Resumo: Ao longo da história da humanidade a mulher é vítima de violência doméstica e familiar, seja ela de natureza psicológica, física, verbal, sexual ou até mesmo patrimonial. No Brasil, após diversas pressões internacionais e nacionais decorrentes do caso Maria da Penha, foi editada e publicada a Lei 11.340/06 a qual possui como escopo primordial a proteção a mulher vítima de violência doméstica e familiar. A referida lei contempla em seu bojo institutos de proteção a fim de tornar as medidas protetivas de urgência nela estipuladas efetivas prevendo até implicações para caso as referidas medidas sejam descumpridas. Em casos extremos em que haja um efetivo e iminente risco a mulher vítima, poderá ser decretada a prisão preventiva do agressor com fundamento no descumprimento das medidas protetivas outrora impostas bem como para a garantia da ordem pública. Para que toda a lei tenha efetividade social mister é a atuação dos órgãos estatais consubstanciados na autoridade policial, Ministério Público e Poder Judiciário, cada um possuindo a sua incumbência precípua.
Palavras chave: violência doméstica; Maria da Penha; efetividade; institutos de proteção.
Abstract: Throughout the history of humanity, the woman is the victim of domestic and family violence, it is psychological, physical, verbal, sexual or even patrimonial. In Brazil, there are various internal and passive pressures of the Maria da Penha case, it was published and published by Law 11.340 / 06, which has as its primary scope the protection of women victims of domestic and family violence. The legal law contemplates in its bulletin institutes of protection in order to make as protective measures of urgency stipulated effective in there predicting even implications for the case as digital measures. In extreme cases in which there is an effective and imminent risk to the woman victim, it may decree the preventive custody of the aggressor on the basis without descriptions of protective measures once imposed as well as to ensure public order. What is a public official, is a state administrative body, the Public Ministry and Judiciary, each with its primary responsibility.
Keywords: domestic violence; Maria da penha; Effectiveness; Institutes of protection;
Sumário: Introdução; 1. Histórico da lei 11.340 de 2006 e seu principal objeto de proteção; 1.1. Sujeito de proteção da Lei 11.340/06; 1.2. Tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher; 2. Os instrumentos de proteção da lei 11.340 de 2006; 2.1 Medidas protetivas de urgência com relação à mulher ofendida; 2.2 Descumprimento das Medidas e as suas implicações jurídicas; 2.3 Possibilidade de prisão do agressor em caso de descumprimento das medidas protetivas de urgência; 3. Efetividade e atuação dos órgãos de proteção da mulher vítima de violência doméstica e familiar; 3.1 Da atuação da atividade policial quanto à mulher vítima de violência doméstica e familiar; 3.2 Da atuação judicial e o devido processo legal para a proteção da mulher vítima de violência doméstica e familiar; 3.3 Da atuação do Ministério Público quanto à mulher vítima de violência doméstica e familiar; Conclusão; Referências.
Introdução
A violência suportada pelas pessoas do gênero feminino é uma situação a qual vem prolongando-se ao longo das gerações em todos os hemisférios do globo terrestre por diversos fatores culturais e sociais. A República Federativa do Brasil foi palco das mais diversas demonstrações de ausência de respeito com as mulheres tendo sua maior exposição no caso Maria da Penha.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao analisar a extensão bem como a gravidade do problema, responsabilizou o Brasil estabelecendo que o país se adota algumas medidas para proteger a mulher vítima de violência doméstica e familiar de forma efetiva, jurídica e social, bem como eficaz.
Diante de todo esse cenário de pressões internacionais e sociais, foi sancionada e publicada a Lei 11.340/06, intitulada de “Lei Maria da Penha”, com o escopo primordial de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e que é o objeto central de estudo no presente artigo.
A referida inovação legislativa trouxe à baila algumas formas de proteger a mulher no contexto de violência familiar e/ou doméstica tutelando a pessoa humana do sexto feminino de forma integral e a tendo como destinatária da proteção jurídica.
Para dar força de efetividade social a Lei 11.343/06 e os seus institutos de proteção, é necessária a atuação dos mais diversos órgãos e de seus agentes, tais como a autoridade policial, o Judiciário e o Ministério Público. Podendo falar-se, inclusive, na criação de um processo penal protetivo de violência doméstica e do processo criminal de violência doméstica, sendo que, sobre tal aspecto o presente artigo aborda a atuação de todos os órgãos de proteção.
Tem-se como objetivos específicos definir quais são os institutos de proteção aplicáveis à mulher vítima de violência doméstica e familiar, detalhando como é feita a atuação dos órgãos de proteção, entendidos como autoridade policial, Ministério Público e Poder Judiciário, destacando as suas respectivas atividades.
Também questiona a efetividade dos instrumentos de proteção e estuda as críticas mais abalizadas de autores de renome os quais tecem comentários acerca da efetividade concreta dos instrumentos de atuação e, para o futuro, propõem melhoras no instrumento legislativo o qual se revela de grande importância para a sociedade brasileira.
1. Histórico da lei 11.340 de 2006 e seu principal objeto de proteção
É cediço que a questão dos gêneros é alvo de inúmeros debates e discussões, se prolongando ao longo das décadas. Entre essas, pode-se enquadrar a sociedade patriarcal e a opressão sofrida pelas mulheres, pelo fato dessas serem mulheres. O gênero feminino desde o começo da humanidade possui um reduzido valor social, sendo submetido a diversas situações degradantes e humilhantes, as quais são consideradas como normais em virtude de uma construção social/cultural (FERNANDES, 2015).
Diante do quadro supramencionado, no ano de 1993, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU aprovou a Declaração sobre a eliminação da violência contra a mulher, que tinha como escopo definir e mostrar a relevância da violência contra a mulher na sociedade contemporânea (DIAS, 2012).
No tocante ao âmbito regional, conforme salienta a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (2016), houve a Convenção de Belém do Pará, sendo esta a primeira a reconhecer a agressão contra a mulher como uma mácula da vida cotidiana, a qual infere uma grave violação aos direitos humanos sendo também interpretada como o uma ofensa a dignidade da pessoa humana, perfazendo-se como uma forma da relação de poder do homem sobre a mulher.
No ano de 1998, o Centro para a Justiça e o Direito Internacional – CEJIL e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM, juntamente com Maria da Penha Maia Fernandes, peticionaram na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, contra o Estado brasileiro, em virtude do caso de violência doméstica vivenciado pela Maria da Penha (PIOSEVAN, 2010).
Por duas vezes, Maria da Penha Maia Fernandes, sofreu tentativas de homicídio por parte de seu marido, deixando-a paraplégica em sua última tentativa. Posteriormente, Penha descobriu que o cônjuge via o relacionamento dos dois como uma forma de alavancar o seu patrimônio, já que dias antes a fez assinar um documento alienando o automóvel, sem constar o nome do comprador, além de tentar convence-la a contratar um seguro de vida, sendo aquele o único beneficiário (SANCHES, 2012).
Todavia, mesmo diante de todo esse cenário os órgãos brasileiros não haviam concluído os trâmites processuais legais e julgado o marido da Maria da Penha, após 19 (dezenove) anos do fato. Em razão disso, ante a negligência e omissão do Estado Brasileiro, em desrespeito ao artigo 7º, da Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência contra a mulher), o qual preceitua que:
“Artigo 7º – Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em: […] (BRASIL, 1996, online) ”
Assim como também aos artigos 1º, 8º e 25, do Pacto de São José da Costa Rica, a Comissão Interamericana de Direito Humanos, em seu informe n. 54/2001, responsabilizou o Brasil, recomendando algumas medidas para a efetiva proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar, forçando, assim, as instâncias domésticas a elaborarem a própria lei brasileira, até então inexistente. Sobre a referida situação Eduardo Cabette (2013, online) afirma que:
“A repercussão dessa história foi tão grande que fez a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos solicitar ao governo brasileiro um parecer sobre o fato. Como este parecer nunca foi entregue à Comissão, o Brasil foi condenado internacionalmente em 2001, tendo como pena o dever de impor o pagamento de indenização no valor de 20 mil dólares em favor de Maria da Penha, além de ter sido responsabilizado por negligência e omissão em relação à violência doméstica. Fora isso, foi recomendado que o país adotasse várias medidas para simplificar os procedimentos penais para que possa ser reduzido o tempo processual. ”
Dentre essas medidas, havia a necessidade da finalização do processo no qual figurava como polo passivo a Maria da Penha Maia Fernandes, investigação com o escopo identificar a responsabilidade pelas irregularidades e demora na conclusão do processo, assim como tomar as medidas administrativas, legislativas e judiciárias correspondentes, a indenização por parte do Estado em favor da Maria da Penha ante a ausência da prestação efetiva da tutela jurisdicional e a necessidade de adoção de políticas públicas com o intuito de prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (GIROTTI, 2007).
Segundo a ONU, por meio de Xavier Torres (2006), a cada dezoito segundos uma mulher é agredida em todo o globo terrestre. Em nosso país, há um espancamento contra a mulher a cada quinze segundos, dados obtidos por uma pesquisa levantada por Alice Bianchini junto à Fundação Perseu Abramo. Desta feita, indubitável é a importância e relevância de todo o contexto internacional o qual foi construído para que o Brasil coibisse de maneira efetiva a violência contra a mulher, após a deflagração de inúmeros episódios de violência física e moral empregados em detrimento da figura do sexo feminino.
Segundo a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (2016) a Lei Maria da Penha é atualmente o motivo da efetividade das normas constitucionais no que tange aos mecanismos destinados a evitar a prática de atos violentos, aludindo ainda que:
“A Lei Maria da Penha incorporou o avanço legislativo internacional e se transformou no principal instrumento legal de enfrentamento à violência doméstica contra a mulher no Brasil, tornando efetivo o dispositivo constitucional que impõe ao Estado assegurar a ‘assistência à família, na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência, no âmbito de suas relações’ (art. 226, § 8º, da Constituição Federal) (SANTOS, 2011, online) ”
Nesse mesmo sentido Arlindo Chinaglia (2007, p.5), presidente da Câmara dos Deputados, na época da edição e publicação da Lei 11.340/06, declarou que:
“A tragédia pessoal de Maria da Penha virou símbolo da luta contra os maus-tratos físicos, psicológicos e morais sofridos por parcela significativa da população feminina brasileira, os quais revelam a prevalência, até hoje, dos piores aspectos da cultura patriarcal e machista em nossa sociedade. Esses delitos assumem dimensão especialmente cruel quando se constata que a maioria das agressões ocorre no espaço doméstico e são praticadas por membros da família. Em tais casos, além de vitimarem as mulheres, têm grave repercussão sobre os filhos e podem levar à desestruturação do núcleo familiar. Estimulam a persistência de comportamentos violentos; geram situações de desajuste para crianças e adolescentes; prejudicam sua educação e formação. Além disso, expõem a face mais perversa da desigualdade de gênero, ao afrontarem direitos elementares à dignidade, à saúde e à própria vida das pessoas agredidas. ”
Por isso, pode-se inferir que para o supracitado autor o fatídico envolvendo a Maria da Penha demonstra de forma cristalina a presença de uma desigualdade de gênero, culminando em uma desestruturação do núcleo familiar. Todo esse cenário é fruto de uma sociedade patriarcal e machista a qual está enraizada na cultura brasileira, todavia repercute como um desrespeito no tocante aos direitos humanos, principalmente aos princípios basilares tais como a dignidade da pessoa humana, a saúde, a liberdade e a vida.
1.1. Sujeito de proteção da Lei 11.340/06
O objetivo da sobredita lei não é disciplinar de modo geral toda a violência doméstica no Brasil, mas aquela que possui como sujeito passivo a mulher, não por causa do sexo, mas sim em virtude do gênero. Para tanto, salutar é a conceituação do que é o gênero (GOMES, 2006).
Em uma crítica a toda essa conceituação de gênero, Valéria Scarence Fernandes (2015) afirma não ser uma tarefa fácil, ante a vasta possibilidade de aplicação a diversos ramos do conhecimento. Acrescenta, ainda, a necessidade da conceituação como corolário das desigualdades históricas, econômicas e sociais entre homens e mulheres e do modo como esses se relacionam, perfazendo uma desigualdade, culminando na submissão da mulher ao homem.
Já Elena Martínez García (2008, p. 30) afirma que:
“Desde uma perspectiva meta-jurídica pode-se explicar o conceito de violência de gênero a partir de suas raízes baseadas no sistema sexo/gênero de marca fortemente patriarcal. O conceito gênero inclui a construção social elaborada sobre a base da existência dos sexos biológicos, sobre o que se constroem padrões de identidade e de conduta que se atribuem a cada um dos sexos. É dizer, socialmente se constroem dois gêneros aos quais se atribuem papéis, identidade, poder, recursos, tempo e espaços diferenciados. ”
Segundo os dizeres da sobredita autora, na verdade o conceito do que é gênero decorre de aspectos exteriores ao mundo jurídico e ainda há de destacar-se a influência do mundo exterior, com todas as suas conjecturas ao mundo jurídico no conceito de gênero, sendo esse essencial para a caracterização da violência doméstica e familiar contra o gênero feminino.
Neste mesmo sentido, Luiz Flávio Gomes (2006, online) doutrina que:
“[…] sexualmente falando a diferença entre o homem e a mulher é a seguinte: o homem faz a mulher engravidar; a mulher menstrua, faz a gestação e amamenta. Fisicamente falando essa é a diferença. Fora disso, qualquer outro tipo de distinção é cultural (e é aqui que reside a violência de gênero). Cada sociedade (e cada época) forma (cria) uma identidade para a mulher e para o homem (a mulher deve fazer isso, isso e aquilo; o homem deve fazer isso, isso e aquilo). O modo como a sociedade vê o papel de cada um, com total independência frente ao sexo (ou seja: frente ao nosso substrato biológico), é o que define o gênero. Todas as diferenças não decorrentes da (pura) biologia e ‘impostas pela sociedade’ são diferenças de gênero. ”
Para o supramencionado autor, a diferença do gênero decorre principalmente da questão sexual e biológica. Todavia, por criações sociais e culturais, são atribuídas outras características para a conceituação, sendo todas estas corretas, em virtude do aspecto subjetivo e analítico do modo com que a situação é analisada.
Abarcando todas as ideias acima destacadas dos mais diversos doutrinadores, Valéria Scarence Fernandes (2015, p.56), elucida uma série de elementos os quais compõem o conceito de gênero, afirmando que:
”desse modo, apesar da diversidade de conceitos e aplicações, podem ser apontados alguns elementos que integram o conceito de gênero: a) relacional: gênero refere-se ao modo como homens e mulheres estabelecem relações; b) assimetria: há uma relação de poder desigual entre os envolvidos; c) dominação e submissão: como consequência da disparidade de poderes, existe a dominação do homem e a submissão da mulher; […]”
Para a conceituação do gênero feminino, sendo este o sujeito passivo e o objeto de proteção da Lei 11.340/06, há de analisar-se as relações entre homem e mulher, a desigualdade entre esses e a dominação do homem com a consequente submissão da mulher. Ademais, Maria Berenice Dias (2012, p. 61/62), afirma que:
“Há a exigência de uma qualidade especial: ser mulher. Assim, lésbicas, transexuais, travestis e transgêneros, que tenham identidade social com o sexo feminino estão sob a égide da Lei Maria da Penha. A agressão contra elas no âmbito familiar constitui violência doméstica descabendo deixar à margem da proteção legal aqueles que se reconhecem como mulher. ”
Após a análise do gênero resta cristalino a necessidade de uma providência estatal para a proteção e efetividade dos direitos fundamentais concedidos na Magna Carta, no tocante a mulher, ante todo o quadro acima esboçado de submissão e desigualdade. Por isso, vital é a manutenção da Lei 11.340/06, a qual possui como sujeito passivo a pessoa do gênero feminino.
1.2. Tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher
A palavra violência possui vários conceitos, de diversas maneiras e formas, seria, portanto, conturbador tentar reduzi-la a somente um significado. No mesmo sentido orienta Anthony Asblaster (1996, p. 803) “não existe uma definição consensual ou incontroversa de violência. O termo é potente demais para que isso seja possível”.
O sociólogo Yves Michauld ao lecionar sobre a violência afirma que:
“Há violência quando, numa situação de interação um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou mais pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais (1989, p. 11).”
Durkheim (1978) conceitua a violência como sendo um subproduto da sociedade, corolário do processo de socialização das pessoas e da ineficácia das instituições sociais modernas. Considera a sociedade como um “organismo social” e a violência como uma doença que ataca este organismo o tornando enfraquecido, necessitando de uma cura, algo que o elimine. Além do mais, para o autor, a criminalidade está intimamente ligada ao âmbito moral, “do regramento social do comportamento”.
Relevante ressaltar que a existência da violência dá legitimidade para a instituição jurídica. O direito é, portanto, o poder de uma comunidade, sendo uma violência. Para Freud (1921) o direito originou-se por meio de uma violência bruta e é considerado um erro não considerar tal assertiva.
Para a Conferência de Direitos Humanos de 1993 (p. 3) a violência sofrida pela pessoa do gênero feminino é entendida como “todo ato de violência de gênero que resulte em, ou possa resultar em danos ou sofrimento físico, sexual ou psicológico da mulher, incluindo a ameaça de tais atos, a coerção ou a privação arbitrária da liberdade, tanto na vida pública como na vida privada”.
A Convenção de Belém do Pará, conceitua violência como qualquer forma, que causa morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, desde que baseada no gênero, nos seguintes termos:
“art. 1º – Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á́ por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano, ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na privada.”
Por sua vez, a Lei que coíbe a violência doméstica e familiar contra o gênero feminino, preceitua em seu artigo 5º é violência qualquer ação ou omissão, a qual cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
Em seguida, o art. 7º da Lei 11.340/06, enumera e explicita em seus incisos as formas de violência supraditas e as suas definições, quais sejam:
“Art. 7° São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I – A violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause danos emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (BRASIL, 2006) ”
Por violência física tem-se o uso da força, por meio de empurrões, tapas, entre outros atos violentos os quais ofendem a integridade física ou a saúde corporal da mulher, podendo deixar marcas no corpo, as quais são denominadas de vis corporalis (SANCHES, 2012).
No tocante a violência psicológica, Maria Berenice Dias (2010, p. 66), elucida a desigualdade entre os sexos, sendo a mencionada violência considerada normal e rotineira pelas vítimas, as quais muitas vezes desconhecem o caráter violento e repressivo dessa conduta, por causa de uma construção cultural, afirmando ainda que:
“A violência psicológica encontra forte alicerce nas relações desiguais de poder entre os sexos. É a mais frequente e talvez seja a menos denunciada. A vítima, muitas vezes, nem se dá conta de que agressões verbais, silêncios prolongados, tensões, manipulações de atos e desejos são violência e devem ser denunciados. Para a configuração do dano psicológico não é necessária a elaboração de um laudo técnico ou realização de perícia. Reconhecida pelo juiz sua ocorrência, cabível a concessão de medida protetiva de urgência”
A Organização Mundial da Saúde considera que pode haver vários tipos de agressões físicas, a saber: ato moderado é formado por agressões leves, sem o emprego de arma – seja ela de qualquer tipo- se encaixam nesta classificação os tapas, empurrões, beliscões, entre outros; ato severo constitui-se por emprego de arma, seja ela usada somente como ameaça ou havendo o uso efetivo, lesões que se prolongam no tempo, cicatrizes, queimaduras, assim como outras consequências.
Já a violência sexual é aquela em que há uma obrigação de manter contato sexual, seja ele verbal ou físico, ou a participar de relações sexuais com o uso de chantagem, suborno, coação, força, ameaça, ou qualquer outro tipo de meio que reduza ou até mesmo impossibilite a livre manifestação da vontade da vítima.
Por sua vez o Código Penal Brasileiro preceitua que “a violência sexual pode ser caracterizada de forma física, psicológica ou com ameaça, compreendendo o estupro, a tentativa de estupro, a sedução, o atentado violento ao pudor e o ato obsceno (BRASIL, 2009). ”
No que concerne à violência moral, é pacificado que essa possui como escopo ofender a integridade objetiva e até mesmo subjetiva da pessoa, utilizando-se de calúnias, difamações e injúrias, sendo capazes inclusive de gerar até indenização patrimonial com o escopo de mitigar os danos sofridos pela vítima, na esfera cível (DIAS,2010).
A violência patrimonial, pode ser configurada por dano, destruição, diminuição de objetos, bens ou valores pertencentes à vítima, geralmente correlacionada com os outros modos de violência, conforme nos ensina Rogério Sanches
“[…] qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. Esta forma de violência raramente se apresenta separada das demais, servindo, quase sempre, como meio para agredir, física ou psicologicamente, a vítima (2012, p. 64/65) ”
Conforme analisado em linhas pretéritas, são diversas as formas e maneiras do modus operandi para a configuração da violência doméstica e familiar, contra o gênero feminino, sendo que cada uma possui as suas peculiaridades, podendo estas serem realizadas cumulativamente ou isoladamente.
2. Os instrumentos de proteção da lei 11.340 de 2006
2.1 Medidas protetivas de urgência com relação à mulher ofendida
Por medida protetiva de urgência tem-se a possibilidade do magistrado, analisando o caso concreto, aplicar isoladamente ou cumulativamente restrições ao agressor no que concerne à vítima de violência doméstica. Por isso a Lei Maria da Penha é considerada heterotópica, por trazer em seu bojo instrumentos de caráter civil, trabalhista, previdenciário, administrativo, penal e processual (BIANCHINI, 2014).
As medidas protetivas de urgência não são instrumentos para assegurar processos; têm por finalidade proteger direitos fundamentais evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem; não são preparatórias de ação judicial, nem acessórias de processos principais nem se vinculam a eles. Desta forma, não visam processos judiciais, mas sim a proteção das pessoas, no caso da mulher vítima de violência doméstica e familiar (LIMA, 2011).
Assevera ainda o supradito autor que as medidas se assemelham aos remédios constitucionais, como o habeas corpus ou o mandado de segurança, pelo fato de não protegerem pessoas, mas direitos fundamentais do indivíduo. Por isso, conceitua as medidas protetivas de urgência como cautelares inominadas as quais possuem como escopo proteger os direitos fundamentais e coibir a violência no âmbito das relações familiares, conforme preconiza o artigo 226, § 8º, da Constituição Federal.
A Comissão de Seguridade Social e Família (2015) afirma ainda que as medidas trazidas no bojo da lei 11.340/06 são acautelatórias, não possuindo caráter sancionatório, o que faz instalar na sociedade brasileira uma situação de insegurança jurídica mormente a efetividade da proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar
Discute-se a natureza jurídica da do supramencionado instituto sendo que se admite ser entendida como uma tutela inibitória, pelo fato de ser autônoma pelo fato de não necessitar de um processo judicial para a sua concessão e satisfativa já que após a sua concessão produz todos os efeitos por ela almejados (BECHARA, 2010).
Todavia, para Didier (2008) a natureza jurídica das medidas protetivas de urgência é provisional, porquanto possui como escopo uma providência de conteúdo satisfativo, a qual exaure-se após a decisão concessiva, concedida em um procedimento objetivo, relacionada a uma parcela do conflito familiar e doméstico.
Em contrapartida, Maria Berenice Dias, salienta que as medidas protetivas de urgência não se vinculam com os processos principais nem são acessórias desses, afirmando ainda que:
“A própria Lei Maria da Penha não dá origem a dúvidas, de que as medidas protetivas não são acessórias de processos principais e nem a eles se vinculam. Assemelham-se aos writs constitucionais que, como o habeas corpus ou mandado de segurança, não protegem processos, mas direitos fundamentais do indivíduo. São, portanto, medidas cautelares inominadas que visam garantir direitos fundamentais (2012, p. 148) ”
Como características das medidas têm-se o caráter primordial de urgência, devendo o magistrado decidir sobre o pedido no prazo de 48 horas (artigo 18, da Lei 11.340/06); podendo ser concedidas de ofício pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida (artigo 19, do mesmo diploma legal); não há necessidade de audiência para a concessão das medidas (artigo 19, § 1º); podem ser aplicadas isoladas ou cumulativamente (artigo 19, § 2º); a substituição de uma medida protetiva de urgência por outra, pode ser efetivada a qualquer tempo, sendo necessário somente que seja eficaz (artigo 19, § 2º).
Logo após a promulgação da lei 11.340/06, o entendimento pacífico era de que as medidas protetivas de urgência eram vinculadas a um inquérito ou processo já que a própria lei prevê a remessa do pedido após a ocorrência (FERNANDES, 2015).
Entretanto, salutar é a releitura bem como a utilização de uma exegese teleológica para inferir que a concessão das medidas protetivas de urgência não pode estar vinculada a uma representação criminal. Essa nova forma de interpretação é uma tendência mundial, e pode-se citar como exemplo os Estados Unidos da América, em que há a previsão legal de proteção civil independentemente de procedimento criminal (FERNANDES, 2015).
Nesse sentido, é a orientação de caráter supralegal da Convenção de Belém do Pará a qual prevê a necessidade do Brasil de adotar “medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade”, assim como de “estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeitada a violência, inclusive, entre outros, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais processos” nos termos do artigo 7º, alíneas d e f da sobredita Convenção.
Anaílton Mendes de Sá Diniz em sua obra corrobora com o entendimento esboçado em linhas pretéritas reforçando a ideia de proteção primordial a vítima e aludindo que:
“Há de se considerar também a situação em que, por exemplo, ocorrem crimes de ação penal privada ou pública condicionada (injuria, ameaça etc.) e a vítima pretende apenas a concessão de medidas protetivas em seu favor. Não deseja, enfim, ver o agressor submetido a um procedimento criminal, o que lhe é facultado pela Lei Maria da Penha, no art. 12, I, ultima figura, dispensando-se o oferecimento de representação naquele momento. Registra-se apenas o boletim de ocorrência, colhem-se as suas declarações e outras provas, se existirem naquela ocasião, e serão postuladas as medidas ao juiz. (2014, online)”
A COPEVID – Comissão Permanente de Combate a Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Ministério Público, em seu enunciado 004/2011, com a alteração do ano de 2014 prevê a medida protetiva como uma tutela de urgência, considerada como sui generis, de natureza cível e/ou criminal, podendo ser deferida de ofício pelo magistrado, não sendo requisito, a instrução, devendo permanecer enquanto persistirem os motivos determinantes de sua concessão.
Em um julgado o Superior Tribunal de Justiça firmou o seu posicionamento garantindo a proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar, como o escopo da medida protetiva de urgência e não a instauração de um procedimento, fundamentando que:
“DIREITO PROCESSUAL CIVIL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. MEDIDAS PROTETIVAS DA LEI N. 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA). INCIDÊNCIA NO ÂMBITO CÍVEL. NATUREZA JURÍDICA. DESNECESSIDADE DE INQUÉRITO POLICIAL, PROCESSO PENAL OU CIVIL EM CURSO. 1. As medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor. 2. Nessa hipótese, as medidas de urgência pleiteadas terão natureza de cautelar cível satisfativa, não se exigindo instrumentalidade a outro processo cível ou criminal, haja vista que não se busca necessariamente garantir a eficácia prática da tutela principal. ‘O fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. Não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam processos, mas pessoas’ (DIAS. Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012). 3. Recurso especial não provido” (REsp n. 1.419.421-GO, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, 4a Turma, j. 11.2.2014) (BRASIL, 2014).”
Para o deferimento das medidas protetivas de urgência faz-se mister a cumulação de alguns requisitos tais como a violência contra a mulher no âmbito das relações domésticas e a necessidade das medidas, perfazendo-se através do periculum in mora e o fumus boni iuris, requisitos esses do Direito Processual Civil (FERNANDES, 2015).
Pode-se inferir que o periculum in mora deve-se subsumir ao artigo 7º (formas de violência) cumulado com o artigo 5º (casos de aplicação), ambos da lei 11.340/06, independentemente da tipificação criminal consoante os ditames do Código Penal. Já o fumus boni iuris, denota o caráter imprescindível para a proteção da mulher ofendida, sendo esta alcançada por meio das medidas protetivas.
Ademais, o informativo 574 do Superior Tribunal de Justiça prevê a possibilidade de impetrar habeas corpus para apurar eventual ilegalidade na medida protetiva de urgência a qual consiste na proibição do acusado aproximar-se da vítima, já que a liberdade de ir e vir do paciente estão comprometidas, conforme o relator do HC 298.499-AL Ministro Reynaldo Soares da Fonseca (BRASIL, 2015).
Maria Berenice Dias afirma que existe a possibilidade do magistrado, diante do caso concreto, adotar as medidas protetivas mesmo que diante de um procedimento cível e ainda ressalta que:
“Também nas demandas cíveis intentadas pela vítima ou pelo Ministério Público que têm origem em situação de violência doméstica, o magistrado pode determinar a adoção das providências necessárias à proteção da vítima e dos integrantes da unidade familiar, principalmente quando existirem filhos menores de idade (2011, p. 107). ”
Sendo assim, nos dizeres da sobredita autora, a aplicação das medidas protetivas de urgência está ampliando-se com o intuito de dar maior proteção aos membros hipossuficientes da unidade familiar os quais sofreram algum tipo de violência doméstica no âmbito das relações domésticas.
A lei 11.340/06 é silente no tocante ao prazo de duração das medidas protetivas de urgência. Todavia, é recomendável que o magistrado ao analisar o caso concreto, fixe um prazo razoável de vigência das medidas protetivas. Tal prazo deve ser suficiente para evitar a continuidade da violência, evitando a eternização das medidas bem como reiterações desnecessárias – já que as partes podem resolver definitivamente seus conflitos através de uma eficaz ação da Vara de Família (LIMA, 2011).
A possibilidade da imposição das medidas protetivas de urgência foi de importância ímpar na proteção a mulher, pois ampliou a margem de atuação do magistrado para impor as mais adequadas ao caso concreto (BIANCHINI, 2014).
2.2 Descumprimento das Medidas e as suas implicações jurídicas
Em linhas pretéritas, restou cristalino a necessidade da aplicação das medidas protetivas de urgência para proteger a vítima mulher de violência doméstica e familiar de ulteriores atos de agressão. Entretanto, é cediço que diversas vezes a determinação judicial para o cumprimento dessas medidas não é respeitado, culminando no descumprimento do supramencionado instituto de proteção.
Para a corrente majoritária o mero descumprimento das medidas protetivas, não configura outra modalidade de sanção penal, perfazendo-se como uma conduta atípica. É esse o posicionamento de Cézar Roberto Bittencourt o qual afirma que:
“Quando a lei extrapenal comina sanção civil ou administrativa, e não prevê cumulação com o art. 330 do CP, inexiste crime desobediência. Sempre que houver cominação específica para o eventual descumprimento de decisão judicial de determinada sanção, doutrina e jurisprudência têm entendido, com acerto, que se trata de conduta atípica, pois ordenamento jurídico procura solucionar o eventual descumprimento de tal decisão no âmbito do próprio direto privado (2009, p. 459/460). ”
O Superior Tribunal de Justiça por meio da sua Quinta Turma no julgamento do HC n. 312.513/RS (BRASIL, 2014), elucidou que para a caracterização do crime de desobediência é necessária a cumulação do descumprimento de ordem judicial e da inexistência de previsão de sanção específica, seja ela civil ou administrativa. Não sendo, portanto, possível a aplicação em uma situação de não cumprimento das medidas protetivas de urgência tendo em vista a possibilidade de imposição de multa, agravamento das medidas, requisição de força policial, entre outras medidas.
Rogério Greco (2012) defende a ocorrência do crime de desobediência, previsto no artigo 330 do Código Penal, aquele agressor que descumpre as medidas protetivas de urgência por estar desobedecendo a ordem de um funcionário público, nesse caso, o magistrado que concedeu as referidas medidas.
Nesse mesmo sentido é o posicionamento doutrinário de Guilherme Nucci, o qual preconiza que:
“As medidas restritivas, previstas na Lei de Violência Doméstica (art. 22, II, III, Lei 11.340/06), proibindo o marido ou companheiro de se aproximar da mulher ou determinando seu afastamento do lar constituem ordens judiciais. Logo, nesses casos, se descumpridas, acarretam o crime de desobediência (art.330, CP). Não se configura o delito do art. 359, pois a situação de marido ou companheiro não constitui função, atividade, direito, autoridade ou múnus (2012, p. 1279). ”
Há ainda aqueles doutrinadores, como por exemplo Porto (2014), que defendem a subsunção do descumprimento a conduta descrita no artigo 359, do Código Penal. Segundo Capez (2012), incide nesse tipo penal aquele que pratica, desempenha função, atividade, direito, autoridade ou múnus, tendo sido suspenso ou privado desse exercício por determinação judicial, seja ela civil ou penal.
Insta ressaltar que com o escopo de dar maior eficácia as medidas protetivas de urgência, tramita no Congresso Nacional o projeto de lei de número 173-A, do ano de 2015, o qual tipifica o descumprimento da referida medida, afirmando que reduzir tal prática a apenas um ilícito civil é uma total irresponsabilidade e falta de compreensão do terrível fenômeno social da violência doméstica contra a mulher.
Como sanção a não observância da determinação judicial, o artigo 22 em seu § 3º da lei 11.340/06, traz a possibilidade da imposição de medidas civis e administrativas tais como a multa diária, remoção de pessoas e coisas, entre outras, se houver a constatação de que as mesmas são adequadas para evitar a reiteração delitiva e garantir a proteção da ofendida. Insta ressaltar, conforme preleciona Maria Berenice Dias (2012), que o magistrado pode proceder de ofício, sem a necessidade de requerimento da ofendida, por tratar-se de medida coercitiva com o escopo de obrigar o ofensor a cumprir a determinação judicial de manter-se afastado da vítima.
2.3 Possibilidade de prisão do agressor em caso de descumprimento das medidas protetivas de urgência
A possibilidade de decretação da prisão preventiva constitui em um importante e útil instrumento para tornar efetivas as medidas de proteção preconizadas pela Lei Maria da Penha. Salienta a autora que se não houvesse essa modificação, a maioria dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher ficaria privada da prisão preventiva por ausência de sustentação dos requisitos expostos no artigo 312, do Código de Processo Penal e nas hipóteses presentes no artigo 313, do Código de Processo Penal (CAVALCANTI, 2010).
Para Claus Roxin (apud CÂMARA, 2011, p.122), a prisão preventiva pode ser conceituada, analisada e aplicada como sendo “a privação da liberdade do imputado para o fim de assegurar o processo de conhecimento ou a execução da pena”.
Em qualquer caso, o decreto da prisão preventiva dependerá de uma insuficiência patente das medidas cautelares diversas da prisão, assim como da verificação dos pressupostos constantes no artigo 312 e dos requisitos legais do artigo 313, ambos do Código de Processo Penal. Tratando-se assim, da necessidade da cumulação de diversos fatores os quais somados possibilitam a segregação do acusado (BRASILEIRO, 2011).
O artigo 312 do supramencionado diploma legal, preceitua a necessidade da materialidade delitiva e dos indícios suficientes de autoria, perfazendo-se através da justa causa. Esses pressupostos materializam-se por meio do fumus comissi delicti, o qual conferirá um mínimo de segurança na decretação da cautelar e do periculum libertatis, o qual justifica a restrição da liberdade do acusado (TAVÓRA, 2012).
Por sua vez são quatro os pressupostos, sendo estes: a garantia da ordem pública, quando há perigo de reiteração criminosa pelo agente; garantia da ordem econômica, quando há perigo de reiteração delitiva no tocante aos crimes contra a ordem econômica e financeira; garantia de aplicação da lei penal, quando se verifica a possibilidade do acusado evadir-se do distrito da culpa; conveniência da instrução criminal, quando o acusado possa causar prejuízos a produção probatória (BRASILEIRO, 2011).
Há também a necessidade de restar configurada alguma das hipóteses do artigo 313, do Código de Processo Penal, quais sejam, ser o crime doloso punido com pena privativa de liberdade superior a 4 (quatro) anos; ser o agente reincidente; ter sido o crime praticado com violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência (TAVÓRA, 2012).
Mister faz-se uma tríplice fundamentação na decisão a qual decreta a prisão preventiva em caso de descumprimento de medida protetiva de urgência, perfazendo-se através da descrição dos fatos os quais ensejaram a decretação, bem como a finalidade de assegurar a execução das medidas protetivas e a demonstração da real necessidade da segregação do acusado (GOMES, 2006).
Observa-se que a lei 11.340/06 inovou legislativamente ao trazer a possibilidade de cárcere do agressor, independentemente do regime de cumprimento de pena, caso condenado, bastando para a decretação o preenchimento nos requisitos expostos acima. Contudo há resistência na doutrina quanto aos crimes apenados com detenção, pois se o legislador abriu esse precedente, imperiosa é a necessidade de cautela ao manejar esse novo pressuposto ante a morosidade da justiça e a possibilidade de o réu ficar preso preventivamente em um tempo superior ao necessário (NUCCI, 2006).
Em contrapartida verifica-se que indiferente é o quantum máximo cominado em abstrato para a pena do delito praticado pelo agente que descumpriu uma medida protetiva de urgência deferida em favor da ofendida, ante a ausência de vinculação entre o inciso I e III, do artigo 313 do Código de Processo Penal (BRASILEIRO, 2011).
Em diversos casos, a prisão preventiva se mostra como medida adequada para impedir a reiteração delitiva do agressor, ante a ausência de outros meios menos gravosos com o mesmo escopo, não gerando incompatibilidade entre essa medida e as possibilidades previstas no Código de Processo Penal (ARAÚJO, 2007).
A possibilidade de prisão preventiva daquele que descumpre medida protetiva foi alteração legislativa de grande valia para o gênero feminino, pois a previsão dessa medida sem uma corresponde sanção pelo seu não cumprimento que atemorizasse suficientemente o agressor, o estimulava a agredir, de forma contínua, moral e fisicamente a ofendida (SANCHES, 2011).
3. Efetividade e atuação dos órgãos de proteção da mulher vítima de violência doméstica e familiar
Após o desdobramento sobre as forças internacionais e nacionais as quais culminaram com a criação da Lei 11.340/06, bem como os institutos de proteção garantidores da eficácia para a proteção da vítima de violência no doméstica e familiar, imperiosa é a análise no que tange a atuação dos sujeitos incumbidos pela lei.
Em um primeiro momento, salutar é a conceituação da atividade policial, bem como os deveres, sendo esses preventivos ou repressivos, os quais lhe são incumbidos no que concerne ao procedimento adequado para a proteção da vítima de violência doméstica e familiar.
Após, será feita uma abordagem no tocante a atuação da autoridade judicial, os seus deveres para a maior efetividade da lei, assim como a impossibilidade de tramitação da ação perante o Juizado Especial Criminal e o respeito ao devido processo legal, como um dos princípios basilares da Constituição Federal e do Código de Processo Penal.
No último tópico do presente capítulo, será conceituado o Ministério Público, abordando as novas características desse Órgão a luz das inovações legislativas trazidas com o advento e promulgação da Lei 11.340/06, sendo consideradas extremamente relevantes para a efetividade da referida lei de proteção as pessoas do gênero feminino as quais sofreram violência no âmbito das relações domésticas e familiares.
3.1 Da atuação da atividade policial quanto à mulher vítima de violência doméstica e familiar
A efetividade da Lei Maria da Penha é correlacionada diretamente com uma compreensão do princípio da igualdade, devendo ser reconhecida a situação de vulnerável da mulher vítima de violência doméstica em relação ao seu agressor (FERNANDES, 2015).
Faz-se mister uma releitura do processo penal, com a incorporação de certos conceitos os quais são extrajurídicos, como por exemplo, o gênero e a hipossuficiência, vez que na maioria dos casos essa está intrinsicamente ligada a violência doméstica e familiar (FERNANDES, 2015).
A Polícia Civil tem a função predominantemente investigatória, atuando de modo temporal posterior a prática da infração com o intuito de obter elementos os quais possibilitem o oferecimento da denúncia, com a formação da “opinio delicti” (opinião acerca do crime) do Órgão Ministerial. Afirma Valéria Scarance Fernandes (2015) que atualmente não se pode falar em uma Polícia Civil unicamente repressiva, atuando de forma exclusiva para apurar as infrações penais. Nesse sentido, a Lei Maria da Penha tornou o referido órgão interventor e protetor da vítima.
Antônio Scarance Fernandes (2008, p. 69) em sua doutrina que aborda a questão dos procedimentos policiais na referida lei assim esclarece que:
“A vítima, quando é atendida por um órgão policial na rua após a prática do delito, ou quando se dirige a um estabelecimento policial para noticiar o crime, alimenta grande expectativa em relação ao que lhe será́ fornecido. Mas a experiência normalmente é frustrante. Há uma grande diferença entre o anseio da vítima, vinculada a um só caso, para ela especial, significativo, raro, e o interesse da autoridade ou agente policial, que tem naquele fato um a mais de sua rotina diária, marcada muitas vezes por outros de bem maior gravidade”
A Lei 11.340/06 em seu artigo 8º, inciso IV, preconiza que as delegacias de polícia deverão possuir atendimento policial especializados para as mulheres, em particular, nas Delegacias de Atendimento à Mulher. Nesse atendimento, as vítimas deverão ser informadas sobre os seus direitos e os serviços disponíveis para a sua proteção e reintegração, dependendo do tipo de violência sofrido. Para Valéria Scarance Fernandes (2015), tal providência é de extrema relevância pois após o cenário de opressão sofrido pela mulher, quando essa necessita de ajuda do Estado, procura justamente a Delegacia de Polícia.
Ademais, o artigo 11 da Lei 11.340/06 (BRASIL, 2006) ensina que no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá atuando de forma preventiva, garantir proteção policial garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário; encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal; fornece transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida; se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar; informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis (FERNANDES, 2015).
Após o registro da ocorrência deverá a autoridade policial adotar, de imediato, alguns procedimentos tidos como repressivos tais como ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada; colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias; remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência; determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários; ouvir o agressor e as testemunhas; ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele; remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público, conforme o artigo 12 da sobredita lei (BRASIL, 2006).
No tocante ao pedido das medidas protetivas de urgência, em nenhum momento a lei 11.340/06 informa se a autoridade policial pode requerê-las mesmo sem a manifestação da ofendida (BIANCHINI, 2014). Por sua vez, Adilson José Paulo Barbosa e Leia Tatiana Foscarini (2011) atestam que o Delegado de Polícia pode requerer as medidas protetivas quando as circunstâncias e o estado da vítima deixe-a incapaz de manifestar-se, com fundamento na proteção integral e exclusiva da mulher vítima de violência doméstica.
Por isso, nesse mesmo sentido lógico-jurídico Alice Bianchini (2014, p. 209) conclui o seu entendimento sobre o tema afirmando que “por fim, há que se considerar que, se a autoridade policial pode o mais (representar pela prisão preventiva, que é a medida protetiva de urgência de maior intensidade), também haveria de poder o menos (solicitar que fosse decretada outra das medidas protetivas). ”
O Decreto n. 7.958 de 13 de março de 2013 estabelece diretrizes as quais devem ser seguidas para um atendimento adequado às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança público e pelo Sistema Único de Saúde. Como algumas diretrizes, podem ser citadas o “acolhimento em serviços de referência” (art. 2º, I), o atendimento humanizado, “observados os princípios do respeito da dignidade da pessoa, da não discriminação, do sigilo e da privacidade” (art. 2º, II), a designação “espaço de escuta qualificado e privacidade durante o atendimento, para propiciar ambiente de confiança e respeito à vítima” (art. 2º, III), a ciência quanto aos procedimentos, “respeitada sua decisão sobre a realização de qualquer procedimento” (art. 2º, IV), a orientação quanto aos serviços de atendimento (art. 2º, V), informações dos serviços para vítimas de violência sexual (art. 2º, VI), “disponibilização de transporte à vítima de violência sexual até os serviços de referência” (art. 2º, VII) e “capacitação de profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do SUS para atender vítimas de violência sexual de forma humanizada, garantindo a idoneidade e o rastreamento dos vestígios coletados” (art. 2º, VIII)” (BRASIL, 2013).
A Lei Maria da Penha ao proporcionar a vítima mulher instrumentos efetivos cumpre o seu mais relevante papel, utilizando até de medidas temporárias com o objetivo principal de acelerar a igualdade material entre homem e mulher. Desta forma, verifica-se a presença do Direito Penal Emergencial, ao passo que o legislador atribui a lei a solução de problemas sociais e culturais (BIANCHINI, 2014).
3.2 Da atuação judicial e o devido processo legal para a proteção da mulher vítima de violência doméstica e familiar
A maior incidência de violência doméstica contra a mulher é praticada por seus parceiros, segundo Ricardo Ferracini (2008) situação vislumbrada no mundo inteiro conforme pesquisa realizada na década de 1990 pela Organização Mundial de Saúde a qual constatou a proporção de mulheres agredidas fisicamente por um parceiro íntimo: 29% no Canadá (anos de 1991 a 1992), 34% no Egito (anos de 1995 a 1996), 28% na Nicarágua (ano de 1998), 10% no Paraguai (anos de 1995 a 1996), 10% nas Filipinas (ano de 1993), 13% na África do Sul (ano de 1998), 21% na Suíça (anos de 1994 a 1996), 22% nos Estados Unidos (anos de 1995 a 1996).
A gravidade e a cronicidade dessa violência impedem que a conciliação do casal, por muito preconizada em nosso ordenamento jurídico atual, a luz do Código de Processo Civil de 2015 em seu artigo 3º, § 3º, resolva a questão, sob pena de se perpetuar a violação de direitos da mulher (FERNANDES, 2015)
Todavia, há ainda aqueles que defendem a utilização do modelo conciliatório, como por exemplo Marcelo Gonçalves Saliba (2006, p.51), o qual preconiza que “a conversa entre as partes é sem dúvida alguma o único e eficaz caminho para se combater a violência, não se apresentando a punição mais severa como forma de resolução dos conflitos”.
Nesse mesmo sentido, Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini (2007) salientam que o legislador pátrio incorreu em erro ao abandonar o sistema consensual da Justiça previsto na Lei dos Juizados Especiais e ao depositar no sistema conflitivo clássico (velho sistema penal da retribuição), a solução para a violência doméstica e familiar.
Anteriormente a elaboração da Lei de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher aplicava-se as medidas despenalizadoras da Lei 9.099 de 1995, que são inerentes aos Juizados Especiais Criminais, tais como a representação, conciliação, transação e suspensão condicional do processo, mesmo quando tratava-se de violência perpetrada no âmbito doméstico, havendo amparo legal para a sua ocorrência (MARTINS, 2016).
Letícia Franco de Araújo (2003) já criticava a aplicação da norma em comento aos casos de violência contra a mulher, sob pena de ser fator de impunidade, alegando que em 78% dos procedimentos instaurados em sede policial encerravam-se na audiência de conciliação, mediante algum tipo de acordo. Ademais, verificou-se ainda que apenas 1% dos casos chegavam a fase de instrução e julgamento.
No âmbito das ciências sociais, Renata Cristina Pontalti Giogo, citada por Luiz Flávio Gomes (2007), analisa de forma sistemática a possibilidade de mediação na ocorrência de crimes de violência doméstica. Salienta a autora que por força da complexidade dessa forma de violência, entender as partes envolvidas melhoraria qualitativamente a resolução do litígio em uma abordagem de dentro para fora do Judiciário.
Para a supramencionada autora, a proteção legal abarcada pela Lei 11.340 retira da mulher vítima a sua autodeterminação e a Justiça Restaurativa (escopo de resolver os problemas, deveres e obrigações futuras) busca mitigar os falsos estereótipos do gênero feminino, como por exemplo, a suposta agente provocadora das agressões, vítima débil ou até mesmo a incapacidade de decidir de forma consciente e auto responsável.
No Brasil a não aplicação da Lei 11.340/06 no âmbito de competência dos Juizados Especiais Criminais refere-se precipuamente a não rotular a violência doméstica como uma infração penal de menor potencial ofensivo, minimizando e apoiando, mesmo que implicitamente a conduta do agressor (FERNANDES, 2015).
Para Eunice Aparecida de Jesus Prudente constitui uma patente afronta a todos os princípios constitucionais enquadrar a violência doméstica como um delito liliputiano, a qual elucida ainda que:
“A violência doméstica e familiar contra mulher em absoluto não configura ilicitude de pouca complexidade ou de menor potencial ofensivo. Mulheres vitimadas perdem a vida ou permanecem com sequelas, tudo isso além da violência moral assistida constantemente por criança e adolescente. Não há dúvidas de que toda a sociedade é ofendida no momento em que cada mulher é vítima de violência doméstica e familiar (2007, p. 254). ”
É de se mencionar ainda que o entendimento já consolidado de Letícia Franco de Araújo (2003) se orientou no sentido de que o procedimento criminal destinado aos crimes de menor potencial ofensivo mostra-se socialmente ineficaz, na medida em que privilegiando uma ilusória celeridade do procedimento não discute suficientemente o conflito, consequentemente não oferecendo as partes solução adequada e proporcional.
Continua a mesma autora criticando a antiga aplicação dos Juizados Especiais Criminais no âmbito da violência contra a mulher nos termos seguintes:
“Assim, não havendo solução de conflito atingível por via da atuação das instâncias formais de controle social – especialmente Polícia e Poder Judiciário – o procedimento destas instituições passa a se caracterizar por gritante inutilidade, que não pode ser tolerada por essas mesmas instituições (ARAUJO, 2003, pg. 168) ”
Por isso, Valéria Scarance Fernandes (2015) afirma que a efetividade da lei na prevenção da violência e o rompimento do ciclo da violência é alcançada pelo aspecto misto perfazendo-se por meio da prevenção-repressão, que possibilita uma intervenção adequada do Estado. Assim, a proposta conciliatória nos termos da Lei 9.099/95 falhou no tocante a repressão à violência doméstica. Nesse sentido:
“No Brasil, há expressa vedação à aplicação da Lei n. 9.099/95 pelo art. 41 da Lei n. 11.340/2006. Contudo, isso não significa que tenha sido adotado um modelo puramente retribuído. É possível implementar uma forma de Justiça Restaurativa (sem mediação quanto ao crime) com base na Lei Maria da Penha, pois os processos criminal e protetivo surgem como uma oportunidade de intervenção na família e recuperação do agressor. Aliás, um dos aspectos principais da Justiça Restaurativa reside justamente na responsabilidade de recompor o dano e modificar o futuro comportamento do agressor, e isso é possível com a intervenção adequada do Estado nos processos de violência doméstica (p. 139).”
Ademais, o artigo 9º da Lei 11.340 (BRASIL, 2006) traz em seu bojo que o juiz determinará por prazo certo, a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal, bem como assegurará à mulher acesso prioritário à remoção quando for servidora pública, integrante da administração pública direta ou indireta e a manutenção do vínculo trabalhista quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses.
No tocante a proteção patrimonial dos bens e da sociedade conjugal o magistrado, poderá ainda, determinar liminarmente restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida, por força do artigo 24 da Lei 11.340/06 (BRASIL, 2006).
Há previsão legal para a criação dos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, sendo que para a caracterização da sua competência devem estar presentes os seguintes pressupostos cumulativos: que se trate de violência de gênero, ou seja, que a violência tenha ocorrido por força de uma ausência de igualdade; que tenha ocorrido no âmbito da unidade doméstica, familiar ou em uma relação íntima de afeto e que tenha sido praticada uma das modalidades de violência prevista na Lei 11.340/06 (FERNANDES, 2015).
Os supramencionados Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar representam um dos maiores avanços trazidos pela inovação legislativa da Lei Maria da Penha pelo fato de centralizarem em um único procedimento judicial, todas as modalidades de garantia dos direitos da mulher vítima de violência doméstica e familiar (BIANCHINI, 2014).
O princípio do devido processo legal, é entendido como uma dupla proteção ao indivíduo, no que concerne ao direito de liberdade, em seu aspecto material e a paridade total de condições com o Estado, em seu aspecto formal. Sendo caracterizado como um instrumento característico do Estado Democrático de Direito, dando voga ao valor máximo da dignidade da pessoa humana considerando esse como um vetor de toda a sociedade (MORAES, 2001).
Para Miguel Reale (1999, p. 60) os princípios podem ser entendidos como “as verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade”.
Apesar do procedimento especial da Lei Maria da Penha preconizar a vítima, esse não pode isentar-se de observar o princípio do devido processo legal, ante o caráter constitucional do mesmo. Ademais, quando se trata de mitigação a direitos e garantias fundamentais da pessoa acusada, não é facultado ao magistrado aplicar medidas cautelares as quais não estejam expressamente previstas em lei, sob pena de afronta aos princípios da legalidade e do devido processo legal, sendo esses considerados fundantes do Estado Democrático de Direito (DELMANTO, 2008).
3.3 Da atuação do Ministério Público quanto à mulher vítima de violência doméstica e familiar
Por Ministério Público, segundo a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (BRASIL, 1993) tem-se a instituição permanente, essencial a função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, possuindo como princípios institucionais a unidade, indivisibilidade e a independência funcional.
Os artigos 25 e 26 da Lei 11.340/06, criaram um modelo de atuação diferenciada do Ministério Público, extrapolando as suas funções da parte criminal. Assevera a autora que o referido Órgão sendo além de ser acusador também incorpora um viés protetor e interventor nas relações sociais. Essa releitura do papel das autoridades públicas responsáveis pela persecução penal, conferindo poderes para esses protegerem a vítima e romper com o ciclo da violência, é considerada o grande caráter inovador e revolucionário, culminando em uma maior abrangência nas ações ministeriais (FERNANDES, 2015).
O Ministério Público intervirá quando não for parte, nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher, por força do disposto no artigo 25 da Lei de proteção à violência doméstica e familiar contra a mulher (BRASIL, 2006).
Caberá ainda, ao Parquet (Ministério Público), sem prejuízo de outras atribuições, quando necessário requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social e de segurança, entre outros; fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, e adotar, de imediato, as medidas administrativas ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas; cadastrar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher (artigo 26, da Lei 11.340/06).
Valéria Scarance Fernandes (2015, p. 225) ao doutrinar no que concerne a atuação ministerial, considera ímpar o requerimento de determinados serviços para a efetiva prestação do ônus ministerial, afirmando ainda que:
“A requisição de serviços é imprescindível para a atuação ministerial. O Promotor de Justiça tem o dever de atender o público, as pessoas que comparecem em sua presença, aí compreendidas as vítimas de crimes e testemunhas. Nas situações mais graves, é necessário agir de pronto, encaminhando a vítima a um serviço ou adotando providências para resguardar sua segurança. Assim, se a vítima comparece perante o Promotor de Justiça dizendo que está sendo perseguida pelo agressor, é possível requisitar força policial. Ou, se a vítima está em evidente situação de perigo, pode ser encaminhada a um abrigo ou atendimento médico. ”
Tem-se a necessidade do Órgão Ministerial não quedar-se inerte, aguardando a iniciativa da vítima, devendo inclusive requerer medidas contra a sua vontade. Tal situação é amparada pelos indícios de riscos notórios ou até mesmo quando a vontade em recusar as medidas não é livre ou espontânea (BIANCHINI, 2014).
Sendo assim, o Órgão Ministerial atua de forma ímpar, nos processos os quais possuem como vítimas pessoas do gênero feminino, as quais sofreram de violência doméstica e familiar, seja atuando de forma acusatória, repressiva, preventiva e até mesmo restauradora.
Conclusão
O presente artigo científico abordou como núcleo essencial o estudo sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher, perpassando pela construção histórica e social, o conceito de gênero feminino, os tipos de violência, as medidas protetivas de urgência e por fim a atuação dos órgãos estatais os quais buscam dar efetividade a lei 11.340/06.
Diante de toda a compilação bibliográfica abordada pode-se inferir que foi de grande importância a edição da lei 11.340/06 com o escopo de dirimir as insurgências familiares e domésticas contra a mulher, situação essa que possui raízes históricas e sociais. Ademais, há de se ressaltar a presença de medidas e institutos inovadores trazidos pelo legislador pátrio ao prever as medidas protetivas de urgência bem como a criação de Juizados Especiais de Violência Doméstica.
Em uma primeira análise se revelou altamente importante do ponto de vista jurídico a implementação dos instrumentos de proteção à mulher, todos eles inovadores e que tutelam a vítima de violência a qual encontra na lei uma forma de proteção integral.
Todavia, a efetividade social buscada pela legislação encontra limites impostos pela própria sociedade e muitas vezes pelas próprias vítimas mulheres que por diversos motivos, sejam eles de ordem econômica, social, psicológica ou até mesmo amorosa, deixam de prosseguir com a representação criminal com o escopo de satisfazer a prestação jurisdicional.
Há também a previsão de atuação da autoridade policial, Ministério Público e Poder Judiciário, sendo considerada ímpar para a proteção da mulher vítima de violência doméstica e familiar. Percebe-se, porém, que há uma carência de efetivo de agentes públicos suficiente para a interrupção ou até mesmo o extermínio de toda a situação de violência suportada pela mulher.
Entende-se que a violência contra a mulher é cultural, social e histórica, manifestando-se nos mais diversos padrões de pessoas presentes em todas as classes sociais e idades. Por isso, faz-se mister uma análise multidisciplinar por parte dos operadores do Direito, permitindo a compressão de todo o fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher com o intuito de dar efetividade a Lei Maria da Penha, modificando a realidade.
O estudo realizado se mostrou e alta relevância e pertinência o qual, sem pretender esgotar o tema, especialmente, por que outros estudos podem surgir, bem como outras posições jurídicas para o futuro, no presente esclarece-se que a lei de proteção à mulher vítima de violência é o melhor instrumento legislativo para implementar a dignidade da pessoa humana que é a mulher em situação de qualquer tipo de agressão.
Mestre e Especialista em Direito Penal. Advogado criminalista. Professor de Direito Penal na UniEvangélica de Anápolis
Acadêmica do Curso de Direito da UniEvangélica
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