Resumo: com o advento da mais recente reformulação do Código de Trânsito brasileiro, alguns questionamentos mostraram-se à vista dos estudiosos e aplicadores da norma. Em especial, brotou perplexidade quanto à aparente inviabilidade da prova testemunhal como mecanismo suficiente para a configuração do delito de embriaguez ao volante, ante à expressão concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas. Todavia, mostrar-se-á neste redigido que, se para o entendimento de uma lei bastasse tão-somente o conhecimento da gramática com que o texto foi escrito, desnecessária seria a figura dos intérpretes, tais como os doutrinadores, juízes, tribunais e demais hermeneutas, bastando para a execução dos comandos legais que os seus agentes fossem, simploriamente, alfabetizados.
Palavras-chave: Código de Trânsito Brasileiro; Reforma legislativa; Prova testemunhal; Admissibilidade; Hermenêutica jurídica.
Sumário: Introdução; 1. Considerações Preliminares sobre a Recente Reformulação do Código de Trânsito Brasileiro; 2. Noções Conceituais sobre o Artigo 306 do CTB; 3. Breves Considerações sobre Hermenêutica Jurídica; 4. A Perfeita Admissibilidade da Prova Testemunhal para a Configuração dos Delitos de Embriaguez ao Volante; Considerações Finais.
Sê justo: antes de mais nada, verifica, nos conflitos, onde está a justiça. Em seguida, fundamenta-a no Direito. (Juan Carlos Mendonça)
Só existem duas coisas infinitas: o Universo e a burrice humana; se bem que estou em dúvida quanto à primeira. (Albert Einstein)
INTRODUÇÃO
Recentemente, entrou em vigor mais uma reformulação no Código de Trânsito Brasileiro. O leitmotiv[1] do Legislador foi o de impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do álcool, conclusão singela que se faz pela simples análise do primeiro e principal mandamento contido na Lei 11.705/2008 que implementou o conjunto de novidades ora em debate.
Não obstante o cristalino intuito do Legislador, mais uma vez ele laborou em equívoco, como já fizera antes com algumas reformulações em matéria de trânsito, à luz, p. ex., do ocorrido com a infração penal consistente em dirigir veículo automotor sem a devida permissão ou habilitação legal. Com efeito, a infração de dirigir veículo automotor sem a devida habilitação era reprimida, antes do advento do atual Código de Trânsito Brasileiro, pela Lei das Contravenções Penais[2], em seu artigo 32. Até então, não era necessária a produção de perigo concreto, para a perpetração do ilícito. Todavia, com o advento do CTB, passou-se a exigir perigo concreto, em decorrência da expressão elementar contida no seu artigo 309[3], qual seja, “gerando perigo de dano”. Assim, apesar do intuito do legislador em impor maior rigor no combate às infrações de trânsito, ao ser implementado o CTB no ano de 1997, o resultado foi inverso do pretendido ao menos no que se refere à condução de veículo automotor sem a devida Permissão ou Habilitação para Dirigir, bem como, ainda, se cassado o direito de conduzir, em decorrência da exata expressão gerando perigo de dano.
Em virtude disso, então, tornou-se incontável a gama de condutores não autorizados que passaram a isentar-se de qualquer responsabilidade penal, ainda que agissem por meio de condutas livres e conscientes. Isso, indubitavelmente, constituiu-se em uma grande conquista a todos eles, infratores de trânsito. As Polícias Rodoviária e Militar, hoje, já não chegam mais sequer a apresentar nas delegacias de polícia ocorrências de condução de veículo automotor sem habilitação legal, se não verificada geração concreta de perigo, por já se haver tornado assente a jurisprudência a esse respeito.
Isso já ocorrera, também, com a questão da arma de fogo desmuniciada. Assim, enquanto a posse e o porte irregulares de arma de fogo eram tratados pela Lei das Contravenções Penais, tanto fazia estar o instrumento bélico municiado ou não, haveria inevitável incidência típica. Agora, quando o Legislador, então, desejando tornar a matéria mais severa, em decorrência da vultosa gama de crimes praticados por meio de instrumentos bélicos no País, implementando a Lei nº 9.437/97, após a ab-rogando[4] por uma norma ainda mais rigorosa, qual seja ela, a Lei nº 10.826/03, foi concedida, nesse momento, gênese à problemática seriíssima consubstanciada em uma verdadeira avalanche de conflitos jurisprudenciais, ora considerando crime, ora não, a posse ou o porte de arma de fogo sem munição (grifo meu).
Presentemente, com o advento da Lei nº11.705/2008, com a qual se deu execução a algumas reformulações no Código de Trânsito Brasileiro, mais uma vez o Legislador não se atentou para alguns detalhes vitais, dentre eles o princípio de que ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo!
Dessa arte, como se constatar a percentagem de seis decigramas estipulada no corpo do artigo 306 do CTB, se o infrator não desejar submeter-se ao teste do bafômetro ou não permita a coleta do seu sangue?!
Não resta, pois, como se verá ao longo deste artigo, outra faculdade ao intérprete, perplexo com a grafia utilizada pelo Legislador, que não a hermenêutica jurídica, a fim de se tornar cristalina e lúcida a vontade patente do legislador, consubstanciada no desejo de impor maior rigor aos infratores das normas de trânsito, não obstante, como já se disse acima, as impropriedades e imperfeições com que tentou exprimir esse seu intuito.
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE A RECENTE REFORMULAÇÃO DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO
Com a recente publicação, pois, da Lei nº11.705/08[5], houve alteração significativa quanto aos mandamentos do nosso CTB[6]. Em especial, e é esse o ponto fulcral deste escrito, quanto ao preceito primário[7] contido no art. 306 do Codex referido.
Preteritamente à reforma, rezava o tipo suso: conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem (grifo meu).
Posteriormente, com a reforma, passou a proclamar: conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.
Assim, antes da reforma, o crime em comento era de mera conduta. O delito também era classificado como sendo de lesão ao bem jurídico, ou seja, à segurança no tráfego de veículos. Doravante, o ato desvalioso deve ser classificado como sendo de perigo abstrato, já que o novo tipo reformado não contém a expressão expondo a dano potencial a incolumidade de outrem.
Quanto à valência dos delitos de perigo abstrato no ordenamento jurídico nacional, vale mencionar que, não obstante algumas contemporâneas e respeitáveis idéias doutrinárias que circulam acerca da absurdidade que seria o entendimento no sentido de que referidas infrações de perigo abstrato subsistiriam plenamente no cenário constitucional vigente, claro aos olhos deveria ser, a todos, que o intuito do legislador na tipificação de delitos de perigo abstrato é a “essencial manutenção da vigência da norma” e, conseqüentemente, da ordem pública!
Efetivamente, a tipificação dos crimes de perigo abstrato representa uma preocupação de cunho prevencionista do direito criminal da nossa sociedade contemporânea a qual deseja antecipar a punição de certas condutas, com o fim de prevenir perturbações futuras e garantir o bem-estar social, porquanto já fatigada está com as lesões efetivas aos seus bens juridicamente tutelados.
Nada mais lógico, pois, do que reprimir, no limiar, uma “ofensa” aos nossos patrimônios jurídicos a qual, pela lógica, sem a devida repreensão do Estado, tornar-se-ia, futuramente, uma efetiva “lesão” a esses nossos mesmos bens juridicamente tutelados.
E exatamente foi isso o que decidiu fazer o legislador, ao retirar do art. 306 do Codex de Trânsito brasileiro a expressão “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”.
Assim, antes da reforma, além de estar embriagado, era necessário que o condutor conduzisse irregularmente o seu veículo, levando a efeito manobras desnecessariamente bruscas, em ziguezague[8], aproximando-se perigosamente de outros veículos, do meio-fio, das calçadas, de pedestres, etc. Agora já é bastante a constatação de que o condutor esteja embriagado, ainda que conduzindo regularmente o seu veículo, para que haja a subsunção da sua conduta ao tipo em comento.
A intenção do legislador foi precisa e clara nesse sentido, quando implementou a reforma em tela, asseverando, reclamando, protestando, anunciando o seu intuito no sentido de tornar a Lei mais rigorosa para com o condutor embriagado, tanto que no primeiríssimo artigo da Lei nº11.705/2008 utilizou ele a cabal expressão “com a finalidade de estabelecer alcoolemia 0 (zero) e de impor penalidades mais severas (grifo meu) para o condutor que dirigir sob a influência do álcool”.
Não obstante essa claríssima intenção do Legislador em tornar a Lei mais severa, gerou-se equívoco interpretativo delicado e perigoso no que se refere à admissibilidade da prova testemunhal para a aferição do estado etílico.
Isso deu-se por culpa do próprio Legislativo, dos seus atropelos, das suas ânsias e da sua falta de cuidado. Com efeito, temos, como elemento do tipo novel a expressão “estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas”. E é aqui que surge o mais terrível dos pesadelos de que todo e qualquer do povo, agente de trânsito, ou policial, sedentos por uma Lei, efetivamente, mais severa, jamais poderiam prever!
Sobre isso, falaremos no derradeiro capítulo deste redigido, deixando para os próximos algumas considerações conceituais pontuais sobre o tipo aventado e sobre hermenêutica jurídica, esta última constituindo-se na única fórmula capaz de dissolver todo o impasse exsurgido.
2. NOÇÕES CONCEITUAIS SOBRE O ARTIGO 306 DO CTB
Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Preliminarmente, cumpre salientar que não se trata de infração de menor potencial ofensivo, porquanto sua pena máxima supera um ano, limitação estabelecida pelo artigo 61 da Lei nº. 9.099/95. Também não o é em relação à Lei n. 10.259/01 a qual instituiu os Juizados Especiais Criminais na Justiça Federal, já que, nos termos do artigo 2.° do mencionado diploma legal, o máximo de pena privativa de liberdade foi fixado no montante de dois anos.
Em relação ao tipo em tela, outrossim, aplica-se a transação penal disciplinada no artigo 76 da Lei nº. 9.099/95, por força do disposto no parágrafo único do artigo 291 do Código de Trânsito Brasileiro.
Tecnicamente, mostram-se inviáveis a composição civil e a representação, em decorrência da inexistência de vítima precisa.
Outro ponto que sempre vale lembrar é que a figura do art. 34[9] da LCP subsistiu, tão-somente, com o advento do CTB em 1997, no que se refere à direção perigosa de embarcação a motor em águas públicas, assim como o de outros comportamentos perigosos à direção, não estando o condutor embriagado, como o ziguezague, o cavalinho-de-pau, etc.
Por outro lado, na extremidade ativa da infração do art. 306 do CTB figura o condutor de veículo automotor, podendo ele ser habilitado ou não para dirigi-lo. Por se tratar de delito de mão própria, percebe-se que a co-autoria é inviável. É possível, no entanto, a participação. Um exemplo disso seria o indivíduo que induz o condutor de veículo automotor, embriagado, a levá-lo para casa.
O sujeito passivo imediato é a coletividade. Secundariamente, pessoas que tenham sido expostas eventualmente à situação de perigo.
Antes da reforma, a infração consumava-se no exato momento do cometimento do comportamento anormal à direção do veículo automotor, após ter o condutor ingerido substância alcoólica ou de efeitos análogos. Agora, basta a condução do veículo em estado de embriaguez alcoólica para a subsunção do comportamento ao tipo.
A tentativa, como se percebe, era impossível, mas hoje, não havendo necessidade de comportamento anormal na condução do veículo, ela é perfeitamente viável. Assim, implica-se no tipo, em sua forma tentada, quem é impedido, por motivos alheios à sua vontade, de conduzir veículo automotor, estando em estado de embriaguez alcoólica ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.
Outro ponto importante, ainda, é observarmos que os crimes de resultado previstos no CTB – homicídio e lesões corporais culposos de trânsito – absorvem, de regra, o crime de a embriaguez ao volante, já que este é um crime de perigo.
É evidente, contudo, que a lesão corporal culposa de trânsito tem pena máxima dois anos de detenção, ao passo em que o delito estudado abarca até três anos de detenção como pena máxima. Desta forma, a lesão corporal culposa, não agravada pelas circunstâncias de aumento previstas no parágrafo único do artigo 302 do CTB, deverá ser absorvida pela infração mais severa, in casu, a embriaguez ao volante.
Por outro lado, no que se refere ao artigo 309 do CTB (falta de habilitação ou permissão para dirigir, ou estando o condutor com esse direito cassado), a embriaguez ao volante absorvê-lo-á. Ocorre que as duas infrações são de perigo, ocasião em que uma delas mostra-se mais severa que a outra. Resta, assim, impor-se a aplicação da agravante genérica prevista no inciso III do artigo 298 do CTB. Por fim, cumpre salientar que a embriaguez ao volante também absorverá os artigos 308 (“racha”) e 311 (excesso de velocidade).
3. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE HERMENÊUTICA JURÍDICA
A hermenêutica jurídica configura-se em ciência, em uma verdadeira arte da interpretação da linguagem jurídica. Seu intuito visa trazer à baila aqueles princípios e regras que se constituem em ferramentas para o intérprete. Intitula-se exegese a aplicação de referidos regramentos.
Quanto à natureza, ou meios de efetivá-la, tem-se as seguintes espécies de interpretação: gramatical, onde se procura o significado literal da linguagem; lógica, onde se busca contextualizar a norma, tendo-se por base as normas anteriores e posteriores, bem como o sistema onde está incluída; histórica, que visa à intenção do legislador, buscando esta pela análise do momento da feitura da norma como pela análise da origem do seu desígnio, prevalecendo a aferição da situação fática existente quando da edição da Lei; teleológica (sociológica), a qual visa à adaptação da norma ao contexto social vigorante ao tempo de sua aplicação; e sistemática, que almeja a interpretação contextual da norma, seu lugar nos textos positivos, eventuais subordinações a outros textos, enfim, sua posição na espécie legislativa que a prevê e seus campos de aplicação.
Quanto aos sistemas de interpretação, tem-se o Sistema da livre pesquisa, onde o intérprete tem de buscar a finalidade social da norma. Em outras palavras, deve ir ao encalço do bem comum (artigo 5.º da Lei de Introdução ao Código Civil)[10]. Também há o Sistema dogmático, que impõe a interpretação do Direito com base exclusiva na Lei e, finalmente, o Sistema histórico-evolutivo (Savigny), que procura abrandar o sistema dogmático. Em verdade, não-obstante, prevalece no Brasil o Sistema da livre pesquisa.
Além disso, são cinco os passos a serem utilizados na interpretação da lei. O primeiro consiste na interpretação literal (gramatical); o segundo consiste na verificação dos critérios da lógica, concepção histórica, teleológica e sistemática da Lei; o terceiro consiste na utilização da analogia; o quarto no uso dos costumes, doutrina e jurisprudência (critérios secundários); e, finalmente, o quinto consiste na utilização dos princípios gerais do Direito.
Como conseqüências dessa sistemática interpretativa, poderemos chegar a uma interpretação declarativa, quando o intérprete conclui que o texto disse exatamente o que desejava o Legislador; restritiva, quando o exegeta acredita que o legislador disse mais do que desejava; e extensivo, quando se conclui que o texto legal diz menos do que se pretendia ao editá-lo, sendo necessária a ampliação do seu campo de abrangência.
Diante de tudo o que se expôs, portanto, vê-se que há múltiplas possibilidades de interpretação legal, subsistindo ao exegeta as mais variadas formas de se chegar a uma justa, correta e equilibrada conclusão acerca das normativas lançadas pelo Legislativo. É bem possível, pois, “ser justo”, de acordo com o que rezou Juan Carlos Mendonça no excerto com o qual se concedeu abertura a este artigo. E é nessa linha de raciocínio, aliás, onde se busca o exercício pleno e constante do julgamento conforme o direito e a melhor consciência, a vereda onde se pretenderá desenvolver o previsto e derradeiro capítulo seguinte.
4. A PERFEITA ADMISSIBILIDADE DA PROVA TESTEMUNHAL PARA A CONFIGURAÇÃO DOS DELITOS DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE
A pergunta imanente que habita o intelecto daquele que recalcitra em admitir a prova testemunhal como elemento probatório nos delitos de embriaguez ao volante, após a reforma do CTB, é a seguinte: como a prova testemunhal pode aferir a concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas?!
Aí, então, é onde fica o exato espaço onde entra a hermenêutica jurídica, para se saber qual era a vontade do Legislador e o que se pode fazer, então, para corrigir as impropriedades das suas construções apressadas e desapercebidas de exatidão.
A resposta precisa e direta ao questionamento em voga será conferida em uma sentença simples, de apenas um parágrafo, ao final deste capítulo (último parágrafo), mas não sem antes se tecerem alguns inevitáveis comentários a respeito de toda essa problemática, até porque “o sistema é um conjunto de partes interagentes e interdependentes que, conjuntamente, formam um todo unitário com determinado objetivo e efetuam determinada função”[11].
Pois bem. Consoante já se disse acima, a intenção do Legislador, ao promover a reforma, foi enfática no sentido de tornar mais rigoroso o controle do trânsito pelas autoridades públicas e infligir penas mais severas aos transgressores das essenciais normas de trânsito postas em prol da segurança da coletividade.
Como se sabe, e falando novamente em interpretação da Lei, esta pode dar-se, além do que já foi explicado, da seguinte forma: quanto ao sujeito que a interpreta (autêntica – podendo ser contextual ou não contextual; doutrinária; e judicial); quanto ao modo (gramatical; teleológica; lógica; histórica; sistemática; progressiva; de direito comparado; e sociológica); e quanto ao resultado (declarativa; restritiva; e extensiva – podendo ser ampliativa, que é proibida, ou analógica, que é permitida, cujas modalidades são intra legem ou in bonam partem).
Percebe-se, assim, que, quando falamos acerca dos comandos contidos na Lei nº11.705/2008, em especial no que tange à sua influência exercida especificamente no art. 306 do CTB, podemos classificar a interpretação do dizer legislativo, quanto ao sujeito, em autêntica contextual, porque dita pela própria Lei e no seu próprio texto, sem se esperar edição posterior de norma complementadora do seu sentido; quanto ao modo, em gramatical, porquanto diz, claramente, o que se deseja; e, quanto ao resultado, finalmente, em declarativa, já que diz tudo o que se deseja ver realizado no mundo material.
Por meio, pois, de uma singela interpretação, estampa-se que o Legislador, quando implementou a reforma em tela, asseverando, reclamando, protestando, anunciando o seu intuito, de forma contextual, no sentido de tornar a Lei mais rigorosa para com o condutor embriagado, fê-lo já no primeiríssimo artigo da Lei nº11.705/2008, ao utilizar ele a cabal expressão “com a finalidade de estabelecer alcoolemia 0 (zero) e de impor penalidades mais severas (grifo meu) para o condutor que dirigir sob a influência do álcool.
Se, portanto, o desígnio claríssimo do legislativo foi o de impor maior rigor no combate a embriaguez ao volante, qual o sentido em se infundir óbice à prova testemunhal como suficiente para a constatação do seu estado etílico?!
A grande formulação interrogativa que se faz a quem defenda a imprescindibilidade de aferição técnica de concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, quer seja por meio do bafômetro, quer seja por meio de exame de sangue, etc., é a seguinte: e se o condutor de veículo automotor, estampadamente embriagado, com sinais notórios tais como forte hálito alcoólico, andar inseguro ou inviável, palavras incoerentes e confusas, falar pastoso, etc., negar-se a submeter-se ao exame do bafômetro, bem como se negar à coleta do seu sangue?! Restará ele impune?! Foi essa a vontade do Legislador, ao editar a nova Lei, quando deixou expresso o seu desígnio em impor penalidades mais severas?!
Não seria a embriaguez ao volante, sabidamente, uma das principais causas de acidentes e mortes no trânsito brasileiro? O álcool e as demais substâncias de efeitos embriagantes não atuariam, como é de todos cediço, diretamente sobre o sistema nervoso central, diminuindo sensivelmente a capacidade de reação do condutor de veículo automotor e colocando, assim, a segurança coletiva em irrefutável xeque?
Pois bem. É com tijolos imperfeitos, mais uma vez fornecidos pela Excelsa Olaria do Legislativo, donde surgem os principais materiais necessários à construção e consolidação do Estado democrático e de direito anunciado no art. 1º da CF[12], que nos compete construir os pilares da Justiça.
Restaram-se, então, em uma situação delicada aquelas autoridades públicas como o Delegado de Polícia, aplicadores diretos da norma que são, nas situações de apresentação de presos em flagrante por incidência, em tese, no tipo do art. 306 do CTB, com supedâneo exclusivo em prova testemunhal, tendo de decidir pelas autuações, ou não, em flagrante, ou pela liberação desses conduzidos.
Mas apesar desse mal-estar hermenêutico que se ergueu com a reformulação recente do CTB, é perfeitamente concebível que se conclua pela autuação em flagrante dos condutores nas situações supraditas, pelas simples, diretas, concisas, precisas e hialinas razões seguintes:
Reza o artigo 291[13] do CTB que aos crimes cometidos na direção de veículos automotores aplicam-se as normas gerais do Código de Processo Penal.
No Capítulo II do CPP, onde se versa sobre o exame de corpo de delito e sobre as perícias em geral, consta, no art. 158[14], que, quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado. Todavia, no art. 167[15] do CPP, consta que, não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.
Ora!, se o condutor embriagado não permitiu sua submissão corporal ao teste do bafômetro, bem como não aceitou a coleta de sangue do seu corpo, para aferição de seu estado etílico, bem como, por exemplo, não tenha sido possível a sua imediata condução a exame clínico, desaparecendo, então, o que não é raro, os vestígios da embriaguez alcoólica, perfeitamente viável é o suprimento dessa lacuna pela prova testemunhal.
Veja-se que está disciplinado no art. 277[16] do CTB que o condutor suspeito de embriaguez alcoólica será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado. Desta forma, apenas para reforçar a presente fundamentação, vislumbra-se que o termo “perícia” está empregado no sentido geral da palavra, nos exatos moldes impressos no Capítulo II do CPP, podendo, pois, desaparecendo os vestígios, não por culpa ou desídia do agente de trânsito ou da polícia, avocar-se a prova testemunhal.
Por outro lado, não se pode conceber, outrossim, que tais metodologias de constatação do estado etílico do condutor insertas no mencionado art. 277 do CTB devem restringir-se à esfera de sua responsabilização administrativa cuja sanção correspondente é aquela inserta no preceito secundário do artigo 165[17] do Códex de Transito Brasileiro. Com efeito, a “embriaguez” é uma só, podendo gerar seus efeitos tanto na esfera administrativa como também na penal.
Aliás, o §2º[18] do art. 277 reza que a infração prevista no art. 165 do CTB poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor. Como se vê, sendo a “embriaguez”, na acepção da palavra, uma única realidade, constituindo-se ela em um estado de inebriamento, êxtase, enlevação que pode gerar conseqüências administrativas e penais, parece-me que o CTB alargou mesmo ao máximo a possibilidade probatória de referida sintomatologia. E não se diga que o cotejar do estado ébrio do condutor, ou em outras palavras, a embriaguez do condutor, levada a efeito por meio de “outras provas em direito admitidas”, seja afeta, exclusivamente, à infração administrativa prevista no art. 165 do CTB, porquanto a “embriaguez”, além de ser uma só, produz suas nefastas conseqüências, que ofendem aos nossos bens juridicamente tutelados pelo Estado, nas duas esferas, quer a administrativa, quer a penal, em verdadeiro concurso formal lato[19].
Outra observação importante de ser levada em conta neste momento é que não se pode sustentar, de forma alguma, que o desígnio do Legislador foi o de “impor penalidades mais severas” apenas no âmbito administrativo. É certo que a atual redação do art. 165 do CTB contenta-se com a expressão “sob a influência de álcool”. Todavia, é de se notar que a redação original desse artigo[20] exigia, em seu texto primitivo, “nível superior a seis decigramas por litro de sangue”, mas, no ano de 2006, com a redação dada pela Lei nº11.275/2006[21], acabou contentando-se com a expressão “sob a influência de álcool“, ou seja, desde o ano de 2006 não se vê alteração legislativa que imponha maior severidade na aferição do estado etílico do condutor para efeitos “administrativos”.
Assim, se a redação original do art. 306[22] do CTB também se contentava com a expressão “sob a influência de álcool”, não faz sentido então, com a festejada reforma do CTB, onde o desígnio literal do Legislador foi o de impor penalidades mais severas ao condutor embriagado, manter a mesma exigência para a infração administrativa e, quanto à infração penal, torná-la, em verdade, impraticável, caso não haja a colaboração, a cooperação, a ajuda, o auxílio, a contribuição ou a boa vontade do próprio delinqüente que, diga-se de passagem, muitas vezes em decorrência do seu próprio estado ébrio, aturdido, embriagado, estonteado sequer conseguiria colaborar, se assim o desejasse.
Percebe-se, então, por meio de uma simples interpretação das novidades legais aqui comentadas, que a clara intenção do Legislador foi, já no primeiro artigo[23] da norma que infundiu a mencionada reforma no CTB, impor penalidades mais severas ao condutor que conduzir o seu veículo automotor “sob a influência de álcool”.
Gize-se, não obstante, que o condutor não precisa estar embriagado para os efeitos do art. 165 do CTB, bastando a simples “influência de álcool”, devendo ele estar embriagado, tão-somente, para os efeitos do art. 306 do CTB, como se verá, em relação a este última afirmação, mais adiante.
Seguindo à frente a interpretação da norma, notamos que por meio de uma interpretação “lógica”, a qual tem por base as normas anteriores e posteriores, bem como o sistema onde está ela incluída, a repressão estatal frente ao condutor em estado inebriante vem-se tornando mais severa desde quando deixou de ser o assunto tratado como mera contravenção penal, aprimorando-se em 1997, com o advento do CTB, posteriormente com suas modificações advindas em 2006 e, agora, com a corpulenta e vastamente noticiada reformulação ocorrida no ano em curso. Assim, em todo esse período, o Legislador sempre deixou claro que desejava reprimir, progressivamente, com maior efetividade as infrações cometidas por condutores irresponsáveis.
Sem parar por aí, prosseguindo a senda interpretativa, pode-se ver que a metodologia “histórica”, a qual visa à intenção do legislador, buscando-se a análise do momento da feitura da norma e a análise da origem do seu desígnio, prevalecendo a aferição da situação fática existente quando da edição da Lei, fica-nos patente, diante do caos do nosso tráfego contemporâneo de veículos, com incontáveis acidentes e mortes veiculadas pela imprensa, que o intuito do Legislador foi mesmo o de barrar referida realidade trágica, sinistra e funesta de nossa época.
Prosseguindo, quando nos deparamos com a espécie “teleológica” (sociológica) de interpretação, a qual visa à adaptação da norma ao contexto social vigorante ao tempo de sua aplicação, é possível repetirem-se, simplesmente, as palavras já escritas do parágrafo anterior.
Além disso, ao utilizarmos outro caminho de interpretação, por intermédio do critério secundário da “jurisprudência”, ostenta-se como verdade o fato de que a medição da concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas constante na nova redação do art. 306 do CTB não passou de uma impropriedade do Legislador o qual desejou declarar não “sob a influência de álcool”, o que só vale para a infração administrativa do art. 165 do CTB, mas quis ele dizer “embriagado”. Efetivamente, basta, para a configuração de infração administrativa, a “influência de álcool”, já que o Legislador desejou adotar com a nova Lei alcoolemia zero. Desta forma, ainda que o condutor não esteja “embriagado”, responderá ele pela infração administrativa, caso haja ingerido álcool em tempo pretérito próximo. De efeito, consoante o art. 276[24] do CTB, qualquer concentração de álcool é suficiente para a configuração da infração administrativa prevista no art. 165 do CTB, ou seja, não é necessário o estado de “embriaguez”. Agora, se estiver o condutor “embriagado”, sua conduta subsumir-se-á no art. 306 do CTB.
Por outro lado, quando se fala em embriaguez alcoólica, é importante mencionar que é relativa a dosimetria de pessoa para pessoa, em decorrência de suas tolerâncias específicas diante da influência do álcool. E sobre isso o Legislador olvidou-se ao estabelecer determinada percentagem de álcool no tipo do art. 306 do CTB, gerando uma avalanche de opiniões conturbadas sobre o assunto.
Porém, é mais uma vez a jurisprudência, sempre prudente, a esclarecer a melhor maneira de se interpretar a norma, asseverando, então, que, a embriaguez pode ser provada não apenas pelo exame de dosagem alcóolica o qual não é essencial, mas também pela prova testemunhal (ictu oculi), devendo esta ser a preponderante sobre aquele primeiro exame, ante a relatividade dos efeitos do álcool sobre os indivíduos[25].
Como não se conceder valoração à prova testemunhal, portanto, para a aferição do estado de embriaguez alcoólica do motorista, se, ainda que esteja com concentração um pouco inferior a seis decigramas, pode ele estar, visivelmente, embriagado e, mesmo estando um pouco acima dessa referida dosimetria, pode ele não estar?!
O que se quer combater com a Legislação é a “embriaguez” alcoólica ou se quer impor um jogo de sorte, muitas vezes sem sentido, pelas razões supra, aos motoristas abordados por agentes de trânsito?!
Os acidentes de trânsito não seriam hoje uma das principais causas de morte no país, segundo dados da pesquisa de mortalidade por acidentes de transporte terrestre, divulgada amplamente em 25 de abril de 2007, na Primeira Semana Mundial das Nações Unidas de Segurança no Trânsito, promovida pela Organização Mundial de Saúde?!
O assunto é seriíssimo e sobre isso há fartura de jurisprudência, nacional e internacional, pronunciando-se pela desconsideração de dosimetrias pertinentes à concentração alcoólica, conferindo credibilidade, isto sim, à prova testemunhal[26].
Dessa arte, por todos os meios de interpretação legislativa possíveis, conclui-se pela perfeita admissibilidade da prova testemunhal como mecanismo comprobatório bastante dos delitos de embriaguez ao volante, inferindo-se que a intenção do Legislador ao versar sobre concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas foi a de anunciar que referida concentração implicaria, necessariamente, a “embriaguez” alcoólica do condutor, o que a jurisprudência nacional e internacional já sedimentou ser um tremendo equívoco[27].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo que se expendeu, evidenciado restou que o ímpeto do Legislador preservar-se-á, unicamente, caso haja a adequada interpretação da sua desastrosa redação contida no art. 306 do CTB. Certamente, de acordo com uma hermenêutica adequada, pode-se provar a sua vontade e demonstrar que nem tudo é o que parece ser aos nossos primeiros e ligeiros olhares.
Em consonância com a Teoria Geral da Relatividade de Albert Einstein, a qual anunciou que a matéria (energia) curva o espaço e o tempo à sua volta, ou seja, que a própria gravitação é um efeito da geometria do espaço-tempo, no campo jurídico a razão (lógica), que pode bem ser percebida por um simples e honrado carroceiro, também curva a gramática dos infelizes e apressados textos legais à sua volta, não o contrário.
A razão de algumas normas parece mesmo ser, às vezes, a própria Excalibur cravada na rocha, não sendo possível a outro que não o Rei Arthur retirá-la para si. Todavia, a razão de qualquer lei é mais simples do que se possa imaginar, caso lembremos do adágio de Mendonça, exposto como exórdio deste artigo, onde se disse que devemos, antes de mais nada, verificar onde está o justo e, após, fundamentá-lo no Direito.
Informações Sobre o Autor
Roger Spode Brutti
Delegado de Polícia Civil no RS. Doutorando em Direito (UMSA). Mestre em Integração Latino-Americana (UFSM). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ULBRA). Especialista em Direito Constitucional Aplicado (UNIFRA). Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos (FADISMA)