A distribuição do ônus da prova no processo do trabalho brasileiro

A distribuição do ônus da
prova em matéria trabalhista é uma questão que
encontra-se sempre presente em calorosas discussões acadêmicas e de
inarredável conseqüência prática na seara dos tribunais pátrios.

Decerto, em face da suma importância da atividade
probatória das partes litigantes, como elemento principal para a formação do
convencimento do julgador, esse tema há de merecer, sempre, amplo destaque,
nunca sendo  escusado trazê-lo novamente
à baila.

O jurista Evaristo de Moraes Filho, em certo momento
de sua obra, chegou a concluir, acerca deste tema, que  “Muitas são as teorias a respeito, mas que
assim mesmo não chegam, nem de longe, para esgotar a multiplicidade exuberante
dos casos concretos, que desafiam a percuciência dos juristas mais aplicados”.[1]

De início, cumpre-nos identificarmos o conceito do
termo “ônus” da prova, o qual, desde já salienta-se, remonta à antiguidade
clássica, havendo sido pela primeira vez mencionado no Direito Romano.

Ônus, no sentido jurídico atribuído ao termo, é uma
situação de compulsão, de necessidade da parte, no processo, praticar
determinado ato. Difere de obrigação, na abalizada opinião de Arruda Alvim, na
medida em que esta “pede uma conduta cujo inadimplemento ou cumprimento traz
benefícios à parte que ocupa o outro pólo da relação jurídica”
sendo que
“havendo omissão do obrigado, ele será ou poderá ser coercitivamente obrigado
pelo sujeito ativo”,
ao passo que naquele (no ônus) “ o individuo que
não o cumprir sofrerá pura e simplesmente as conseqüências negativas do
descumprimento, que recairão sobre ele próprio”.[2]

Assim, ao largo de um determinado processo
judicial, as partes (autor, réu e terceiros intervenientes) têm via de regra,
uma vasta gama de ônus processuais, os mais diversos, tais como o ônus de
recorrer e o de contestar, bem como  –
aquele que ora nos interessa – o ônus da prova.

O ônus da prova, especificamente, toca à
necessidade daquele que alega os fatos, de provar as suas alegações, sob pena
de – não o fazendo – correr o risco de ter a demanda julgada contra si.

Na seara do Direito Processual Civil, a teor do que
dispõe o artigo 333 do Código de Ritos, o ônus da prova incumbe ao autor,
quanto ao fato constitutivo do seu direito e ao réu, quanto à existência do
fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Essa distribuição do ônus da prova, esposada na
regra do citado artigo 333 do CPC, como muito bem compreendido pelo mestre
Arruda Alvim [3],
encontra seu fundamento, sua razão de ser, em dois princípios informadores do
Processo Civil pátrio, quais sejam: a) o princípio da igualdade, que
prega a equivalência de posição dos litigantes; b) o princípio, por ele
nomeado, da “auto responsabilidade dos litigantes”, que, segundo o
autor, decorreria desta  situação de
isonomia dos litigantes, acarretando-lhes o dever de suportarem as
conseqüências danosas de sua omissão

Transpondo-se, porém, o foco da questão para o
Direito adjetivo do trabalho, pode-se notar que o legislador celetista cunhou
regra diversa no que tange à distribuição do ônus probandi  no contexto da reclamatória trabalhista.

Deveras, consta no artigo 818 do compendio da
legislação do trabalho brasileira que “a prova das alegações incumbe à parte
que as fizer”.

Dita regra legal, ao contrário do que chega a
afirmar parte da doutrina,  distancia-se
sobremaneira do sistema processual comum, mormente quando analisado seus
efeitos casuisticamente [4].

Resta, portanto, saber se, frente a um caso
concreto posto à cognição do Juiz do trabalho, deve sobrelevar a regra
específica prevista no artigo 818 da CLT ou se deve haver a prevalência da
disposição contida no artigo 333 do CPC, reconhecidamente mais completa do que
aquela.

É a resposta desta indagação, objeto de tanta
celeuma doutrinária e jurisprudencial, gerando posições colidentes e contraditórias,
que se pretende obter no presente artigo.

Ab initio, é de se atentar para o fato de
que o Direito Processual Comum, conforme previsão expressa do legislador
celetista, é fonte subsidiária do Processo Trabalhista (art. 769 da CLT [5]).

Esta aplicação secundária das disposições contidas
na legislação processual comum no ramo específico juslaboral não é, porém,
absoluta, encontrando, ao revés, limites expressos no próprio dispositivo legal
que a permite.

É que o citado artigo 769 da Consolidação condiciona
a aplicação subsidiária das normas de processo comum ao rito trabalhista, desde
que
haja omissão da CLT e ainda desde que o dispositivo comum a ser
“incorporado” ao processo trabalhista não seja incompatível com as normas deste
(princípio da adequação).

Cumpre-nos salientar, por oportuno, que a
necessária compatibilidade do preceito a ser “incorporado” ao Processo
trabalhista deve se dar com as “normas” deste ramo, aqui compreendidas as regras
e os princípios peculiares desse ramo específico do Direito, conforme
lição clássica de Dworkin [6].

No caso específico ora em análise, temos que – no
que tange à distribuição do ônus da prova – inexistem ambos os requisitos
exigidos pelo legislador celetista para a aplicação subsidiária do disposto no
artigo 333 do CPC ao processo do trabalho.

Isto porque omissão normativa da CLT inexiste.
Tampouco pode se vislumbrar o segundo requisito, da compatibilidade da regra
cunhada no artigo 333 do CPC com os princípios inerentes ao Processo laboral
pátrio.

À toda evidência, o Código de Processo Civil
brasileiro, ao dispor sobre a distribuição equânime do ônus da prova em seu
artigo 333 – estatuindo competir ao autor a prova dos fatos constitutivos de
seu direito e ao réu a prova dos fatos extintivos, impeditivos e modificativos
do direito do autor – partiu, como já salientado, de um pressuposto de
igualdade formal dos litigantes, igualdade esta que não pode ser transposta
para a seara do
Direito trabalhista, onde notadamente reina o desequilíbrio
de forças entre o patrão – detentor dos meios de produção e o empregado, por
natureza hipossuficiente.

Tampouco cabe transpor para a esfera trabalhista o
segundo fundamento de existência do modelo de distribuição equânime do ônus da
prova no processo civil (mencionado por Arruda Alvim, conforme exposto em
linhas acima) qual seja o princípio da “auto-responsabilidade dos
litigantes”
.

Isso porque na esfera do Direito Trabalhista, tanto
material quanto processual, vigora o superprincípio da Proteção, ligado ao
caráter eminentemente tuitivo que permeia essa ramo específico da ciência
jurídica.

O caráter tutelar do Direito laboral, deste modo,
afasta a pretensa incidência do princípio da auto-responsabilidade dos
litigantes em sede de distribuição do ônus da prova no processo do trabalho,
não podendo simplesmente imputar-se ao ser obreiro – na mais das vezes
hipossuficiente – todos os reveses decorrentes de sua omissão em produzir
determinada prova constitutiva do seu direito, sob pena de, com isso, contraria
os próprios fundamentos de existência deste ramo peculiar do Direito.

Noutro giro, a Consolidação das Leis trabalhistas,
ao tratar da questão do ônus da prova, trilhou seus próprios rumos, dispondo,
ainda que de forma simplória, que a prova da alegação incumbe à parte que a
fizer.

É justamente essa simplicidade (que não se confunde
com “omissão”) de tratamento do tema pelo direito laboral que faz com que parte
da doutrina entenda pela aplicação subsidiária do preceito contido no artigo
333 do CPC, indo, como visto, de encontro ao princípio da adequação, que
regula a possibilidade de aplicação subsidiária de norma comum na seara
trabalhista (art. 8°, parágrafo único da CLT e artigo 769 da CLT)

Resta, nada obstante, evidenciada a impossibilidade
de o julgador se valer, no caso concreto, da aplicação subsidiária das normas
processuais de distribuição do ônus da prova presentes no CPC, ao arrepio da
disposição específica contida no artigo 818 e de encontro com os princípios
reitores do processo trabalhista.

Ao revés, deve sim o Magistrado observar esta regra
peculiar expressa na CLT, sendo que, se ( e apenas se) ela se mostrar
insuficiente para a solução do caso concreto, deverá recorrer a princípios
específicos, peculiares à ciência juslaborativa, quais sejam a) princípio da
melhor aptidão para a prova
e b) princípio (regra) da pré-constituição
da prova.

Pelo Princípio da melhor aptidão para a prova,
será detentor do ônus da prova aquele que, no caso concreto, demonstrar estar
mais apto a ministrar a prova do fato ao juízo. Já pelo Princípio (regra) da
Prova pré-constituída
, imputar-se-á o ônus da prova àquele que não observou
determinada formalidade prevista em lei, como é o caso previsto no Enunciado
338 do TST, de necessidade de anotação dos cartões de ponto.

Nesse sentido é a conclusão extraída por Manoel
Antônio Teixeira Filho, no que é seguido por Marcio Túlio Viana, para quem, no
caso de a norma simplista prevista no 818 da CLT não ser suficiente para solver
a matéria, deve o intérprete lançar mão, supletivamente – não da norma esculpida
no artigo 333 do CPC (por entender o autor ser esta incompatível com a CLT) – e
sim dos princípios da maior aptidão para a prova e da pré-constituição da
prova, que melhor se coadunam com o processo laboral.

A aplicação desses princípios peculiares se
justifica, como visto, por ter o Direito Material do trabalho, como
peculiaridade, o princípio Protetivo, que se alastra também para o direito
processual trabalhista, verdadeiro instrumento para aplicação daquele.

É justamente esse princípio protetivo, que permeia
o Direito trabalhista, que tem permitido, outrossim, à jurisprudência abrandar
o rígido traçado dessa divisão civilista do ônus da prova, invertendo-o, quanto
ao fato constitutivo cuja comprovação seja problemática para o obreiro em razão
de sua própria situação de subordinação jurídica.

Assim, modernamente, além do recurso aos princípios
da melhor aptidão para a prova e da pré-constituição da prova, outro mecanismo
tem sido posto à disposição do Juiz do trabalho para complementar o sentido do artigo
818 da CLT, quando este se mostre de aplicação insuficiente no caso concreto,
qual seja o recurso à inversão do ônus da prova, através da instituição de
presunções iuris tantum em desfavor do empregador-devedor.

É o que resta refletido na jurisprudência do
Enunciado 212 do TST, onde esse Colendo Tribunal estatuiu a presunção relativa,
favorável ao obreiro, de continuidade da relação de emprego, imputando ao
patrão-reclamado o ônus de provar o término do contrato de trabalho quando
negada for a prestação de serviço e o respectivo despedimento.

Também é o que se pode defluir da leitura do
Enunciado 338 e das Orientação Jurisprudencial n° 306 do TST [7].

Essa inversão do ônus da prova em favor do
empregado–hipossuficiente se mostra perfeitamente compatível com o caráter
tuitivo do Direito do trabalho, servindo como instrumento hábil a contornar a
situação endêmica de desequilíbrio de forças presente entre os sujeitos
principais da relação de emprego.

Outrossim, embora não haja previsão expressa na CLT
acerca da possibilidade de inversão do ônus da prova pelo Juiz do trabalho,
deve este valer-se da aplicação subsidiária do disposto no artigo 6°, VIII do
Código de Defesa do Consumidor – que estabelece a facilitação da defesa dos
direitos do consumidor, inclusive com a inversão do ônus da prova a seu favor,
quando a critério do juiz for verossímil sua alegação ou quando for ele
hipossuficiente – em atenção ao que permite o artigo 769 da CLT.

A toda evidência, o microssistema jurídico
representado pelo Direito Consumerista, baseia-se em pressupostos e fundamentos
semelhantes àqueles inerentes ao Direito Laboral, possibilitando assim o pleno
recurso da aplicação subsidiária de seus dispositivos na esfera trabalhista.

 

Bibliografia:

ALMEIDA, Isís de. “Teoria
e Prática das Provas no Processo Trabalhista”.
São Paulo: LTr, 1980.

MORAES FILHO, Evaristo. “A
justa causa na Rescisão do Contrato de Trabalho”
. São Paulo: LTr, 1996.

PINTO, Raul Moreira. “A
prova possível”.
Jornal da Associação dos Magistrados da Justiça do trabalho
da 3° Região. AMATRA III, ano n° 15, dezembro de 1996.

TEIXEIRA FILHO, Manoel
Antônio. “A prova no Processo do Trabalho”.São Paulo: LTr, 1991.

VIANA, Márcio Túlio. “Critérios
para a inversão da prova no processo do trabalho”
Revista LTr. São Paulo: v.58,
outubro de 1994.

 

Notas:

[1] MORAES
FILHO, Evaristo de. Obra citada. P. 254.

[2] ALVIM,
Arruda. Obra citada. P. 476.

[3]
ALVIM, Arruda. Obra citada. P. 481.

[4]
Uma pequena parcela de doutrinadores pátrios entende, equivocadamente, que
tanto a regra constante do artigo 333 do CPC quanto a constante do 818 da CLT,
em suma, dizem a mesma coisa, tendo o mesmo alcance e abrangência, não havendo
interesse maior na discussão acerca de qual das duas prevalece no Direito
Processual trabalhista. Essa posição, minoritária, não se sustenta, haja visto
ser a regra celetista, como veremos, eminentemente simplista, ao passo que a
regra do CPC é bem mais abrangente, surtindo efeitos assaz distintos quando da
análise do caso concreto. Nesse sentido, ver Manoel Antônio Teixeira Filho em
“A Prova no Processo do Trabalho”. São Paulo: LTr, 1991.

[5]
“Art. 769: Nos casos omissos, o Direito processual comum será fonte subsidiária
do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com
as normas deste titulo.”

[6]
Atribui-se a esse jurista a clássica divisão da norma jurídica em norma-regra e
norma-princípio.

[7]
Enunciado 338: REGISTRO DE HORÁRIO – INVERSÃO – ÔNUS DA PROVA. “A omissão
injustificada da empresa de cumprir determinação judicial de apresentação dos
registros de horário, importa em presunção de veracidade da jornada de trabalho
alegada na inicial, a qual pode ser elidida por prova em contrário”.

OJ 306: HORAS EXTRAS. ÔNUS DA PROVA. REGISTRO
INVARIÁVEL – Os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída
invariáveis são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova,
relativo às horas
extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo o horário da inicial se
dele não se desincumbir

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Victor Hugo Cabral

 

advogado, Pós-graduado em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

 


 

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