Resumo: A Constituição Federal de 1988 reconheceu a união estável como entidade familiar, digna de especial proteção do Estado, através do artigo 226, § 3º. A Lei n. 8.971/94 conferiu ao companheiro o direito à sucessão. No intuito de regular o § 3º do artigo 226 da Constituição, adveio a Lei n. 9.278/96, que conferiu ao companheiro sobrevivente o direito real de habitação em condições semelhantes a dos cônjuges. O novo Código trata da união estável em um único dispositivo, qual seja o artigo 1.790. Neste dispositivo, o novo Diploma Civil suprimiu direitos que já haviam sido conquistados pelos conviventes pelas legislações anteriores, além de estabelecer distinções entre o casamento e a união estável, no que se refere à sucessão causa mortis. O presente trabalho tem por finalidade analisar a aplicação dos Princípios da Igualdade e da Dignidade da Pessoa Humana à sucessão dos companheiros, face à igualdade existente entre as entidades familiares, preceito máximo de nossa Carta Maior de 1988, que reconhece em seu artigo 226, §3º a união estável como entidade familiar e como tal merecedora da mesma proteção estatal dispensada às demais entidades familiares. Para tanto, serão analisados julgados dos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e de São Paulo e do Superior Tribunal de Justiça nos últimos três anos. [1]
Palavras chave: Sucessão. União estável. Princípio da Igualdade. Dignidade Humana. Entidades familiares.
Abstract: The Federal Constitution of 1988 recognized the stable union as a family entity, worthy of special protection from the State, through article 226, § 3. The Law n. 8.971/94 gave the fellow the right to succession. In order to regulate the § 3 of article 226 of the Constitution, the Law stemmed. 9.278/96, which gave the surviving partner the real right to housing in similar conditions to the spouses. The new code is stable union into a single device, which is article 1.790. In this device, the new Civil Diploma suppressed rights that had been won by cohabitants by previous laws, and establish distinctions between marriage and stable, with regard to the succession by death. This study aims to examine the application of the Principles of Equality and Dignity of the Human Person succession of companions, given the existing equality between family entities, most of our precept Carta Maior 1988, which recognizes in its article 226, § 3rd a stable union as familiar and as such deserves the same state protection given to other family entities entity. For this, we analyzed judged the Courts of Justice of Rio Grande do Sul and São Paulo and the Superior Court of Justice in the last three years.
Keywords: Succession. Stable union. Principle of Equality. Human Dignity. Family entities.
Sumário: 1 Considerações iniciais. 2 Evolução social e mudança de paradigma na forma de visão e interpretação da família no Direito Brasileiro; 3 Princípio da Igualdade; 4 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o direito fundamental à herança; 5 O reconhecimento da união estável como entidade familiar e a posição doutrinária a respeito do que dispõe o artigo 226 3 da Carta Magna de 1988; 6 Evolução legislativa no Direito Sucessório dos companheiros após a promulgação da Constituição Federal de 1988; 7 O regime de bens da união estável de acordo com o Código Civil de 2002; 8 A sucessão do cnjuge de acordo com o novo Código Civil Brasileiro; 9 A sucessão do companheiro sob o prisma do Código Civil de 2002; 10 Análise jurisprudencial;
11 Considerações finais.
1 Considerações iniciais
A diferença sucessória existente entre a união estável e o casamento vem sendo, a partir do advento do Código Civil de 2002, objeto de vastas discussões jurídicas a respeito do tema. Diante da modificação do conceito de família e das significativas conquistas alcançadas pelos cônjuges no que tange ao Direito Sucessório, principalmente após a promulgação da Constituição de 1988, muitas disparidades permanecem em relação a cônjuges e companheiros no que se refere à sucessão causa mortis.[2]
Sobre o prisma do Direito Sucessório dos cônjuges, houve significativa evolução legislativa que conferiu uma gama de direitos ao cônjuge supérstite. Ao passo em que o Código Civil de 1916 somente conferia aos cônjuges direito de herança na falta de descendentes e de ascendentes do de cujus, o Código Civil de 2002 incluiu o cônjuge na ordem de vocação hereditária[3] passando a ser também herdeiro em concorrência com descendentes e ascendentes, a depender do regime de bens em que fosse casado com o autor da herança.
No tocante à união estável, esta somente foi reconhecida como entidade familiar a partir da promulgação da Carta Magna de 1988, ao dispor que para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.
Após o advento da Constituição Federal, foi criada a Lei n. 8.971, de 29 de dezembro de 1994, que conferiu ao companheiro o direito a alimentos e à sucessão.
Com o fito de regular o § 3º, do artigo 226,[4] da Constituição Federal, adveio a Lei n. 9.278, de 10 de maio de 1996, que conferiu ao companheiro o direito real de habitação em condições muito semelhantes às dos cônjuges.[5]
Tanto a Constituição de 1988, quanto as Leis n. 8.971/94 e 9.278/96, caminharam no sentido de elevar cônjuges e companheiros a um patamar de igualdade em matéria de ordem sucessória. Contudo, o Código Civil de 2002, ao dispor sobre a sucessão dos companheiros e dos cônjuges, prevê formas de sucessão muito diferentes para esses dois institutos familiares, situação essa, que por vezes, coloca o companheiro sobrevivente em posição de significativa inferioridade em relação ao cônjuge supérstite.
Ao tratar da ordem de vocação hereditária, estabelece o artigo 1.838 do Código Civil que “em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente”, enquanto que o companheiro sobrevivente, quando não houver descendentes nem ascendentes, não fica com a totalidade da herança, mas a divide com os colaterais[6], conforme dispõe o inciso III, do artigo 1.790, do Diploma Civil.[7]
A disparidade sucessória existente entre cônjuges e companheiros, vai muito além da relação destes com o autor da herança, visto que estabelece uma inexplicável e inadmissível diferença de tratamento entre os filhos. Isto porque ao dispor sobre a forma de concorrência do companheiro sobrevivente com os filhos do autor da herança, o artigo 1.790,[8] incisos I e II, do Código Civil, prevê formas diferentes de concorrência do companheiro com os filhos comuns e filhos somente do autor da herança, estabelecendo cotas diferentes para cada um em cada caso.
Esse tratamento díspar em relação à sucessão do companheiro, vem sofrendo fortes críticas no universo jurídico. Os Tribunais e a doutrina vêm travando discussões a respeito da possível inconstitucionalidade do artigo 1.790, o qual não pode ser lido isoladamente, mas deve ser interpretado em consonância com que dispõe o artigo 226, § 3º, da nossa Carta Maior e com os princípios basilares do Direito de Família, dentre os quais merecem ênfase o Princípio da Igualdade entre as entidades familiares, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e da Afetividade.
A par dessas considerações, o presente trabalho justifica-se por ser de grande relevância para o universo jurídico e para a formação de posicionamentos críticos sobre qual a melhor forma de se interpretar as normas concernentes ao Direito Sucessório dos companheiros, visto que é de fundamental importância para o Direito e para a sociedade, a correta interpretação da lei que será aplicada a casos concretos que são postos perante o crivo do judiciário, a fim de que a norma alcance o objetivo social para a qual foi instituída.
Passaremos então, ao estudo do Direito Sucessório e princípios constitucionais aplicáveis à união estável e ao casamento, bem como à análise da atual jurisprudência dos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e de São Paulo. Ainda, será verificado qual o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no que concerne ao Direito Sucessório dos companheiros e dos cônjuges, delimitando a pesquisa em julgados dos últimos três anos.
2 Evolução social e mudança de paradigma na forma de visão e interpretação da família no Direito Brasileiro
A família, hoje entendida como base e fundamento da sociedade, digna de especial proteção do Estado[9], está alicerçada em princípios constitucionais, dentre os quais se destacam o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, da Igualdade e da Afetividade.
A concepção atual de que o Estado deve reconhecer e proteger a família, seja ela oriunda do casamento civil, da união estável ou monoparental, passou por diversas mudanças ao longo da história.
No Brasil, cada Constituição reproduziu determinados momentos históricos pelos quais o país passou. As Constituições de 1824 e de 1891, não tutelavam as relações familiares, foram precipuamente liberais e individualistas. O artigo 72, § 4º da Constituição de 1891[10], elencava apenas um dispositivo em que reconhecia tão somente o casamento civil.
Em contrapartida, as Constituições Brasileiras de 1934 e de 1988, previram em seus textos dispositivos dedicados à família. A Constituição de 1934 foi a primeira da nossa história a dedicar todo um capítulo à família, situação essa que se repetiu ampliadamente nas Constituições subsequentes, como ocorreu na Constituição de 1937, que conferiu aos pais o dever de educação dos filhos, equiparou os filhos naturais aos filhos legítimos e passou para o Estado a responsabilidade de tutelar as crianças no caso de abandono dos pais. Da mesma forma, a Constituição democrática de 1946 passou a assegurar a assistência à maternidade, à infância e a adolescência.[11]
A Carta Magna de 1988 expandiu ainda mais a proteção do Estado à família, trazendo profundas e significativas mudanças nas formas anteriores de concepção e de proteção da família.
O modelo de família constitucionalizada e igualitária que temos hoje se contrapõe aos modelos de família que tínhamos anteriormente, como o modelo autoritário do Código Civil de 1916.
Essas mudanças ocorreram, sobretudo porque a sociedade passou a assumir uma postura diferente diante das diversas formas de famílias que surgiram no decorrer do tempo. As novas descobertas científicas, o avanço tecnológico e as novas necessidades sociais, refletiram diretamente na estrutura e organização familiar. A sociedade ampliou suas concepções jurídico-sociais, passando para uma nova dimensão, na qual a família deve ser vista como elemento propulsor do futuro para o homem, responsável pela formação de sua personalidade.[12]
Inicialmente vista como uma unidade de produção, fundada apenas nos laços patrimoniais, a família era necessariamente matrimonializada, pois não se admitia, nem se reconhecia nenhuma outra estrutura familiar que não fosse aquela advinda do casamento. Nesse modelo familiar, o vínculo matrimonial acontecia entre pessoas da mesma família, com vistas à formação e ampliação de patrimônio, para posterior transmissão dos bens aos herdeiros.
Em hipótese alguma se admitia a dissolução do matrimônio, pois o fim do casamento significava a ruptura da própria sociedade.[13]
Com o passar do tempo, essa rígida estrutura familiar, hierarquizada e baseada apenas em laços patrimoniais, foi substituída pela família baseada na coordenação e comunhão de interesses de vida[14], passando a fundar-se no afeto, no interesse em comum e na afinidade entre seus integrantes, perdendo seu cunho patrimonial.
O conceito de família, hoje, assume uma concepção múltipla, plural, podendo referir-se a um ou mais indivíduos, ligados por laços biológicos ou sócio-psico-afetivos, com vias a proporcionar o desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo.[15]
3 Princípio da Igualdade
A Carta Magna de 1988 abre o capítulo dos direitos individuais com o princípio de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (artigo 5º, caput).[16]
Nossas Constituições anteriores tratavam o Princípio da Igualdade como igualdade perante a lei, confundia-se assim, com a isonomia formal, no sentido de que a lei deveria ser aplicada a todos de forma igual, sem levar em consideração as peculiaridades e distinções de cada grupo.[17]
Contudo, essa não é a melhor interpretação para as regras contidas em nosso ordenamento jurídico. Ao interpretarmos o artigo 5º, caput,[18] devemos fazê-lo em consonância com as demais normas constitucionais, buscando aproximar a isonomia formal da isonomia material, com a finalidade de atingirmos as exigências da justiça social, objetivo da ordem econômica e da ordem social.[19]
Em uma visão realista do ser humano, percebemos que este possui inúmeras diferenças que fazem cada ser humano único, porém, as desigualdades naturais são inerentes à condição humana, são saudáveis e fazem cada indivíduo possuir características próprias e únicas. O Princípio da Igualdade contido em nossa Carta Maior tem como objetivo primordial estabelecer igualdade jurídica entre todos os indivíduos.[20]
O Princípio da Igualdade se opera em dois planos distintos; de um lado frente ao legislador e ao executivo impedindo que estes elaborem leis que estabeleçam tratamentos extremamente diferenciados a pessoas que se encontram em situações semelhantes, e de outro lado, gera ao intérprete o dever de aplicar as leis de maneira justa e igualitária.[21]
Vejamos o ensinamento de Alexandre de Moraes:
“A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos”.[22]
Ao tratar do Princípio da Igualdade aplicado ao Direito de Família, Paulo Lôbo afirma que não há hierarquia entre casamento e união estável. A Constituição não desnivelou a união estável ao estabelecer que a lei deva facilitar sua conversão em casamento, trata-se apenas de faculdade, uma vez que os companheiros são livres para manter sua entidade familiar, com todos os direitos ou convertê-la em outra.[23]
Dessa forma, deve ser considerada injusta essa diferenciação existente entre casamento e união estável, uma vez que ambos os institutos estão alicerçados em um sentimento comum, qual seja o afeto que une pessoas em uma família, não podendo o legislador estabelecer tratamentos tão distintos a situações que são idênticas na forma na qual se unem, já que o Direito de Família tem como base fundamental o Princípio da Afetividade.
4 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o direito fundamental à herança
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é fundamento da organização social e política do país e da família, conferindo unidade e legitimidade à ordem constitucional, conforme dispõe o artigo 1º, inciso III da Constituição.[24] A pessoa humana é o fundamento e o fim da sociedade e do Estado.[25]
Na ordem constitucional de 1988, o Princípio da Dignidade Humana passou a integrar a categoria dos princípios fundamentais do Título I da Constituição, elevando-se assim, ao patamar de fundamento do Estado Democrático de Direito.
Para Ingo Wolfgang Sarlet, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana constitui:
“[…] o reduto intangível de cada indivíduo e, neste sentido, a última fronteira contra quaisquer ingerências externas. Tal não significa, contudo, a impossibilidade de que se estabeleçam restrições aos direitos e garantias fundamentais, mas que as restrições efetivadas não ultrapassem o reduto intangível imposto pela dignidade da pessoa humana. Admitindo-se a viabilidade de eventuais restrições ao próprio princípio (mas não ao valor!) da dignidade humana – como aceita parte da doutrina, inclusive entre nós – não há como transigir no que tange à preservação de sua essência, já que sem dignidade o ser humano estaria renunciando à própria humanidade.”[26]
O direito à dignidade confere ao indivíduo, de forma ampla e plena, o direito à existência digna e seu reconhecimento e respeito, bem como, a proteção da sua integridade física e corporal. É também, fundamento que proporciona ao indivíduo e sua família, a garantia de condições justas e adequadas de vida. Por fim, estabelece isonomia entre os seres humanos, para que cada um possa desenvolver livremente sua personalidade.[27]
A observância ao Princípio da Dignidade Humana impõe-se também ao Estado e seus representantes, bem como ao legislador que é encarregado de formular normas jurídicas que correspondam às exigências do Princípio, gerando para estes não só um dever de respeito e abstenção, como também condutas positivas que busquem a efetivação e proteção da dignidade do indivíduo.[28]
Destarte, no plano hermenêutico, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana deve nortear a escolha do intérprete diante das diversas opções hermenêuticas possíveis, a fim de que haja uma correta interpretação e aplicação dos demais princípios e regras, sejam constitucionais ou infraconstitucionais, que melhor tutelem as ideias de existência digna ao caso concreto.[29]
Assim, deve o jurista interpretar as regras infraconstitucionais de forma a harmonizá-la com todo o sistema jurídico, buscando pautar-se no Princípio da Interpretação Conforme a Constituição. Com base neste Princípio é que o aplicador da norma infraconstitucional, dentre mais de uma interpretação possível, deverá aplicar aquela que melhor se compatibilize com a Constituição, ainda que não seja a que mais claramente decorra de seu texto.[30]
A aplicação literal do artigo 1.790 do Código Civil de 2002,[31] sem a leitura conjunta com os princípios constitucionais aplicáveis ao Direito de Família, cria uma distinção injustificável na lógica do Código Civil, entre a igualdade e a solidariedade havida entre os cônjuges e os companheiros, distinguindo os direitos hereditários entre essas entidades familiares, que, sob um mesmo fundamento lhes são aplicados.[32]
Neste contexto, conclui-se que há uma íntima vinculação entre o Princípio da Dignidade Humana e o direito fundamental à herança. Isso porque, o Princípio da Dignidade Humana vem sendo tratado como fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, considerando que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade humana, e, portanto, com base nesta é que devem ser interpretados.[33]
Neste sentido, temos a louvável lição do Desembargador Francisco Loureiro no julgamento do Agravo de Instrumento n. 01616131520128260000, oriundo do Tribunal de Justiça de São Paulo, que na defesa de sua tese sobre a diferença sucessória entre cônjuges e companheiros, desenvolve seus argumentos tecendo uma correlação entre os Princípios da Igualdade e da Dignidade da Pessoa Humana face ao direito fundamental à herança, conforme segue:
“Embora casamento e união estável sejam instituições diferentes, quanto à sua constituição e quanto a alguns de seus efeitos, como, por exemplo, a necessidade de outorga uxória, a emancipação legal e a presunção de paternidade do artigo 1.597 do novo Código Civil, tais distinções decorrem exatamente da ausência de título formal do companheirismo e da necessidade de segurança das relações jurídicas frente a terceiros (Ana Luiza Maia Nevares, a Tutela Sucessória do Cônjuge e do Companheiro na Legalidade Constitucional, Renovar, p. 209).
Não se justificam as diferenças, contudo, nos pontos em que se identificam a união estável e o casamento. Tal ponto, repita-se, é o afeto entre os seus membros e a função de promoção e desenvolvimento da personalidade daqueles que a compõem. Em termos diversos, no que se refere à garantia da dignidade do viúvo, seja ele casado ou companheiro, inexiste razão lógica para o discrímen, de modo que se impõe, aqui, tratamento paritário entre as duas situações.
Diz que "a equiparação dos direitos dá-se em virtude do princípio da igualdade substancial, cânone do direito constitucional, cuja aplicação garante a atuação do princípio fundador do ordenamento jurídico brasileiro: a dignidade da pessoa humana" (Ana Luiza Maia Nevares A Tutela Sucessória do Cônjuge e do Companheiro na Legalidade Constitucional, p. 238).
Uma interpretação literal e exegética do artigo 1.790 – tão ao gosto do pensamento liberal que orientou o Código de 1.916 – levaria à fácil conclusão de que o regime radicalmente distinto da sucessão do companheiro nada mais é do que a melhor expressão da norma constitucional, que não equiparou o casamento à união estável, mas, ao invés, conferiu primazia ao primeiro. Essa conclusão, a meu ver, não pode prevalecer, sob a ótica civil-constitucional. Óbvio que o casamento não se equipara à união estável, podendo gerar – como gera – direitos e deveres distintos a cônjuges e companheiros. O que se discute é a possibilidade da legislação infraconstitucional alijar, de modo tão grave, alguns direitos fundamentais anteriormente assegurados a partícipes de entidades familiares constitucionalmente reconhecidas, em especial o direito à herança.”[34]
A Carta Magna de 1988 consagra o direito à herança como direito fundamental, através do inciso XXX, do artigo 5º.[35] Todavia, apesar de constar como direito fundamental e constitucionalmente protegido, o direito de herança somente se concretiza mediante as regras da legislação ordinária, qual seja o Código Civil.
Em seu turno, o Código Civil vigente não elevou o companheiro sobrevivente ao status de herdeiro necessário, como fez com o cônjuge supérstite, gerando uma injustificável disparidade entre os dois institutos.
Conforme o entendimento de Maria Helena Diniz, o companheiro sobrevivente pode ser excluído da sucessão por meio de disposição testamentária, uma vez que não é herdeiro necessário, conforme segue:
“Há desigualdade de tratamento entre cônjuge e convivente sobrevivo, pois aquele é, em certos casos, herdeiro necessário privilegiado, podendo concorrer com descendente, se preencher certas condições, ou com ascendente do falecido. O convivente, não sendo herdeiro necessário, pode ser excluído da herança do outro, se ele dispuser isso em testamento (CC, arts. 1.845, 1.846 e 1.857), pois só tem direito à sua meação quanto aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável.”[36]
Todavia, tal entendimento é contraposto com o que diz Maria Berenice Dias. Vejamos:
“A desiquiparação de tratamento entre ao casamento e à união estável escancara flagrante inconstitucionalidade. As duas formas de entidade familiar gozam das mesmas prerrogativas, nada justificando conferir ao cônjuge a condição de herdeiro necessário e ao companheiro não (CC 1.845). Igualmente inaceitável que o cônjuge figure em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária e o companheiro em último lugar, depois dos parentes colaterais de quarto grau (CC 1.790 e 1.829).”[37]
O fato de o companheiro não estar elencado no rol dos herdeiros necessários, fere o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pois não sendo herdeiro legal, nada impede que possa ser excluído da herança por meio de disposição testamentária.
5 O reconhecimento da união estável como entidade familiar e a posição doutrinária a respeito do que dispõe o artigo 226, § 3º da Carta Magna de 1988
Ao longo da nossa história, a união prolongada entre um homem e uma mulher, sem que fossem casados, era vista pela sociedade e pelo Direito com restrições, essa união caracterizada pela liberdade e pela informalidade, ainda que duradoura, era chamada de concubinato. O Código Civil de 1916, continha alguns dispositivos que faziam restrições a esse modo de convivência.
Com o advento da Carta Magna de 1988, restou estabelecido que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. O § 3º do artigo 226, estabelece que para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher, como entidade familiar, devendo a lei, facilitar a sua conversão em casamento.[38]
Note-se que a Carta Magna de 1988, conferiu à união estável status de entidade familiar e como tal, merecedora da mesma proteção estatal dispensada às demais entidades familiares, como aquelas advindas do casamento civil e a família monoparental.
Dito dispositivo constitucional gera intensa discussão no meio jurídico, pois não há pacificidade sobre de que forma deve ser interpretada a regra nele contida, qual seja: a previsão de que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, estabelece diferenciação ou hierarquia entre a família oriunda do casamento e a família oriunda da união estável?
Para alguns doutrinadores, o fato de que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, significa que o casamento é instituto hierarquicamente superior à união estável e, portanto, qualquer vantagem que a lei ordinária atribua à união estável, que supere as vantagens do casamento, deve ser considerada inconstitucional.[39]
Neste diapasão vem o entendimento de Maria Helena Diniz, para quem:
“A relação matrimonial na seara sucessória prevalece sobre a estabelecida pela união estável, pois o convivente sobrevivente, não sendo equiparado constitucionalmente ao cônjuge, não se beneficiará dos mesmos direitos sucessórios outorgados ao cônjuge supérstite, ficando em desvantagem. Não poderia ter tratamento privilegiado, porque a disciplina legal da união estável tem natureza tutelar, visto que a Constituição Federal a considera como entidade familiar apenas para fins de proteção estatal, por ser um fato cada vez mais frequente entre nós.”[40]
Na visão de Fábio Ulhoa Coelho a previsão expressa no § 3º, do artigo 226, da Lei Maior, que busca facilitar a conversão da união estável em casamento, tem alcance social, pois busca proteger aqueles grupos familiares que vivem em união estável, para que não exista uma burocracia pernóstica no momento em que os conviventes buscarem perante o Judiciário a formalização da união de fato.[41]
Tal doutrinador justifica sua posição dizendo:
“Abstraídos os inspirados na ideologia conservadora referente à organização familiar, dos argumentos contrários à isonomia constitucional entre a família matrimonial e a da união estável parece restar um só digno de consideração. Por meio dele, os autores costumam apontar para a parte final do § 3º do art. 226 da CF, que determina à lei a facilitação da conversão da união estável em casamento, de modo a concluir pela existência de uma hierarquia entre essas famílias. Se o constituinte quer que a lei facilite a conversão de uma espécie em outra, argumenta-se, então ele não dá igual importância a todas as famílias que menciona.”[42]
Com efeito, a norma contida no artigo 226, § 3º da Magna Carta, deve ser lida como norma de inclusão. De forma que toda e qualquer tentativa de conferir-lhe efeitos discriminatórios sejam tidas como contrárias ao seu espírito, pois representa a superação da distinção que até então se fazia entre as relações familiares advindas do casamento e as relações de companheirismo.[43]
6 Evolução legislativa no Direito Sucessório dos companheiros após a promulgação da Constituição Federal de 1988
Em matéria de Direito de Família a Carta Magna de 1988 provocou profundas mudanças no ordenamento jurídico vigente, em especial no Código Civil de 1916, o qual restou completamente suprimido em algumas matérias, a exemplo a matéria de filiação, que estabelecia diferenciação entre filhos legítimos e ilegítimos. Destarte, houve o reconhecimento das uniões estáveis e sua elevação ao status de entidade familiar.[44]
Esse reconhecimento constitucional das uniões estáveis, em um primeiro momento, causou perplexidade, em que pese tenha tão somente constitucionalizado um instituto fático tão antigo quanto a história da humanidade. De maneira que o Estado passou de uma fase de total negação de atribuição de efeitos jurídicos ao concubinato, ao completo reconhecimento das uniões estáveis,[45] a qual necessitava de maior regulamentação, haja vista que até aquele momento, não tínhamos nenhuma legislação específica que tratasse da união estável como entidade familiar.
Com o fito de regulamentar a vida dos indivíduos que viviam em união estável, adveio então a Lei n. 8.971, de 29 de dezembro de 1994, a qual disciplinou o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão. Essa foi a primeira lei brasileira a tratar dos casos de dissolução da união estável causa mortis. Antes da inserção de referida lei em nosso ordenamento jurídico, não raramente aconteciam situações de injustiça em relação ao companheiro sobrevivente, pois caso o autor da herança não tivesse deixado testamento contemplando seu companheiro com algum bem, este poderia acabar sem direito à meação caso não conseguisse demonstrar sua colaboração e esforço para a aquisição de bens comuns.[46]
Dita lei previa em seu artigo 2º, inciso I, que o companheiro sobrevivente teria direito ao usufruto da quarta parte dos bens deixados pelo de cujus, enquanto não constituísse nova união, independentemente de existirem filhos comuns ou somente do autor da herança. O inciso II, elencava a hipótese de inexistência de filhos, comuns ou não, caso em que o companheiro sobrevivente faria jus ao usufruto de metade dos bens deixados pelo de cujus, ainda que sobrevivessem ascendentes do autor da herança. Por fim, o inciso III, do mesmo diploma legal, dispunha que na falta de ascendentes e descendentes, o companheiro sobrevivente faria jus à totalidade da herança, figurando assim em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, ocupando o mesmo lugar que o Código Civil de 1916 reconhecia ao cônjuge supérstite, conforme estabeleciam os artigos 1.603, inciso III, e 1.611 do antigo Código.
No que concerne ao direito real de habitação dos companheiros, este foi regulamentado pela Lei n. 9.278, de 10 de maio de 1996, a qual estabelece que dissolvida a união estável em razão da morte de um dos conviventes, o companheiro sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família, conforme dispõe o artigo 7º da lei em comento.
Para Maria Berenice Dias[47], Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[48], referido dispositivo persiste em nosso ordenamento jurídico, não tendo sido revogado com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, que reconhece em seu artigo 1.831,[49] expressamente o direito real de habitação aos cônjuges, mas não faz qualquer referência aos companheiros, não podendo dessa forma, se cogitar da existência do direito real de habitação em favor do cônjuge e negar o mesmo direito ao companheiro, sob pena de grave afronta ao normativo Constitucional, tal entendimento foi também reconhecido pelo enunciado 117 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil, realizada em Brasília em setembro de 2002.[50]
Ao tratar sobre o tema, Guilherme Calmon Nogueira da Gama discorre que:
“Curiosamente, o novo CC, no art. 1.831, somente se refere ao direito real de habitação do cônjuge sobrevivente. Contudo, não se referiu ao mesmo direito real em favor do companheiro por morte do outro. Há, aqui, grave lacuna legislativa que, na realidade, deve ser solucionada no sentido de se considerar em vigor o disposto no parágrafo único, do art. 7°, da Lei n° 9.278/96. Como não houve revogação expressa da Lei de 1996, bem como inexiste incompatibilidade entre o disposto no art. 1.831 do CC, e o art. 7°, parágrafo único, da Lei n. 9.278/96, adotando-se os critérios de interpretação e harmonização das normas jurídicas no interior do sistema, conclui-se pela vigência da regra do direito real de habitação em favor do companheiro sobrevivente. Sobre o tema, deve-se considerar a aplicação do disposto no art. 226, caput, da Constituição Federal, a fim de considerar que a família fundada no companheirismo é merecedora de especial proteção estatal. Desse modo, caso houvesse interpretação no sentido de se considerar revogado o disposto na Lei de 1996, haveria violação ao comando constitucional, já que ocorreria postura no sentido de não proteger a família informal fundada na “união estável”.”[51]
No mesmo sentido foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Recurso Especial n. 1156744/MG, interposto por J P – Espólio a fim de reformar a decisão interlocutória do juízo a quo que concedeu direito real de habitação à companheira sobrevivente, relativamente ao imóvel destinado à residência da família, reconhecendo a vigência da Lei n. 9.278/96 e considerando-a plenamente compatível com os preceitos da Constituição Federal, de valorização da entidade familiar e dos direitos dos companheiros. O entendimento da Corte neste caso foi no sentido de que o direito real de habitação deve ser aplicado ao companheiro sobrevivente, visto que referido instituto possui o escopo de garantir o direito fundamental à moradia constitucionalmente protegido (art. 6º, caput, da CRBF),[52] bem como deve ser observado o postulado da Dignidade da Pessoa Humana, prevista no art. art. 1º, III, da Constituição Federal.[53]
Todavia, há doutrinadores que defendem a não persistência de referidas legislações em nosso ordenamento jurídico. Nesse sentido, vem o entendimento de Carlos Roberto Gonçalves, para quem as Leis n. 8.971/94 e n. 9.278/96, restaram tacitamente revogadas em virtude da inclusão da matéria no âmbito do Código Civil de 2002.[54]
7 O regime de bens da união estável de acordo com o Código Civil de 2002
A união estável, caracterizada pela convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituir família, vem conceituada no artigo 1.723 do Diploma Civil de 2002, que assim dispõe: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.[55]
Na união estável, o relacionamento marital passa a ser reconhecido quando o casal exterioriza publicamente o animus de constituir uma família com uma plena comunhão de vidas. Assemelha-se, portanto, a um casamento de fato e indica uma comunhão de vida e de interesses, reclamando não apenas publicidade e estabilidade, mas também um nítido caráter familiar, evidenciado pela affectio maritalis.[56]
Com o advento do Código Civil de 2002, houve a regulamentação das relações familiares advindas do casamento e as relações oriundas da união estável. Passou-se a interpretar as entidades familiares de forma ampliativa, não se admitindo mais qualquer tipo de discriminação. O Novo Diploma Civil inovou ao tratar da união estável, inserindo-a dentro do Livro de Família, onde são tratadas as questões pessoais e patrimoniais que regerão a união estável.
Os artigos 1.723 a 1.726 do Código Civil regulam a união estável, indicando os elementos que a caracterizam, os impedimentos para sua constituição, os deveres dos companheiros e o regime de bens das relações patrimoniais entre eles.[57]
No tocante às relações patrimoniais que regerão a união estável, estabeleceu o artigo 1.725,[58] que se aplica à união estável, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens, se de outra forma não tiverem optado os conviventes.
Logo, caso os conviventes não tenham estabelecido contrato escrito prevendo a forma de aquisição e administração de seu patrimônio, toda a relação patrimonial será estabelecida como se casados fossem, como consequência, todo o patrimônio que eles venham a adquirir durante a constância da união, será dividido de forma paritária em caso de dissolução da união.
Imperioso esclarecer que, conforme entendimento dominante no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o contrato de união estável poderá prever apenas a incomunicabilidade dos bens entre os conviventes, isso porque, entende o Egrégio Tribunal em sua maioria, que o regime da comunhão universal de bens é incompatível com o instituto da união estável, tendo decidido em casos concretos em que os conviventes haviam estabelecido em vida o regime da comunhão universal, pela invalidade de tal instrumento quanto à escolha do regime de bens.
A começar pela análise do agravo de instrumento n. 70056516032, interposto em face de decisão interlocutória nos autos de inventário, na qual o juízo a quo entendeu que não se poderia aplicar à sucessão do companheiro o regime da comunhão universal de bens constante na escritura pública firmada entre os conviventes, mas, sim, o regime da comunhão parcial de bens.
Tal decisão foi mantida pelo juízo ad quem, sob o argumento de que, ainda que os conviventes tenham firmado contrato de união estável adotando o regime da comunhão universal de bens, e dessa forma manifestando suas vontades, o regime de bens adotado na união estável não deve ter influência sobre o direito sucessório, pois o artigo 1.790 do Código Civil, que trata da sucessão do companheiro, não faz distinção quanto ao regime de bens aplicado, determinando apenas que “a companheira ou companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável”, ou seja, há uma aplicação literal do disposto no Código Civil e uma total insensibilidade quanto à manifestação de vontade externada pelo de cujus em vida.[59]
No mesmo sentido tem-se a Apelação Cível n. 70049360415, que teve como Relator o Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Neste julgado, entendeu-se que embora seja entidade familiar, a união estável não é casamento e, obviamente, não comporta a escolha de um regime matrimonial de bens, podendo os conviventes ajustarem a incomunicabilidade dos bens, mediante contrato escrito, ou se submeterem ao regime legal de bens do casamento, conforme prevê o artigo 1.725 do Código Civil Brasileiro, mas o regime da comunhão universal de bens é incompatível com essa relação informal.[60]
Diante de tais entendimentos, percebe-se que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul inclina-se a uma postura de dificultar que o companheiro sobrevivente alcance o patrimônio deixado a título de herança pelo de cujus, pois nem mesmo tendo os conviventes firmado contrato escrito manifestando suas vontades pela total comunicação de seus bens, há respeito a essa escolha feita em vida.
8 A sucessão do cônjuge de acordo com o novo Código Civil Brasileiro
O novo Código Civil Brasileiro representa um marco há muito almejado pela sociedade e pelo próprio Direito. Estabelece o ponto de chegada de uma lenta evolução social que se refletiu intensamente no Direito Sucessório dos cônjuges ao romper com uma longa história de iniquidades que até então persistiam.[61]
Além de afirmar a sua qualidade de herdeiro necessário (artigo 1.845),[62] o Código Civil também colocou o cônjuge em posição de destaque no que diz respeito à ordem de vocação hereditária, ao assegurar-lhe o direito à legítima (artigo 1.846).[63] Dessa forma, o cônjuge deixou de ser herdeiro facultativo, passando a ser necessário.
No que se refere à ordem de vocação hereditária, o cônjuge supérstite ocupa o terceiro lugar na ordem de vocação, conforme disposto no artigo 1.829, inciso III.[64] Ainda, estabelece a concorrência do cônjuge com os descendentes do autor da herança, em uma confusa redação estabelecida no caput do artigo 1.829, a qual enseja divergentes interpretações literais e inúmeras críticas em relação à sua redação, senão vejamos:
“Art. 1.829. A sucessão legítima defere–se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.”[65]
Depreende-se da leitura do dispositivo em comento, que o legislador teve a preocupação de garantir ao viúvo ou à viúva, condições mínimas de sobrevivência, para que estes não ficassem à míngua após o falecimento de um dos consortes ao chamá-lo à sucessão conjuntamente com os descendentes e ascendentes do de cujus.[66]
No entanto, a leitura do inciso I, é extremamente complicada, em face da má técnica legislativa na formulação de seu texto. São inúmeras as vertentes doutrinárias que tentam explicar qual seria a melhor interpretação deste dispositivo.
Dessa forma, será analisado recente entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre esse mesmo assunto no julgamento do Recurso Especial n. 1.377.084 (2013/0083914-0)[67], o qual foi interposto pelo Espólio de Geraldo Sebastião da Silva, sob a alegação de ofensa aos artigos 1.658, 1.659, 1.661 e 1.829, inciso I, do Código Civil de 2002, e de dissídio jurisprudencial, o qual teve como Relatora a Ministra Nancy Andrighi. Em suas razões, o recorrente alegou que o cônjuge supérstite não concorreria com os descendentes, na hipótese de o autor da herança ter deixado apenas bens particulares, como ocorreu no caso, razão pela qual pleiteavam a exclusão da viúva da respectiva partilha. O recurso foi devidamente prequestionado, o que permitiu, em sua plenitude, o exame das teses desenvolvidas pelo recorrente.
A decisão de primeiro grau, considerando a renúncia de três filhos frutos do segundo casamento do de cujus, e que o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes dele quanto aos bens particulares, quando casado com o falecido pelo regime da comunhão parcial de bens, determinou a correção da partilha judicial para atribuir à viúva a fração ideal equivalente a 1/9 dos bens particulares do de cujus e sua meação naqueles bens comuns havidos na constância do casamento, ou seja, 5/10. Atribuiu, ainda, a cada um dos herdeiros não renunciantes, 8/45 nos bens particulares, e 1/10 nos bens comuns. Dessa sentença foi interposta Apelação, a qual foi negada provimento pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
O entendimento da Corte de Justiça foi no sentido de permitir que o cônjuge sobrevivente herde, em concorrência com os descendentes, a parte do patrimônio que ele próprio construiu com o falecido, justamente porque é com a respectiva metade desses bens que ele pode contar na falta do outro, tanto na morte quanto no divórcio. Não cabendo ao sobrevivente, os bens particulares, justamente porque estes, os nubentes optaram, no exercício da sua autonomia da vontade, por manter incomunicáveis, excluindo-os expressamente da comunhão, como preveem os artigos 1.659[68] e 1.661[69] do Código Civil para o regime da comunhão parcial de bens. Logo, se estes bens não são partilhados com o outro no divórcio, pela mesma razão, não o devem ser após a morte de um dos cônjuges, sob pena de infringir o que restou acordado entre eles no momento em que decidiram se unir em matrimônio.
Além disso, houve uma crítica à parte da doutrina que defende que o cônjuge casado sob o regime da comunhão parcial herda em concorrência com os descendentes, inclusive no tocante aos bens particulares, pois neste caso, ter-se-ia no Direito das Sucessões, uma verdadeira transmutação do regime de bens escolhido em vida – comunhão parcial de bens – nos moldes do Direito de Família, para o da comunhão universal, somente passível de ser celebrado por meio de pacto antenupcial por escritura pública, se assim fosse estar-se-ia violando a própria essência do regime que ambos estipularam quando da celebração do matrimônio.
Diante disso, a interpretação acolhida foi aquela que prima pela valorização da vontade das partes na escolha do regime de bens, mantendo-a intacta, assim na vida como na morte, dessa forma, manteve-se o regime da comunhão parcial de bens, afastando-se o cônjuge da concorrência hereditária com os descendentes, no que toca aos bens particulares, de acordo com o postulado da autodeterminação, da boa-fé, da eticidade, da confiança legítima e da dignidade da pessoa humana.[70]
9 A sucessão do companheiro sob o prisma do Código Civil de 2002
O Código Civil de 2002 modificou significativamente as regras sucessórias dos companheiros que haviam sido conquistadas pelas Leis n. 8.971/94 e n. 9.278/96.
A sucessão do companheiro sobrevivente veio disciplinada no artigo 1.790 do Código Civil de 2002, que assim dispõe:
“Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.”[71]
Primeiramente, cumpre considerar que o Código Civil de 2002, não acertou quanto à localização deste dispositivo dentro de sua sistemática. Isso porque, o artigo 1.790 está localizado junto às Disposições Gerais da Sucessão, quando de fato, deveria ter sido alocado no Título II, que trata da Sucessão Legítima, por tratar-se de tema pertinente à ordem de vocação hereditária, essa péssima localização, na visão de grande parte da doutrina, reflete a má vontade com a qual o legislador de 2002 tratou da sucessão do companheiro.[72]
Neste sentido vem o entendimento de Rolf Madaleno, senão vejamos:
“[…] mais uma vez resta discriminada a relação afetiva oriunda da união estável que perde sensível espaço no campo dos direitos que já haviam sido conquistados após o advento da Carta Política de 1988, em nada sendo modificada a atual redação do novo Código Civil e será tarefa pertinaz da jurisprudência corrigir estas flagrantes distorções deixadas pelo legislador responsável pela nova codificação civil.”[73]
Passada essa primeira consideração de inexplicável discrímen quanto à sucessão dos companheiros desde sua alocação dentro da sistemática do Código de 2002, depreende-se da leitura do caput do artigo em tela, que a participação do companheiro na sucessão do de cujus, está restrita aos bens adquiridos onerosamente durante a vigência da união estável, logo, a concorrência com os demais herdeiros dar-se-á somente sobre esses bens, caso inexistam bens comuns o companheiro sobrevivente nada herda.
O inciso I do referido artigo, dispõe que se o companheiro sobrevivente concorrer com filhos comuns, terá direito a uma cota equivalente à que por lei for atribuída ao filho, enquanto que o inciso II prevê a hipótese de o companheiro sobrevivente concorrer com descendentes só do autor da herança. Neste caso, tocará ao companheiro metade do que couber a cada um daqueles descendentes. Faz-se oportuno analisar conjuntamente estes dois incisos, haja vista que referidos dispositivos criam uma inoportuna e inexplicável distinção entre descendentes exclusivos, só do autor da herança, e descendentes comuns, havidos da união entre o autor da herança e o companheiro.[74]
O critério concorrencial estabelecido pelos dispositivos em tela, dá ensejo a vultuosas discussões, visto que causa dificuldades no momento do cálculo das cotas hereditárias quando houver filhos de origem híbrida.
O inciso III afirma que se o companheiro sobrevivente concorrer com outros parentes sucessíveis terá direito a um terço da herança, entendendo-se por parentes sucessíveis os ascendentes e os colaterais até quarto grau, por força do que dispõe os artigos 1.592[75] e 1.839[76]. Note-se que o Código de 2002, ampliou as hipóteses de concorrência do companheiro sobrevivente, estabelecendo uma longa cadeia concorrencial deste, com os parentes sucessíveis. Nesse diapasão, o companheiro será obrigado a concorrer com os primos, tios e sobrinhos do de cujus, cabendo-lhe a fração ideal de um terço da herança partilhável, ao passo em que aos colaterais tocam os dois terços restantes, ou seja, ao concorrer com os colaterais do falecido, tocará ao companheiro sobrevivente uma fração menor do que a atribuída àqueles.
Ao analisar referido dispositivo, Eduardo de Oliveira Leite pondera que:
“O inciso é plenamente justificável, na medida em que prioriza a pretensão do (a) companheiro (a) que, na ótica do codificador, contribuiu na aquisição do patrimônio. Causa, porém, espécie, quando se refere ao direito de “um terço da herança” e inquestionável retrocesso pois, se na união estável, a regra às relações patrimoniais é o regime da comunhão parcial dos bens (art. 1.725), o direito do (a) companheiro (a) no direito sucessório diz respeito à metade do patrimônio e não, certamente, a um terço”.[77]
Da análise conjunta do que dispõe o artigo 1.790, inciso III e o disposto nos artigos 1.829 e 1.838 do Código Civil, resta claro que o legislador civil estabelece entre o cônjuge e o companheiro uma distinção desproporcional, visto que na ausência de ascendentes e descendentes a herança será deferida integralmente ao cônjuge sobrevivente, enquanto que o companheiro somente fará jus a herança na ausência de descendentes, ascendentes e colaterais até quarto grau.
Por fim, o inciso IV do artigo 1.790, dispõe que não havendo parentes sucessíveis, o companheiro sobrevivente terá direito à totalidade da herança. Ocorre que a totalidade da herança a que o dispositivo se refere é aquela parte que o próprio companheiro ajudou a construir durante a vigência da união estável, ficando os bens particulares (aqueles que o de cujus possuía antes da união estável), sem previsão sobre sua destinação, o que a princípio faria com esses bens ficassem vacantes. Tal problema é solucionado pela regra do artigo 1.844,[78] o qual dispõe que a herança somente será vacante quando não sobreviver cônjuge, companheiro, nem parente algum sucessível, ou tendo eles renunciado a herança.[79]
Importante salientar que, em todos os casos, a cota que caberá ao companheiro sobrevivente se refere apenas aos bens adquiridos onerosamente durante a vigência da união estável, em nenhuma das hipóteses previstas no artigo em comento, o companheiro fará jus à herança sobre os bens particulares do de cujus.
Logo, se durante a vigência da união estável não foram adquiridos bens comuns, ainda que o autor da herança possuísse um patrimônio de imenso valor, o companheiro sobrevivente não fará jus à herança alguma. Neste sentido, podem acontecer casos práticos, em que o companheiro sobrevivente que conviveu com o autor da herança durante muitos anos, de forma pública e notória, com a intenção de constituir família ou mesmo tendo constituído família com este, venha a ficar desamparado no momento da abertura da sucessão.
Notemos que houve um visível e injustificável retrocesso do Código Civil de 2002, em relação à legislação que era aplicada à união estável até então, quais sejam a Lei n. 8.971/94 e a Lei n. 9.278/96. Isso porque, a Lei n. 8.971 previa que na falta de ascendentes e de descentes, o companheiro sobrevivente faria jus à integralidade da herança deixada pelo de cujus, enquanto que, o inciso IV do artigo 1.790 do Código Civil, dispõe que o companheiro ou a companheira somente terá direito à totalidade da herança na hipótese de inexistência de parentes sucessíveis.[80]
10 Análise jurisprudencial
Como dito, há uma grande variação de entendimentos no que concerne à interpretação e aplicação da regra contida no artigo 1.790 do Código Civil Brasileiro, por essa razão, torna-se imprescindível a análise sobre como a jurisprudência vem entendendo e aplicando referido dispositivo face ao artigo 226, § 3º da Constituição Federal, para tanto, serão analisados alguns julgados pertinentes à matéria, proferidos pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e de São Paulo nos últimos três anos em matéria de ordem sucessória dos companheiros e cônjuges.
Quando da análise da aplicação do artigo 1.790 do Diploma Civil, temos o julgado n. 20027981220148260000, oriundo da Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, que entendeu ser inconstitucional a normativa do artigo em comento. Trata-se de Agravo de Instrumento interposto contra decisão do juízo a quo que, nos autos de inventário, aplicou à sucessão da companheira do falecido a mesma disciplina da sucessão legítima do cônjuge nos moldes do que dispõe o artigo 1.829, inciso I, do Código Civil, considerando dessa forma, que o imóvel e os direitos decorrentes de instrumento particular da empresa do casal deveriam ser partilhados em 50% à companheira e 50% à filha do falecido. A decisão do Tribunal de São Paulo foi pelo improvimento do recurso, confirmando integralmente a decisão agravada, nas palavras do Relator Maia da Cunha: “Respeitado entendimento em sentido contrário, este relator perfilha da tese acerca da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil”.[81]
Também é no Tribunal de Justiça de São Paulo, que pode ser encontrado o Agravo de Instrumento n. 02267122920128260000, oriundo da Primeira Câmara de Direito Privado, cuja decisão foi no sentido de que o companheiro deve herdar preferencialmente aos colaterais do falecido, optando por uma interpretação lógico-sistemática do Código Civil, e assim, deixando de aplicar a regra contida no inciso III do artigo 1.790. Nas razões de suas convicções, os julgadores lembraram que o atual Código Civil deriva de projeto apresentado quando a união estável não gozava de status constitucional de família, dessa forma, a interpretação do que dispõe o artigo 1.790 deve ser feita de forma a contextualizar a normativa constitucional que hoje reconhece a união estável como entidade familiar, a fim de preservar-se o Princípio da Unidade da Norma Jurídica, que visa proteger a unidade do sistema como um todo.[82]
Em seu turno, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou recentemente a Arguição de Inconstitucionalidade n. 70055441331. Referido Incidente de Inconstitucionalidade foi suscitado por ocasião do julgamento da Apelação Cível n. 70043134329, em sessão de julgamento realizada junto à Oitava Câmara Cível. A ação de primeiro grau buscava a declaração de união estável cumulada com pedido de adjudicação de bens, tendo por objetivo afastar os colaterais da falecida da sucessão. A sentença de primeiro grau deixou de reconhecer a existência de qualquer direito sucessório do autor em relação ao imóvel da companheira, atribuindo-o aos colaterais da de cujus.[83]
A finalidade do Incidente de Inconstitucionalidade em comento foi de declarar o caput do artigo 1.790 inconstitucional na parte em que refere “quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável”,[84] sob o argumento de que referido dispositivo afronta o que dispõe os artigos 1º, III; 5º, caput e § 3º do artigo 226 da Constituição Federal. Referido julgado teve como relator o Desembargador Rui Portanova, para quem o artigo 1.790, caput do Código Civil, tal como está redigido faz discriminação odiosa entre casamento e união estável.
Em seus fundamentos o eminente julgador questiona se a união estável seria um instituto igual ou menor do que o casamento. No seu entender, Portanova afirma não haver razão para tratar as pessoas que vivem em união estável diferentemente das pessoas casadas, isso porque o valor a ser protegido pelos dois institutos é o mesmo, qual seja o amor. Dessa forma, a lei está discriminando pessoas pela forma como se unem e constituem suas famílias, desconsiderando o afeto que as origina. Tanto é assim, que, quando trata da ordem de vocação hereditária, o artigo 1.829, depois dos descendentes e ascendentes, refere “cônjuge sobrevivente”, enquanto que, o artigo 1.790, refere que o companheiro somente alcançará a herança quando faltarem descendentes, ascendentes e colaterais.
No mesmo sentido, ao estabelecer quinhões hereditários diferentes quando companheiro e cônjuge concorrerem com filhos somente do autor da herança, o Código Civil afronta o que dispõe o artigo 226, § 6º da Constituição Federal, o que para Portanova, autorizaria também a declaração de inconstitucionalidade dos incisos I e II do artigo 1.790.
E prossegue colacionando a seus fundamentos um apanhado histórico sobre a evolução social do casamento e da união estável e os aspectos constitucionais do não retrocesso social, a fim de ver declarada a inconstitucionalidade do caput do artigo 1.790. Em sua defesa traz autores que participam de seu posicionamento, dentre os quais Gustavo Tependino, Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Fábio Ulhoa Coelho.
Todavia, apesar de louvável defesa pela igualdade existente entre casamento e união estável, o Relator teve seu voto vencido, pois em sua maioria os Desembargadores votaram pela improcedência do Incidente de Inconstitucionalidade, entendendo ser constitucional essa diferenciação estabelecida entre casamento e união estável. Para tanto, sustentaram em seus argumentos que a Constituição prevê expressamente que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, em uma demonstração de que tais institutos não são iguais para todos os efeitos, caso contrário não seria necessário converter um em outro.
Neste sentido é o atual entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, uma vez que, salvo raras exceções – como o caso do Desembargador Rui Portanova – os julgadores daqui optam pela aplicação literal do artigo 1.790 do Código Civil, sem fazer qualquer tipo de ressalva ou interpretação diversa daquilo que dispõe o texto da lei.
Outro claro exemplo de aplicação literal do dispositivo em comento é o Agravo de Instrumento n. 70059080705, no qual o companheiro sobrevivente que comprovou ter vivido em união estável com a autora da herança durante 40 anos, teve que concorrer com os colaterais da de cujus, e nesse caso, coube ao companheiro apenas um terço da herança, enquanto aos colaterais toucou dois terços da herança. Em suas justificativas, os julgadores sustentaram que se tratando de matéria sucessória, o legislador tratou de forma diferente os institutos do casamento e da união estável, razão pela qual o companheiro sobrevivente deve participar da sucessão do falecido com os parentes colaterais sucessíveis, quando o inventariado não deixou descendente ou ascendente, nos termos do que dispõe o inciso III, do artigo 1.790.[85]
11 Considerações finais
Inicialmente, cumpre frisar que o tema aqui exposto é de extrema importância e de interpretação bastante controvertida, visto que grande parte da doutrina que trata da matéria defende a total incompatibilidade do artigo 1.790 do Código Civil à realidade social em que vivemos e sua incongruidade ao disposto no artigo 226, § 3º da Magna Carta de 1988. Da mesma forma, a jurisprudência pesquisada mostra-se controvertida e oscilante quanto à interpretação e aplicação do que dispõe o artigo 1.790 do Diploma Civil.
Da análise doutrinária, restou claro que o entendimento majoritário é no sentido de que o disposto no artigo 1.790 do Código Civil estabelece tratamento extremamente desvantajoso à união estável em relação ao casamento, criando uma injusta diferenciação entre os dois institutos.
O Diploma Civil mostra-se discriminatório em relação à união estável desde sua alocação dentro do Código, visto ter tratado da sucessão do companheiro no capítulo que trata da sucessão em geral, quando de fato, trata-se de vocação hereditária. Ainda, o fato de não ter erigido o companheiro ao rol dos herdeiros necessários, como fez com o cônjuge supérstite, demonstra a discrepância de tratamento que o novo Código dispensou ao companheiro sobrevivente.
Neste sentido, o Código Civil, mostra-se em descompasso com a realidade social do país, já que as uniões estáveis representam mais de um terço das famílias brasileiras.[86]
Ao deixar de prever o direito real de habitação ao companheiro, o novo Código Civil retrocedeu em relação à Lei n. 9.278/96, que previa tal direito àqueles que viviam em união estável com o autor da herança, de maneira que restou à jurisprudência a tarefa de dirimir essa questão, o que vem sendo feito com êxito por nossos julgadores, que em sua maioria aplicam à união estável o direito real de habitação que o Código prevê apenas para o cônjuge.
Quando se trata da ordem de vocação hereditária, o companheiro sobrevivente não tem a mesma sorte, pois enquanto o cônjuge figura em terceiro lugar na ordem de vocação, o companheiro foi compelido ao quarto lugar, sendo preterido em relação aos colaterais do de cujus, e ainda, toca a ele uma cota da herança muito inferior a que cabe aos colaterais.
É também minoritária a jurisprudência que entende que os colaterais devem ser afastados da concorrência com o companheiro, enquanto grande parte da doutrina entende que a sucessão do companheiro deveria seguir a mesma sorte da sucessão do cônjuge.
A partir das análises realizadas neste estudo, permitiu-se verificar a grande disparidade entre as decisões provenientes do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Rio Grande do Sul, acerca da aplicação do artigo 1.790 do Código Civil. Também verificou-se que o Superior Tribunal de Justiça ainda não teve a oportunidade de se manifestar acerca da aplicabilidade do artigo em comento.
Do Tribunal de Justiça de São Paulo foram pesquisados os julgados n. 01616131520128260000, n. 20027981220148260000 e n. 02267122920128260000. Da análise destes julgados, infere-se que este Tribunal mostra-se mais sensível a essa inexplicável diferenciação entre o casamento e a união estável, e em alguns casos deixa de aplicar algumas das regras dispostas no artigo 1.790 do Código. Inclusive, por vezes afastando os colaterais da concorrência sucessória com o companheiro, e em outros casos, estabelecendo cotas idênticas quando o companheiro concorre com filhos de origem híbrida.
Os julgadores de São Paulo se mostram mais enfáticos ao defenderem que a redação do artigo em comento gera, na maioria das vezes, extrema desvantagem às uniões estáveis em relação ao casamento, e estabelece uma inaceitável diferenciação entre essas entidades familiares, pois na medida em que ambas estão alicerçadas no afeto entre os seus membros e têm por função primordial a promoção e o desenvolvimento da personalidade daqueles que a compõem, é que não pode disposto no artigo 1.790 do Código Civil ser lido isoladamente, mas deve ser interpretado em consonância com o que dispõe o § 3º, do artigo 226 da Carta Maior.
No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foram analisados os julgados n. 70037097151, n. 70053977146, n. 70049360415 e n. 70059080705.
Percebe-se que nosso Tribunal de Justiça opta por aplicar literalmente a regra contida no artigo 1.790, sustentando que o disposto em referido dispositivo não viola os preceitos e princípios constitucionais, pois uma vez que tratam-se de institutos jurídicos distintos é juridicamente possível que a união estável tenha disciplina sucessória distinta do casamento.
Os julgadores deste Tribunal defendem que o artigo 226, § 3º da Constituição Federal não equiparou a união estável ao casamento civil, mas tão somente admitiu-lhe a dignidade de ser reconhecida como entidade familiar, com o fim de receber especial proteção do Estado, mas com a expressa recomendação de que seja facilitada a sua conversão em casamento, em uma tentativa de demonstrar que casamento e união estável não são iguais para todos os efeitos, e que em razão disso podem ser tratados de formas tão distintas.
Diante de tantas divergências ao julgarem-se casos idênticos, conclui-se que o legislador não andou bem ao tratar da sucessão do companheiro, pois além de suprimir direitos que já haviam sido conquistados por estas pessoas através das Leis n. 8.971/94 e n. 9278/96, estabeleceu uma longa cadeia de concorrência sucessória, tornando praticamente impossível que o companheiro receba a herança. Também estabeleceu cotas diferentes quando concorrer com filhos comuns e filhos somente do autor da herança, além de não ter o ter elevado ao rol dos herdeiros necessários, como fez com o cônjuge.
Não se está com isso, querendo dizer que casamento e união estável sejam institutos iguais, pois é sabido que não o são, enquanto o casamento é caracterizado por ser ato precipuamente formal, a união estável tem como característica primordial a sua informalidade, situação essa que gera efeitos completamente distintos entre os institutos. O que não se pode admitir é que a legislação infraconstitucional trate de forma tão distinta institutos que tem como elemento propulsor o mesmo sentimento, que é o afeto existente entre seus membros, o qual os une a fim de constituírem uma família.
A partir das análises aqui feitas, defende-se que o fato de o novo Código Civil não ter erigido o companheiro ao rol dos herdeiros necessários fere o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pois na medida em que ele pode ser excluído da herança por meio de disposição testamentária, está sendo tolhido de um direito fundamental constitucionalmente protegido, qual seja o direito fundamental à herança, previsto no artigo 5º, inciso XXX, da Carta Magna.
Por fim, perfilha-se do entendimento de que o ideal seria uma reforma legislativa em nosso Código Civil, para que a atual redação do artigo 1.790 seja corrigida, atentando-se à realidade social na qual o país vive. Todavia, enquanto isso não ocorre, sustenta-se que uma mudança na forma como nossos julgadores vêm interpretando a matéria seria de suma importância para que as normas existentes sejam aplicadas de forma justa e efetiva, para tanto, é imprescindível que o julgador cumpra com seu papel de hermeneuta da lei e faça uma leitura conjunta da legislação civil e dos princípios constitucionais aplicáveis ao Direito de Família e das Sucessões, para que ao se deparar com mais de uma interpretação possível, aplique aquela que melhor tutele as exigências sociais e alcance a justiça ao caso concreto.
Informações Sobre o Autor
Rutieli Witt Tresbach de Souza
Bacharela em Direito pela Faculdade Cenecista de Osório – FACOS. Advogada