Resumo: O acesso à educação constitui-se em um dos fundamentos para a consolidação da democracia, ao fortalecer a capacidade dos indivíduos de participar de modo efetivo da tomada de decisões que os afetam e exercer o seu papel de cidadão ativamente na sociedade. O cidadão com melhor formação educacional tem maiores condições de conhecer e acessar outros direitos essenciais, de se desenvolver profissionalmente e mudar sua qualidade de vida e as condições culturais e materiais de sua comunidade. Por estes motivos, o acesso à educação tem sido cada vez mais debatido nas instancias globais reconhecido como um direito fundamental em vários países do mundo. No caso brasileiro, em particular, o direito à educação tem sido ampliado significativamente, desde a redemocratização do país, e protegido por um amplo aparato legal, condizente com a nossa realidade, mas ainda apresenta muitas lacunas a serem preenchidas.
Palavras-chave: educação, ensino, direitos fundamentais.
Abstract: Access to education constitutes one of the foundations for the consolidation of democracy, to strengthen the capacity of individuals to participate effectively in decision making that affects them and exercise their role as active citizens in society. Citizen with better educational background have better conditions to meet and access other essential rights, develop professionally and change your quality of life and cultural condition and your community materials. For these reasons, access to education has been increasingly debated in global instances recognized as a fundamental right in various countries of the world. In the Brazilian case, in particular, the right to education has been expanded significantly since the democratization of the country, and protected by a legal apparatus, consistent with our reality, although it still presents many gaps to be filled.
Keywords: education, teaching, fundamental rights.
Sumário: Introdução; O entendimento dos direitos universais; O direito fundamental à educação; A educação como direito subjetivo; A educação na ordem global; Direito à educação no Brasil; Considerações finais; Referências.
Introdução
Aqui não atentamos ao paradoxo comum no cerne do debate sobre os direitos universais: os direitos são universais, mas fundados em valores ocidentais. De fato, as declarações e os pactos sobre os direitos civis, sociais, políticos e econômicos têm sido adotados em todo o mundo a partir de uma linha ocidental dominante. Entretanto, esta discussão, embora relevante, não concentrará os esforços deste trabalho. No foco da nossa explanação está a consideração ao texto da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em 10 de dezembro de 1948 através da Resolução 217 da Assembleia Geral das Nações Unidas, que aponta como direito de todo e qualquer cidadão o acesso à educação em sua totalidade. Para atender a este princípio, os sistemas de ensino devem, além de manter a garantia de vagas, estabelecer qualidades para atender as necessidades e especificidades dos diferentes indivíduos e grupos sociais.
No Brasil, enquanto signatário da Declaração, as políticas públicas de universalização da educação básica apresentam avanços expressivos, apesar de ainda precisarem de maiores investimentos no sentido de garantir a igualdade de acesso e permanência a todas as crianças, adolescentes e jovens no ensino fundamental, secundário e superior. Nos sistemas estatais de ensino, essas bases ainda se mostram fragilizadas, mesmo após as conquistas acumuladas desde a década de 1990, quando avançamos na definição e regulamentação do direito à educação. Sua efetivação, em termos de garantia de acesso, permanência, qualidade e gratuidade, insistem em entraves de difícil arranjo. Por este motivo, deve ser papel comum a todos lutar pela efetivação da educação como um direito universal, assim como nos envolvemos, direta ou indiretamente, na promoção e defesa dos direitos humanos e na denúncia a sua violação.
As conquistas atuais não podem mascarar os problemas persistentes, nem mesmo ocultar os problemas do nosso passado. É que por muito tempo a educação não foi concebida como um direito fundamental em nosso país e o modelo educacional adotado nos períodos autoritários foi caracterizado pelo condicionamento do sujeito às técnicas de controle mediante o poder disciplinador do Estado. A disciplina, como anuncia Foucault (2004), constitui um processo de controle do corpo com o sentido de transformar o sujeito: o corpo marginal deve ser submetido e transformado em um corpo dócil através da disciplina. Para isto, as escolas, nos moldes das prisões, foram organizadas como instrumento de disciplina, de forma que o estudante era vigiado e controlado por todo tempo e por um sistema de ensino montado para torná-lo dócil. Entendia-se que a formação do sujeito ocorreria pela disciplina e pelo castigo, e não pela educação.
O entendimento dos direitos universais
Para chegarmos aos direitos universais, partiremos do pensamento grego do direito natural. Na Grécia Antiga, o universo e cada indivíduo eram concebidos como possuidores de uma natureza única, que determinava a sua finalidade. Por tudo estar unido em um mesmo cosmos (do grego κόσμος, ordem, organização, harmonia, termo que designa o universo em seu conjunto), o pensamento grego uniu a concepção de bem e de ética, de moralidade e legalidade. Posteriormente, já no Império Romano, o direito natural entrou em choque com as concepções teológicas. Diferente da religiosidade grega, que assemelhava deuses e humanos, na religiosidade romana o Deus soberano é o legislador absoluto e a legislação foi então gradativamente decomposta em um conjunto de mandamentos baseados nos preceitos bíblicos. A razão divina se sobrepõe à moral humana, e neste intento, a lei divina, interpretada pela Igreja, tornou-se superior à lei do Estado.
Em outro momento histórico, com a ascensão da burguesia, a vida moderna fez surgir um novo direito, a partir da divisão do direito natural, pondo em lados opostos as leis da natureza e as leis humanas (da igreja e do Estado), inspirando o pensamento liberal com a possibilidade de resistência pública às leis estatais. Em períodos subsequentes da história moderna essas leis foram frequentemente confrontadas, ora prevalecendo as imutáveis leis naturais, ora as leis humanas da igreja e do Estado.
Mais recentemente, logo após Segunda Guerra Mundial, durante o julgamento de Nuremberg, criminosos de guerra usaram como álibi o argumento de que agiram seguido as leis do Estado, ou seja, dentro dos limites do conjunto de regras do nazismo. Para conter este fato, o tribunal precisou justificar que o extermínio de judeus violou o direito consuetudinário e os princípios de civilidade. Com isso, o tribunal reconheceu a existência de uma hierarquia dos direitos naturais sobre as leis nacionais, o reconhecimento de valores humanos acima dos direitos internos do Estado, ou seja, o estabelecimento de princípios jurídicos universais que devem prevalecer em todas as sociedades sobre as leis nacionais.
O julgamento de Nuremberg é lembrado aqui pelo seu caráter emblemático, porque marca este reconhecimento de que o direito do Estado não pode suplantar os direitos dos cidadãos, mas sim garanti-los. A escolha da cidade de Nuremberg foi um recurso estrategicamente simbólico, isto porque lá foram aprovadas as chamadas “Leis de Nuremberg”, aprovadas em 1935 no auge do regime nazista, um aparato normativo que representava fielmente a vontade de Hitler com leis para o confisco de bens, a esterilização, a tortura, a pena de morte, os experimentos com seres humanos, tudo praticado de forma regular pelos membros do Terceiro Reich, sob o comando do Füehrer, com o pleno emprego de toda a estrutura burocrática estatal.
A banalidade do mal, expressão cunhada por Hannah Arendt (1999), é o termo mais apropriado para tipificar essa prática comum de atos de crueldade sem qualquer questionamento e protegido pelo regime legal vigente. O que o líder ordenava era lei e deveria ser obedecida cegamente por todos os que estivessem sob suas ordens. Com o fim da Guerra, os países vencedores instituiram na cidade de Nuremberg um tribunal efémero para julgar as barbáries praticadas pelos nazistas.
Construindo este histórico, lembramos Bobbio (2004) quando declara que os direitos humanos nasceram como direitos naturais, depois se desenvolveram como direitos positivos particulares, sendo só então incorporados por cada constituição nacional e finalmente transformados em direitos positivos universais. Nesse sentido, o autor acrescenta que os direitos reconhecidos nas declarações atuais se multiplicaram e se tornaram, inclusive, direitos diversos entre si, o que impossibilita hoje a defesa de um fundamento único dos direitos humanos, mas demonstra a existência de diferentes fundamentos, cujas boas razões se deseja defender. Agora, resume o autor, o problema fundamental em relação e esses direitos não é tanto justificá-los, e sim protegê-los. Trata-se, portanto, de um problema político.
É neste sentido que compreendemos aqui os direitos universais, nos quais se inclui a educação, como um conjunto de direitos fundamentais e inerentes a todos os seres humanos, independente de etnia, credo, classe ou qualquer outro estrato social, sendo formado por conceitos mutáveis que compreendem os avanços, aos quais as sociedades acompanham, e as variações culturais, sempre no sentido de garantir as liberdades e com o atilamento de que através do acesso à educação se dá o processo de aperfeiçoamento desses direitos, na medida em que os indivíduos se tornam mais capacitados a reconhecer e exigir as garantias do Estado na proteção dos seus direitos e na crítica às violações dessas garantias fundamentais. Assim percebemos a educação como direito universal numa concepção kantiana de dignidade da pessoa como um fim em si, o que nos leva à condenação das práticas de aviltamento da pessoa à condição de dependente, e paralelamente à defesa do desenvolvimento do sujeito crítico, reflexivo e autônomo, inteirado em sua realidade e participante da sociedade enquanto cidadão pleno.
O direito fundamental à educação
Por fundamental, no sentido real do termo no campo jurídico, compreendemos tudo o que serve de fundamento, o que é necessário e essencial. Neste sentido, o direito fundamental representa o mínimo necessário à existência humana, de modo a garantir uma vida digna, de acordo com os princípios da dignidade da pessoa humana. Os direitos fundamentais abarcam toda uma perspectiva histórica e social, e por isso se envolvem de uma imensa complexidade na busca por um fundamento absoluto que possa respaldá-los, garantindo o seu correto cumprimento de maneira universal. Como ressalta Bobbio (2004), precisamos considerar que há uma mutabilidade temporal nos direitos fundamentais, já que as condições históricas e sociais determinam as necessidades e interesses da sociedade. Por serem direitos relativos, não adquirem a imputação de um fundamento absoluto. Porém, a busca pelo fundamento absoluto, presente na história dos direitos fundamentais, é uma tese intrínseca em sua defesa, servindo de respaldo na garantia de sua aplicabilidade.
São considerados fundamentais os direitos inerentes à pessoa humana e que trazem consigo as qualidades da disposição à universalidade, à irredutibilidade e à inalienabilidade. Neste sentido, certamente a educação merece destaque como direito fundamental, inclusive pelo seu caráter imprescindível à formação do indivíduo no exercício dos seus direitos. Isto porque além de ser um direito social, a educação é também uma condição para usufruto dos demais direitos, despontando como um elemento principal na garantia dos direitos de cidadania.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Organização das Nações Unidas, declara a educação como direito de todos. A partir desta Declaração ocorreram muitas modificações no âmbito internacional no que diz respeito às garantias de acesso ao ensino em suas diferentes modalidades. Diversos países se tornaram signatários deste princípio estabelecendo ou ampliando o direito à educação em suas legislações nacionais, apesar de ainda haver alguns outros Estados que continuam violando de maneira drástica os direitos individuais e coletivos, não reconhecendo a educação como um bem fundamental ao seu cidadão. O artigo 26 da referida Declaração afirma que toda pessoa tem direito à educação, e esta deve ser gratuita, ao menos a correspondente ao ensino elementar fundamental.
Nesta afirmação, é desígnio de um Estado Democrático de Direito a garantia do acesso à educação como ferramenta essencial de sustentação da cidadania. A concepção deste direito tem aqui o sentido de direito natural, com validação proveniente de normas de caráter internacional; trata-se de direito essencial à manutenção da vida humana, amparado pelo princípio da dignidade inerente a ela. Enquanto direito fundamental, o direito à educação adquire uma efetividade prática quando positivado por uma legislação nacional, ou seja, enquanto os direitos do homem são aqueles oriundos da própria natureza humana, os direitos fundamentais são os vigentes em uma ordem jurídica concreta.
Na análise de Comparato (2001), a ordem jurídica não concebe apenas o direito formalmente constitucionalizado, proclamado por normas com valor constitucional formal, mas sim todo o aparato legal e normativo nacional, no qual se inclui o direito materialmente fundamental, presente nas leis aplicáveis do direito internacional, embora não positivadas constitucionalmente. Para o autor, os direitos fundamentais são os direitos do homem incorporados pela legislação nacional; são os direitos naturais positivados na Constituição, nas leis e nos tratados internacionais.
A educação como direito subjetivo
O direito subjetivo confere ao seu titular a faculdade de agir, em conformidade com a situação jurídica abstratamente prevista na lei, e de exigir de outro o cumprimento de um dever jurídico. O direito subjetivo se realiza na própria pessoa, opondo-se ao direito objetivo que ocupa uma vertente externa ao sujeito, mas a ele direcionado. O direito subjetivo é intitulado público quando decorrente de norma de caráter público, sendo imprescindível que o Estado o conceba e represente uma das partes do vínculo. Neste caso é assegurado ao titular, em abstrato, o exercício de um direito, estando este autorizado a exigir daquele que detém a obrigação jurídica a transposição desse direito potencial em realidade factível. Aqui a educação é vista como um direito subjetivo público.
O sujeito é o titular do direito. Já o objeto, que pode ter características materiais ou imateriais, é o bem jurídico sobre o qual o sujeito exerce a faculdade que lhe fora assegurada por lei. Aqui, a relação jurídica é o vínculo mantido entre o titular do direito subjetivo e aquele que tem a obrigação jurídica de cumpri-lo. Assim, não é possível falar em direito sem considerar a correspondente obrigação do outro, sendo este o elemento basilar da relação jurídica. Agora a educação é vista como uma obrigação do Estado.
Imaginado inicialmente sob um ponto de vista eminentemente privatista, onde os interesses individuais justificam a previsão normativa, o direito subjetivo não sofre mudanças alarmantes quando conduzido ao plano dos direitos sociais, pois quando conservada a sua essencialidade, possibilita assim a ampliação dos seus titulares. Em vez da sua aplicação de modo individual, tem-se então o seu exercício em uma dimensão coletiva. Neste contexto, o direito à educação, como direito individual ou como direito coletivo, elencado no rol do mínimo existencial, é perfeitamente concebido no grupo dos direitos subjetivos. Um direito subjetivo público de obrigação do Estado em sua oferta.
Como a educação não se limita ao ensino, não basta sua figuração como direito fundamental e sua incorporação aos tratados e convenções internacionais, e gradativamente nos ordenamentos jurídicos dos Estados, sendo preciso, não obstante, a ampliação desse direito com a adoção de políticas públicas adicionais, como a oferta de merenda, transporte, material escolar, infraestrutura básica e qualificação docente, sendo estes componentes indispensáveis à boa execução do ensino. Como percebemos aqui, a educação necessita do arrimo do Estado em sua oferta e manutenção, o que implica a imperiosa presença nos princípios regentes da atividade estatal por tratar-se de serviço público essencial, sendo indispensável o seu oferecimento de forma contínua e regular, nunca em nível inferior ao mínimo necessário.
A educação na ordem global
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, com os esforços para universalização dos direitos fundamentais, as ações para consagração do reconhecimento do direito à educação têm sido intensificadas através dos diversos tratados, contratos e acordos internacionais visando ao estabelecimento de uma pauta global de direitos do homem.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem contempla a educação como um direito básico do ser humano, carecendo de apoio e proteção permanentes e efetivos por parte dos Estados. Este foi um primeiro documento relevante na busca pela universalização deste direito. Anteriormente, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de abril de 1948, abonada pela IX Conferência Internacional Americana, realizada na cidade de Bogotá, estabeleceu que todas as pessoas têm direito à educação inspirada nos princípios da liberdade, moralidade e solidariedade humana. Este documento conclui que a educação deve ser ministrada gratuitamente, ao menos na formação primária.
Posteriormente, a Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em novembro de 1959, dispôs que a criança tem direito a receber uma educação gratuita e compulsória, ao menos no nível primário, por meio de um ensino que promova a cultura geral e capacite o educando, em condições de igualdade, para desenvolver suas aptidões, seu senso de responsabilidade e sua capacidade de emitir juízo. Na sequência, em dezembro de 1960, a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura condenou as formas de discriminação na educação e o cerceamento do acesso ao ensino. Ainda estabeleceu aos Estados o dever formular, desenvolver e aplicar políticas de promoção à igualdade de oportunidade no ensino e reforçou a necessidade de tornar obrigatório e gratuito o ensino primário.
O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aprovado na Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 1966, dispôs que os Estados, participantes do Pacto, concordam que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e fortalecer o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Também concordam que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos, além de promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. Concordam, ainda, em melhorar continuamente as condições materiais e de trabalho dos docentes.
O Protocolo de São Salvador, adotado pela Assembleia da Organização dos Estados Americanos em novembro de 1988, adicional ao Pacto de São José da Costa Rica, onde se realizou a Convenção Americana de Direitos Humanos de1969, reconheceu a importância de promover o ensino básico para as pessoas em idade regular e às que não tiverem recebido o ensino completo na idade apropriada, além do estabelecimento de programas de ensino diferenciados para os deficientes. Em seguida, a Convenção sobre os Direitos da Criança, realizada na Assembleia Geral das Nações Unidas, em novembro de 1989, aprontou que os Estados reconhecem o direito da criança à educação e se encubarão das seguintes providências: tornar o ensino primário obrigatório a todos e ofertado gratuitamente; estimular o desenvolvimento do ensino secundário, inclusive na forma profissionalizante; possibilitar o acesso ao ensino superior; e estimular a frequência e a redução da evasão escolar.
No mesmo sentido de valorização do ensino e universalização do acesso à educação, em 1990 ocorreu a Conferência de Jomtien, na Tailândia, que resultou na Declaração Mundial sobre Educação para Todos; e em 1994 a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura aprovou a Declaração de Salamanca. Ambas as declarações reforçam as necessárias providências estatais para a matrícula de todas as crianças nas escolas regulares. Mais recentemente, em dezembro de 2000, a União Europeia adotou a Carta dos Direitos Fundamentais, com o fim de conferir maior visibilidade aos valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano. A Carta determina o empenho dos Estados membros daquele bloco na concentração de esforços para que todas as pessoas tenham direito à educação e à formação profissional, com a possibilidade de cursar gratuitamente o ensino básico e obrigatório.
Notadamente, entendemos a frequente preocupação de organismos internacionais no estabelecimento de um entendimento global sobre a imperiosa aplicação e manutenção de esforços no desenvolvimento da educação pública. Entretanto, percebemos que, de um lado, a realização de tantas conferências com a elaboração de diversos documentos, sempre sinalizando para a importância da educação como direito inalienável do homem, representa a afirmação do efetivo reconhecimento da educação como direito universal inerente à vida humana. Por outro lado, essa necessidade constante de reafirmar a relevância da universalização da educação pode representar a dificuldade de estender esse valor a todas as sociedades contemporâneas. Por vezes, as intenções internacionais esbarram nos interesses de governos locais ou em crises das mais diversas ordens (políticas, econômicas, militares) que acometem alguns países. Contudo, persistindo nesta controvérsia, esbarramos no argumento de que o exercício dos direitos sofre as diversas influências e limites impostos pelo contexto econômico, político e cultural, e em alguns casos isto dificulta sobremaneira a sua universalização.
Esta interpretação, que considera a complexidade histórica e social, resulta de duas linhas: a da universalidade quanto ao objeto e a da universalidade quanto aos destinatários. Na primeira linha, da universalidade quanto ao objeto (os direitos), conjectura-se o amplo e irrestrito acesso aos direitos enquanto um bem inerente a todos, pela sua simples condição de ser humano. Na segunda, da universalidade quanto aos destinatários (os sujeitos) presume-se a legitimidade de todos os indivíduos à titularidade de portador de direitos, porém sem a concepção abrangente e infinita dos direitos. Neste último caso, compreende-se um rol mínimo de direitos comum a todos, no sentido de proteger a dignidade da pessoa em entendimento ao mínimo existencial, assumindo os direitos fundamentais individuais, sociais ou coletivos não como concorrentes, e sim complementares. E é com base nesta segunda linha que entendemos os direitos fundamentais, conferidos por leis nacionais, dentro das limitações e possibilidades do Estado, como direitos indivisíveis, atentando ao mínimo necessário e partindo daí para sua ampliação, não podendo ser suprimido, nem ser compensado, nem mesmo com a ampliação de outros direitos, devendo ser uma tarefa de interesse de todos os povos, acima dos limites e interesses nacionais, mobilizando toda comunidade global na defesa de sua execução.
Direito à educação no Brasil
No Brasil, a educação está diretamente relacionada aos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana. Arquitetado como um direito social na Constituição de 1988, a efetividade do direito à educação é imprescindível à própria salvaguarda das liberdades. A educação é necessária à proteção de um direito que o antecede na formação do Estado Democrático de Direito: a liberdade. Em nossa Constituição, a efetividade do direito à educação é reconhecida como um instrumento necessário à construção de uma sociedade livre, justa e solidária; à garantia do desenvolvimento nacional; à erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução das desigualdades sociais e regionais; e à promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Desde a primeira Constituição do país, a de 1824, durante o Império, foi declarada a oferta da instrução primária gratuita a todos os cidadãos, apesar do efeito desta garantia constitucional ter sido insignificante para a maior parte da população brasileira. Na Constituição republicana, de 1891, foi estabelecida a obrigação do Congresso em desenvolver as letras, as artes e as ciências, e ainda a criação de instituições de ensino secundário e superior nos Estados. A Constituição de 1934 dedicou todo um capítulo à educação e à cultura, onde estabeleceu a divisão de competências dos entes federativos, garantiu um percentual mínimo dos impostos a ser aplicado no sistema educativo e criou a obrigação de se manter fundos de educação. Na Constituição 1937 manteve-se um capítulo dedicado à educação e foram mantidos alguns preceitos da Carta anterior, permanecendo a obrigatoriedade e gratuidade do ensino primário. A Constituição de 1946, semelhantemente, manteve o sistema adotado na Carta anterior, consagrando a educação como direito de todos e assegurando sua obrigatoriedade no ensino primário. Sob a égide desta Constituição foi promulgada a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 4.024/61. A Constituição de 1967 também não introduziu modificações substanciais ao direito à educação, entretanto a Emenda Constitucional nº 1/69, acrescentou a possibilidade da intervenção dos Estados nos municípios que não cumprissem a exigência de aplicação anual de 20% da receita tributária municipal no ensino fundamental. Posteriormente, a Emenda Constitucional nº 24/83 alterou esse percentual para 25% para os municípios e os Estados, enquanto a União ficou com 13%.
Finalmente, com a Constituição de 1988 foi dedicada toda uma seção ao direito à educação. Cada ente federativo assumiu uma responsabilidade específica, incluindo a aplicação de um percentual mínimo da receita resultante de impostos na manutenção e no desenvolvimento do ensino. Entre os direitos sociais fundamentais elencados nesta Constituição, em seu artigo 6°, está o direito à educação. E o artigo 205 expressa que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração de toda a sociedade para o desenvolvimento da pessoa, o preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho.
De maneira notável, a Carta Magna conferiu um tratamento especial ao ensino obrigatório, destacando que, além de ser um dever do Estado, ainda está configurado com o porte de direito subjetivo da pessoa humana. Desta forma, torna-se exigível a sua ampla e irrestrita efetividade. Isto indica que, dentre as opções políticas estruturantes contempladas na Constituição de 1988, como destaca Garcia (2004), o direito à educação fundamental foi concebido como uma parte essencial para uma vida digna, integrando o que se chamar de mínimo existencial.
Neste compasso, o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90, repetiu os termos da Constituição e ampliou para as crianças e os adolescentes o rol de direitos previsto no texto constitucional. O Estatuto estabelece que a criança e o adolescente gozem de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando-se todas as oportunidades e facilidades a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Na mesma linha, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96 também reforçou as garantias de acesso ao ensino fundamental como direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, individualmente ou em grupo, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou qualquer outra instituição legalmente constituída acionar o Poder Público para exigi-lo. A referida Lei ainda determina que para garantir o cumprimento da obrigatoriedade do ensino, o Poder Público criará formas alternativas de acesso aos diferentes níveis de ensino, independente da escolarização anterior.
Para viabilizar o cumprimento do texto legal e alocar recursos destinados a este fim, uma medida especial do Governo Federal e do Congresso Nacional foi a ação política de criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – Fundef, que vigorou de 1997 a 2006, quando foram atendidas as necessidades de universalização do ensino fundamental, promovendo a consequente ampliação da demanda pelo ensino médio. Entretanto, ao priorizar o ensino fundamental, o Fundef agravou a situação dos Estados que não dispunham de recursos suficientes para atender a esta população que deveria ingressar automaticamente no ensino médio. Só a partir da criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb, em 2007, é que foi dado um passo importante na universalização também deste nível de ensino secundarista, porém, este nível ainda está distante de muitos estudantes brasileiros, principalmente pela necessidade de trabalho que o adolescente e o jovem das camadas menos favorecidas apresentam. Ainda foram adotadas políticas públicas para democratizar o acesso ao ensino médio profissionalizante e ao ensino superior.
Com fulcro nos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana, tendo em vista formar uma sociedade justa, democrática e igualitária, de acordo com o almejado pela Constituição Federal em seu artigo 3°, a educação carece de uma concepção universal, aplicada a todas as pessoas indistintamente, de forma que este direito também se estenda a todos os grupos. Entretanto, como relata Bonfim (2011), o acesso e a permanência na escola ainda são restritos em muitas sociedades, mesmo as democráticas, deixando de fora alguns grupos sociais, por exemplo, nos sistemas prisionais brasileiros os detentos não tiveram, por muito tempo, esses direitos garantidos de acordo com a Constituição.
Considerações finais
Neste texto descrevemos as delimitações principais do direito à educação e abordamos o mínimo necessário a ser ofertado pelo Estado aos cidadãos, dentro do mínimo existencial. Aqui entendemos a relação harmônica dos entes federados não apenas como princípio de especificação de órgãos e funções, mas de coordenação e manutenção da unidade e organicidade do Estado na divisão de competências entre os municípios, Estados e a União, compreendendo que o critério da divisão dos poderes é um mecanismo essencial à preservação das liberdades e dos direitos individuais. Assim, consideramos entre as unidades entes federadas a relevância da inserção da educação fundamental no mínimo existencial, cabendo ao Poder Público o atendimento prioritário das crianças e adolescentes, e apenas em circunstâncias excepcionais pode-se pensar na possibilidade de privilegiar outros interesses com o comprometimento dos recursos existentes.
Ainda observamos que os direitos fundamentais não podem ser tomados meramente como normas programáticas, nem admitida a possibilidade de insuficiência de recursos para o atendimento das necessidades vitais da população. Em relação à educação básica, como necessidade vital, não se concebe o déficit de investimentos em decorreria de ausência de receita, nem a ausência de previsão orçamentária, devendo prevalecer o juízo de observância do mínimo existencial, atentando à questão legal que tacitamente confere ao Estado a obrigatoriedade de alocação dos recursos cogentes ao desenvolvimento e manutenção da educação.
Por fim, abordamos a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que em seu artigo 22 registra a educação básica (ensino infantil, fundamental e médio) como tendo a finalidade de desenvolver o educando, garantindo-lhe a formação cidadã, os meios para progredir no trabalho e prosseguir nos estudos. O Fundeb aparece como mecanismo garantidor dos recursos necessários à educação básica no país e mantenedor dos repasses essenciais aos Estados e municípios para o desenvolvimento e manutenção do ensino, conforme preconiza o aparato legal e de acordo com a finalidade de preparar o estudante para o exercício da cidadania, como fortalecimento da sociedade democrática. A formação para o exercício pleno da cidadania, como almejado pela Lei, contempla ainda a declaração da Constituição de 1988, que em seu artigo 1º apresenta a cidadania como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
Informações Sobre os Autores
Enivaldo Carvalho da Rocha
Estatístico Pós-doutor em Ciência Política pela UFMG Coordenador do Mestrado Profissional em Políticas Públicas Vice-diretor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE
Erinaldo Ferreira do Carmo
Doutor em Ciência Política e professor de Sociologia do Colégio de Aplicação do Centro de Educação da UFPE