A derrama de nossos dias: os Pardais



“…um dia eles chegam à porta de nossa casa e timidamente olham nosso jardim, e não fazemos nada; no dia seguinte entram em nosso quintal, colhem nossas flores, vemos, e não fazemos nada; até que por fim entram em nossa casa, roubam nossos bens, nossas mulheres, nossos filhos, e aí já não podemos mais fazer nada…”


No antigo Direito português derrama se chamava o imposto lançado sobre todos para suprir gastos extraordinários. Imposto “derramado” sobre todos. Foi uma derrama que produziu a Inconfidência Mineira. Causa imediata da Inconfidência Mineira, de 1792, era o tributo de que lançava mão a Coroa Portuguesa para, na região das minas, cobrar de uma só vez os quintos (20% do ouro extraído) em atraso.


No Brasil reclama-se muito da pesada carga tributária, sobretudo os empresários. O Fisco entre nós bate recordes históricos de arrecadação. A carga tributária brasileira atingiu 32,34% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2000, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É a maior participação dos impostos na soma das riquezas produzidas pelo país desde 1947, quando o PIB começou a ser pesquisado. Em 1999, o peso dos tributos foi de 31,64%. Segundo o IBGE, o aumento da arrecadação média de 15% em todas as esferas de governo provocou o recorde. O maior responsável foi a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), cuja arrecadação cresceu 81% em 2000. Em 1999 as famílias brasileiras pouparam menos e consumiram mais, segundo o IBGE. O consumo das famílias, que representa 60% do PIB, cresceu 3,75% no ano passado. Esse aumento fez cair a participação das famílias na poupança nacional de 52,67% em 1999 para 37,56% em 2000. Como se vê, trata-se uma verdadeira carga pesadíssima para o povo, para o contribuinte comum, sobretudo os assalariados (no Brasil o salário é renda e tributável e muito tributável: ousada injustiça fiscal !).


“Não existe arte que um governo aprenda do outro com maior rapidez do que a de extrair dinheiro do bolso da população”, palavras atuais (mais do que nunca) de Adam Smith (1723-1790) em “A Riqueza das Nações” (Liv.V, Cap.II).


Nesse genocídio fiscal o povo brasileiro, que já vive da caridade estatal (vale gás, vale luz, vale comida, vale voto…) numa ponta e na outra do vale tudo moral (pilhando o Estado, o consumidor/povo, a fé…) e no meio, a classe média se destroi na luta inglória para não descer mais ainda na escala social, vem de ser escorchado mais uma vez, agora pelos famigerados pardais (melhor seria corvo, tal o mau agouro que trazem à mesa da família de um  motorista  assalariado).


O discurso para sustentar tal improbidade administrativa praticada pelo próprio Estado é, senão ridículo, pelo menos imoral, errôneo. Ora, primeiro não educa, mas revolta. Não visa outro objetivo senão arrecadar a rodo, sacrificando o povo principalmente o mero assalariado. Não reduz a velocidade, senão metros entorno da arapuca arrecadatória. Expõe a nu o descaramento, o descaso da gerência nacional pelo bons princípios (desde que dê dinheiro, tudo vale a pena). Que lição !!  Essa improbidade administrativa, os pardais, reeditaram o conluio entre governo e empresas privadas na exploração do povo (acordos de cavalheiros/Sunab, incentivos fiscais/Sudam/Sudene, utilidade pública/”filantropia”/isenção tributária…). Para ser educativo falta tudo a esses caça-níqueis (caça-salário) desde propósitos mais dignos e morais até mais inteligente execução.Com efeito, a redução de velocidade só ocorre em baixo do pardal, antes e depois dele, a velocidade é a da prudência de cada uma .Tal  é  a  educação, a cultura reinante entre  nós. 


Os pardais móveis, representam mais outro atestado de inidoneidade moral e gerencial. Os pardais fixos e móveis (esses operados e explorados por empresas privada escudadas pelo poder de polícia (Detrans, PMs) estão sempre situados em pontos estratégicos (baixadas, após curvas…) não para prevenir ou reduzir acidentes – como foram concebidos, mas para arrecadar mais e mais em favor das empresas exploradora e do Estado ganancioso e impiedoso. Já há várias pesquisas que atestam que os pardais não têm diminuído, antes ao contrário, têm aumentado acidentes quiçá em razão de freadas bruscas. Os dados que dizem ser favoráveis a tais arapucas são altamente desconfiáveis parecendo sempre influenciadas por interesse das empresas e do Estado arrecadador que nada vê, ouve ou sente, senão fúria arrecadatória.  O jornal gaúcho Zero Hora de 12 de janeiro deste ano publicou o levantamento, fornecido pelas autoridades, das mortes ocorridas no trânsito das estradas gaúchas, estaduais e federais, no ano de 2001. Nas estradas estaduais, onde as autoridades tiveram o cuidado de multiplicar às centenas os pardais por todo o Estado, o número de mortos em acidentes no ano inteiro foi de 311, enquanto que em 2000 o número total de mortos foi de 300. Portanto, houve 11 mortos a mais em 2001 com relação a 2000. Aumentou, assim, o número de  mortos nas estradas com pardais. Já nas estradas federais, as que não têm pardais, o número de mortos em 2001 foi de 57 pessoas a menos. Portanto, desmascarada totalmente a afirmativa de que os pardais têm o fim de  salvar vidas. Pelo contrário, nas estradas onde não há pardais é que as vidas foram salvas durante o ano de 2001. Enfim, os pardais móveis e fixos (as barreiras eletrônicas já têm outro contexto) estão instalados inadequada e descriteriosamente para fins educativos e preventivos de acidentes, mas bem localizados e multiplicados. Entre dois fixos há, pelo menos, um móvel em trechos de alta arrecadação e quase sempre de baixa probabilidade de acidentes, antes dessas arapucas financeiras estatais).


Os pardais, muitos deles, estão instalados de modo a produzirem mais e mais receita para o Estado e para as empresas que exploram o serviço (e literalmente o povo-motorista). Estão logo após curvas, atrás de galhos de arvores, em baixadas e declives. Num mesmo segmento de pista muda-se a velocidade máxima e assim aumentam a arrecadação em detrimento do sacrifício financeiro do povo (na  saída da Estrutural/80/km/h e logo depois, no eixo no Monumental, surpreende o pardal de 60/km/h). As placas de advertência – que funcionam como descargo de consciência – nem sempre são visíveis diante de tantas placas e sinais e poluição visual intensa (p.ex. em Taguatinga/DF). Sucede que o ato de dirigir é predominantemente mecânico – quanto maior a experiência maior o mecanicismo do motorista – assim qualquer alteração da rotina mecanicista do motorista pode levar alguns tempo para ser absorvida pelo mecanismo do motorista, enquanto tal não se dá ele perde parte considerada de seu salário-alimento.


Ademais, em nosso país há tanto para nos perturbar, para nos ocupar a mentes e nos desviar a atenção até no trânsito, inclusive e principalmente a má distribuição de renda, o mau uso das receitas públicas, o péssimo serviço público em geral…Com tudo isso na cabeça, exigir-se que o motorista brasileiro seja como o britânico (fleumático) é, sem dúvida, padecer  daquilo que Kant denominou de razão preguiçosa. Há, por outro lado, a reclamação freqüente de que vias paralelas perfeitas e contíguas (como os eixos rodoviários/DF) com velocidades diversas que acabam por confundir o motorista: estando nos eixinhos supondo, mecanicamente, estar no eixão e por isso são multados por mero erro de proibição. Um mero descuido, a não visualização da placa de advertência, o hábito da velocidade antes usual em dadas vias e depois reduzida descriteriosamente, tudo isso e muito mais, pode ensejar uma perda, injusta porque desproporcional à infração, na renda e na mesa de muitos brasileiros. Não dar passagem (art.198, CTB), trafegar na esquerda (art.29, IV, c/c199, CTB) também são infração que geram muita colisão (abalroamento por trás) e sequer são percebidos pela polícia de trânsito. Os veículos com descarga desregulada, envenenando a muitos, motoristas ou não (um mal muito mais grave e difuso que o eventual 74/Km/h diante de pardal de 60km/h) também  sequer parecem  interessar às autoridades de trânsito.


Os valores das multas são altos e socialmente injustos, agravam perigosamente a enorme maldade da distribuição de rendas no país. Com efeito, R$ 102, 00, o valor mais freqüente dessas multas, é mais que a metade do salário-insuficiência, dito mínimo, é metade de um mês de trabalho de muitos brasileiros. Há multa de pardal cujo valor é de R$ 574, 00, isso é quase a  metade do salário de um DAS-3 (o DAS-6 é o mais alto). Já se conhece o credi-Detran, um crediário para saldar tantas e tão altas multas. Sabe-se de humildes trabalhadores do volante (carreteiros, biscateiros…) cujos  velhos carros sequer cobrem os valores das multas. È uma espoliação do pouco ou quase nada que muitos brasileiros (de operários motorizados e até ocupantes de DAS) conseguem amealhar em termos ganhos/renda, já tão mal distribuída entre nós. Em todas as cidades brasileiras já se loteiam trechos de estradas, de avenidas (e até de travessas) para favorecer empresas instituídas somente com o propósito de nada produzirem a não ser  multas que são repartidas com o governo (o Estado está acima disso !).


Em 1215, na Inglaterra, institui-se um mecanismo de proteção do contribuinte contra a fúria arrecadatória dos governantes de então, era o principio da anualidade para prevenir surpresas tributaria (imposto criado num ano e cobrável só no outro), tudo para não frustar o planejamento e a vida econômico-financeira do povo-contribuinte. Ninguém deve ser frustrado na organização de sua vida economico-financeira. Ademais, absolutamente inconstitucional a privação do direito de dispor de seus bens (do carro) antes da quitação da multa por ocasião do licenciamento anual do carro. Com efeito, a lavratura de uma multa eqüivale ao do flagrante delito. Deve ser, simplesmente, o ato inicial de um processado, por suposta infração às leis do trânsito. Não se pode pensar que toda infração de trânsito pressupõe uma conduta dolosa, um infrator em potencial. Já temos a CPMF (aprovada pelo povo para melhorar a saúde pública que, ao depois, até piorou) e outras injustiças fiscais/arrecadtórias todas insuportáveis e mantidas na base da omissão e apatia do povo sacrificado. A rapinagem fiscalista desperta o interesse de todos os mais de cinco mil municípios brasileiros que tendem a encher avenidas, ruas e ruelas de pardais. Por que será que ainda não cobriu as cidades e seus pontos negros de crimes e violências de câmaras denunciante/desestimulantes dessas práticas abomináveis?? Por que multamos a velocidade superior a 50, 60, 70, 80/Km/h, se nossos carros continuam saindo de fábrica com velocidades médias bem além do dobro daqueles limites regulamentares?? Por que não há limitadores de velocidade nos carros ?  Ou não é isso o que interessa ?


Não se pretende, aqui, apoiar infratores, estimular a alta velocidade e acidentes, é claro, mas sim buscar a justiça e  a legitimidade  (valor da ação), livre de radicalismo, de interesses outros. Fazemos parte, também, daquelas pessoas que defendem a sanção aos que infringem as regras de trânsito. Contudo, nem mesmo o mais empedernido dos fiscalistas poderá justificar essa violação do princípio jurídico da proporcionalidade, da razoabilidade. A desproporção é tamanha que já há vários saites com bancos de localizações de pardais em quase todos os Estados. Já há engenhoca eletrônica (receptores GPS) anunciada como antimultas. É que “os princípios são tudo. Os interesses materiais da nação movem-se de redor deles, ou, por melhor dizermos, dentro deles” ensinava Rui Barbosa. O Estado não converte o mal em bem só por ser Estado. Os pardais são, sim, absoluta e descaradamente improbidades  administrativas.


Com efeito, são tais penalidades socialmente injustas como tantas que já tivemos coragem  de instituir. Assim, para um taxista uma multa de R$ 574, 00 ou mesmo de R$ 102, 00, uma só dessas multas em cada mês pode representar redução sensível nos alimentos de sua mesa, mas para um alguém rico só pode mesmo representar uma gorjeta ao Estado pela aventura da alta velocidade no trânsito.  Ou isso não interessa aos insensíveis fiscalistas e lagalistas de plantão. Tais multas em que pese serem legais são ilegítimas porque injustas , desproporcionais e padecem de insanável vicio de origem : são mais meio de arrecadação que educação e segurança do transito, logo imorais embora legais. O Terceiro Reich (governo Hitlerista) também fez tudo o que fez  ao abrigo de leis, tudo era legal. Dizia-se, então, que o “Direito é o que é bom para o povo alemão”, ou “Quem o povo para reclamar (Goebbels, 1934). E não faltaram juristas de plantão para defender tal legalidade imoral e ilegítima. A lógica é a mesma  de Himmler  quando em 1943 disse aos oficiais da SS :  “Temos  uma  só tarefa :  “levar adiante a luta racial  (ou  o “trânsito seguro”) sem dó nem piedade”. Contudo, é preciso resistir posto que “…um dia eles chegam à porta de nossa casa e timidamente olham nosso jardim, e não fazemos nada; no dia seguinte entram em nosso quintal, colhem nossas flores, vemos, e não fazemos nada; até que por fim entram em nossa casa, roubam nossos bens, nossas mulheres, nossos filhos, e aí já não podemos mais fazer nada… Eis o repto de Maiakosvki em seu poema de maior sucesso e que se refere às nossas omissões diárias. E se um dia um trocarem as câmaras fotográficas por escopetas de alta precisão: para segurança do trânsito só alvejando mortalmente os “infratores”? Ah ! se esses legalistas/fiscalistas de plantão  soubessem que ninguém lograria passar ileso numa operação “pente fino” de trânsito, tal as possibilidade de infrações mil previstas em nosso Código de Trânsito.


Parece estar bem desmascarado, assim, o engodo oficial que encobre esses caças-salários, os pardais. Trata-se mais de interesse arrecadatório que educativo e de tranqüilidade no trânsito. È preciso, pois, repensar com mais virtude essas arapucas eletrônicas, como estão devemos também liberar, por lógica e coerência, as máquinas de jogo, o jogos de azar. È provável que os defensores dessa industria de fazer dinheiro (as máquinas de jogo) apresentem razões até validas e positivas para defendê-las (quiçá até educativas).  Hoje se debate muito – no âmbito das altas discussões filosófico-jurídicas  –  acerca da validade/utilidade , da legitimidade da atuação do Estado, intervindo na liberdade e no patrimônio do particular, visando punir as infrações. Ora, se o governo infringe e viola regras e princípios éticos e jurídicos, como pode ter autoridade e isenção para punir outros. No caso dos pardais isso é realidade gritante: a própria punição é absolutamente indigna e imoral.



Informações Sobre o Autor

Luiz Otávio de O. Amaral

advogado militante há mais de 27 anos e professor de Direito há mais 25 anos. Já lecionou na UnB e UDF. Ex-Diretor de Faculdade de Direito em Brasília. Atualmente leciona na Universidade Católica de Brasília-UCB. Foi assessor de Ministros da Justiça; do Min. da Desburocratizarão/P. Rep. Secret. Nacional de Dir. Consumidor. Autor de “Relações de Consumo” (04 v.); “O Cidadão e Consumidor” (co-autor); “Comentários ao Código Defesa do Consumidor, coord. Prof. Cretela Júnior (Ed.Forense) e “Legislação do Advogado”, MJ, 1985. Autor de “Lutando pelo Direito” (Consulex, 2002); e de “Direito e Segurança Pública – juridicidade operacional da Polícia” (Consulex, agosto/2003) e ainda de “Teoria Geral do Direito” (Forense, mai/04).


logo Âmbito Jurídico