INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca contribuir para o debate sobre as inovações no processo de execução promovidas pela Lei 11382/06 fazendo um cotejo entre a nova redação do art. 649 do CPC e a teoria desenvolvida sobre a discricionariedade judicial no âmbito da teoria geral do direito.
Sabe-se que a previsão de impenhorabilidade de bens, que desce a minúcias nos incisos do art. 649 do CPC, tem por fim limitar o amplo campo de discricionariedade judicial, já que , ao invés de esmiuçar as hipóteses, o código poderia formular apenas uma cláusula aberta em que, por exemplo, afirmasse que “são absolutamente impenhoráveis todos os bens necessários a uma existência digna”. Nesse caso, abrir-se-ia margem a extensa discussão sobre o conceito e amplitude de “existência digna” e poder-se-ia aguardar que a solução fosse dada em cada caso concreto, pela ponderação dos interesses e valores em jogo. Tal, porém, não foi o caso, conforme se vê na redação do artigo sob análise.
Para atingir o objetivo proposto de discussão do tema, divide-se o trabalho em duas partes, sendo ao final expostas as conclusões. Na primeira, estudam-se as cláusulas abertas, os conceitos jurídicos indeterminados e a existência ou não de discricionariedade judicial. Em seguida, analisam-se as alterações promovidas no âmbito do art. 649 do CPC. No final, são apresentados os resultados da análise empreendida.
DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL, CLÁUSULAS ABERTAS E CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS
Além de descrever uma situação em caráter abstrato e genérico, a lei é constituída por elementos prescritivos que precisam ter seu conteúdo esclarecido. Até mesmo a mera dicção legal, em si, é formada por um conjunto de símbolos (nomes e predicadores), os quais são, muitas vezes, vagos e ambíguos. É essa indeterminação semântica que constitui os conceitos jurídicos indeterminados.
Karl Engisch (1979, p.173) define os conceitos jurídicos indeterminados como “ um conceito cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos”. Faz, assim, a oposição entre os conceitos jurídicos determinados e indeterminados, apresentando, ainda, a noção de cláusula geral. Esta consiste na cláusula que procura evitar a elaboração casuística das hipóteses legais. Trata-se de um expediente utilizado pelo legislador para abranger em uma formulação, em termos genéricos, um expressivo número de casos a um determinado tratamento jurídico. O autor conceitua a cláusula geral como “ uma formulação da hipótese legal que, em termos de grande generalidade, abrange e submete tratamento jurídico a todo um domínio de casos” (ENGISCH, 1979, p. 189).
As cláusulas gerais, desta forma, constituem em formulações legais de caráter genérico e abstrato, com natureza de diretriz, cujos valores serão preenchidos pelo juiz na análise do caso concreto. Têm a função de dotar o Código de maior mobilidade, mitigando regras mais rígidas. Ademais, têm função de integração dos diferentes princípios e direitos adotados em nossa sociedade pluralista, consistindo na possibilidade de o juiz aplicar a lei com ampla liberdade axiológica, ponderando os interesses em conflito no caso concreto. Têm, ainda, função de instrumentalizar as normas jurídicas aos fins teleologicamente considerados pelo legislador.
Segundo Judith Martins Costa (2000) , as cláusulas gerais[1], mais do que um “caso” da teoria do direito pois revolucionam a tradicional teoria das fontes – constituem as janelas, pontes e avenidas dos modernos códigos civis. Isto porque conformam o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos, ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos meta-jurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo. Prossegue a autora afirmando que a cláusula geral constitui uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, de forma proposital, uma linguagem de tessitura “aberta”, “fluida” ou “vaga”. Esta disposição é dirigida ao juiz que diante do caso concreto, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas, que poderá fazer uso de elementos que estejam fora do sistema, o que evidencia a importância da fundamentação das decisões.
Em relação aos conceitos jurídicos indeterminados, Tércio Sampaio Ferraz Júnior distingue os conceitos indeterminados (derivados da vagueza) dos conceitos valorativos (decorrentes da ambigüidade). Para o autor, nos conceitos jurídicos indeterminados, não é possível, de antemão, determinar-lhes a extensão denotativa, enquanto nos conceitos valorativos não é possível a determinação da extensão conotativa (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p.316). A doutrina em geral, contudo, engloba os dois conceitos na mesma hipótese, cuidando tanto dos casos de vagueza quanto dos de ambigüidade. Assim, por exemplo, a expressão vaga “perigo iminente” e a ambígua “mulher honesta” são igualmente consideradas, devendo o juiz precisar o seu conceito com o auxílio das máximas de experiência.
Tal discussão prévia sobre a distinção[2] entre os conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas abertas é essencial para o entendimento do que seria a discricionariedade judicial. A discricionariedade se caracteriza por uma faculdade (facultas) − portanto concedida por lei − do aplicador do direito para escolher, dentre uma pluralidade de meios – também possibilitados pela lei – o alcance do fim que direciona o interesse da Administração.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello (2001) , o fundamento da discricionariedade reside no intento de se cometer à autoridade o dever jurídico de buscar identificar e adotar a solução apta a, no caso concreto, satisfazer de maneira perfeita a finalidade da lei, bem como reside na contingência prática de servir-se de conceitos pertinentes ao mundo do valor e da sensibilidade, os quais são conceitos chamados vagos, fluidos ou imprecisos.
Grande é a controvérsia na doutrina sobre a existência de discricionariedade judicial. Neste aspecto, convém ressaltar a controvérsia Hart X Dworkin que remonta ao tema. Para Hart o direito normativado deve responder a todas as questões juridicamente suscitadas. Se não puder resolver, o magistrado usa seu poder discricionário e cria o direito aplicável ao caso[3]. Essa liberdade de criação é muito criticada na teoria de Hart e justamente neste ponto a teoria do Ronald Dworkin surge como forma de resgate do direito no sentido de trazer de volta seu conteúdo de alcance às normas não positivadas, através da compreensão que existem princípios e dentre a análise destes é que deve surgir o direito a ser aplicado, estando a solução interna ao direito. Surge, então, a figura do juiz Hércules e da única resposta correta[4].
A existência de uma discricionariedade judicial é repudiada vivamente por Eros Roberto Grau, para quem o juiz, sempre que interpreta um texto legal, pratica atividade vinculada: Para ele, o que se tem denominado de discricionariedade judicial é poder de criação de norma jurídica que o intérprete autêntico exercita formulando juízos de legalidade (não de oportunidade). A distinção entre ambos esses juízos, ainda segundo o autor, encontra-se em que o juízo de oportunidade comporta uma opção entre indiferentes jurídicos, procedida subjetivamente pelo agente; o juízo de legalidade é atuação, embora desenvolvida no campo da prudência, que o intérprete autêntico desenvolve atado, retido, pelo texto normativo e, naturalmente, pelos fatos. (GRAU, 2002, p. 189)
Sobre a discricionariedade judicial, destaca Barbosa Moreira (1988) que o preenchimento dos conceitos vagos existentes na lei para a sua aplicação não se confunde com discricionariedade: o ponto convergente está em que somente a particularidade de que ao papel confiado à prudência do aplicador da norma não se impõem padrões rígidos de atuação. A diferença é que os conceitos indeterminados integram a discrição do ‘fato’, ao passo que a discricionariedade se situa toda no campo dos efeitos.”
AS ALTERAÇÕES NO ART. 649 DO CPC EMPREENDIDAS PELA LEI 11382/06
As discussões empreendidas no item anterior são importantes porque a discriminação das hipóteses de impenhorabilidade no CPC tem por objetivo a diminuição da possibilidade de discricionariedade judicial – para quem entende-a existente – ou mesmo a limitação da interpretação judicial. Contudo, essa limitação é menos rígida do que parece, pois continua deixando espaço aos conceitos indeterminados, conforme se verá a seguir.
Inicialmente, cumpre frisar que a Lei 11382 não alterou o inciso I do art. 649 CPC, remanescendo como impenhoráveis os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução. Neste inciso inserem-se, por exemplo, os bens públicos de uso comum, que são inalienáveis, bem como aqueles assim declarados por ato voluntário, como exemplo a doação.
A lei, contudo aprimorou a redação dos demais incisos, quer retirando hipóteses, quer alterando seu conteúdo, quer acrescentando novas. O texto, assim, não mais prevê a impenhorabilidade das provisões de alimento e de combustível, necessárias à manutenção do devedor e de sua família, durante um mês, do anel nupcial e dos retratos de família, bem como os equipamentos dos militares. As modificações, contudo, não levam à penhorabilidade dos itens, mas devem-se à incorporação em outros incisos, bem como a melhoria e adaptação da redação aos tempos atuais[5].
O inciso II do art. 649, com a redação dada pela lei 11382/06 prevê a impenhorabilidade dos móveis, pertences e utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida.
Com tal redação, o inciso resolve antigas celeumas doutrinárias e jurisprudenciais pertinentes à impenhorabilidade de certos móveis e utilidades domésticas de elevado valor. É claro, porém, que há grande espaço de discricionariedade a ser preechido pelo juiz, o que é ínsito a todas as hipóteses em que se está diante de conceitos jurídicos indeterminados.
O inciso III, também com redação alterada, prevê a impenhorabilidade dos vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor, não fixando parâmetros para o que seja tal “elevado valor”.
O novo inciso IV, reuniu o conteúdo dos antigos inciso IV e VII do art. 649 do CPC e melhorou sua redação ao prever a impenhorabilidade dos vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal.
Neste ponto, porém, a Lei 11382 perdeu uma ótima oportunidade para resolver um antigo problema sempre lembrado pela doutrina[6], no sentido da possibilidade de penhora dos altos salários. O projeto originário previa a exceção em seu §3º: O parágrafo citado[7], contudo, foi vetado pelo Presidente da República, sob o fundamento de que a questão deveria ser mais aprofundada pelo debate público. Tal veto, porém, não impede que o Juiz, adotando a técnica de ponderação de valores[8], estabeleça limite à impenhorabilidade.
Por outro lado, a lei, ao estabelecer no inciso X a impenhorabilidade, até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, da quantia depositada em caderneta de poupança, resolveu outra situação sempre enfrentável na prática, relativa aos investimentos feitos pelo devedor após o recebimento de sua remuneração em conta corrente. Porém, o § 2o do mesmo dispositivo legal prevê que a exceção prevista no inciso IV não se aplica no caso de penhora para pagamento de prestação alimentícia.
O inciso V do mesmo artigo, ao tratar da da impenhorabilidade dos livros, máquinas, ferramentas, utensílios, instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão manteve o conteúdo anterior, aprimorando-o.
Sobre o tema, Rodrigues Pinto (2006), ainda comentando a redação anterior, chamava a atenção para o fato de que o discernimento sobre o que seja a exato alcance desse dispositivo é bastante delicado. Sendo o dispositivo genérico, fica a cargo da sensibilidade jurídica do observador definir a distinção entre os muitos instrumentos que podem facilitar ou serem necessário a determinado tipo de trabalho. Mais uma vez, portanto, está-se diante da amplitude da interpretação judicial.
No inciso VI, a Lei 11382/06, manteve a mesma redação do anterior inciso IX do art. 649 do CPC, ao tratar da impenhorabilidade do seguro de vida. Neste ponto, há que se destacar, como faz Manoel Antônio Teixeira Filho (2005) que a impenhorabilidade não é do dinheiro recebido pelos beneficiários indicados pelo devedor falecido e sim da expectativa ao recebimento oportuno da soma pela qual se obrigou a companhia seguradora. Assim, caso o segurado tenha falecido e o dinheiro sido entregue ao devedor-beneficiário, tal soma, tendo sido incorporada ao patrimônio econômico do devedor, poderá ser penhorada. Outrossim, não só a quantia recebida pelo devedor, como beneficiário, escapa da previsão de impenhorabildiade, como também a soma que a seguradora já deve, porquanto o direito a receber está no patrimônio do beneficiário
A previsão do inciso VII, sobre a impenhorabilidade dos materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas já era constante do art. 649 do CPC. É importante destacar, com faz Teixeira Filho (2005) que os materiais somente são impenhoráveis em virtude de sua destinação. Assim, se eles não se destinarem à obra, ou dela se encontrarem separados, por não mais serem necessários, poderão ser penhorados.
No inciso VIII a lei prevê a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, o que não altera muito a dicção anterior. O importante, contudo, é a ausência da exceção da hipoteca para fins agropecuários, que foi banida. A nova redação, assim, não permite a execução da pequena propriedade rural em face de dívidas agropecuárias, salvo no que tange à expressa previsão do §1º do mesmo dispositivo, ou seja, a impenhorabilidade não é oponível à cobrança do crédito concedido para a aquisição do próprio bem.
Por fim, o que pode ser considerada a grande novidade da Lei 11382/2006 é a impenhorabilidade dos recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A abordagem empreendida neste artigo permite lançar luzes sobre a discussão relativa às clausulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados para tentar responder ao questionamento se existe ou não a discricionariedade judicial.
Se o direito fornece a moldura dentro da qual poderá o julgador se mover, ou se, ao contrário, existe uma única resposta correta, o fato é que essa discussão teórica tem muita relevância para efeito de fixação do campo de atuação do juiz mesmo em hipóteses essencialmente técnicas e processuais, como é a hipótese ora sob análise..
Assim, a previsão de impenhorabilidade de bens inserta no art. 649 do CPC, embora redigida com o objetivo de minimizar as controvérsias pertinentes ao tema, não exclui o recurso à amplitude interpretativa do julgador e nem faz o fechamento do sistema, remanescendo vários pontos a serem preenchidos pelo julgador.
Juíza do Trabalho Substituta (TRT 20ª Região), Professora Assistente da UFS, Coordenadora e Professora da Pós-Graduação em Direito do Trabalho (TRT 20ª Região/UFS), Especialista em Direito Processual pela UFSC, Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela UGF, Doutora em Direito Público pela UFBA.
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