A delação premiada e sua (in)conformidade com a Constituição Federal

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Resumo: Pretende o presente trabalho expor o atual panorama da delação premiada no nosso ordenamento jurídico, bem como analisar a possível violação dos princípios constitucionais, com seu uso excessivo na persecução penal, em nome da segurança pública.


Sumário: 1 – Conceito e natureza do instituto. 2 – Alcance e panorama normativo da delação premiada. 3 – Delação premiada e a Constituição Federal. 4 – Conclusão.


1- Conceito e natureza do instituto


Delação Premiada é um instituto previsto na legislação brasileira que serve para incentivar eventual participante de ação delituosa a denunciar todo o esquema criminoso e a identificar os demais envolvidos, sendo proporcionado, em recompensa, ao delator uma série de benefícios que interferem diretamente em sua sanção penal.


A delação premiada faz parte de uma nova política de combate à criminalidade, fazendo com que se crie o estímulo ao arrependimento daqueles que já se envolveram na prática de algum crime ou espécies de crimes. Surgida principalmente para combater a criminalidade organizada, a delação passa a ter uma maior relevância e abrangência com a utilização para outras modalidades delitivas.


Em termos gerais, exige-se do delator a efetiva e decisiva influência na instrução processual, permitindo a colheita das provas que servirão para futura repressão penal, devendo o mesmo indicar de forma ampla a materialidade do crime, com as nuances próprias da espécie delitiva que se está apreciando, ou seja, que o envolvido possa informar/esclarecer todas as peculiaridades, forma de atuação, localização do produto do crime, da vítima, identificar os outros integrantes da ação ilícita, fornecendo local onde possam ser encontrados, a fim de que as autoridades possam desarticular o esquema e punir os envolvidos.


2 – Alcance e panorama normativo da delação premiada


Pois bem, mais ou menos delineada a idéia do instituto, a questão que se coloca aqui é saber se a delação deve se estender a todos os crimes existentes em nosso sistema penal. Antes disso, contudo, indispensável traçar o atual panorama da delação premiada no nosso ordenamento jurídico.


Esse benefício é previsto nos seguintes dispositivos legais: art. 159, § 4º, do Código Penal, art. 7º da Lei n° 8.072/90 – Crimes Hediondos e equiparados, art. 6º, da Lei 9.034/95 – Organizações Criminosas, art. 24, § 2º da Lei 7.492/86 – Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, art. 16, da Lei 8.137/90 – Crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, art. 1º, § 5º, da Lei 9.613/98 – Lavagem de dinheiro, arts. 13 e 14 da Lei 9.807/99 – Proteção a Testemunhas, 8.884/94 – Infrações contra a Ordem econômica e art. 41 da Lei 11.343/06 – Drogas e Afins.


A maioria das leis mencionadas prevêem o benefício da delação apenas para os crimes nelas contidos. Entretanto, a lei 9.807/99, regulamenta o instituto de forma genérica, sem especificar para quais crimes é aplicável, apenas fazendo referência a certos requisitos previstos em seu art. 13 e 14.


Da leitura desses dispositivos, surge a dúvida acerca do alcance da norma penal, a partir do correto preenchimento dos requisitos para usufruto do benefício, ou melhor, questiona-se se é necessário a cumulatividade ou alternatividade dos requisitos.


A se exigir todos os requisitos ao mesmo tempo, conclui-se que o único delito que ensejaria a obtenção do benefício seria o de extorsão mediante sequestro que, aliás, já tem previsão própria em dispositivo específico (art. 159, § 4º, do Código Penal), o que não parece razoável entender que a lei de proteção a testemunhas pretenda apenas regulamentar um único delito contido no Código Penal, sem que o faça de forma expressa. Inadequada, portanto, a interpretação que haveria uma cumulatividade dos requisitos de forma implícita.


Assim, por colocar de maneira geral e indiscriminada um benefício que tem grandes repercussões na liberdade do indivíduo, é correto, ante a atual disposição normativa relacionada à matéria, o entendimento de que a delação premiada não apenas deve se estender, mas que, efetivamente, é aplicável a todos os tipos penais, mesmo os que não tem previsão legal específica, pela clara interpretação do contido no art. 13 e 14 da lei 9.807/99.


3 – Delação premiada e a Constituição Federal


Pois bem, esclarecida a atual situação do instituto no nosso ordenamento, restando como premissa a possibilidade de sua ampla utilização para quaisquer crimes, pergunta-se agora, em uma outra perspectiva, se de fato a delação premiada está em conformidade com a atual Constituição Federal tendo como norte os princípios fundamentais nela contidos.


Isto porque, em primeiro lugar, inquestionável que a delação constitui, de uma forma ou de outra, traição de pares, o que seria um ato antiético, mesmo que se trate dos mais vis criminosos. O incentivo de prática imoral para colheita probatória não poderia jamais ser prática oficial de Estado, que deve, ao contrário, redobrar esforços para combater a criminalidade e não a todo o tempo negociar com qualquer pessoa que esteja disposta a se “salvar” da sanção penal firmando com a Justiça um verdadeiro “pacto sombrio”. Afinal, “o Estado, visando privilegiar um direito penal mínimo e garantista, preservando as garantias individuais postas na Constituição Federal, não pode incentivar, premiar condutas que ofendam a ética, ainda que ao final a sociedade se beneficie dessa violação. Em outras palavras, num Estado que proclame pelos ideais da democracia, os fins jamais poderão justificar os meios, mas justamente são estes que emprestam legitimidade àqueles.[1]


De acordo com Rômulo de Andrade Moreira, “(…) é tremendamente perigoso que o Direito Positivo de um país permita, e mais que isso incentive os indivíduos que nele vivem à prática da traição como meio de se obter um prêmio ou um favor jurídico. (…) Se considerarmos que a norma jurídica de um Estado de Direito é o último reduto de seu povo, (…) é inaceitável que este mesmo regramento jurídico preveja a delação premiada em flagrante incitamento à transgressões de preceitos morais intransigíveis que devem estar, em última análise, embutidos nas regras legais exsurgidas do processo legislativo.” Continua, ainda, afirmando que “a traição demonstra fraqueza de caráter, como denota fraqueza o legislador que dela abre mão para proteger seus cidadãos.[2]


Citando Rui Barbosa, por fim, comenta que não se deve combater um exagero com um absurdo.


Com todo o afã do Poder Público de combate à criminalidade e a proliferação do incentivo dessa prática de premiar o delator para retirar o máximo de informação dos outros envolvidos, esquece-se que o seu depoimento nada mais é que um interrogatório onde não há qualquer compromisso de dizer a verdade e que possui valor probatório relativíssimo. Incabível transformar co-réu em testemunha e conceder maior valor a sua palavra em detrimento daquele que foi prejudicado, como acontece constantemente no dia-a-dia forense. Tarifar de forma diferente depoimentos daqueles que estão em igual situação processual, parece ferir princípios elementares do nosso sistema jurídico.


Além disso, a utilização da delação de co-réu para fundamentar a prisão e condenação dos outros réus viola o princípio do contraditório, já que “com o advento da nova ordem constitucional, o comportamento processual do acusado não é mais (nem menos) que exercício da autodefesa; daí, conclusão segunda, não está sujeito ao contraditório. (…) o réu tem o direito de não produzir prova contra si mesmo e, portanto, pode calar ou mentir, o que leva ao esvaziamento de um possível debate entre o corréu delatado e o delator.”[3]


O favorecimento do réu delator pode ainda representar grave violação da dignidade humana com a indevida extorsão da verdade e afetar a integridade e legitimidade do processo penal, já que pode gerar uma situação de grave injustiça com a indicação equivocada de inocente em busca do prometido perdão ou redução da pena, o que é de se levar em consideração tendo em vista que a chamada de co-réu é uma das principais causas de erro judiciário.


4 – Conclusão


Por tudo isso, deveria ser a delação premiada extirpada do nosso sistema jurídico por representar grave ofensa à Constituição Federal.


 


Referências bibliográficas:

BAPTISTA, Bruno de Souza Martins. A inconstitucionalidade da delação premiada no Brasil. Bruno de Souza Martins Baptista. Disponível em:  http://jus.uol.com.br/revista/texto/14848/a-inconstitucionalidade-da-delacao-premiada-no-brasil/4. Acesso em 14 de fevereiro de 2011.

GIMENEZ, Marcelo de Freitas. Delação Premiada. Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/3620/delacao-premiada. Acesso em 14 de fevereiro de 2011

KOBREN,  Juliana Conter Pereira . Apontamentos e críticas à delação premiada no direito brasileiro. Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/8105/apontamentos-e-criticas-a-delacao-premiada-no-direito-brasileiro/4. Acesso em 14 de fevereiro de 2011.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. Curso Temático de Direito Processual Penal. Salvador: Editora Podivm.

MOREIRA FILHO, Aguinaldo Simões. Breves Considerações sobre a Delação Premiada. Disponível em: http://www.webartigos.com/articles/2487/1/Breves-Consideraccedilotildees-Sobre-A-delaccedilatildeo-Premiada/pagina1.html. Acesso em 14 de fevereiro de 2011.

PRADO, Geraldo. Em Torno da Jurisdição. Rio de Janeiro: Lumen Juris. p. 75.

 

Notas:

[1] BAPTISTA, Bruno de Souza Martins. A inconstitucionalidade da delação premiada no Brasil. Bruno de Souza Martins Baptista. Disponível em:  http://jus.uol.com.br/revista/texto/14848/a-inconstitucionalidade-da-delacao-premiada-no-brasil/4. Acesso em 14 de fevereiro de 2011.

[2] MOREIRA, Rômulo de Andrade. Curso Temático de Direito Processual Penal. Salvador: Editora Podivm. p. 440/446.

[3] PRADO, Geraldo. Em Torno da Jurisdição. Rio de Janeiro: Lumen Juris. p. 75.


Informações Sobre o Autor

Fernando da Cunha Cavalcanti

Defensor Público Federal