A efetividade do direito fundamental à educação no ensino médio

Resumo: A proposta deste trabalho reflete o direito à educação sendo estabelecido como um direito social e por isso, requer, todavia, uma prestação positiva do Estado, isto é, implementar medidas que assegurem a educação a todos. Não somente o acesso, mas também a qualidade. A Carta Magna estabeleceu em seu artigo 211 que a responsabilidade para a oferta do ensino médio é de competência dos Estados e do Distrito Federal. Coube a eles a prestação do ensino médio de forma gratuita e “progressiva universalização”, como preceitua o inciso II do artigo 208 da Constituição de 1988. De toda sorte, considerando a dimensão subjetiva do direito à educação no ensino médio, quando o Estado for ineficiente na oferta dessa modalidade da educação, cabe ao indivíduo obter a tutela do Poder Judiciário.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Direito à Educação. Ensino Médio. Políticas Públicas. Judicialização.

Abstract: The proposal of this work reflects the right to education being established as a social right and therefore requires, however, a positive state benefit, that is, to implement measures that ensure education for all. Not only access, but also quality. The Magna Letter established in its article 211 that the responsibility for the offer of high school is the competence of the States and the Federal District. The provision of secondary education was free of charge and "progressive universalization", as stated in section II of article 208 of the 1988 Constitution. In any case, considering the subjective dimension of the right to education in high school, when the State is Inefficient in the offer of this type of education, it is up to the individual to obtain the tutelage of the Judiciary Power.

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Keywords: Fundamental rights. Right to education.  High School. Public policies. Judicialization.

Sumário: Introdução. 1. Dever do Estado. 2. A efetivação do direito à educação no ensino médio por politicas públicas. 3. Reserva do Possível versus o Mínimo Existencial.  Conclusão. Referências.

 Introdução

O direito à educação foi estabelecido como um direito social cuja concretização se dá mediante os esforços de vários mecanismos da sociedade, principalmente do Estado, por caracterizar um direito de cunho prestacional.

O ensino médio será responsabilidade de maneira prioritária do Estado, que empreenderá políticas públicas para que seja garantido o direito à educação, o qual dependerá da dotação orçamentária, que se configura limitada, mediante as necessidades, muitas vezes, ilimitadas, mas não se prevalecendo da “reserva do possível”, pois precisa de planejamento para garantir o “mínimo existencial”.

1. Dever do Estado

O direito à educação corresponde aos direitos de segunda dimensão, ou seja, ao contrário dos direitos de primeira dimensão, que controla ou evita a atuação do Estado em relação às liberdades individuais, os de segunda dimensão impõe ao Estado uma obrigação de fazer para que esses direitos sejam efetivados.

Contudo, há discussões a cerca dos direitos sociais não serem verdadeiros direitos, mas apenas programas de ação governamental e, neste caso, despidos de eficácia imediata. Ocorre que, já sido tratado anteriormente assunto, aqui reafirmamos os direitos sociais como verdadeiros direitos fundamentais, em especial o direito à educação, pois assim prevê a Constituição Federal de 1988 um mesmo regime tanto para os direitos de defesa como para os direitos de cunho prestacional, e em nenhum momento encontramos, expressamente, uma dualidade de regimes. Daí já inferiu e mais uma vez se conclui que o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 5º da CF/88 incide em ambos os direitos fundamentais.  [1]

Nesse sentido, não há o que se discutir, pois a Constituição é norma jurídica e como tal, dotada de imperatividade. Como o direito à educação é posto por ela, não se trata de mera norma-programa, cujo administrador público tem uma diretriz para empreender politicas públicas de maneira discricionária. Corrobora o ensinamento de Luís Roberto Barroso:

“Atualmente, passou a ser premissa do estudo da Constituição o reconhecimento de sua força normativa, do caráter vinculativo e obrigatório de suas disposições. Vale dizer: as normas constitucionais são dotadas de imperatividade, que é atributo de todas as normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagrar os mecanismos próprios de coação, de cumprimento forçado.” [2]  

Esse posicionamento, todavia, somente ocorreu no chamado movimento neoconstitucional, bastante influenciado pelo pós-positivismo, depois do fracasso das ideias positivistas, onde era a letra da lei que deveria ser obedecida de maneira cega, produzindo regimes autoritários, como no caso do Facismo na Itália e do Nazismo na Alemanha.

O apóstolo Paulo já alerta, quando escrevera para a comunidade de Corinto: “a letra mata, mas o Espírito vivifica” (II Cor 3, 6).  Daí, após a experiência dolorosa da humanidade na II Guerra Mundial, há uma reaproximação entre o direito e a moral. No pós-positivismo não se concentra na estrita e irrestrita força da lei, mas vai além da legalidade, exige-se agora uma leitura humana e social do direito, sem o descuido da lei posta.

Destarte, o novo movimento Constitucional repercute sobre a atuação dos três poderes, principalmente na atuação do Executivo e Legislativo, pois cabe a eles, de maneira típica, a responsabilidade de fazer valer o Direito à educação. O poder Judiciário ganhará força na medida em que também poderá determinar políticas públicas para o Executivo, quando esse for omisso ou ineficaz, o que trataremos de maneira mais aprofundada no próximo capítulo.

Conforme Luís Roberto Barroso, a constitucionalização obriga o Legislativo a duas posturas: 1.Limita sua discricionariedade ou liberdade de conformação na elaboração das leis em geral; 2. Impõe-lhe determinados deveres de atuação para a realização de direitos e programas constitucionais. E na esfera do Executivo, três posturas que lhe comina: 1. Limitação da discricionariedade; 2. Imposição de deveres de atuação e 3. Fornece fundamento de validade para a prática de atos de aplicação direta e imediata da Constituição, independentemente da interposição do legislador ordinário. [3]

Nesse sentido, nossa Constituição Brasileira é clara ao impor ao Poder Público o dever de garantir a educação quando a elencou como direito social. Assim foi estabelecido:

“Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

A Carta Magna foi além, estabelecendo, em capítulo próprio, vários dispositivos relacionados ao direito à educação e assinalando ao Estado algumas obrigações como, por exemplo:

“Art. 205 – A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (grifo nosso).

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I – ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria; II – progressiva universalização do ensino médio gratuito”; (grifo nosso).

Além disso, o texto constitucional estabeleceu um regime de colaboração entres os entes da federação para que a educação fosse bem salvaguardada em sua efetivação. Mesmo quando encarrega de maneira repartida as responsabilidades pelos níveis de ensino. Neste caso, objeto dessa pesquisa, o ensino médio é de dever dos Estados da Federação.  Assim estabeleceu o art. 211, § 3º: “Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio”.

No âmbito infraconstitucional, a Lei de Diretrizes e Bases-LDB (Lei nº 9.394/96) destaca, no art. 4º, inciso II, que é dever do Estado a “progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao Ensino Médio.” Sendo ainda observadas as finalidades do ensino médio que o art. 35 da LDB estabelece:

“Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades:

I – a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;

II – a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;

III – o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;

IV – a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina.”

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Observamos, desta maneira, que não há discricionariedade da Administração Pública quando a Constituição e a legislação infraconstitucional não apenas estabelecem o dever do Estado em uma prestação positiva, numa obrigação de fazer, mas quando já fixam metas e fins a serem desenvolvidos.

Particularmente, cabe aos Estados proporcionar o acesso ao ensino médio gratuito, como não só o acesso, mas fazer valer as finalidades desse nível de ensino estabelecidas na LDB, subtraindo qualquer juízo de conveniência e oportunidade sobre a efetivação ou não do direito ao ensino médio gratuito.

A preocupação em efetivar o direito fundamental à educação é tão presente para a Constituição que o art. 208, em seu parágrafo segundo prevê a responsabilidade da autoridade competente na hipótese de não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público ou sua oferta irregular. [4]

É nesse sentido que os Estados garantindo o ensino médio, estarão alicerçando uma sociedade mais justa e igualitária pautada no princípio da dignidade humana, pois com o acesso da etapa final da educação básica é que o indivíduo possa ter uma vida digna. Podemos afirmar que a educação é uma condicio sine qua non da existência do princípio da dignidade humana da qual o Estado não pode se eximir. Contribui o ensinamento de Ingo Wolfgan Sarlet:

“É justamente neste sentido que assume particular relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais. Na condição de limite da atividade dos poderes público, a dignidade é necessariamente algo que pertence a cada um e que não pode ser perdido ou alienado, porquanto, deixando de existir, não haveria mais limite a ser respeitado (considerando o elemento fixo e imutável da dignidade). Como tarefa imposta ao Estado, a dignidade da pessoa humana reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente ou até mesmo de criar condições que possibilitem o pleno exercício da dignidade […]” [5]

Desta forma, não resta dúvida da obrigação do Estado em garantir o direito à educação, destacando-se o ensino médio, cuja responsabilidade é dos Estados e do Distrito Federal que empreenderão os esforços para cumprir o que dispõe os dispositivos legais. Daí caso o Poder Público venha a ser omisso ou ineficiente em seu dever, o Judiciário ser acionado para efetivar o direito ao ensino médio gratuito.

2. A efetivação do direito à educação no ensino médio por politicas públicas

Em que pese a obrigação de promover o ensino médio é de responsabilidade dos Estados, estes devem desenvolver politicas públicas que surjam a partir de discussões e decisões tomadas entre o Legislativo e o Executivo. Cabe a eles diretamente a elaboração de politicas públicas para que o direito à educação no ensino médio seja concretizado.

Desta forma, as politicas públicas se configuram como os instrumentos pelos quais é concretizado o direito à educação, embora existam outros meios, mas são elas as formas mais adequadas para a atuação do Estado, pois segundo Ana Carolina Izidório Davies, elas são “ações governamentais, diretamente relacionadas à atuação do Poder Executivo, destinadas à satisfação de direitos fundamentais, em especial os de caráter social (…)”. [6]

As políticas públicas, neste caso, seria a forma de planejamento para que o Estado pudesse exercer o dever de garantir os direitos prestacionais, onde ele tem a obrigação de atuação para que eles fossem concretizados e saíssem da letra da lei. No dizer de Eduardo Appio:

“As políticas públicas podem ser conceituadas, portanto, como instrumento de execução de programas políticos baseados na intervenção estatal na sociedade com a finalidade de assegurar igualdade de oportunidades aos cidadãos, tendo por escopo assegurar as condições materiais de uma existência digna a todos os cidadãos.” [7]

Para que os direitos sociais, como já vimos, possam ser concretizados, eles precisam de atuação positiva do Estado e por isso ele deve viabilizar bem as políticas públicas porque elas precisam de uma dotação orçamentária. Há, inclusive, previsão constitucional entre planejamento e orçamento. É preciso que haja planejamento na elaboração de politicas públicas para que as despesas sejam adequadas, a fim de atender, de forma mais eficiente possível, as necessidades da coletividade.

A educação recebeu um trato diferenciado, juntamente com a saúde, na nossa Constituição Federal. Por isso determinou que pelo menos 18% (caso da União) e 25% (caso dos Estados, Municípios e DF) da receita proveniente de impostos deveria ser destinada à manutenção e desenvolvimento do ensino.

Além disso, A Emenda Constitucional n. 14/96 criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEF). Hoje substituído pela Emenda Constitucional nº53/2006 que estabeleceu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e da Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB.

Esse Fundo representou um importante avanço no estabelecimento constitucional de prioridades orçamentárias. Importante frisar que antes da emenda 53/2006 o fundo orçamentário apenas abarcava o ensino fundamental, agora passa a abranger toda educação básica, ou seja, a etapa final, o ensino médio, que antes estava de fora, com ela passa a ser também objeto do Fundo.

O FUNDEB tornou-se um instrumento bastante necessário para que o direito à educação tivesse prioridade na sua concretização. Tanto o é, que o art. 5º estabeleceu uma contribuição social para o custeio da educação, in verbis: “A educação básica pública terá como fonte adicional de financiamento a contribuição social do salário-educação, recolhida pelas empresas na forma da lei”.

Vale lembrar que o direito à educação, por ser um direito social, é um direito insuscetível de realização integral, são direitos de satisfação progressiva, cuja realização encontra-se estreitamente ligada ao PIB (Produto Interno Bruto).  A arrecadação dos recursos é limitada, quando muitas vezes a necessidade social do ensino médio se torna incalculável. Por isso os recursos públicos devem ser bem elaborados. [8]

Aliás, o professor Jayme Benvenuto Lima Júnior ensina que:

“Ao referir-se à progressividade dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais não nega a exigibilidade imediata dessa categoria de direitos. A progressividade ali mencionada deve ser interpretada no sentido extensivo de fazer o máximo para avançar no respeito aos direitos, e não como forma de limitar sua extensão.” [9]

Nesse sentido, é que as políticas públicas, diante da escassez, devem ser bem pensadas e elaboradas numa perspectiva realista. Daí da necessidade de elaborar a peça orçamentária visando a realização progressiva do direito à educação no nível do ensino médio. Como assim já estabelece o texto infraconstitucional: “progressiva universalização do ensino médio gratuito”.

Importa também frisar que, na elaboração de políticas públicas para o efetivo direito à educação, destacando o ensino médio, cuja responsabilidade se circunscreve à esfera estadual, deve ser respeitado o princípio da proibição de retrocesso social (effet cliquet).

 Embora não esteja previsto expressamente na nossa Constituição, esse princípio encontra bastante respaldo na doutrina, pois ele se coaduna com os objetivos da Carta Magna, bem como a concepção do Estado democrático social de direito.

O princípio da vedação de retrocesso visa impedir que o legislativo pudesse empreender medidas que desconstituam pura e simplesmente direitos que outrora já tinham sidos concretizados. Significa que, uma vez já regulamentado determinada norma constitucional, neste caso, o direito social à educação, o legislador não poderia, ulteriormente, retroceder no tocante à matéria. Assim corrobora Canotilho:

“O núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa “anulação”, revogação ou “aniquilação” pura e simples desse núcleo essencial.” [10]

A partir desse princípio, o Estado que tem o dever de fazer cumprir a disposição constitucional do acesso gratuito ao ensino médio, deixa de consistir em apenas uma obrigação positiva para também passar em uma obrigação negativa. O Estado que estava obrigado a atuar para concretizar os direitos de segunda dimensão, passa a estar obrigado, também, a abster-se de atentar contra a concretização dada a esses direitos.

3. Reserva do Possível versus o Mínimo Existencial

Os direitos sociais por demandarem de recursos financeiros do Estado para sua efetivação, muitas vezes se depara com a limitação ou escassez desses recursos. Por isso essa questão levantou a várias discussões sobre também os limites ou restrições da concretude dos direitos que o Estado tem a obrigação de atuar. Daí surge a denomina cláusula de reserva do financeiramente possível ou simplesmente, reserva do possível.

Segundo Resende [11], a cláusula da reserva do possível surge na ocasião das discussões da elaboração do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas. É nesse contexto que os países, imbuídos do neoliberalismo, argumentam que os direitos civis e políticos eram economicamente viáveis, o que já não se encontrava nos direitos econômicos, sociais e culturais, por demandarem um alto custo para que sejam concretizados.

A doutrina ainda não determinou ao certo como deve ser tratada a Reserva do Possível, seja como principio, seja como cláusula ou como postulado. Para OLSEN, [12] colocar como princípio não seria apropriado, visto que não prescreve determinado estado de coisa a ser atingida e também porque minimiza ao invés de otimizar, o que marcaria um princípio. É por isso que as expressões “cláusula” ou “postulado” realmente parece ser mais adequado. Assim corrobora Sarlet:

“(…) apresenta pelo menos uma dimensão tríplice que abrange a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais, b) disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima correlação com a distribuição de receitas e competências tributárias e (…) c) na perspectiva do titular do direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação.” [13]

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A partir disso, podemos dizer que existem duas espécies de reserva do possível, a fática e a jurídica. A primeira diz respeito à inexistência material e real de recursos, ou seja, indisponibilidade de caixa. A segunda advém da inexistência de autorização orçamentária para a realização de determinada despesa. [14]

A reserva do possível seria agora o fundamento para o balizamento de implementação de políticas públicas na concretização dos direitos sociais, como uma forma de tentar adequar a realização dos direitos fundamentais à realidade fática. Entendimento esse, exposto pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

“(…) a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gratuidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vinculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentarias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico- financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.” (informativo nº 345)

Contudo, deve-se ter a reserva do possível com cautela, pois sua elaboração teórica se deu na Alemanha na década de 70 e o caso paradigma que saltou aos olhos dos doutrinadores alemães foi a disputa versando sobre o direito de acesso ao ensino superior e as restrições fáticas existentes. [15] Com efeito, nossa realidade brasileira se apresenta totalmente diferente, onde direitos foram suplantados há anos e existe um déficit de políticas públicas nos direitos sociais, por isso não se trata de conceder o mais, mas, antes as condições mínimas de uma vida digna.

Desta forma, a reserva do possível não pode, principalmente num país como o nosso, ser compreendida como uma cláusula obstaculizadora, mas, antes, como uma medida que imponha cuidado, prudência e responsabilidade na elaboração de políticas públicas. Segundo Américo Bedê Freire Júnior, ela deve ser levada em conta não para impedir a concretização de direitos fundamentais, mas sim, tendo em vista o compromisso com o principio da dignidade humana, viabilizar o melhor cumprimento das normas constitucionais. [16]

Nesse sentido, bastante importante se faz o ensinamento de Driley da Cunha Júnior:

“Num Estado em que o povo carece de um padrão mínimo de prestações sociais para sobreviver, onde pululam cada vez mais cidadãos socialmente excluídos e onde quase meio milhão de crianças são expostas ao trabalho escravo, enquanto seus pais sequer encontram trabalho e permanecem escravos de um sistema que não lhes garante a mínima dignidade, os direitos sociais não podem ficar reféns de condicionamentos do tipo reserva do possível. […] trasladar para o direito brasileiro essa limitação da reserva do possível criada pelo direito alemão, cuja realidade socioeconômica e política do país difere radicalmente da realidade brasileira, é negar esperança àquele contingente de pessoas que depositou todas as suas expectativas e entregou todos os seus sonhos à fiel guarda do Estado Social do Bem-Estar. […] não atendido esse padrão mínimo, seja pela omissão total ou parcial do legislador, o Poder Judiciário está legitimado a interferir – num autêntico controle dessa omissão inconstitucional – para garantir esse mínimo existencial […]” [17]

Por conseguinte, a reserva do possível não pode ser arguida para a não implementação do direito fundamental à educação, pois ela faz parte daquele núcleo essencial para que o indivíduo tenha condições mínimas de uma existência digna. Daí a reserva do possível esbarrar no princípio do mínimo existencial.

O mínimo existencial é o corolário direto do princípio da dignidade da pessoa humana e por isso o Estado não pode evocar a insuficiência de recursos para a não satisfação de prestações sociais mínimas, capazes de assegurar às pessoas condições adequadas para uma vida digna, como é o caso da educação, destacando-se o ensino médio, cuja finalidade é a formação da própria identidade, e como o individuo pode viver sem identidade?

 Desta forma, se os direitos sociais estão fundamentados no conceito de dignidade da pessoa humana, estudar o mínimo existencial se faz necessário na medida em que ele fornecerá o conteúdo da prestação estatal. Contudo, a discussão passa então para a compreensão sobre o que significa este mínimo.

Doutrinadores alemães deram início às pesquisas acerca do conceito de mínimo existencial. Entendem que estas condições mínimas fazem parte do conteúdo essencial para o exercício da dignidade da pessoa. Todavia, não é fácil quantificar tal mínimo, pois estará sempre relacionada às condições espaço-temporal. [18]

É nesse sentido que o princípio do mínimo existencial se torna necessário para obrigação mínima do Poder Público em sua prestação para a efetivação dos direitos sociais. Será a concretude desses direitos que se consolidará o Estado Democrático Social de direito e desde logo, sindicável, tudo para evitar que a pessoa viva sem a dignidade que lhe própria.

Desta forma, a efetividade dos direitos sociais é a mola propulsora para o exercício dos outros direitos. Daí, para a tutela do mínimo existencial, que compreende a concretude dos direitos fundamentais sociais, qualquer meio processual adequado poderá ser manejado.

Destarte o art. 6º elencar os direitos sociais, os quais para ser efetivados, precisam de uma atuação positiva do Estado, embora seja um rol exemplificativo, afirmamos que não estar posto de maneira aleatória, mas numa ordem de prioridade, obedecendo a uma sequência lógica.

Para ratificar tal entendimento, e perceber que dentro do mínimo existencial possui uma ordem de preferência, a EC nº 64/2010 e a EC nº90/2015 que acrescentaram ao art. 6º da Constituição como direito social, a alimentação e o transporte foram alocados de maneira a não apenas ser um acréscimo, senão estaria na sequência dos últimos, por serem os últimos a entrarem, mas justamente foram postos de maneira lógica de existir.

Tudo isso posto para afirmamos que a educação foi alocada como o primeiro direito social do art. 6º da nossa Carta Magna por configurar a base de todos os outros direitos sociais, bem como os individuais. Como já dito e agora reafirmamos, a educação possibilita ao ser humano a consciência de si mesmo e a descoberta de um ser social. Para autenticar, nos reportamos Claudinei j. Gottems:

“Por se tratar de um direito social dotado de fundamentalidade, a educação se revela ínsita ao desenvolvimento do homem enquanto ser social e culmina com sua dignificação, razão que impõe analisar o direito à educação não como uma norma meramente programática, sem eficácia imediata, mas, ao contrário, por se tratar de direito social, é exigível de imediato.” [19]

Além do mais, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9394, de 20.12.1996, que estabelece, em seu artigo 4.°, o dever do Estado com a educação escolar pública, demonstra, novamente, tamanha importância dada à educação. Bem como o texto Constitucional determinou que pelo menos 18% (caso da União) e 25% (caso dos Estados, Municípios e DF) da receita proveniente de impostos deveria ser destinada à manutenção e desenvolvimento do ensino. Além de criar a contribuição social do salario-educação.

Tudo isso para afirmar o direito à educação como parte do núcleo essencial do mínimo existencial e que o Poder Público não poderá evocar a reserva do possível para a não concretização de políticas públicas educacionais, principalmente quando o constituinte foi cauteloso no que diz respeito aos recursos que custearão tal direito.

Ao tratar especificamente do ensino médio, a Lei 9394/96 (LDB) em art. 35, inciso II, assinala como uma das finalidades “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”. Ou seja, o ensino médio marca o desenvolvimento identitário do sujeito, onde terá consciência si e do mundo em sua volta.

A não inserção e os meios de permanência nessa etapa da educação violam gravemente o seu desenvolvimento e, por conseguinte, sua dignidade por impedir seu crescimento como pessoa. Assim, o direito à educação no ensino médio insere-se no conteúdo do mínimo existencial, podendo o Poder Judiciário interferir nas políticas públicas da Administração estadual.

Conclusão

Por fim, coube aos Estados a responsabilidade de implementar políticas públicas para a concretização do ensino médio não se aforando da reserva do possível, uma vez que o mencionado direito social se insere no conteúdo do mínimo existencial, podendo o cidadão recorrer, desde logo, ao Poder Judiciário, estando este legitimado, do ponto de vista constitucional, a decidir a respeito.

A omissão do Estado ao seu dever de oferecer o ensino médio e de qualidade submete-se ao controle judicial, sem que isto viole o princípio da separação dos três poderes, pois o Poder Judiciário apenas determinará o cumprimento de deveres fundamentais constitucionalmente definidos e especificados na legislação infraconstitucional.

 

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Notas:
[1] CLÈVE, Clèmerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Revista Crítica Jurídica, Curitiba, n. 54, p. 28-39, jan-mar. 2006. p. 31-32.
[2] BARROSO, Luiz Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Revista da Escola de Magistratura Regional Federal, v. 1, p. 389-406, 2010. p. 7
[3] BARROSO, Luiz Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Revista da Escola de Magistratura Regional Federal, v. 1, p. 389-406, 2010. p. 17.
[4] TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 884.
[5] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 102.
[6] SIQUEIRA, Dirceu Pereira; ANSELMO, José Roberto (Org). Estudos sobre os Direitos Fundamentais e Inclusão Social: da falta de efetividade à necessária judicialização, um enfoque voltado à sociedade contemporânea. 1. ed. Birigui: Boreal, 2010. p. 30.
[7] APPIO, Eduardo. Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2006. p. 136
[8] CLÈVE, Clèmerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Revista Crítica Jurídica, Curitiba, n. 54, p. 28-39, jan-mar. 2006. p. 31-32. p. 34-36.
[9] LIMA JÚNIOR, Jayme Benvenuto. Os direitos humanos econômicos, sociais e culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 100.
[10] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2011. p. 337-338.
[11] RESENDE, Augusto César Leite de. A tutela jurisdicional do direito humano ao meio ambiente sadio perante a corte interamericana de direitos humanos. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 109.
[12] OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais: Efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008. p. 200.
[13] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 30
[14] BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). Leituras complementares de constitucional: direitos fundamentais. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2007. p. 262.
[15] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 28.
[16] FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Revista dos tribunais, 2005. p. 79.
[17] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. A efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais e a Reserva do possível. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). Leituras complementares de constitucional. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2007. p. 436.
[18] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 20.
[19] GOTTEMS, Claudinei J. Direito Fundamental à Educação. Argumenta-Uenp. Jacarezinho. N° 16, 2012. p. 48.

Informações Sobre o Autor

Josué do Nascimento Santos

Formado em Ciências Sociais pela Universidade federal de Sergipe. Pós-graduação em Filosofia e Ética pela Faculdade Católica de Anápolis. Graduado em Direito pela Faculdade de Administração e Negócios de Sergipe. Professor de Sociologia da rede estadual de Alagoas e Advogado militante


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