A desconstitucionalização do direito fundamental ao meio ambiente

Resumo: Este artigo trata da possível desconstitucionalização do Direito Ambiental que a PEC n° 341/09 estabelece quando propõe o remanejamento do título da ordem social ao nível infraconstitucional. Trabalha especificamente com a questão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado essencial à sadia qualidade como um direito fundamental. Observa a impertinência de tal proposta que poderá gerar um retrocesso aos direitos fundamentais até então conquistados. Sustenta a tese de que o direito ao meio ambiente como direito fundamental está diretamente ligado ao direito à vida, não podendo ser retirado da Constituição via emenda constitucional.


Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Meio Ambiente. Constituição


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Sumário: Introdução. 1 Constitucionalismo e a Constituição de 1988; 2 Limitações ao poder constituinte derivado; 3 A proteção constitucional do meio ambiente; Conclusão; Referências;


INTRODUÇÃO


Tramita hoje no Congresso Nacional a proposta de emenda constitucional (PEC) n° 341/09, a qual almeja reduzir a Constituição para setenta artigos. Tal proposta, se aprovada, retirará, dentre outras, toda a matéria constitucional referente aos títulos da ordem social e da ordem econômica e financeira. Desta forma, tais matérias seriam remanejadas à legislação infraconstitucional.


É certo que a Constituição de 1988 trata de inúmeras matérias que seriam mais oportunas se tratadas a nível infraconstitucional. Entretanto, a referida proposta de emenda poderá atingir direitos fundamentais que estão previstos nos títulos constitucionais alvos do banimento. Dentre os vários debates que a referida PEC poderia suscitar, a este artigo interessa tratar especificamente da matéria de Direito Ambiental, que não mais teria a tutela constitucional expressa.


Para se verificar as conseqüências de uma desconstitucionalização da tutela constitucional expressa do meio ambiente, faz-se necessário remeter primeiramente a discussão às próprias características da Constituição, ao movimento criador desta, ao momento constituinte originário, e aos limites, materiais e formais, impostos ao poder reformador.


Posterior a tal análise, se poderá tratar da questão ambiental vista como um direito fundamental, a importância de sua previsão a nível constitucional, e algumas conseqüências de sua possível desconstitucionalização. Por fim, logo se adianta que a desconsitucionalização de qualquer direito fundamental configuraria em um retrocesso destes.


1 CONSTITUCIONALISMO E A CONSTITUIÇÃO DE 1988


É inevitável fazer uma abordagem da possível profunda mudança da Constituição sem que se verifique no passado o seu momento “constituinte”. Nenhuma constituição surge de um dia para o outro; para “constituí-la”, toda a carga axiológica, política, cultural, e ideológica é carregada por um movimento social que busca efetivar suas conquistas e um modo de garanti-las.


Canotilho vai definir o constitucionalismo como “a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade”. [1]  O constitucionalismo gerara um movimento constitucional, o qual legitimara o surgimento da Constituição moderna, a qual, através de um documento escrito organiza a sociedade, fixa os limites do poder, declara os direitos fundamentais e o respectivo modo de garantia. [2]


O “passado constitucional” do Brasil fora tumultuoso, tanto que até hoje não se sabe se houveram sete ou oito constituições. O certo é que os “momentos constitucionais” brasileiros foram marcados tanto por conquistas sociais quanto por momentos arbitrários e usurpadores do poder. Muito se conquistou até que se pudesse obter o conteúdo disposto na Constituição de 1988.


A Constituição atual marcou um momento de ruptura. Depois de décadas de ditadura militar, a nova Constituição suje para instaurar definitivamente a Democracia e os direitos fundamentais. José Afonso da Silva aduz que:


“a constituição de 1998, como típica Constituição transformista, busca superar o liberalismo pela configuração de um Estado Democrático de Direito, com marcado acento nos valores que emanam dos direitos de 2° geração (valores social) e de 3° geração (a solidariedade)”.[3]


A implementação dos direitos fundamentais remete à ideia de Constituição do ponto de vista material; que a partir deste “a Constituição é o conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais”. [4] Do ponto de vista formal, a Constituição é observada em sua relação hierárquica com as outras leis. No que concerne a esta análise, se observará idéia de Constituição material quanto ao tratamento da questão dos direitos fundamentais, e a ideia de Constituição formal quanto a importância hierárquica da disposição constitucional em ralação à legislação infraconstitucional.


A nova Carta Constitucional traz em seu bojo uma série de disposições que especificam várias matérias, sendo assim, considerada prolixa. Por vezes é criticada por tratar de matérias que não necessitariam ser elevadas ao nível constitucional. Sendo este, o ponto que a PEC n° 341/09 almeja tratar. Entretanto, se verificará mais adiante que há questões de extrema relevância que não podem ser descartadas.


2 LIMITAÇÕES AO PODER CONSTITUINTE DERIVADO


Para discorrer sobre a proposta de emenda à constituição em tela, faz-se necessário observar a própria função do Poder Legislativo como reformador da Constituição, a qual se dá por meio de emenda constitucional. Para isso é necessário observar os limites que a própria Constituição estabelecer para este poder constituinte derivado exercer o importante papel de revisão constitucional.


Os limites impostos ao poder constituinte derivado decorre da opção política feita pelo poder constituinte originário. Tais limites são formais e materiais, mas antes de estabelecê-los, faz-se necessário trabalhar brevemente com a ideia de poder constituinte originário. Este se faz como um poder criador da Constituição, o qual é extrajurídico, político, ideológico e axiológico, cujo titular é o povo.


Canotilho aduz que “os poderes conformados por esta constituição criada pelo poder constituinte (inclusive o poder de rever ou emendar a constituição – poder de revisão) seriam poderes constituídos.” [5] O citado poder constituinte constituído (ou derivado) é um poder constituído pela Constituição, o qual “é órgão constitucional, conhece limitações tácitas e expressas, e se define como poder primacialmente jurídico, que tem por objeto a reforma do texto constitucional.” [6] As limitações impostas pela Constituição de 1988, que lhe dão maior rigidez quanto a reforma, estão dispostas no seu art. 60, as quais  são , como afirmado, formais e materiais. Dentre as formais têm-se aquelas que dispõem quanto aos legitimados para propor a emenda constitucional e ao quorum que dever ser qualificado para a aprovação. Quanto as materiais, faz-se relevante tratar da qual dispõe quanto a não possibilidade de serem objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.


Para a análise que se pretende fazer, é oportuno destacar apenas a limitação formal imposta pela Constituição quanto a impossibilidade de abolição dos direitos fundamentais individuais. Há uma tensa discussão doutrinária sobre a possibilidade de uma interpretação extensiva de tal dispositivo, abarcando desta forma, também os direitos sociais. A relevância dada tão-somente à petrificação constitucional dos direitos individuais decorre da interpretação literal do texto da Constituição, o qual possui um forte viés liberalista.


Não obstante, essa interpretação não é adequada. Outros direitos fundamentais (quaisquer outros) não podem ser rechaçados, retirados da constituição, e reconduzidos a legislação infraconstituicioal. Qualquer medida que vise a retirada de tais direitos configuraria um retrocesso às conquistas no âmbito dos direitos fundamentais.


Bonavides defende a inserção dos direitos sociais na limitação material imposta pelo art. 60 da Constituição; vale transcrever sua plausível justificava:


“Em obediência aos princípios fundamentais que emergem do Título I da Lei Maior, faz mister, em boa doutrina, interpretar a garantia dos direitos sociais como cláusula pétrea e matéria que requer, ao mesmo passo, um entendimento adequando dos direitos e garantias individuais do art. 60. Em outras palavras, pelos seus vínculos principiais já expostos – e foram tantos na sua liquidez inatacável -, os direitos sociais recebem em nosso direito constitucional positivo uma garantia tão elevada e reforçada que lhes faz legítima a inserção no mesmo âmbito conceitual da expressão direitos e garantias individuais do art. 60. Fruem, por conseguinte, uma intangibilidade que os coloca inteiramente além do alcance do poder constituinte ordinário, ou seja, aquele poder constituinte derivado, limitado e de segundo grau contido no interior do próprio ordenamento jurídico.”[7]


Entende-se que a interpretação acima é a mais adequada ao “sentimento constitucional”. A partir desta, os direitos sociais, direitos fundamentais de segunda geração, entrariam no rol de direitos fundamentais intangíveis ao poder reformador. Se a idéia de geração de direitos deve ser entendida de forma harmônica, onde um não exclui o outro, e que não hierarquia entre estes; logo, os direitos fundamentais de terceira geração também podem ser abarcados pelos limites materiais de reforma da Constituição?


A PEC n° 341/09 almeja uma ambiciosa reforma constitucional que modifica profundamente a Constituição de 1988. De certo, ela não pretende abolir os direitos sociais previstos no art. 6. Entretanto, excluem do texto constitucional os artigos, entre outros, que tratam da ordem social. É legítima a discussão sobre a prolixidade da Constituição, e a desnecessidade de uma série de previsões que não são essencialmente constitucionais, as quais poderiam ficar a cargo de lei infraconstitucional.


A constatação de que não é possível retirar a proteção constitucional da matéria ambiental vedada pela limitação material interposta ao poder constituinte derivado, já põe em xeque a constitucionalidade da PEC n° 341/09.


3 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO MEIO AMBIENTE


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A preocupação com o meio ambiente no Brasil é anterior à Constituição de 1988. Passou a haver no mundo, após a Segunda Guerra, uma disseminada preocupação global com as questões ambientais. A partir dos anos 70, sob influência da declaração de Estocolmo de 1972, os novos sistemas constitucionais europeus passaram a reconhecer a importância da proteção ambiental e a necessidade de uma maior e mais efetiva tutela estatal. [8]


No Brasil, ainda anteriormente à Constituição de 1988, já havia legislação infraconstitucional que tutelava alguns interesses ligados ao meio ambiente. A Lei 6938/81, ainda vigente, é um exemplo da tutela ambiental exercida pelo Estado. Mas, indubitavelmente, é com o advento da Constituição de 1988 que a proteção ambiental ganhou seu ápice de importância.


São inúmeras as vantagens da constitucionalização do Direito Ambiental. Para além da maior visibilidade no contexto nacional, o Direito Ambiental passa a ganhar maior eficácia quanto a aplicação das medidas ambientais. A Lei 6838/81 foi recepcionada pela Constituição e ganhou mais força devido à tutela ambiental garantida constitucionalmente. Dentre outras vantagens, a legislação ambiental agora passa a estar submetida ao controle de constitucionalidade; e ainda, com a importância constitucional, a proteção ambiental passa a ser dever da administração pública e privada, devendo, desta forma, ser observada em todos os âmbitos de atividade social.


A segurança jurídico-normativa do Direito Ambiental passa a ser elevada ao grau máximo de proteção jurídica. Com a tutela constitucional as questões ambientais elencadas na Constituição ganham tratamento especial a serem observadas pelo Supremo Tribunal Federal.


O art. 225 da Constituição trata de várias matérias referentes à questão ambiental. Entretanto, como recorte conteudístico feito por esta análise, a discussão será adstrita ao disposto no caput no que concerne o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental necessário à sadia qualidade de vida. Neste mesmo sentido, José Afonso da Silva aduz que “vida humana e meio ambiente se entrelaçam como valores reciprocamente coimplicantes.” [9]


È sabido que a proteção do meio ambiente, manifestado como direito fundamental, entra no rol dos direitos de terceira geração. José Afonso da Silva vai afirmar que a proteção do meio ambiente


“não tem apenas uma dimensão negativa e garantística, como os direitos individuais, nem apenas uma dimensão positiva e prestacional, como os direitos sociais, porque é, ao mesmo tempo, direito positivo e negativo; porque, de um lado, exige que o Estado, por si mesmo, respeite a qualidade do meio ambiente e, de outro lado, requer que o Poder Público seja um garantidor da incolumidade do bem jurídico, ou seja, a qualidade do meio ambiente em função da qualidade de vida.”[10]


Esta forma de observar a tutela constitucional do meio ambiente atrelada ao direito à vida, reafirma que a Constituição não é apenas um texto repartido em diversas matérias. Uma hermenêutica constitucional pressupõe uma técnica de interpretação que perpassa por todo o disposto na Constituição. A idéia de que a proteção ao meio ambiente é intrinsecamente ligada ao direito à vida, também remete à ideia de que é plenamente possível afirmar que aquele também abrange o direito à saúde; logo se observa que o direito fundamental ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado está abrangido tanto pela concepção de direitos individuais quando de direitos sociais.


José Afonso da Silva categoricamente chega a afirmar que “a aderência ao direito à vida do direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado contamina esse direito de uma qualidade que impede a sua eliminação por via de emenda constitucional.”[11]. Neste entendimento, o direito fundamental ao meio ambiente adentra o art.60, § 4°, da Constituição e ficaria protegido dentro dos limites materiais impostos ao poder reformador.


Assim sendo, o Direito Ambiental como direito de terceira geração visto tanto como direito positivo quanto como direito negativo está diretamente atrelado a outros direitos fundamentes que exigem do Estado a sua prestação positiva, e dá prerrogativa de direito negativo dos indivíduos.


CONCLUSÃO


A elevação do meio ambiente ecologicamente equilibrado e indispensável à sadia qualidade de vida como direito fundamental gerara uma maior e mais efetiva tutela da questão ambiental. Assim o Brasil se inserira no rol dos países que dão importância constitucional ao Direito Ambiental, garantindo maior segurança jurídica a este.


Com a tutela constitucional do meio ambiente, fica estabelecida expressamente uma política nacional ambiental, o que reflete diretamente na atuação administrativa do Poder Público e nas relações privadas. O Estado fica obrigado a prover medidas preventivas para a atuação humana no meio ambiente; sendo que, tanto o próprio Estado quanto os particulares devem observância ao disposto na Lei Maior.


A PEC n° 341/09 almeja remanejar o Direito Ambiental tão-somente ao nível infraconstitucional. Entende-se que, caso isso ocorra, a questão ambiental não deixaria de ser observada por uma política nacional, devido a evolução social que hoje se tem; tanto que, anteriormente à Constituição de 1988 já havia a preocupação com as questões ambientais, como exemplo dado, tem-se a Lei 6938/81. Entretanto, tal opção geraria insegurança normativa quando submetida a um processo legislativo menos rígido.


Para além dessa possibilidade acima disposta, quanto ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida como direito fundamental, como já exposto, não pode ser retirado da Constituição. Apesar do art. 60, § 4°, estabelecer os limites materiais que vedam a retirada dos direitos fundamentais individuais (direitos fundamentais de primeira geração) da Constituição; tal acepção deve abranger também, tanto os direitos sociais (de segunda geração), quanto, pertinente a esta análise, o direito fundamental ao meio ambiente (de terceira geração); este último, quando observado intrinsecamente ao direito à vida.


Por fim, a desconstitucionalização do direito fundamental ao meio ambiente configuraria um retrocesso no que concerne à matéria dos direitos fundamentais. Tal retrocesso não esta de acordo com os próprios limites estabelecidos pela Constituição em seu momento constituinte originário.


 


Referências

BEJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In: Canotilho, J. J. Gomes, LEITE, J. R. Morato (org). Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Sairava, 2007, p. 57-130

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. 

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2000.

SILVA, José Afonso da. Fundamentos Constitucionais da Proteção do Meio Ambiente. Revista de Direito Ambiental, ano 7, n° 27, jul-set, p.51-58, 2002.

 

Notas:

[1] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2000, p.51.

[2] CANOTILHO, J.J. Gomes, op. cit., p.52.

[3] SILVA, José Afonso da. Fundamentos Constitucionais da Proteção do Meio Ambiente. Revista de Direito Ambiental, ano 7, n° 27, jul-set, p.51-58, 2002, p.52.

[4] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.80.

[5] CANOTILHO, J.J. Gomes, op. cit., p.73

[6] BONAVIDES, Paulo op. cit., p. 146.

[7] Ibid., p.642.

[8] BEJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In: Canotilho, J. J. Gomes, LEITE, J. R. Morato (org). Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Sairava, 2007, p. 57-130, p. 60-61.

[9] SILVA, José Afonso da. Fundamentos Constitucionais da Proteção do Meio Ambiente, São Paulo Revista de Direito Ambiental, ano 7, n° 27, jul-set, p.51-58, 2002, p.53.

[10] SILVA, Jose Afonso, op. cit., p.52

[11] Ibid.,p.55.


Informações Sobre o Autor

Felipe Fonseca de Carvalho Nina


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