos (prova que sequer existe).

Por fim, chegando ao ponto de haver a condenação, deve a defesa utilizar-se da revisão criminal, com fundamento no art. 621, I, do CPP, por contrariedade ao texto do art. 155, caput, do CPP, o qual também deve ser aplicado ao procedimento do Tribunal do Júri.

Nesse cenário, estar-se-ia fazendo uma ponderação entre os princípios da plenitude de defesa e da soberania dos veredictos, o qual não é absoluto e deve ser entendido como a competência e limites ao poder de revisar decisões do júri, e tão somente, pois nada tem a ver com a carga probatória (LOPES JR., 2014, p. 1039).

Isso porque, conforme os dizeres de Demercian e Maluly “a competência definida no texto da Lei Fundamental não se reveste de intangibilidade e tampouco é incontestável e ilimitada” (2014, p. 541). Ou seja, não é crivo admitir que jamais se poderá contestar uma decisão proferida pelo conselho de sentença.

Complementando, Antônio José M. Feu Rosa diz que, “uma questão de prerrogativa soberana não é uma questão de infalibilidade. Se para ser legítima uma atribuição qualquer da soberania devesse ser exercida duma maneira infalível, não haveria soberania possível” (2015, p. 37).

Por fim, muito embora timidamente, o egrégio Tribunal de Justiça do estado de Santa Catarina já acatou a tese aqui aventada. Vejamos:

“APELAÇÃO CRIMINAL – TRIBUNAL DO JÚRI – HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO (CP, ART. 121, § 2º, I E IV) – SENTENÇA CONDENATÓRIA – RECURSO DEFENSIVO – ARGUIÇÃO DE NULIDADES SUPOSTAMENTE OCORRIDAS EM PLENÁRIO (CPP, ART. 593, III, A) – INEXISTÊNCIA DE REGISTRO EM ATA – IRRESIGNAÇÃO EXTEMPORÂNEA – MATÉRIA PRECLUSA (CPP, ART. 571, VIII) – DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS (CPP, ART. 593, III, D) – CONDENAÇÃO BASEADA EXCLUSIVAMENTE NOS ELEMENTOS INFORMATIVOS – AUSÊNCIA DE PROVA DA AUTORIA – VEREDITO CASSADO – REALIZAÇÃO DE NOVO JULGAMENTO PELO PLENÁRIO – CPP, ART. 593, § 3º – SENTENÇA CASSADA – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. I – Conforme disposição expressa no art. 571, inciso VIII, do Código de Processo Penal, as eventuais nulidades sucedidas em sessão plenária do Tribunal do Júri devem ser arguidas logo depois de ocorrerem, sob pena de preclusão. Hipótese em que as irresignações da defesa não restaram consignadas em ata, de modo que, em assim não procedendo, não caberá fazê-lo em sede de recurso de apelação. II – A despeito de a Constituição Federal de 1988 salvaguardar as decisões emanadas do Tribunal do Júri (art. 5º, XXXVIII), inocorre violação à soberania dos vereditos a possibilidade de a parte se valer do duplo grau de jurisdição, a fim de possibilitar a revisão pelo Tribunal de Justiça sob a alegação de total discrepância do resultado das votações com a prova amealhada aos autos, tal como previsto no art. 593, III, d, do CPP.    A diferença entre prova e elemento informativo é clara na dicção do art. 155, do CPP, impondo-se a cassação do decisum se inexistente qualquer prova a corroborar a decisão dos jurados.   In casu, a decisão do Conselho de Sentença não restou respaldada em nenhuma prova angariada sob o crivo do contraditório, de sorte a se impor a anulação do veredito face ao patente error in judicando, devendo o réu ser submetido a novo julgamento, com fundamento no art. 593, §3º, do CPP” (SANTA CATARINA, 2014) (grifo nosso).

Demais a mais, recentemente o Superior Tribunal de Justiça, em dois julgados distintos, decidiu sobre duas temáticas que dão azo ao problema correlacionado ao assunto em tela.

No primeiro, o Tribunal da Cidadania, na contramão da tese aqui defendida, decidiu que a decisão de pronúncia pode ser embasada exclusivamente em elementos informativos, eis o excerto do HC 314.454/SC, Quinta Turma, DJe 17/02/2017:

“PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. NULIDADE DO ACÓRDÃO QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DECISÃO DE PRONÚNCIA CONSUBSTANCIADA EXCLUSIVAMENTE EM ELEMENTOS OBTIDOS POR INQUÉRITO POLICIAL. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO. NÃO OCORRÊNCIA. DELEGADO DO CASO OUVIDO EM JUÍZO. POSSIBILIDADE. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 1. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça não têm admitido o habeas corpus como sucedâneo do meio processual adequado, seja o recurso ou a revisão criminal, salvo em situações excepcionais, quando manifesta a ilegalidade ou sendo teratológica a decisão apontada como coatora. 2. Na linha dos precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal, embora não seja possível sustentar uma condenação com base em prova produzida exclusivamente na fase inquisitorial, não ratificada em juízo, tal entendimento não se aplica à sentença de pronúncia. 3. A decisão que submete o acusado a julgamento perante o Tribunal do Júri, não exige um juízo de certeza, mas tão somente que seja apontada a materialidade do delito e os indícios suficientes sobre a autoria. Ademais, no procedimento do júri, haverá a possibilidade de renovação da prova por ocasião do julgamento da causa pelos jurados. 4. No caso dos autos, a sentença de pronúncia do paciente abordou os necessários requisitos de autoria e materialidade, com base nos depoimentos colhidos na fase policial e na prova testemunhal produzida em juízo, sob o crivo do contraditório, atendendo, portanto, o comando do art. 413 do CPP. 5. A eficácia probatória do testemunho da autoridade policial não pode ser desconsiderada tão só pela sua condição profissional, sendo plenamente válida para fundamentar um juízo, inclusive, condenatório. Precedentes. 6. A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça firmou entendimento no sentido de que o reconhecimento da nulidade exige demonstração do prejuízo, à luz do art. 563 do Código de Processo Penal, segundo o princípio pas de nullité sans grief. Prejuízo não demonstrado. 7. Habeas corpus não conhecido. (STJ – HC: 314454 SC 2015/0010105-7, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 14/02/2017, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/02/2017)” (grifo nosso).

Porém, de forma diversa e na esteira do pensamento aventado neste

artigo, o mesmo Superior Tribunal de Justiça decidiu que o testemunho por ouvir dizer (hearsay rule), produzido somente na fase inquisitorial, não serve como fundamento exclusivo da decisão de pronúncia, que submete o réu a julgamento pelo Tribunal do Júri.

Eis a emenda da decisão:

“RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO E DESTRUIÇÃO E OCULTAÇÃO DE CADÁVER. PRONÚNCIA FUNDAMENTADA EXCLUSIVAMENTE EM ELEMENTO INFORMATIVO COLHIDO NA FASE PRÉ-PROCESSUAL. NÃO CONFIRMAÇÃO EM JUÍZO. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. 1. A decisão de pronúncia é um mero juízo de admissibilidade da acusação, não sendo exigido, neste momento processual, prova incontroversa da autoria do delito; bastam a existência de indícios suficientes de que o réu seja seu autor e a certeza quanto à materialidade do crime. 2. Muito embora a análise aprofundada dos elementos probatórios seja feita somente pelo Tribunal Popular, não se pode admitir, em um Estado Democrático de Direito, a pronúncia sem qualquer lastro probatório, mormente quando os testemunhos colhidos na fase inquisitorial são, nas palavras do Tribunal a quo, “relatos baseados em testemunho por ouvir dizer, […] que não amparam a autoria para efeito de pronunciar os denunciados” (fl. 1.506). 3. O Tribunal de origem, ao despronunciar os ora recorridos, entendeu “ausentes indícios de autoria e insuficiente o ‘hearsay testimony’ (testemunho por ouvir dizer)” (fl. 1.506), razão pela qual, consoante o enunciado na Súmula n. 7 do STJ, torna-se inviável, em recurso especial, a revisão desse entendimento, para reconhecer a existência de prova colhida sob o contraditório judicial apta a autorizar a submissão dos recorridos a julgamento perante o Tribunal do Júri. 4. Recurso especial não provido. (STJ – REsp: 1373356 BA 2013/0097292-2, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 20/04/2017, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/04/2017).” (grifo nosso)

Ao nosso entendimento, o Superior Tribunal de Justiça caminha no sentido de que, havendo elemento informativo não confirmado na fase preliminar do Tribunal do Júri, não é possível pronunciar o acusado; a contrário sensu, somente seria possível a decisão de pronúncia com base em elemento informativo que fora confirmado na fase judicial, o que corrobora a tese aventada neste trabalho.

Porém, a única solução que temos em nosso ordenamento jurídico criminal é a aberração de se enviar o réu a um novo julgamento, passando novamente por todo o constrangimento de ver seus direitos constitucionais sendo rasgados, mas isso é tema para um outro artigo.

 

Referências, notas de rodapé e notas finais

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