Resumo:O presente artigo visa analisar o instituto da disregarddoctrine, inicialmente por meio do estudo do conceito da personalidade jurídica e seus efeitos legais, especialmente a autonomia patrimonial da sociedade empresária. Após, será exposto um breve escorço histórico da desconsideração da personalidade jurídica. Por fim, o instituto será analisado à luz do Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), que inovou ao estabelecer o procedimento processual pertinente ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
Palavra-chave:Novo Código de Processo Civil, Desconsideração da Personalidade Jurídica.
Abstract: This article aims to analyze the disregard doctrine, initially through the study of the concept from the legal personality and its legal effects, specially the patrimonial autonomy. After, there will be a brief historical study about the disregard doctrine. In the end, the institute will be analyzed by the New Civil Procedure Code that brought an innovation to stablish the procedure correlated to the disregard doctrine.
Keyword: New Civil Procedure Code, Disregard Doctrine.
Sumário: Introdução; 1. Personalidade jurídica e responsabilidade patrimonial, 1.1 Pessoa Jurídica, 1.2. Personalização, 1.3. Autonomia e responsabilidade patrimonial; 2. Desconsideração da personalidade jurídica, 2.1. Breve escorço histórico, 2.2 Desconsideração da personalidade jurídica no Brasil, 2.3. Teorias da desconsideração da personalidade jurídica; 3.Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica face ao advento do novo código e processo civil
Introdução
O presente trabalho analisará as inovações trazidas com o Novo Código de Processo Civil(Lei 13.105/2015) face ao incidente da desconsideração da personalidade jurídica, contrastando as novas disposições com as divergências doutrinárias e jurisprudenciais havidas antes da sua promulgação.
O instituto dadisregarddoctrinepossui amplo desenvolvimento teórico em nosso ordenamento pátrio, sendo amparado pela legislação material no Código Civil, no Código de Defesa do Consumidor, na Lei de Crimes Ambientais e na Lei Antitruste.Contudo, até a promulgação do NCPC não havia regramento processual acerca do incidente da desconsideração da personalidade jurídica, causando grande insegurança jurídica ante a discrepância das decisões judiciais proferidas nesse lapso temporal.
Serão analisados os conceitos atinentes à personalidade jurídica, especialmente no que tange aos seus reflexos ante o princípio da autonomia patrimonial das sociedades empresárias. Tal princípio serádestrinchado, inclusive, em relação àsua utilização indevida e abusiva ao longo da história, fato este que culminou na elaboração da disregarddoctrineof legal entity.
Com o objetivo de elucidar as dúvidas quanto este tema, analisaremos inicialmente as origens históricas do instituto, surgida primordialmente por meio de discussões jurisprudenciais em países adeptos da Common Law. Em relação à incidência da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil, estudaremos sua evolução doutrinária e legal, enfatizando os primeiros trabalhos acadêmicos a abordarem o tema, bem como sua evolução legislativa.
Destarte, no que se refere àsteorias existentes no Brasil, elucidaremos a Teoria Maior e a Teoria Menor da disregarddoctrine, bem como sua intersecção com o direito material vigente.
Por fim, as inovações trazidas pelo NCPC acerca do incidente da desconsideração da personalidade jurídica serão explicitadas por meio de análise dialógica, face às antigas divergências processuais correlatas ao instituto.
1. Personalidade jurídica e responsabilidade patrimonial
1.1. Pessoa jurídica
Para melhor desenvolvimento do presente trabalhoé imprescindível a conceituação da pessoa jurídica, a fim de fornecer bases e elucidar sua importância para o tema em estudo.
A personalidade, segundo Carlos Roberto Gonçalves (2008, p.70) é:
“[…] aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações ou deveres na ordem civil. É pressuposto para a inserção e atuação da pessoa na ordem jurídica.”
Desse modo temos que a personalidade é inerente à condição humana, princípio este consagrado no art. 1º do Código Civil Brasileiro, que dispõe que “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”.
A personalidade e os efeitos jurídicos dela decorrentes não são atribuição, contudo, apenas das pessoas naturais, sendo igualmente outorgados às pessoas jurídicas, que são sujeitos de deveres e obrigações.
A origem histórica da pessoa jurídica baseia-se no perfil eminentemente social do ser humano, que apresenta a necessidade de unir-se em grupos para promover a consecução de fins comuns e específicos.
Fábio Ulhôa Coelho (1987, p. 68) define com maestria a pessoa jurídica:
“O gênero próximo da pessoa jurídica é o conjunto de seres ou fatos sociais que o direito considera como portador ou destinatário de um interesse. É o sujeito de direito. A pessoa jurídica é um ser ou fato social tomado pelo direito como apto a ser referencial subjetivo de direitos e obrigações. (…) Tendo por gênero próximo o sujeito de direito, a pessoa jurídica integra o conjunto de seres e fatos sociais concebidos juridicamente como portadores ou destinatários de direitos e obrigações.”
Rubens Requião (1998, p. 204) define tal instituto como:
“Entende-se por pessoa jurídica o ente incorpóreo que, como as pessoas físicas, pode ser sujeito de direitos. Não se confundem, assim, as pessoas jurídicas com as pessoas físicas que deram lugar ao seu nascimento; pelo contrário, delas se distanciam, adquirindo patrimônio autônomo e exercendo direitos em nome próprio. Por tal razão, as pessoas jurídicas têm nome particular, como as pessoas físicas, domicílio e nacionalidade; podem estar em juízo, como autoras ou como rés, sem que isso se reflita na pessoa daqueles que a constituíram. Finalmente, têm vida autônoma, muitas vezes superior às das pessoas que as formaram; em alguns casos, a mudança de estado dessas pessoas não se reflete na estrutura das pessoas jurídicas, podendo, assim, variar as pessoas físicas que lhe deram origem, sem que esse fato incida no seu organismo. É o que acontece com as sociedades institucionais ou de capitais, cujos sócios podem mudar de estado ou ser substituídos sem que se altere a estrutura social.”
Desse modo,pessoa jurídicaé uma criação humana e consequentemente jurídica, por meio da personificação de grupos organizados com uma finalidade, dotados de direitos, obrigações e patrimônio próprio, para que possam exercer devidamente os atos cotidianos necessários à consecução de seus objetivos.
A pessoa jurídica é o organismo capaz de exercer os objetivos almejadospelo grupo, sem que, para tal, seus membros precisem exercer as atividades em nome próprio.
1.2. Personalização
A existência de personalidade conferida às pessoas jurídicas, conforme André Luiz Santa Cruz Ramos (2011, p. 341) constitui “sanção positiva ou premial” por meio da qual o Estado permite e instiga as práticas de atividades econômicas, que serão benéficas à sociedade e à arrecadação tributária.
Para Washington de Barros Monteiro apud Marlon Tomazette (2009, p. 224), o ordenamento jurídico confere às pessoas jurídicas o atributo da personalidade não de forma aleatória, mas com vistas a normatizar situações preexistentes às entidades merecedoras de tal benefício.
Entretanto, a formalizaçãoda personalidade jurídicainicia-se com o registro da pessoa jurídica na Junta Comercial (no caso das sociedades empresárias) ou no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (para as demais modalidades de pessoas jurídicas de direito privado), consoante disposição contida no art. 45 do Código Civil.
O arquivamento do ato constitutivo da pessoa jurídica confere publicidade à formação do novo ente, garantindo segurança jurídica à sociedade registrada, além de conferir parâmetros jurídicos para as relações obrigacionais travadas com terceiros.
A formalização do registro induz, nas palavras de Maria Helena Diniz (p. 41, 2013):
“No momento em que se opera o assento do contrato social ou do estatuto no registro competente, a pessoa jurídica começa a existir, passando a ter aptidão para ser sujeito de direitos e obrigações, a ter capacidade patrimonial, constituindo seu patrimônio, que não tem nenhuma relação com os dos sócios, adquirindo vida própria e autônoma, não se confundindo com seus membros, por ser uma nova unidade orgânica.”
Frise-se ainda que a personalidade atribuída às pessoas jurídicas implica em aptidão para as sociedades praticarem atos em nome próprio, capacidade processual e patrimônio distinto dos seus sócios, a fim de garantir estabilidade e gerar estímulos aos atos empresariais.
1.3. Autonomia e responsabilidade patrimonial
Em virtude da separação entre a pessoa jurídica e os entes que a compõem, a estes não serão imputáveis as obrigações e direitos daquela.Desse modo, será a pessoa jurídica a titular de todos os direitos e obrigações oriundos do exercício de suas atividades econômicas, possuindo capacidade processual e patrimônio distinto dos seus componentes.
Nesse diapasão, de acordo com a lição de Marlon Tomazette (p. 219, 2009):
“Ao se exercer a atividade empresarial por meio de uma pessoa jurídica, cria-se um centro autônomo de interesses em relação às pessoas que lhe deram origem, de modo que a estas não são imputadas as condutas, direitos e os deveres da pessoa jurídica.”
Assevera com propriedade Fábio Ulhôa Coelho (p. 24, 2012) que:
“Os bens integrantes do estabelecimento empresarial, e outros eventualmente atribuídos à pessoa jurídica, são de propriedade dela, e não de seus membros. Não existe comunhão ou condomínio relativamente aos bens sociais; sobre estes os componentes da sociedade empresária não exercem nenhum direito, de propriedade ou de outra natureza. É apenas a pessoa jurídica da sociedade a proprietária de tais bens. No patrimônio dos sócios encontra-se a participação societária, representada pelas quotas da sociedade limitada ou pelas ações da sociedade anônima.”
Face à prerrogativa da pessoa jurídica possuir patrimônio distinto dos seus membros, o ordenamento jurídico confere maior segurança jurídica à consecução das atividades empresariais inerentes às pessoas jurídicas, pois seus componentes podem investir “apenas uma parcela do seu patrimônio, assumindo riscos limitados do prejuízo”. (TOMAZETTE, p. 232, 2009).
Frise-se que o ordenamento jurídico respalda as pessoas jurídicas na medida em que promovem a persecução dos fins para os quais se propõe, moduladas pelos parâmetros impostos pela legislação vigente. Contudo, comumente o princípio da autonomia patrimonial é utilizado de forma deturpada, com vistas a obtenção de fins antijurídicos.
Para coibir tais atos e proteger terceiros de boa fé foi desenvolvida a disregarddoctrine, aplicada em face de uso abusivo da personalidade jurídica, que será objeto de estudo do próximo capítulo.
2. Desconsideração da personalidade jurídica
2.1. Breve escorço histórico
O instituto da desconsideração da personalidade jurídica originou-se, especialmente, nos países da Common Law e, por esse motivo, iniciou-se como uma criação jurisprudencial.
O primeiro caso concreto em que houve a “primeira manifestação, que olhou além da pessoa jurídica e considerou as características individuais dos sócios” (TOMAZETTE, p. 236, 2009) ocorreu em 1809, no caso Bank of United States V. Deveaux. Via de regra, a Corte Federal somente teria competência para julgar a controvérsia em face de litigância entre cidadãos de estados distintos, excluindo, pois, as corporações.
No caso em tela, a Corte Federal afirmou sua competência para conhecer a causa, ao equiparar o Banco dos Estados Unidos como cidadão, que embora a corporação fosse um ente abstrato e mera entidade legal,poderia ser considerado pessoa física, caso o direito dos membros pudesse ser exercido em nome da corporação (COTTON, p. 205, 2000).
Entretanto, considera-se que o precursor da teoria desconsideração da personalidade jurídica foi o caso Salomon V. Salomon &Co., julgado pelo HouseofLords da Inglaterra, em 1897.
Neste leading case, o Sr. Aron Salomon era um empresário individual que atuava no ramo de manufatura de botas de couro, que optou por transformar sua empresa em uma companhia limitada, a Salomon &Co.
A sociedade era composta por mais seis sócios, que detinham apenas uma quota cada um, sendo que o Sr. Aron Salomon possuía as 20 mil restantes.O sócio majoritário, na condição de pessoa física, emitiu para si e em nome da companhia títulos privilegiados, que garantiam o pagamento preferencial destes em caso de insolvência da empresa.
A companhia entrou em liquidação nos anos seguintes, pois tornou-se inviável. Entretanto, apurou-se que os credores quirografários não receberiam seus créditos, visto que o Sr. Salomon era o credor privilegiado e os bens da empresa não seriam suficientes para solver as dívidas, de forma que o sócio majoritário receberia todo o patrimônio da empresa, baseado nos títulos por ele emitidos.
No caso em tela, tanto o juízo de primeiro grau quanto a Corte de Apelação consideraram a existência de ato fraudulento por parte do Sr. Aron Salomon, que agiu com o claro intuito de frustrar o pagamento dos credores.À ele, como pessoa física, foi imputada a responsabilidade de solver as dívidas da companhia, pois constatou-se que detinha, em verdade, “o total controle societário sobre a sociedade, não se justificando a separação patrimonial entre ele e a pessoa jurídica” (RAMOS, p. 342, 2011).
A mencionada decisão foi reformada pela Suprema Corte, que acatou a tese defendida por Aron Salomon. Em sua defesa, alegou não poder ser responsabilizado pelas dívidas da companhia, posto que esta foi devidamente constituída em atenção aos preceitos do CompaniesAct.
Muito embora a desconsideração da personalidade jurídica não tenha prevalecido no leading case em análise, este foi o precursor da disregarddoctrine ou disregardof legal entity, lançando as premissas de tal estudo no direito anglo saxônico, especialmente no campo jurisprudencial.
No campo doutrinário, considera-se quea teoria foi pioneiramente estudada pelo germânico Rolf Serick, em tese de doutorado defendida em 1953 na Universidade de Tübigen. Em seu estudo:
“Serick formula a teoria que faculta ao juiz ignorar a pessoa jurídica utilizado como instrumento na realização de fraudes ou abusos de direitos e decidir a questão como se a mesma não existisse. Ressalta,no entanto, Serick que é necessário que haja deliberada intenção do sócio na utilização fraudulenta da pessoa jurídica, não bastando que sobrevenha prejuízo a terceiro em decorrência da autonomia patrimonial” (COELHO, p. 8, 1987).
Por meio da sistematização do estudo dos precedentes e da legislação alemã, Sericksintetizou quatro princípios seguros, aptos a permitirem a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no caso concreto.
Em apertada síntese, o jurista germânico fixou entendimento no sentido em que pode o magistrado, no caso concreto, afastar o princípio da separação entre os sócios e a pessoa jurídica, se constatar abuso na utilização desta. Nesta teoria, o abuso é caracterizado pelo ato deliberado de frustrar a aplicação da lei ou o cumprimento de obrigação contratual, ou de causar danos a terceiros com intuito fraudulento.
Frise-se que a ocorrência de abuso é condição sinequa non para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, como meio apto a coibir o ato ilícito. Desse modo, a simples frustração de determinado negócio jurídico ou de uma norma legalnão possuem o condão de permitir a incidência da disregarddoctrine, por faltar o liame objetivo do abuso ou da fraude.
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica ultrapassou os planos jurisprudenciais e teóricos, sendo incorporada ao ordenamento jurídico inglês no CompaniesAct de 1929, na Seção 279, como reflexo dos precedentes jurisprudenciais já assentados na Inglaterra. O mencionado dispositivo previa:
“Se no cursoda liquidação de sociedade constata-se que um seu negócio foi concluído com o objetivo deperpetrar uma fraude contra credores, dela ou de terceiros, ou mesmo uma fraude de outra natureza, aCorte, a pedido do liquidante, credor ou interessado, pode declarar, se considerar cabível, que todapessoa que participou, de forma consciente, da referida operação fraudulenta será direta eilimitadamente responsável pela obrigação, ou mesmo pela totalidade do passivo da sociedade”(BASTID-DAVID-LUCHAIRE apud COELHO, p. 51, 2012).
2.2. Desconsideração da personalidade jurídica no brasil
No Brasil, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica desenvolveu-se inicialmente no plano doutrinário, tendo como precursor o jurista Rubens Requião, que desenvolveu sua tese por meio de ensaio publicado na Revista, intitulado “Abuso de Direito e Fraude através da Personalidade Jurídica – DisregardDoctrine”, em1969.
O referido estudoapresentou como pressuposto a sistematização desenvolvida por Rolf Serick, no qual Rubens Requião preconizou a possibilidade da aplicação da disregardof legal entity no direito brasileiro, mesmo ante a ausência de previsão legal. Para tanto, defendia a relativização da personalidade jurídica como instrumento de repressão de abusos de direito ou fraudes no exercício empresarial, pois não aplicá-la sob o argumento de não haver dispositivo legal expresso, constituiria verdadeiro amparo à fraude.
Para reforçar sua tese,Requião estabeleceu analogias da teoria da desconsideração com o próprio ordenamento jurídico brasileiro vigente à época, tal como o art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho e os arts. 121 e 122 da Lei das Sociedades por Ações.
Em síntese, defendia o postulado que:
“Quando propugnamos da doutrina da desconsideração da pessoa jurídica em nosso direito, o fazemos invocando as mesmas cautelas e zelos de que a revestem os juízes norte americanos, pois sua aplicação há de ser feita com extremos cuidados, e apenas em casos excepcionais, que visem a impedir a fraude ou o abuso de direito em vias de consumação.” (REQUIÃO, p. 23, 1969)
Em decorrência do desenvolvimento doutrinário da teoria no Brasil, esta passou a ser aplicada reiteradamente pelos tribunais pátrios, ainda que não houvesse previsão legal expressa no ordenamento jurídico brasileiro.
O balizamento legal da disregarddoctrineno Brasil foi inicialmente tratado no âmbito de legislações específicas, pioneiramente com o advento da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), que previu expressamente as hipóteses de incidência da teoria no art. 28, caput e § 5º:
“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”
Posteriormente, a desconsideração da personalidade jurídica foi tratada no revogado art. 18 da Lei 8.884/94 (que dispunha sobre a prevenção e a repressão às infrações à ordem econômica, que tratava:
“Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”
Ainda na mesma década, o art. 4º da Lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) trouxe previsão semelhante àquela versada no art. 18, § 5º do Código de Defesa doConsumidor, pois trata que “poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.”
Somente com a promulgação do Código Civil de 2002 houve o tratamento legislativo adequado da disregarddoctrine, face à previsão de norma geral (e em consonância com os princípios originais da teoria) no art. 50:
”Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
Desse modo, o dispositivo mencionado é a regra matriz da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro, de aplicação obrigatória em todos os casos a ela relacionados, com exceção daqueles que possuem regramento legal específico. (RAMOS, p. 245, 2011).
Hodiernamente, a disregarddoctrine possui ampla aplicação prática no Brasil, sendo amplamente utilizada como meio apto a coibir fraudes e abusos no uso da personalidade jurídica. Contudo, conforme será tratado adiante, o procedimento processual acerca da desconsideração da personalidade jurídica era inexistente, até a promulgação do Novo Código de Processo Civil, fato este que implicou em grande celeuma doutrinária e jurisprudencial.
2.3. Teorias da desconsideração da personalidade jurídica
Conforme exposto alhures, o princípio da autonomia patrimonial conferido às pessoas jurídicas não objetiva somente garantir a conservação do patrimônio pessoal dos sócios, pois visa garantir a persecução dos fins legais e de direito, além de fomentar as atividades empresariais, de interesse tanto dos empreendedores quanto do próprio Estado.
A esse respeito se posiciona com magnitude Fredie Didier Jr.:
“O bem jurídico constitui-se justamente na possibilidade de revestir de personalidade jurídica a concretização de vontades individuais, acompanhada de todos os apetrechos necessários para a sua consecução, bem como a autonomia patrimonial que daí surge e a limitação da responsabilidade dos sócios, fundamentais para incentivar o desenvolvimento da atividade econômica.” (DIDIER, p. 3, 2002).
Desse modo, resta patente o eminente caráter sócio econômico do princípio da autonomia patrimonial. Por esse motivo, uma vez utilizado com animus de abuso ou fraude, ou ainda com intuito antijurídico, justifica-se a utilização da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no caso concreto.
Por constituir-se em medida excepcional, a desconsideração da personalidade jurídica não implica em revogação do princípio da autonomia patrimonial, mas no caso concreto haverá a temporária suspensão dos efeitos de tal instituto, sem afetar as outras relações jurídicas e obrigacionais da sociedade. (MAMEDE, p. 243, 2015).
No que tange à aplicação da disregarddoctrine no direito brasileiro, nos deparamos com a formulação de duas teorias, a maior e a menor. Ressalte-se que a teoria maior possui duas formulações: a objetiva e a subjetiva.
A teoria menor, menos elaborada que a teoria maior (ou mesmo considerada incorreta por Fábio Ulhôa Coelho), elege como pressuposto de aplicação a mera insatisfação do crédito por parte da pessoa jurídica ou a sua insolvência.
Nota-se que a mencionada teoria não elenca pressupostos robustos para a incidência da desconsideração da personalidade jurídica, indo de encontro à prescrição legal do art. 50 do Código Civil, que estipula como requisitos a existência de desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
Contudo, nota-se que a teoria menor encontra guarida, excepcionalmente, no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, consoante disposições do art. 28, § 5º do Código de Defesa do Consumidor e do art. 4º da Lei 9.605/98. A esse respeito posicionou-se o Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial 279273/SP, julgado na 3ª Turma, de relatoria dos ministros Ari Pardengler e Nancy Andrighi:
“A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamentojurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no DireitoAmbiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídicapara o pagamento de suas obrigações, independentemente da existênciade desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividadeseconômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com apessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, aindaque estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo quenão exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa oudolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica. A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações deconsumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC,porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina àdemonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado,mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica,obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”
Na teoria maior, o mero inadimplemento de obrigação patrimonial não é meio apto a desconsiderar a personalidade jurídica; é necessário que haja o desvirtuamento da função da pessoa jurídica no caso concreto (TOMAZETTE, p. 240, 2009).
Na teoria maior subjetiva o pressuposto para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica é a existência de fraude ou abuso de direito em relação à pessoa jurídica, constatados por meio do desvio de função desta.
Entretanto, muitas vezes há enorme dificuldade probatória em relação a tais critérios, ocasiões em que se admite, extraordinariamente, desconsideração apenas por meio da comprovação de confusão patrimonial. Esse é o escopo da formulação objetiva da teoria maior, cujo pressuposto da teoria poderá ser apurado por meio de escrituração contábil, existência de contas pessoais pagas em nome da pessoa jurídica e vice versa (GONÇALVES, p. 216, 2008).
A esse respeito leciona Fábio Ulhôa Coelho (2012, p. 47):
“Em suma, entendo que a formulação subjetiva da teoria da desconsideração deve ser adotadacomo o critério para circunscrever a moldura de situações em que cabe aplicá-la, ou seja, ela é amais ajustada à teoria da desconsideração. A formulação objetiva, por sua vez, deve auxiliar nafacilitação da prova pelo demandante. Quer dizer, deve-se presumir a fraude na manipulação daautonomia patrimonial da pessoa jurídica se demonstrada a confusão entre os patrimônios dela e deum ou mais de seus integrantes, mas não se deve deixar de desconsiderar a personalidade jurídica dasociedade, somente porque o demandado demonstrou ser inexistente qualquer tipo de confusãopatrimonial, se caracterizada, por outro modo, a fraude.”
Resta patente que a teoria maior é circunscrita pela redação do art. 50 do Código Civil, sendo a teoria de incidência predominante no Brasil. Isto porque a mencionada teoria é a mais fiel à disregarddoctrine, além de exigir critérios robustos para a decretação da desconsideração da personalidade jurídica, tendo como pressupostos, cumulativamente, o uso fraudulento e abusivo da pessoa jurídica, com fins de frustração dos direitos do credor, devidamente comprovados.
Desse modo, temos que a teoria maior permite, efetivamente, o uso correto da desconsideração da personalidade jurídica, por tratar-se de medida excepcional e não contumaz.
Por fim, insta destacar apontamento clássico feito por Fábio Ulhôa (2012, p. 50), em que a desconsideração da personalidade jurídica será aplicada ao caso concreto com o fito de coibir atos aparentemente lícitos, ou seja, quando imputáveis à sociedade revestem-se de aparente legalidade, mas ao se analisar a realidade fática denota-se que a real responsabilidade, sob amparo da lei, deve ser dirigida aos sócios.
Tal distinção se faz necessária em virtude que alguns atos, conforme disposição legal são sempre imputáveis ao responsável, não importando se há afastamento da consideração da pessoa jurídica, como por exemplo, no caso da responsabilização pessoal de administrador de instituição financeira poratos de má administração.
3 – Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica face ao advento do novo código e processo civil
Analisados os pressupostos materiais da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, faz-se mister analisar os aspectos processuais de sua aplicação. Isto porque até a promulgação do Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) não havia regulamentação processual acerca do procedimento a ser adotado, sendo tal falha suprida pela doutrina e pela jurisprudência.
Antes do advento do Novo CPC haviam várias celeumas acerca dos aspectos processuais da disregarddoctrine, especialmente no que tange à garantia do devido processo legal e do contraditório às partes litigantes.
Acerca deste tema, impende citar Gladston Mamede (p. 266, 2010):
“A assimilação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica noDireito Brasileiro, mesmo legalmente, como visto, não se fez acompanhar, infelizmente,de uma regulamentação do contexto processual em que poderia ser concretizada. Como se só não bastasse para o caos, doutrina e jurisprudêncianão se pacificaram até os nossos dias, havendo posições que afirmam desde a possibilidade do reconhecimento incidental, no curso do processo executório de títuloextrajudicial, execução de sentença, decisão interlocutória em processo de falência ou de insolvência, até posições que, diametralmente opostas, negam mesmo apossibilidade de deferimento liminar da medida, asseverando que somente poderá decorrer do processo de conhecimento, fruto da interposição imperativa de uma ação autônoma”.
Resta claro que havia divergência doutrinária e jurisprudencial acerca do procedimento a ser adotado: haveria necessidade da propositura de uma ação autônoma de cognição exauriente ou a desconsideração da personalidade jurídica poderia ser requisitada no bojo dos próprios autos, redirecionando-se a execução contra os sócios?
Parte da doutrina defendia a propositura de ação judicial específica para a decretação da desconsideração, especialmente em prestígio aos princípios da ampla defesa e do contraditório. Tal posicionamento justificava-se como meio de coibir cerceamento de defesa, oportunizando aos sócios o exercício pleno de defesa e a produção de todas as provas cabíveis, sendo necessário que a prova do abuso de direito por parte do Requerente. (COELHO, p. 55, 2012).
Nesse mesmo viés:
“Em tese, a situação mais segura para a desconsideração da personalidade jurídica,respeitando as garantias dispostas no artigo 5O, LIV e W, da Constituição daRepública, seria o seu provimento em processo de conhecimento, a partir de açãoautônoma para a qual fossem citados aqueles sobre cujo patrimônio particular sepretende a extensão dos efeitos de obrigação societária.” (MAMEDE, p. 267, 2010)
Com grande propriedade, Fredie Didier Jr. (p. 12, 2011) preconizava a necessidade de citação dos sócios, vedando-se a concessão liminar da desconsideração da personalidade jurídica, face à possibilidade da mitigação da ampla defesa trazer prejuízos irreversíveis às partes.
A outra corrente doutrinária preconizava a possibilidade do deferimento da medida no bojo dos autos, por meio de decisão incidental, via comprovação de fraude ou abuso de direito que autorizem a desconsideração da personalidade jurídica.
Entendia-se que tal medida não importava em cerceamento de defesa dos sócios, que poderiam “exercitar sua defesa plenamente por meio da ação autônoma ou ainda por meio da interposição do recurso de agravo de instrumento.” (TOMAZETTE, p. 269, 2010).
Ademais, seria imprescindível que a decisão que decretasse incidentalmente a desconsideração da personalidade jurídica fosse devidamente fundamentada, explicitando o preenchimento dos requisitos legais para a concessão da medida. (RAMOS, p. 351, 2010).
O Superior Tribunal de Justiça filiava-se a essa corrente doutrinária, consoante se depreende de reiterados julgados:
“É pacífico na jurisprudência desta Corte a possibilidade de, nocursodo feito falimentar e de forma cautelar, haver adesconsideração da personalidade jurídica independente de açãoautônoma para tanto. Além disso, é firme o entendimento daprescindibilidade de citação prévia”. (REsp 476.452/GO, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, Rel. p/ Acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 05/12/2013, DJe 11/02/2014)
“Uma vez apurada a fraude e a confusão patrimonial entre a empresa falida e seus controladores pelas instâncias ordinárias, em regra pode ser desconsiderada a personalidade jurídica como medida incidental no curso do processo falimentar, bem como determinada a extensão de seus efeitos aos controladores da falida, independentemente de ação autônoma.” (REsp 1316256/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 18/06/2013, DJe 12/08/2013)
“A superação da pessoa jurídica afirma-se como um incidente processual e não como um processo incidente, razão pela qual pode ser deferida nos próprios autos, dispensando-se também a citação dos sócios, em desfavor de quem foi superada a pessoa jurídica, bastando a defesa apresentada a posteriori, mediante embargos, impugnação ao cumprimento de sentença ou exceção de pré-executividade.”(REsp 1096604/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 02/08/2012, DJe 16/10/2012)
Essa celeuma foi definitivamente superada com o advento do Novo Código de Processo Civil,ao estabelecer em seu art. 134 “O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial”.
A esse respeito:
“Não se trata de incidente processado em autos próprios (apartados), pois o NCPC abdicou da técnica, comum no CPC/1973, suprimindo-a em hipóteses
clássicascomo a do incidente de falsidade documental (art. 430), por exemplo. Em princípio, portanto, o debate dar-se-á no ventre do processo em que debatida a questão principal, mas como o objetivo é a simplificação. […]O legislador optou pela dispensa de ação própria para o fim da desconsideração. Assim, o NCPC, ao reservar o espaço do incidente para o trato da questão, reafirmou o caráter sumário do debate a ser estabelecido. Embora não haja restrições na Lei acerca de tipos de prova ou prazos, o fato é que não se pode imaginar a amplitude do debate peculiar ao de uma ação própriatravestida em incidente, sobretudo quando proposto no curso do processo de conhecimento.” (FERNANDES, p. 145, 2015)
Desse modo, nota-se que o novo diploma processual traz interessante inovação ao permitir, explicitamente, a desconsideração da personalidade jurídica durante o processo de conhecimento de cognição exauriente, e não apenas ante a existência de título executivo judicial ou extrajudicial.
Interessante ressaltar que, inobstante a previsão de decretação incidental da desconsideração da personalidade jurídica, admite-se o seu requerimento na petição inicial, dispensando-se o incidente.
Outro ponto de grande divergência relacionava-se à necessidade de citação dos sócios, quando a desconsideração fosse decretada incidentalmente. Discutia-se a oportunização de defesa prévia aos sócios, quando a eles fosse redirecionada a constrição de bens, por meio da citação, ou se cabível apenas a intimação da instauração do incidente, com o exercício posterior dos meios de defesa cabíveis, sem prévia atividade de cognição prévia por parte do juiz.
O Superior Tribunal de Justiça esposava entendimento majoritário, preconizando aprescindibilidade a citação dos sócios, que exerceriam o “direito de defesa por meio do exercício postergado ou diferido do contraditório” (AgRg no REsp 1523930/RS, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, julgado em 16/06/2015, DJe 25/06/2015). O posicionamento dominante da Corte (perfilhado no AgRg no REsp1182385 / RS, REsp 1096604/DF, REsp1253383 / MT, AgRg na MC 24127 / SP, dentre outros) indicava a ausência de violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa, vez que os sócios poderiam manejar defesa, ainda que postergada, por meio de embargos à execução, impugnação ao cumprimento de sentença ou ainda, exceção de pré executividade.
A ausência de citação dos sócios no incidente de desconsideração da personalidade jurídica foi duramente rechaçada por parte da doutrina:
“Muitosediscutearespeitodoproblemadocerceamentodedefesa e daofensaaoprincípiodo contraditório, nas hipóteses em que se busca dar efetividade à desconsideração da personalidade jurídica. O cerne da questão é o seguinte: é possível desconsiderar a existência da pessoa jurídica sem prévia atividade cognitiva do magistrado, de que participem os sócios ou outra sociedade empresária, em contraditório? A resposta é negativa: não se pode admitir a aplicação de sanção sem o contraditório” (DIDIER JR., p. 10, 2014).
No mesmo viés posicionou-se Fábio Ulhôa Coelho (p. 56, 2012):
“Não é correto o juiz, na execução, simplesmente determinar apenhora de bens do sócio ou administrador, transferindo para eventuais embargos de terceiro adiscussão sobre a fraude, porque isso significa uma inversão do ônus probatório.”
Ainda que fosse a posição dominante do Superior Tribunal de Justiça, adispensa da citação para decretação da desconsideração da personalidade jurídica acarretaria sérios danos aos sócios, por importar em limitação aos meios de defesae probatórios destes, especialmente por permitir que o incidente seja decretado antes de provados os requisitos para sua concessão.
O novel diploma processual com acerto estabelece, em seu art. 135,a necessidade de citação dos sócios ou da pessoa jurídica (no caso da desconsideração inversa), que deverão manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias e requerer todas as provas cabíveis. A inovação representa grande avanço na matéria, uma vez que padroniza o procedimento cabível ao incidente e garante, integralmente, o amplo exercício do direito de defesa e ao contraditório, outrora ameaçado ante à dispensa do processo citatório.
Frise-se ainda que o Novo CPC autoriza a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica apenas mediante demonstração do cumprimento dos requisitos legais específicos para sua decretação(art. 134, § 4º), não havendo possibilidade do deferimento da medida por meio de mera solicitação.
Ademais, o pressuposto autorizador da desconsideração será delineado majoritariamente pelas hipóteses previstas no art. 50 do Código Civil (por tratar-se de norma geral do direito material) ou pela legislação específica, se aplicável ao caso concreto (art. 133, § 1º).
Interessante trazer à baila que o art. 133 do novo diploma processual, tal qual o art. 50 do Código Civil,estabelece que o incidente da desconsideração da personalidade jurídica deveráser instaurado mediante requerimento da parte ou do Ministério Público, quando legitimado a intervir no feito. Tal previsão coaduna-se com a posição doutrinária já vigente, que considerava a impossibilidade da concessão exofficiodo incidente.
A esse respeito:
“[…] a redação do artigo 50 do Código Civil determina que a desconsideraçãoserá decidida pelo juiz a requerimento da parte ou do Ministério Público, o que, nitidamente, não autorizaa aplicação do instituto de ofício, uma vez que o texto confere expressamente legitimidade apenas aosdois sujeitos mencionados. Interpretação em sentido contrário violaria o princípio dispositivo, ou dainiciativa da parte, e o princípio da inércia do juiz, que são elementares para o nosso processo civil,permitindo que o juiz demande sujeito estranho à relação processual, sem provocação para tanto da parteque se beneficiaria com o feito.” (COELHO, 2012, p. 32).
Noutro ponto, muito se discutia acerca dos meios de impugnação da decisão que deferia a desconsideração da personalidade jurídica, especialmente em função da divergência acerca da natureza de tal ato decisório.
Para MAMEDE (2010, p. 270) a via impugnativa seriam os embargos à execução (quando decidido no bojo de ação de execução) e não a interposição de agravo de instrumento, vez que a decisão seria provisória e os embargos proporcionariam direito de instrução amplo ao demandado.
O Novo Código de Processo Civil estipula, definitivamente, que o incidente será decretado por meio de decisão interlocutória, visto que trata-se de medida incidental aos autos principais. Desse modo, caberá agravo de instrumento, caso tenha sido proferida em primeiro grau, ou agravo interno, caso tenha sido deferida pelo relator, em segundo grau.
Gize-se que tal dispositivo obsta que o incidente da desconsideração da personalidade jurídica seja decretado por juiz por mero despacho em processo de execução, que dispensa a dilação probatória.
Quando constatada a ocorrência de fraude à execução, a alienação ou oneração de bens não produzirá efeitos perante o requerente, consoante disposição do art. 137 do Novo CPC. Tal dispositivo, contudo, importa em redundância pois o mencionado código estabelece em seu art.792, § 1º as mesmas disposições.
Conclusão
Por meio do presente estudo, conclui-se que o princípio da autonomia patrimonial possui grande relevância social, vez que permite e incentiva as práticas mercantis em território nacional. Contudo, tendo em vista a possibilidade de ser utilizada de forma fraudulenta ou abusiva, com vistas a frustrar obrigações contraídas em nome da sociedade empresária, exsurge a importância do desenvolvimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
Malgrado a legislação material há muito tenha versado sobre o temo – com acertos e também com impropriedades teóricas –o vácuo legislativo processual acerca da disregarddoctrine trazia sérias consequências aos jurisdicionados, face à ausência de uniformidade na aplicação da teoria. Ademais, face à excepcionalidade da medidada desconsideração da personalidade jurídica, tal preocupação tornava-se ainda mais clara.
Conforme exposto neste trabalho, o Novo de Processo Civil trouxeimportantes avanços, resultado de grande amadurecimento teórico em relação ao tema.Foi assegurado, por exemplo, o direito à ampla defesa e ao contraditório ao estabelecer a necessidade de citação dos sócios ou da pessoa jurídica face ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica, permitindo a ampla produção probatória e a defesa prévia dos requeridos.
Com acerto o novel diploma processual absteve-se de elencar as hipóteses legais de incidência da disregarddoctrine, permitindo que a legislação material em vigor estabeleça, conforme o caso concreto, a sua aplicação. Ainda que criticáveis alguns dispositivos legais que versam sobre a desconsideração da personalidade jurídica(tais como o Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Crimes Ambientais), não compete à legislação processual corrigi-las e, tampouco, adentrar nas celeumas atinentes ao direito material.
Nota-se, ainda, a preocupação do legislador em aclarar que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é cabível em todas as fases do processo, admitindo-se, inclusive, que seja solicitado na peça exordial, quando preexistente o abuso de direito ou desvio de finalidade da sociedade empresária.
Assim, com o fim do vácuo normativo espera-se que o Novo Código de Processo Civil possa garantir maior segurança jurídica aos jurisdicionados, especialmente face às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, fomentando as atividades empresariais em solo nacional, por coibir a aplicação inadequada da disregarddoctrineof legal entity.
Muito embora o diploma processual ainda não esteja em vigor, resta patente que sua promulgação não encerrará definitivamente as controvérsias referentes ao tema, cabendo à jurisprudência e à doutrina a elaboração de parâmetros seguros para sua aplicação.
Informações Sobre o Autor
Marília Araguaia de Castro Sá Lima
Advogada. Formada em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás