Matheus Guelber Correa*
Resumo: O presente estudo busca analisar a aplicação dos Precedentes Judiciais inseridos no ordenamento jurídico brasileiro, tradicionalmente pertencente ao sistema de civil law. Para tanto, através de uma comparação bibliográfica, verificou-se a estrutura do precedente judicial, bem como sua classificação, natureza jurídica e formas de aplicação, no intuito de se compreender o instituto. Em seguida, aprofundou-se na dinâmica dos precedentes, através de suas formas de distinção e superação. Por fim, analisou-se a eficácia dos precedentes judiciais no tempo, propondo a possibilidade de modulação dos efeitos nos casos de reforma e criação da norma-precedente.
Palavras-chave: Precedentes Judiciais. Segurança Jurídica. Modulação dos efeitos.
Abstract: This study analyze the application of the theory of judicial precedents inside of the Brazilian legal system, which on traditionally belongs to the civil law system. For this, through a bibliography comparation, the structure of the precedent, also its legal nature and application are analyzed, seeking the understanding of the institute. Then, the dynamic of the judicial precedent are examined, like the distinguishing, overriding and overruling. Lastly, the efficiency of the judicial precedent are analyzed, proposing an effect modulation on time of the reform of the precedent norm.
Keywords: Judicial precedents. Legal Security. Modulation of effects.
Sumário: Introdução. 1. O precedente judicial. 2. A norma precedente e sua natureza jurídica. 3. O dever de coesão, integridade e estabilidade – art. 926, CPC/15. 4. Classificação dos precedentes judiciais. 4.1. Precedentes verticais e precedentes horizontais. 4.2. Precedentes persuasivos e precedentes vinculantes. 5. A dinâmica dos precedentes judiciais. 6. Instrumentos de superação dos precedentes – overriding e overruling. 7. O princípio da segurança jurídica. 8. A modulação dos efeitos na superação dos precedentes. 9. Conclusão. Referências
INTRODUÇÃO
Importante transformação trazida pelo século XXI foi o acesso à informação. Com esta, os cidadãos começaram a conhecer seus direitos, bem como passaram a reconhecer quando suas garantias estão sendo violadas. Para o Direito enquanto ciência, este fenômeno trouxe uma infinidade de novas relações jurídicas às quais os ordenamentos vigentes nem sempre conseguem atingir. Já para o Poder Judiciário, a consequência foi um aumento significativo no número de ações judiciais.
Nesta esteira, iniciou-se no Brasil um momento de intensa insegurança jurídica frente ao Poder Judiciário, resultado das várias e constantes demandas às quais este poder passou a ser submetido (Reale, 2002). Neste cenário, as diversas ilhas jurisdicionais[1], espalhadas em uma vastidão não só territorial, mas também social, cultural, econômica e política, passaram a apresentar decisões diferentes e muitas vezes contrastantes à casos semelhantes.
Esse resultado pode ser compreendido como consequência natural do sistema de civil law adotado por nosso ordenamento. Conforme Miguel Reale (2002, pag. 128), neste sistema, “para aplicar o Direito, o juiz deve, evidentemente, realizar um trabalho prévio de interpretação das normas jurídicas, que nem sempre são suscetíveis de uma única apreensão intelectual”.
Isto é, ao julgador é oferecida uma gama de fontes de direito que podem ser aplicadas a um mesmo caso concreto a partir de sua convicção. Dado isso, pode ser diferente a escolha feita por cada intérprete, seja na fonte do direito aplicada, ou mesmo na hermenêutica utilizada para o enquadramento do fato à norma. Assim, havendo a possibilidade de diferentes aplicações jurídicas ao mesmo caso, ainda que respaldado pelo ordenamento, teme-se que o Poder Judiciário se torne uma espécie de loteria[2], na qual prepondera a imprevisibilidade da decisão.
Soma-se a isso um questionável desvio dos operadores na aplicação normativa. Enquanto a doutrina clássica, como Ávila (2009), defendia uma interpretação com enfoque estrito na norma, novos autores como Strek [3]e Fernandes (2013) traçam um novo olhar sobre essa atuação. Para eles, de forma geral, a norma que se origina de uma decisão judicial condiz muito mais com a posição adotada pelo intérprete em um espaço-tempo, seja social, cultural ou político, do que com os limites intrínsecos ao sistema normativo.
Diante dessa incerteza gerada pela aplicação de normas abstratas, destacando-se a incapacidade do sistema de civil law em manter sozinho uma unidade jurídica sólida e íntegra, o legislador processual, principalmente por intermédio do novo Código de Processo Civil, buscou guarida em ordenamentos jurídicos estrangeiros, bebendo diretamente nas fontes do sistema jurídico de Common Law.
Neste sistema, segundo Reale (2002, p. 92), “o direito se revela muito mais pelos usos e costumes e pela jurisdição do que pelo trabalho abstrato e genérico dos parlamentos. Trata-se mais propriamente, de um Direito misto, costumeiro e jurisprudencial”.
Assim, diferente dos sistemas de origem romano-germânica, no sistema de common law a interpretação de um fato frente ao ordenamento jurídico não busca respaldo em uma norma abstrata criada pelo Legislativo, mas sim em uma fonte concreta nascida de uma hermenêutica já utilizada por outro intérprete para um caso semelhante. Exsurge, dessa maneira, a figura do precedente judicial, o qual virá a ser minuciosamente analisado mais a frente.
Importante frisar, desde já, que em momento algum deste estudo concluir-se-á que o Brasil está transformando-se em um sistema de common law. Assim também, não se pretende defender uma transição entre os sistemas. De forma diversa, o que se busca neste enredo é entender como a principal fonte de direito do sistema anglo-saxão, o precedente judicial, pode emergir no sistema de civil law para sanar o problema da insegurança jurídica latente em nossa sociedade. [4]
Como já dito, o judiciário brasileiro passa por uma fase de intensa insegurança jurídica, resultado de diferentes decisões proferidas a casos semelhantes. Por isso, conforme se demonstrará ao final, a importância dos precedentes judiciais para a manutenção da Segurança Jurídica, através de um sistema íntegro e coeso, no qual uma ação judicial não corresponde a uma mera aposta. Todavia, inicialmente, importante entender no que consiste o precedente judicial.
Para tanto, descreve Didier Jr. (2015, p. 441) que, “em sentido lato, o precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos”.
Ademais, para Câmara (2017, p.353) temos que:
precedente é um pronunciamento judicial, proferido em um processo anterior, que é empregado como base para formação de outra decisão judicial, prolatada em processo posterior. Dito de outro modo, sempre que um órgão jurisdicional, ao proferir uma decisão, parte de outra decisão, proferida em outro processo, empregando-a como base, a decisão anteriormente prolatada terá sido um precedente.
Assim, com respaldo na definição dos ilustres juristas citados, pode-se entender o precedente judicial como o modelo seguido pelo julgador a partir da análise já feita em demanda anterior por outro intérprete, na qual foi estabelecida uma diretriz sobre caso concreto semelhante, e que será utilizada para orientar ou vincular a decisão que se apresenta.
Importante ressaltar, todavia, que nem toda decisão será hábil para transformar-se em um precedente. Como dito, a formação de um precedente ocorre não na emissão da decisão modelo, mas sim no seu uso para embasar um novo julgamento (Câmara, 2017). Desse modo, somente pode ser considerado como precedente quando aquela lógica aplicada a um caso relevante for utilizada para fundamentar, posteriormente, outro a que se assemelha, seja em razão da hierarquia jurisdicional, ou em virtude de lei, como se verá mais adiante. [5] [6]
Por conseguinte, denota-se que o precedente não se consubstancia na decisão anteriormente prolatada por um todo. Nesses termos, aduz Cruz e Tucci (apud DidierJr., 2015, p. 441)) que “todo precedente é composto de duas partes distintas: a) as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; e b) a tese ou o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório.” Assim, somente nesta segunda parte da decisão estaria presente o precedente, sem que seja abandonada a importância da primeira parte para sua constituição e aplicação.
Desta maneira, ao passo que o precedente não corresponde à decisão inicialmente exarada, como também não se identifica com a totalidade desta decisão, sua aplicação fica a cargo do operador do direito que, dentro de parâmetros normativos, deve encontrar a parcela vinculante ou persuasiva que se compatibiliza com a situação concreta que está sob sua análise.
Por isso, importante diferenciar na decisão a parte que vem a compor especificamente o precedente, chamada de ratio decidendi; e a parcela da decisão que não se encontra hábil a vincular futuros julgadores, mas que não perde sua importância para construção daquele entendimento, denominada obiter dictum.
Nas palavras de Didier (2015, p. 442) “a ratio decidenti – ou para os norte-americanos, a holding – são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão; a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida.”
Ademais, buscando nas lições de Tucci (2004, p. 175), acrescenta o autor que “ a ratio decidendi (…) constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto (rule of law).”
Logo, advém da atuação do magistrado duas normas com diferentes aplicações. Uma primeira individualizada à resolução da situação em exame, concentrada no dispositivo da sentença e resultante da conclusão a que se chegou a partir de todo desenvolvimento daquela decisão. É essa a norma que, além de alcançar a coisa julgada e vincular diretamente as parte sub judice, pode também levar à nulidade da decisão caso ausente.
A segunda norma que nasce de um julgamento é o que pode vir a formar um precedente judicial. Consiste, deste modo, na fundamentação trazida pelo julgador para análise daquele caso concreto frente ao sistema normativo, ou seja, em toda a construção que demonstra suas razões que levaram ao entendimento final.
Esta segunda norma, o precedente, não se limita ao caso sub judice para criar efeitos jurídicos meramente inter partes. De forma oposta, essa parcela torna-se uma norma que, como será visto, poderá ser aplicada muito além daquele processo, vinculando ações com partes diferentes, mas que possuam conflitos semelhantes.
Portanto, é a ratio decidendi que constitui o precedente. É essa parte da decisão, consolidada na fundamentação da questão em análise, que será reconhecida como norma jurídica, fonte de direitos, hábil a vincular ou persuadir um julgador em sua interpretação.
Á parte da decisão que não constitui a ratio decidendi atribui-se o nome de obiter dictum. Sobre este, compreende-se como todo e qualquer comentário, argumento ou informação jurídica adicional, paralela e dispensável para fundamentação e formulação da decisão. Consiste, assim, em um “juízo normativo acessório, provisório, secundário, impressão ou qualquer elemento jurídico-hermenêutico que não tenha influência relevante e substancial para a decisão” (DidierJr., 2015, p. 444).
Importante ressaltar que, na contramão do que entende parte da doutrina [7], apesar de ser prescindível para o uso da norma-precedente, o obiter dictum pode mostrar-se como elemento fundamental para alcançar o raciocínio utilizado na construção daquele entendimento jurídico.
Ou seja, ele não se mostra essencial quando o precedente vem a ser aplicado, e, assim, formado. Em contrapartida, apesar de acessório, é capaz de mostrar o caminho que levou o julgador primevo àquele entendimento, ganhando relevância para enquadramentos e interpretações futuras.
Assume-se tal posicionamento quanto ao obiter dictum, primeiro, por se reconhecer a possibilidade deste componente transformar-se em um precedente, na medida em que venha a ser aplicado em novos julgamentos após a superação daquele anterior. Ainda, reforça-se essa ideia no momento em que, para formulação de uma hipótese – que será fundamentada e se tornará a ratio decidendi – o julgador afasta demais convicções, que poderiam influenciar naquele conflito, e até virem a se tornar o entendimento mais aceitável. [8]
Isto posto, conclui-se que a ratio decidendi, poderá tornar-se precedente e adquirir efeitos vinculantes e persuasivos, enquanto os demais argumentos acessórios utilizados na construção do entendimento – parcela referente ao obiter dictum – em regra, poderá gozar apenas de feitos persuasivos relativos à lógica da sistemática utilizada para enquadramento ao caso concreto.
Sabe-se já que ao decidir, o julgador constrói duas normas jurídicas. A primeira é criada de forma individualizada àquele caso concreto, nascendo da interpretação do sistema normativo e cominando no dispositivo da sentença.
Além desta, nasce daquela decisão uma segunda norma, de cunho geral, fundada na elaboração da tese aplicada, que servirá de direcionamento para casos futuros idênticos. A esta é atribuída o nome de norma-precedente.
Por conseguinte, esse precedente poderá ser aplicado em casos futuros. Assim, da mesma forma que se interpreta uma regra frente a um fato jurídico, necessário que o julgador também interprete o precedente frente ao caso que se propõe.
Ressalta-se, o precedente nasce da interpretação dos fatos frente ao ordenamento jurídico (regras, princípios, etc.), resultando em uma norma jurídica singular e em outra geral. Desta segunda, origina-se o precedente, que também deverá ser reinterpretado frente aos demais casos concretos, em confronto com todo o ordenamento pátrio. Assim, configura-se uma sequência lógica, na qual o precedente sempre vai estar respaldado em alguma outra fonte de direito. (Cramer, 2016, p.90)
Desta forma, a norma jurídica pode ser aplicada como princípio ou regra. Para Didier (2015, p.451), o precedente sempre será uma regra, visto que será aplicado por subsunção. Em contrapartida, Lucas Buril de Macêdo (2016, p.75) defende que a norma oriunda do precedente também pode atuar como um princípio.
Acerca da aplicação principiológica, defende o autor que o precedente pode agir desta forma quando despertar um princípio que antes se encontrava implícito no ordenamento jurídico, ou quando, de um princípio já reconhecido na jurisprudência, encontrar algum subprincípio relevante ao caso. (Macêdo, 2016,p.75)
Diante dessa narrativa, importante também explorar sobre a natureza jurídica dos precedentes judiciais. Sobre isso, Didier defende que a norma precedente possui natureza de ato-fato jurídico. Assim, para o autor “os efeitos de um precedente produzem-se independente da manifestação do órgão jurisdicionado que o produziu”. (DidierJr., 2015, p. 453)
De forma diferente, Macêdo (2016) entende a natureza jurídica do precedente como fonte de direito, do qual, sua aplicação pode ser feita como um princípio ou uma regra, conforme hermenêutica utilizada na construção da norma.
Para este trabalho, considerar-se-á o precedente como fonte de direito, visto que não restam dúvidas sobre seu poder transformador no Direito ao regulamentar as relações jurídicas submetidas ao judiciário.
O intuito de formar um sistema judicial no qual os precedentes se enquadrem em um ordenamento de civil law busca resguardar diversos princípios que são pilares do novo modelo de Processo Constitucional[9] vigente, como a Segurança Jurídica e a Isonomia. Para isto, o código processual civil preceitua que a jurisprudência deve atentar-se para os deveres de integridade, coerência e estabilidade.
Por conseguinte, para análise desses deveres gerais, importante compreender três fontes normativas utilizadas em nosso ordenamento ressoantes do sistema de common law: a jurisprudência, as súmulas e os precedentes.
Logo, já amplamente debatido o conceito de precedentes, busca-se em Câmara (2017, p. 340) a descrição de jurisprudência como “um conjunto de decisões judiciais, proferidas pelos tribunais, sobre uma determinada matéria, em um mesmo sentido.”
Nesses termos, o autor atribui uma diferença aos institutos, na qual a jurisprudência destaca-se por sua percepção quantitativa, ao passo que os precedentes são analisados no âmbito qualitativo. Isto é, pela repetição e constância de decisões exaradas sobre certo tema, a jurisprudência encontra-se apta a representar o modo de pensar daquele Tribunal. Diferentemente, o precedente emana de uma decisão singular, mas de extrema relevância, que passa a influenciar nos demais julgamentos.
Reconhecidos os limites conceituais entre esses institutos, não se pode olvidar à ligação existente entre eles. Verifica-se, neste sentido, que a jurisprudência se faz a partir da repetição de decisões judiciais que mantêm um mesmo entendimento, sendo cada uma dessas decisões, em sua individualidade, um precedente.
Em outras palavras, tem-se que “um precedente, quando reiteradamente aplicado, se transforma em uma jurisprudência, que, se predominar em tribunal, pode dar ensejo à edição de um enunciado na súmula da jurisprudência deste tribunal.” (Didier Jr. 2015, P. 487)
Entende-se, enfim, que a súmula é o reflexo da ratio decidendi do precedente reiterado de forma dominante que levou à formação de uma jurisprudência. É, pois, o suprassumo retirado da ratio decidendi que irá compor o texto do respectivo enunciado.
Destarte, em razão do efeito em cadeia gerado pela conexão desses institutos, a interpretação de suas normas, ainda que na literalidade sejam estritas, deve ser feita de forma englobante e sistemática, alcançando sempre os três institutos.
Tem-se, em sequência, que caput do art. 926 do Novo Código de Processo Civil determina “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Portanto, pelo defendido nesta tese, apesar da regra referir-se literalmente à jurisprudência, entende-se que o mesmo também deve ser observado quando da aplicação dos precedentes judiciais.[10]
Dessa forma, o dever de uniformização previsto na regra corresponde à necessidade de suprir as divergências internas nos tribunais quando decididos casos semelhantes, o que pode ser feito através da edição de súmulas. Para isto, importante, primeiro, demonstrar a base fática alcançada pelo instituto e os precedentes determinantes em sua construção. Após, necessária a delimitação da ratio decidenti, que será exteriorizada através do percuciente texto do enunciado sumular.[11]
Já o dever de coerência representa o tratamento igual às casos iguais, embasado primordialmente no Princípio da Isonomia. Destarte, cabe ao Tribunal observar suas próprias decisões, aplicando aos casos semelhantes os mesmos remédios normativos. [12]
Por conseguinte, em consequência da coerência nas decisões judiciais, buscar-se-á a integridade daquele Tribunal. Nesta, o órgão judicial não pode emitir decisões contrastantes sobre casos parecidos, ressalvadas as hipóteses de superação.
Por fim, aos Tribunais cabe o dever de estabilidade. Para tanto, “qualquer mudança de posicionamento (superação – overruling) deve ser justificada adequadamente, além de ter sua eficácia modulada em respeito à segurança jurídica. (DidierJr., 2015, p. 474)
Neste último caso, o princípio defendido é o da Segurança Jurídica, talvez, a pedra fundamental para a defesa da aplicação dos precedentes judicias. Por isso, a integridade das decisões judiciais merece um estudo a parte, que cominará na conclusão deste estudo.
Como já amplamente explicitado neste trabalho, o precedente judicial consiste em uma norma geral de aplicação ampla, que se traduz em uma regra ou princípio quando interpretado. Ou seja, uma norma que nasce da interpretação e fundamentação de um caso concreto – ratio decidendi, mas que produz efeitos além daquele processo, devendo ser observado em futuras decisões de lides semelhantes.
Nesta esteira, o precedente judicial mostra-se como fonte de direito, hábil a ser utilizado pelo julgador na fundamentação de sua decisão. Destarte, para entender as diferentes formas de atuação do precedente, necessário atentar-se para sua classificação.
Para isso, nas lições de Michele Taruffo, os precedentes podem ser classificados a partir de sua origem, verificando o tribunal de criação; com também podem ser classificados a partir de sua eficácia, analisando o seu poder de vinculação sobre julgamentos posteriores.[13]
4.1 – Precedentes Verticais e Precedentes Horizontais
Nesta classificação, os precedentes serão analisados a partir de qual degrau do Poder Judiciário este foi emitido, bem como sua capacidade de influenciar as decisões futuras em uma perspectiva vertical e horizontal. (Cramer, 2016, p.113)
Como Precedente Vertical, entende-se aquele proferido pelos tribunais superiores, no caso, pelo STF e pelo STJ. Destarte, em razão da posição assumida por essas cortes no sistema jurisdicional pátrio, suas decisões possuem natural poder de se tornarem precedentes frente às estruturas inferiores do Poder Judiciário.
Desta forma, as instâncias que se encontram no topo do nosso sistema possuem o dever de criarem seus precedentes, visto a previsão de integridade e coesão jurisdicional previsto no artigo 926 do Código de Processo Civil de 2015. Ainda, essa prerrogativa também deve ser atribuída aos demais tribunais nas ações que lhe couberem, vinculando-os internamente e às suas instâncias.
Por conseguinte, emergem os Precedentes Horizontais, entendidos como aqueles que devem ser observados apenas pelo Tribunal que os criou. Desta forma, possuem apenas vinculação interna, respeitando suas diferentes instâncias.
Em resumo, os Tribunais Superiores podem criar precedentes tanto horizontais quanto verticais, ou seja, com vinculação tanto interna quanto aos demais Tribunais. Em contrapartida, os Tribunais de Segunda Instância apenas podem vincular a si próprio, e às suas instâncias inferiores.
Apesar do exposto, esse poder de vinculação não depende apenas da hierarquia judicial. Assim, para exercer vinculação futura, necessário encontrar respaldo no sistema jurídico. Dessa necessidade nasce a separação entre precedentes vinculantes e persuasivos.
4.2 – Precedentes Persuasivos e Precedentes Vinculantes
Neste tópico, analisa-se o precedente quanto à sua força para determinar que outros julgadores acompanhem o entendimento ali firmado. Dessa maneira, os precedentes serão classificados como persuasivos e vinculantes.
Sobre esses reflexos no ordenamento jurídico, de forma geral, assim descreve Câmara (2017, p. 556):
Os precedentes vinculantes, como a própria denominação indica, são de aplicação obrigatória, não podendo o órgão jurisdicional a ele vinculado, em casos nos quais sua eficácia vinculante se produza, deixar de aplicá-lo e decidir de forma contrária, Já os precedentes não vinculantes são meramente argumentativos, e não podem ser ignorados pelos órgãos jurisdicionais, os quais, porém, podem decidir de modo distinto, desde que isto se faça através de um pronunciamento judicial em que se encontre uma fundamentação específica para justificar a não aplicação do precedente.
Portanto, apreende-se como persuasivo (não-vinculante) o precedente que não cria nos demais julgadores um dever de adesão àquele entendimento anteriormente exarado, mas pode ser usado como fonte de direitos para respaldar a argumentação por qualquer uma das partes no processo. [14]
Desta forma, a persuasão corresponde ao efeito mínimo gerado por um precedente. Ou seja, ainda que não obrigue um novo julgador a acompanhar a tese firmada, o precedente persuasivo deve ser enfrentado por uma forte carga de fundamentação, que deixe clara as razões que afastaram sua aplicação.
Ademais, ainda que não tenha sua vinculação respaldada em uma regra – como será explicado mais a frente – os princípios que regem o Processo Civil exigem do magistrado um dever de coesão e integridade em suas decisões frente ao órgão que representa. Portanto, vinculam este quanto ao seu dever de observação, seja para acompanhar ou para afastar a sua aplicação, quando suscitados em uma argumentação, conforme indica artigo 489, §1º, do CPC/15:
Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
omissis
omissis
IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
Pelo exposto, os precedentes persuasivos não obrigam o julgador a repetir a tese antes adotada, todavia determina que esta seja debatida na fundamentação da decisão. Já em outro ponto, um passo a frente dos persuasivos estão os precedentes vinculantes, os quais, além do dever de serem observados na construção do entendimento, devem ser acompanhados obrigatoriamente pela decisão. Em outras palavras, Didier entende que:
A norma jurídica geral (tese jurídica, ratio decidendi) estabelecida na fundamentação de determinados decisões judiciais tem o condão de vincular decisões posteriores, obrigando que os órgãos jurisdicionais adotem aquela mesma tese jurídica na sua própria fundamentação. (DidierJr., 2015,p.455)
Todavia, diferente do sistema de common law, no qual os precedentes são percebidos como a principal fonte de direito, no sistema de civil law, a vinculação do precedente origina-se de uma regra positivada. Ou seja, no sistema nacional o precedente só terá efeito vinculante se alguma regra prevista no ordenamento atribuir-lhe esse poder/dever.
Para isto, verifica-se no Código de Processo Civil que os precedentes vinculantes estão concentrados nos incisos do art. 927, conforme se vê:
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
É obrigatório, portanto, que o julgador acompanhe os precedentes formados na esfera dos incisos previstos no art. 927, do CPC/15, quando enquadrados no caso concreto, sob pena de nulidade da decisão.
Neste ponto se encontra a principal diferença entre os precedentes persuasivos e os vinculantes. No caso dos Persuasivos, o juiz deverá levá-lo em conta para sua decisão, visto a coesão e a integridade das decisões judiciais. Todavia, caso discorde de sua aplicação, poderá afastá-lo mediante uma forte carga argumentativa. Já no caso dos precedentes vinculantes, o juiz não poderá deixar de aplicá-lo apenas a partir de sua convicção. Para tanto, o julgador deverá adotar uma das técnicas de superação ou distinção dos precedentes, o que passa a ser estudado em sequência.
Como até aqui foi defendido, o uso do sistema de precedentes judicias proporciona um sentimento de maior segurança jurídica e isonomia nas decisões jurisdicionais, bem como transmite a sensação de um sistema mais estável, integro e coerente. Todavia, muitos temem que, como consequência, este sistema se torne rígido e imutável, e que a figura do juiz seja reduzida no momento do julgamento. Logo, frente a esses problemas, o próprio Direito criou instrumentos de adequação do precedente à realidade social através da atuação positiva dos magistrados.
Nesta esteira, técnicas de redação, superação e interpretação protegem o sistema de precedentes de um engessamento temporal, proporcionando sua evolução de acordo com as transformações sociais. Através desses métodos, busca-se afastar as desigualdades de tratamento, as injustiças e as arbitrariedades realizadas por julgadores que fogem aos parâmetros meramente legais.
Da mesma forma, os procedimentos adotados permitem a renovação dos precedentes que se encontrarem em vigor, afastando a possibilidade de aplicação de precedentes que não se enquadram ao momento histórico vivido. Para tanto, a existência desse equilíbrio entre segurança jurídica, isonomia de tratamento e transformação do direito, acompanha o dever de um elevado nível de fundamentação nas decisões judiciais, tanto para formação, quanto para manutenção e alteração do precedente.
Como primeiro instrumento de dinamicidade dos precedentes tem-se o distinguishing. Neste, o julgador compara o caso concreto que está analisando com aquele que pretende enquadrar no precedente judicial, para, somente depois, analisar a norma-precedente ali criada. Trata-se, portanto, tanto de procedimento para aplicação do precedente, como também de resultado.
Fala-se em distinguishing quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica) constante do precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, alguma peculiaridade no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente. (DidierJr., 2015, p.491)
Através do distinguishing, o sistema de precedentes busca resguardar o Princípio da Isonomia, pois diferencia a norma aplicada a partir das dissimilitudes do caso concreto. Ademais, garante ao juiz liberdade na formação de sua convicção, ao passo que o enquadramento será feito por este, assemelhando-se a uma escolha legislativa.
Por conseguinte, realizado o procedimento do distinguishing, e tendo como resultado a distinção entre o caso em análise e o precedente, três são as hipóteses a serem tomadas pelo julgador.
No primeiro caso, não havendo nenhum precedente que se enquadre naquela situação, o caso será inédito (hard case), e deverá ser enfrentado pelo julgador a partir das demais fontes de direito conhecidas. No segundo caso, não havendo o enquadramento perfeito em razão de circunstâncias peculiares, pode o julgador utilizar-se das demais fontes normativas, afastando a aplicação do precedente. Terceiro, se o enquadramento não for perfeito por pequenos detalhes, pode o julgador, através de ampla fundamentação, aplicar o precedente de forma extensiva ao caso concreto.
Portanto, o distinguishing corresponde ao método utilizado para a comparação e interpretação do caso concreto frente ao precedente, ao passo que também corresponde à divergência encontrada.
Logo, uma vez que enquadrado o caso concreto dentro dos fatos que originaram o paradigma, o precedente pode ser aplicado. Todavia, existem casos em que, ainda que perfeita a subsunção do fato ao precedente paradigma, o magistrado não concordará com o entendimento ali firmado. Nesses casos, o precedente deverá ser superado, o que ocorrerá através dos procedimentos de overriding e overruling.
Uma vez que determinado precedente não mais se enquadrar no ordenamento jurídico, este poderá ser superado. Dentre outras razões, a superação faz-se necessária quando determinado precedente for de encontro à regra ou princípio posteriormente acrescentado ao ordenamento jurídico, bem como quando aquela norma-precedente não mais espelhar o momento social vivido.
Importante ressaltar que na superação do procedente não está sendo revisitada a causa que lhe deu origem ou revendo decisão já atingida pela coisa julgada. O que ocorre é uma inovação jurisdicional quanto a aplicação de uma fonte do direito – norma-precedente – frente à outros casos que se seguirem à reformulação.
Além disso, verifica-se que a superação de um precedente não viola em momento algum o dever de integridade da jurisprudência. Pelo contrário, apenas ressalta a coesão necessária às decisões judiciais, uma vez que sua não aplicação exige amplo esforço argumentativo. Destarte, entende-se a superação como característica inerente ao sistema adotado pelo Novo Código de Processo Civil, determinante para impedir o engessamento judicial.
Isto posto, viu-se neste estudo a existência de duas modalidades de precedentes judiciais no tocante ao seu poder de vinculação: os persuasivos e os vinculantes. Na primeira hipótese, o precedente não obriga o julgador a acompanhar o entendimento ali firmado, podendo este julgar de forma diferente daquela.
Logo, o julgador não precisa de nenhum procedimento especial para superar o precedente persuasivo. Todavia, ainda que não vinculado por lei, o julgador deve investir ampla fundamentação para sua superação, demonstrando por quais motivos vai romper aquele entendimento, em virtude dos deveres de integridade e coesão impostos pelo ordenamento processual.
Já no caso dos precedentes vinculantes, não basta apenas fundamentação para superar a norma-precedente que se impõe. Para tanto, será necessário procedimento específico, com amplo contraditório e participação social, em razão do poder atribuído àquela norma. Emerge, neste diapasão, as duas principais técnicas para superação de força vinculante: o overriding e o overruling.
A primeira técnica de superação conhecida como overriding oportuniza ao julgador a superação parcial do precedente, em virtude de uma alteração legal ou principiológica no ordenamento jurídico, ou mesmo em razão da adaptação do direito à realidade social.
Sobre o overriding aduz Didier (2015, p.507):
Há overriding quando o tribunal apenas limita o âmbito de incidência de um precedente, em função de superveniência de uma regra ou princípio legal. No overriding, portanto, não há superação total do precedente, mas apenas uma superação parcial. É uma espécie de revogação parcial”
Desta forma, o overriding não implica na extinção da norma-precedente superada, mas sim em uma reformulação dos limites desta. Por exemplo, aquele precedente pode ser superado pelo diagnóstico de que não se enquadra a determinado caso. Da mesma forma, ocorre a superação parcial quando apenas parcela de seu texto normativo é reconhecido como inaplicável em uma nova conjuntura legal e social. Em ambos os casos, a consequência é que aquela parcela do precedente superada deixará de vincular decisões futuras, mantendo-se os demais efeitos gerados.
Neste mesmo sentido, o precedente também pode ser reformado totalmente. Ocorre assim o chamado overruling, segunda hipótese de superação de norma-precedente vinculante.
Corresponde, portanto, à técnica através da qual “um precedente perde sua força vinculante e é substituído (overruled) por outro precedente.” (DidierJr., 2015, p. 454). Desta maneira, aquele precedente perde sua aplicação, deixando de ser paradigma para casos futuros por não ser mais suficiente para solucioná-los mediante transformações sociais, políticas e jurídicas. Desta maneira, a partir da decisão que revogá-lo, surge um novo precedente considerado mais adqueado ao caso concreto.
Essa modalidade de superação do precedente vinculante pode ser observada na cultura de common law de forma expressa ( express overruling) ou tácita ( implied overruling). No primeiro caso, a alteração do precedente ocorre a partir de uma decisão de um Tribunal que, após o exercício do contraditório e da ampla defesa, adote um novo posicionamento acerca de determinado tema sobre o qual já existia um precedente, revogando-o.
Em sua modalidade tácita, o tribunal apenas aceita aplicação de uma nova corrente, sem, contudo, manifestar-se diretamente acerca do precedente já firmado e abandonado naquela decisão. Importante mencionar que essa modalidade não é aceita no Brasil, visto o dever do julgador em enfrentar todas as hipóteses jurídicas suscitadas ao caso. Assim, na hipótese de superação implícita, a decisão deverá ser considerada não fundamentada, nos termos do art. 489, §1º, VI, CPC/15.
Tudo isso se deve em virtude do Princípio da Segurança Jurídica, viés principal do sistema de precedentes judiciais. Por isso, importante mostrar como esse princípio norteia todo o ordenamento jurídico, como também o porquê de sua proteção.
O novo modelo processual constitucional iniciou no Brasil uma nova fase marcada pela pluralidade de conceitos vagos e princípios com força normativa, hábeis a garantir uma mutabilidade constante do Direito. Por essa razão, aumentou sobre o Poder Judiciário o dever de uma atuação positiva frente aos processos, com ampla fundamentação das decisões proferidas.
Ademais, como já repisado neste estudo, o modernidade trouxe consigo um aumento no número de relações jurídicas e uma proliferação das ações judiciais. Consequentemente, muitas causas repetitivas passaram a ser submetidas aos Tribunais, exigindo desses maior integridade e coesão nas decisões proferidas.
Desponta, para tanto, o sistema de precedentes como meio de gerar segurança jurídica ao judiciário, equilibrando as decisões proferidas sobre casos semelhantes, e, consequentemente, facilitando a compreensão do Direito pela sociedade.
Para tanto, a própria Constituição Federal prevê a Segurança Jurídica em seu art. 5º, XXXVI, através da proteção aos institutos do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada.
Sobre o direito adquirido, este consiste na garantia constitucional pela qual um direito incorpora-se ao patrimônio do seu titular quando preenchidos os requisitos necessários para o seu exercício regular. Desta forma, protege-se o titular do direito de futuras alterações normativas que possam levar à mitigação ou extinção daquele direito.
No que tange ao ato jurídico perfeito, sua importância revela-se pela preservação dos atos e negócios jurídicos praticados em consonância ao ordenamento jurídico vigente no momento de sua concepção.
Por fim, nos termos do art. 502, CPC/15, “denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”. Assim, corresponde à imutabilidade da norma jurídica individualizada ao caso concreto, garantindo estabilidade para a decisão judicial.
Ademais, além da previsão positivada no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal de 1988, que garante valor normativo à Segurança Jurídica, esta também deve ser interpretada como valor fundante à aplicação dos precedentes judiciais. (Cramer, 2016, p.54)
Neste sentido, Ávila (2009) examina a Segurança Jurídica frente a três acepções distintas: fato, valor e norma-princípio. Assim, como fato, busca-se a previsibilidade dos resultados jurídicos decorrentes de seus comportamentos. Como valor, a segurança jurídica salvaguarda o direito como espelho da sociedade. E, por fim, no aspecto norma-princípio, apresenta-se como fonte de direito hábil a direcionar a vontade do legislador e do julgador.
Por todo o exposto, entende-se que três são as vertentes principais dos precedentes judiciais em virtude da segurança jurídica. Primeiro, busca-se a previsibilidade das decisões, pela qual os indivíduos consigam pressupor como o Estado irá analisar seus conflitos, podendo agir em conformidade com os entendimentos já fixados. Desta forma, evita-se a surpresa de decisões diferentes à casos semelhantes. (Cramer, 2016. P. 14)
Segundo, conexo à previsibilidade, encontra-se a estabilidade das decisões judiciais no sistema de precedentes judiciais. Através do uso dos precedentes como fonte de direitos, busca-se uma hermenêutica comum a diferentes órgãos jurisdicionais frente à casos semelhantes, garantindo integridade e coesão da ordem jurídica.
Por fim, a terceira vertente consubstancia-se na proteção da confiança, através da qual, além da previsibilidade futura da decisão a ser proferida, o agente terá segurança de que a norma que respaldou seu direito será levada em conta independente de nova interpretação.
Sobre este último aspecto, importante observar a aplicação dos precedentes judiciais no tempo a partir de sua criação, alteração e revogação.
Uma das principais características do sistema de precedentes é sua capacidade de refletir o momento social vivido, fato que impede um engessamento da estrutura judicial. Para tanto, utiliza-se de técnicas de interpretação e aplicação, como o distinguishing, e técnicas de superação, como o overruling e o overriding.
Nesses dois últimos casos o que ocorre é a superação do precedente, seja parcial ou total, no qual a norma ali presente perde seu efeito vinculante. Assim, entende-se que aquela solução dada a um caso concreto – que originou a norma-precedente – deixou de ser satisfativa para o Direito, seja por razões legais ou por razões sociais, políticas e econômicas. Todavia, importante constatação refere-se à eficácia temporal dos efeitos jurídicos gerados pela superação do precedente, o que passa a ser analisado neste momento frente a todo estudo até aqui produzido.
Importante destacar que este assunto consiste em um dos mais complicados na aplicação dos precedentes, em detrimento da falta de “padronização decisória ligada ainda à falta de argumentação detalhada nas decisões que modulam ou não a revogação do precedente.” (DidierJr., 2015, p.503)
Por isso, o objetivo não é encontrar uma solução única e perfeita a ser aplicada a todos os casos, mas sim apresentar de forma dialética os dois principais efeitos aduzidos na doutrina: eficácia retroativa e eficácia prospectiva.
Incialmente, para Cramer (2016, p.153), “em regra, a superação total ou parcial do precedente tem efeitos retroativos, isto é, alcança situações futuras, presentes e passadas”. Condiz, então, o autor, com a regra aplicada no sistema puro de common law, no qual a norma estabelecida no precedente é aplicada à fatos jurídicos que ocorreram antes mesmo da prolação da referida decisão que formou o precedente.
Isso se deve porque a superação de um precedente indica a incongruência de sua norma frente ao restante do ordenamento. Assim, seja a incoerência de cunho legal ou social, a confiança na ratio decidendi torna-se fragilizada, perdendo sua característica de espelhar a sociedade. Logo, deve-se abandonar a antiga norma, atribuindo aos fatos a nova interpretação formulada.
Ademais, teme-se que a aplicação de efeitos meramente prospectivos fira o Princípio do Acesso ao Judiciário. Isso ocorreria ao passo que, superado um precedente a partir de um caso concreto, à esta mesmo lide não seriam aplicados seus efeitos.
Neste caso, aduz Macêdo (2016, p.312):
Parece que a decisão deve retroagir, ao menos, para aplicar-se ao caso sob julgamento, como reflexo próprio da dinâmica processual: os sujeitos precisam de estímulo para argumentar no sentido da superação dos precedentes. Ademais, o sistema jurídico realmente deve evitar inconsistências, mas algumas incoerências são aceitáveis diante de razões práticas – o que torna suportável o tratamento diferenciado do sujeito que conseguiu a decretação da superação do precedente judicial.
Entretanto, a adoção de uma eficácia retroativa pode ferir sérios pressuposto do direito brasileiro. Tal reflexo ocorreria em virtude do dever do Poder Judiciário de proteger as expectativas legítimas geradas em seus jurisdicionados que se basearam nas normas emitidas pelos Tribunais para escolherem suas condutas frente a um fato ou negócio jurídico.
Afim de elucidar tal posicionamento, importante, primeiramente, relembrar a natureza jurídica atribuída ao precedente. Neste sentido, definiu-se o precedente como uma norma jurídica fonte de direitos, hábil a influenciar o julgador na resolução dos conflitos, bem como aos jurisdicionados em suas relações jurídicas.
Por conseguinte, impõe-se um raciocínio sistemático do ordenamento quando este alude acerca das fontes do direito, aproximando-as, quando necessário, para sua interpretação. Neste sentido, em consonância à Constituição Federal, prevê o art. 6º da Lei de Introdução às normas do direito brasileiro que “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”. Portanto, da mesma forma que uma inovação legislativa, a alteração de um precedente judicial também deve respeitar atos e negócios jurídicos já formalizados.
Ademais, defendeu-se aqui a Segurança Jurídica como princípio basilar para aplicação dos precedentes. Desta forma, a adoção da retroatividade como regra implicaria em uma quebra dos pressupostos de estabilidade e, principalmente, de previsibilidade e de não surpresa, visto que o jurisdicionado perderia o parâmetro para sua conduta, retornando o Judiciário à sua característica de loteria.[15]
Por isso, no processo de ponderação entre a razão que levou à superação do precedente e o Princípio da Segurança Jurídica, o julgador pode alcançar a conclusão de que a superação da norma é necessária para atualização do Direito, mas que, a proteção da confiança do jurisdicionado no momento em que exerceu sua conduta também deve ser juridicamente tutelada (Macêdo, 2016, p.311).
Neste diapasão, mediante a impossibilidade de encontrar uma eficácia temporal única aos efeitos da reforma de precedentes, o próprio Código de Processo Civil de 2015, em seu art. 927, §3º, traz que “na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.
Para tanto, Ravi Peixoto enumera os elementos que devem ser levados em consideração no momento de modulação dos efeitos. Primeiro, o julgador deve atentar-se à possibilidade do novo precedente surpreender o jurisdicionado que tenha agido de boa-fé, confiando na aplicação do precedente que respaldou sua conduta. Segundo, e dever do magistrado em minorar os prejuízos da parte que teve o precedente favorável revogado. Terceiro, deve ser buscado algum direito fundamental que justifique a modulação da eficácia temporal, seja retroativa ou prospectiva. Quarto, e último, a possibilidade de que a moldagem de situação de transição seja feita pelo Poder Legislativo. (Peixoto, 2018)
Nesses termos, ficará a cargo do julgador decidir sobre a aplicação temporal do precedente reformado. Para tanto, no que tange a casos semelhantes em geral, deverá levar em conta a relevância jurídica daquele precedente, a jurisprudência formada em seu entorno, e sua influência sobre as condutadas assumidas na sociedade. Diante disso, poderá modular a aplicação temporal da nova norma-precedente, seja de forma retroativa aos casos concretos já realizados ou se somente alcançará casos futuros.
Já no que tange ao caso sub judice, o julgador deverá considerar o quanto aquele precedente reformado foi determinante para que o jurisdicionado assumisse a posição no litígio. Essa informação será extraída dos autos, a partir do exercício do contraditório, e demandará fundamentação específica do julgador na ponderação das razões da reforma com o princípio da segurança jurídica.
Por fim, como meio de solucionar a problematização em torno da modulação dos efeitos emerge a técnica denominada de signaling, por meio da qual “o tribunal, percebendo a desatualização de um precedente, anuncia que poderá modificá-lo, fazendo com que ele se torne incapaz de servir como base para a confiança dos jurisdicionados.’ (DidierJr., 2015, p.505).
Por meio deste procedimento, o julgador já delimita a modulação temporal dos efeitos para quando aquele precedente vier a ser efetivamente superado. Entende-se que tal técnica encontra-se em perfeito consonância ao ordenamento jurídico brasileiro, ao passo que, inclusive, condiz com os deveres de integridade e coerência atribuída ao judiciário.[16]
Ademais, o uso do signaling pode intensificar os debates na sociedade sobre o precedente que virá a ser revogado, arrecadando argumentos para a manutenção do entendimento ou sua superação. Ademais, podem ser realizadas audiências públicas, com ampla participação, nos termos do art. 927, §2º, do Código de Processo Civil.
CONCLUSÃO
Em razão das diferentes decisões proferidas sobre casos semelhantes, o Direito brasileiro, a partir do Código de Processo Civil de 2015, buscou como solução o uso do sistema de precedentes como forma de garantir maior Segurança Jurídica ao Poder Judiciário. Para tanto, após a pesquisa realizada para formação do presente estudo, restou claro que o uso dos precedentes adequa-se ao sistema normativo brasileiro, sem que este se transforme em um sistema de common law. Ou seja, o uso da norma-precedente como fonte de direitos não afasta a importância das demais normas (regras, princípios, etc.) para resolução dos casos concretos levados à jurisdição.
Por conseguinte, o manejo do precedente como forma de orientar as decisões judiciais reflete diretamente a previsão do artigo 927 do Código Processual Civil, ao passo que instrumentaliza os deveres jurisprudenciais de estabilidade, integridade e coerência.
Todavia, o uso dos precedentes deve atentar-se aos demais princípios que regem nosso ordenamento, bem como a dinâmica inerente ao sistema de precedente deve ser manejada de forma que não fira outros direitos dos jurisdicionados.
Desta forma, o procedimento do distinguishing atribui ao julgador o dever de aplicar o precedente do mesmo modo com que lidaria com outras fontes normativas. Assim, a figura do magistrado continua sendo essencial para manutenção da justiça. Ademais, a distinção, quando aplicada corretamente, traz maior Isonomia para as decisões judiciais, ao passo que casos semelhantes serão tratados de formas iguais pelo órgão julgador.
Quanto aos procedimentos de superação – overriding e overruling- tem-se que condizem com as características de mutabilidade e adaptação defendidas perante o Direito pátrio. Entretanto, devem ser limitados pela Segurança Jurídica em suas vertentes de previsibilidade, estabilidade e proteção da confiança.
Em virtude desses aspectos, conclui-se que a retroatividade não pode ser entendida como regra geral na superação dos precedentes, embora também não possa ser completamente afastada. Por isso, a modulação dos efeitos é medida que se impõe frente a cada superação realizada, de forma que o julgador realizará um exame individual em cada hipótese minorando os efeitos negativos resultantes.
Por fim, a técnica denominada signiling representaria a melhor das hipóteses frente a superação dos precedentes, uma vez que, de antemão, orientaria os jurisdicionados sobre a validade daquela norma-precedente. Todavia, esse instrumento mostra-se ainda muito incipiente em nosso ordenamento, visto que vindicaria uma reformulação de todo o sistema judiciário a ponto de permitir e exigir dos magistrados uma maior dedicação em cada decisão.
REFERÊNCIAS
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*Autor: Matheus Guelber Correa. Graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Pós-Graduando em Advocacia Tributária pela Escola Brasileira de Direito – EBRADI. Pós-Graduando em Direito Empresarial pela Legale Educacional.
[1] MENDES, Conrado Hübner. Onze ilhas. 01 de fevereiro de 2010. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0102201008.htm>. Acesso em: trinta de outubro de 2018
[2] CAMBI, Eduardo. (2001). Jurisprudência Lotérica. São Paulo: Revista dos Tribunais.
[3] STREK, L. L. (20 de Setembro de 2018). STF alerta sobre o uso estratégico do Direito por juízes e promotores. Acesso em 30 de outrubro de 2018, disponível em Conjur: https://www.conjur.com.br/2018-set-20/senso-incomum-stf-alerta-uso-estrategico-direito-juizes-promotores
[4] “Muito ao contrário, o que se tem no Brasil é a construção de um sistema de formação de decisões judiciais com base em precedentes adaptados às características de um ordenamento de civil law” (Câmara, 2017)
[5] “Só são assim consideradas aquelas decisões em que é possível estabelecer um fundamento determinante que será observado, posteriormente, com caráter vinculante ou meramente persuasivo, na formação da decisão a ser proferida em um caso subsequente.” (Câmara, 2017)
[6] Enunciado n. 315 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Nem todas as decisões formam precedentes vinculantes.”
[7] DidierJr., F. (2015). Curso de Direito Processual Civil. Salvador: JusPodivm. p.45
[8] Enunciado n. 315 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: Os tribunais poderão sinalizar aos jurisdicionados sobre a possibilidade de mudança de entendimento da corte, com a eventual superação ou a criação de exceções ao precedente para casos futuros.
[9] GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: O Processo Justo. Disponível na Internet: <http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15708-15709-1-PB.pdf> . Acesso em 30 de outubro de 2018
[10] Enunciado n. 316 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: A estabilidade da jurisprudência do tribunal depende também da observância de seus próprios precedentes, inclusive por seus órgãos fracionários.
[11] Enunciado n. 166 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: A aplicação dos enunciados das súmulas deve ser realizada a partir dos precedentes que os formaram e dos que os aplicaram posteriormente.
[12] Enunciado n. 455 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: Uma das dimensões do dever de coerência significa o dever de não contradição, ou seja, o dever de os tribunais não decidirem casos análogos contrariamente às decisões anteriores, salvo distinção ou superação.
[13] Dimensioni del precedente giudiziario”. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile. V.48,n 2. Milão: Giuffré,1994
[14] CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais: Teoria e Dinâmica. Rio de Janeiro: Forense, 2016, 1. Ed., pp 116
[15] Enunciado n. 55 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: Pelos pressupostos do § 3º do art. 927, a modificação do precedente tem, como regra, eficácia temporal prospectiva. No entanto, pode haver modulação temporal, no caso concreto.
[16] Enunciado n. 320 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: Os tribunais poderão sinalizar aos jurisdicionados sobre a possibilidade de mudança do entendimento da corte, com a eventual superação ou a criação de exceções ao precedente para casos futuros.
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