Revista 188

A eficácia da sentença em ação civil pública

Por: Fernando Gabriel de Carvalho e Silva*

 

Resumo

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Em uma sociedade de massas onde os conflitos ultrapassam os interesses meramente individuais e que os bens jurídicos, tutelados pela constituição e pelas normas em geral, pertencem a vários indivíduos indeterminados, mostra-se necessário conhecer os mecanismos de tutela dos direitos coletivos, especialmente a Lei da Ação Civil Pública, bem como a eficácia da sentença coletiva que, em regra, visa abarcar o maior número de pessoas lesionadas por determinado fato jurídico. Nesse diapasão, é imprescindível o estudo da tentativa legislativa de limitar territorialmente os efeitos da sentença em ação civil pública apenas no local de competência do juízo prolator e a sua impertinência na ordem jurídica, e ainda as teses jurisprudenciais e doutrinárias que visam contornar referida limitação territorial.

Palavras-Chave: Ação civil pública. Eficácia. Efeitos. Sentença. Coisa julgada.

 

Abstract

In a mass society where conflict go beyond merely individual interests go the legal assets protected by the Constitution and the rules in general belong to various indeterminate individuals it is necessary to know the mechanisms for the protection of collective rights, especially the law of public civil action as well as the effectiveness of the collective judgment that, as a rule, aims to cover the largest number of people injured by a given legal fact. In this context, it is essential to study the legislative attempt to territorially limit the effects of the sentences in public civil action only in the place jurisdiction of the ruling court and it’s impertinence in the legal order, as well as the jurisprudential and doctrinal theses aimed at circumventing this territorial limitation.

Keywords; Public civil action. Effectiveness. Effect. Judgement. Judicate. Res judicata.

 

Sumário: Introdução. 1. Breve conceito dos direitos coletivos. 2. Eficácia da sentença em Ações Coletivas. 3. Coisa Julgada nas Ações Coletivas. 3.1. Coisa Julgada secundum eventum probationis. 3.2. Coisa Julgada secundum eventum litis. 4. Limitação territorial da eficácia da sentença prolatada em Ação Civil Pública. 5. Microssistema de Processos Coletivos. 5.1 Aplicação do art. 103 do Código de Defesa do Consumidor nas Ações Civis Públicas. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo busca abordar a eficácia da sentença proferida em sede de ação civil pública que tutela direitos coletivos lato sensu. É necessário, inicialmente, conhecer os mecanismos trazidos pela Lei da Ação Civil Pública e, especialmente, pelo Código de Defesa do Consumidor no que diz respeito a coisa julgada e a eficácia da sentença proferida em ação coletiva, a fim de que se faça a necessária distinção com a eficácia da sentença e os efeitos ordinários da coisa julgada em demandas individuais. Ato contínuo, é analisado detalhadamente a tentativa de limitar a eficácia da sentença coletiva pelo art. 16 da Lei da Ação Civil Pública e a sua impertinência na ordem jurídica vigente, bem como a sua possível inconstitucionalidade, sem embargo do estudo dos conceitos e institutos trazidos pelo próprio artigo em questão. Por fim, é explicitada a solução encontrada pela doutrina e pela jurisprudência para reger a eficácia da sentença coletiva proferida na ACP.

 

  1. Breve conceito dos direitos coletivos

Os direitos coletivos surgem juntamente com a denominada “sociedade de massas”, ou seja, quando os conflitos comerciais, tecnológicos e até ambientais são capazes de atingir, ao mesmo tempo, grandes grupos sociais, bem como bens jurídicos de titularidade de todos os indivíduos ou de um grande grupo de pessoas. Temos como exemplo um dano ao meio ambiente que pode prejudicar uma boa parcela da sociedade. Nota-se que além do número incerto de pessoas atingidas, o bem jurídico tutelado não pertence a um único indivduo, mas a toda coletividade. É o caso, também, de uma cláusula abusiva, ilegal, em um contrato de adesão de uma universidade privada, atingindo direitos de inúmeros alunos, indetermináveis em um primeiro momento, mas possível de serem determinados.

Percebendo a existência de direitos supra ou metaindividuais, ou seja, pertencente  ao mesmo tempo à várias pessoas, bem como, na maioria dos casos, esses mesmos direitos serem indivisíveis, como por exemplo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a doutrina iniciou a tarefa de distingui-los, o que culminou, agora por parte do legislador, com a separação de três espécies de direitos coletivos, quais sejam, os direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos. Passemos à uma breve análise de cada um deles.

 

  1. Difusos:

São os direitos transindividuais, real ou material, de natureza indivisível, ou seja, que pertencem a todos de forma simultânea e indistinta. Os titulares são pessoas absolutamente indeterminadas ou indetermináveis.

O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 81, parágrafo único, inciso I, traz um conceito de direitos difusos, vejamos:

“Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;”

Ricardo de Barros Leonel (2013, p. 93), aprofundando no conceito formulado pelo legislador, explica que “sua titularidade é de pessoas  indeterminadas e indetermináveis, que não podem ser identificadas precisamente; são unidas por uma simples circunstância de fato ou contingencial extremamente mutável, o fato de residirem em determinado local ou região; o objeto do seu interesse é indivisível, pois não se pode repartir o proveito, e tampouco o prejuízo, visto que a lesão atinge a todos indiscriminadamente, assim como a preservação a todos aproveita; não há vínculo  jurídico preciso entre os titulares.”

Além do meio ambiente ecologicamente equilibrado, temos como exemplo de direitos difusos o direito ao ar puro, à limpeza das águas e até mesmo às boas práticas administrativas de um governo (moralidade administrativa).

 

  1. Coletivos stricto sensu:

Os direitos ou interesses coletivos stricto sensu também são transindividuais,  real ou material, de natureza indivisível, e os titulares são indeterminados, mas diferentemente dos direitos difusos, podem ser determinados, ou seja, identificados, pois fazem parte de um grupo específico, categoria ou classe de pessoas, todas ligadas por uma relação jurídica base.

O Código de Defesa do Consumidor assim conceitua os direitos coletivos stricto sensu em seu art. 81, parágrafo único, inciso II:

Art. 81…

[…]

II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

Segundo Ricardo de Barros Leonel (2013, p. 98): “estes interesses são também inerentes a pessoas indeterminadas a princípio, mas determináveis, pois o vínculo entre elas é mais sólido, decorrente de uma relação jurídica comum. Aqui também o objeto ao qual se volta o interesse é indivisível, satisfazendo a todos ao mesmo tempo, sendo todo o grupo lesado coetaneamente na hipótese de violação. Deste modo, os coletivos distinguem-se dos difusos, ambos indivisíveis, pela sua origem, na medida em que nestes o vínculo relaciona-se a dados acidentais ou factuais, enquanto naqueles a ligação dos integrantes do grupo, categoria ou classe decorre de uma relação jurídica.”

A diferença marcante entre os direitos difusos e coletivos strito sensu está no fato de que estes decorrem de uma relação jurídica base, enquanto aqueles decorrem de fatos. Outra diferença marcante é a possibilidade, nos direitos coletivos stricto sensu, de identificar todos os indivíduos lesionados (grupo, categoria ou classe de pessoas). Entretanto, os direitos tutelados, em ambos os casos, são indivisíveis, ou seja, o resultado de eventual demanda (ação judicial) será igual para todos os integrantes do grupo, categoria ou classe de pessoas.

 

  1. Individuais Homogêneos:

São considerados como direitos ou interesses acidentalmente coletivos, isso porque são, na realidade, direitos individuais, mas tratados pela lei como se fossem coletivos. A transindividualidade é artificial, formal ou relativa, pois, repita-se, em que pese individuais, são tratados como coletivos. Tem natureza divisível, ou seja, o resultado da demanda pode ser diferente para os titulares, como por exemplo a diferença no valor da indenização por danos morais ou do ressarcimento. Em que pese os titulares não serem ligados entre si como nos direitos coletivos stricto sensu, seus interesses decorrem de uma origem comum.

Vejamos o conceito de direitos individuais homogêneos trazido pelo art. 81, parágrafo único, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 81…

[…]

III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

Oportuno os destaques e características de tais direitos nas palavras de Pedro Lenza (2005, p. 76) “os interesses individuais homogêneos caracterizam-se por sua divisibilidade plena, na medida em que, além de serem os seus sujeitos determinados, não existe, por regra, qualquer vínculo jurídico ou relação jurídica-base ligando-os, sendo que, em realidade, a conexão entre eles decorre de uma origem comum, como, por exemplo, o dano causado à saúde individual de determinados indivíduos, em decorrência da emissão de poluentes no ar por uma indústria. Diante disso, perfeitamente identificável o prejuízo individual de cada qual, podendo se dividir (cingir) o interesse, efetivando-se a prestação jurisdicional de maneira correlacionada ao dano particular.”

 

  1. Eficácia da sentença em ações coletivas

Inicialmente, não é demasiado lembrar que eficácia da sentença e coisa julgada não se confundem. Assim, a eficácia da sentença se relaciona com os limites da lide e das questões decididas, ou seja, a eficácia no pronunciamento judicial é limitada à questão principal decidida na demanda, nos termos do art. 503 do Código de Processo Civil e, eventualmente, alcança também a questão prejudicial decidida expressa e incidentalmente, nos termos do art. 503, §1º do Código de Processo Civil. Dentro desse conceito é possível falar ainda em eficácia subjetiva da sentença, ou seja, se seus efeitos alcançam apenas as partes litigantes (eficácia inter partes) ou demais sujeitos não litigantes (ultra partes e erga omnes).

Já a coisa julgada é qualidade que se agrega a sentença tornando-a imutável e indiscutível. Assim sendo, segundo a doutrina de Cintra, Dinamarco e Grinover (2009, p. 328) “a sentença não mais suscetível de reforma por meio de recursos transita em julgado, tornando-se imutável dentro do processo. Configura-se a coisa julgada formal, pela qual a sentença, como ato daquele processo, não poderá ser reexaminada

Já a coisa julgada material, segundo os mesmos autores (2009, p. 329), “torna imutáveis os efeitos produzidos por ela e lançados fora do processo. É a imutabilidade da sentença, no mesmo processo ou em qualquer outro, entre as mesmas partes. Em virtude dela, nem o juiz pode voltar a julgar, nem as partes a litigar, nem o legislador a regular diferentemente a relação jurídica”.

O C. Superior Tribunal de Justiça, notando a diferença apontada entre eficácia da sentença e coisa julgada, com base na doutrina de Enrico Tullio Liebman, passou a dar o tratamento adequado ao tema, vejamos trecho do V. Acórdão da lavra da Min. Laurita Vaz:

“De qualquer maneira, pode-se verificar que há muito ressalto a necessária diferença entre a eficácia da sentença e a eficácia da coisa julgada, com base nos ensinamentos clássicos de ENRICO TULLIO LIEBMAN (Eficácia e Autoridade da Sentença e outros escritos sobre a coisa julgada, 3ª Edição, Forense, Rio de Janeiro, 1984). Essa distinção deve ser ressaltada, mais uma vez: (i) a eficácia de sentença é a sua aptidão a gerar efeitos modificativos na esfera jurídica; e (ii) a eficácia da coisa julgada é o atributo de imutabilidade conferida a uma decisão judicial a partir de seu trânsito em julgado. (STJ – Embargos de Divergência em Resp. No 1.134.957 – SP (2013/0051952-7). Relatora: Ministra Laurita Vaz).

Levando em consideração os institutos e conceitos supra analisados, é forçoso reconhecer que os direitos transindividuais, ou seja, os direitos difusos, coletivos stricto sensu, e individuais homogêneos, não podem ser efetivamente protegidos e garantidos pela tutela individual, tendo em vista que esse tipo de tutela restringe seus efeitos entre as partes litigantes, ou seja, a sentença possui eficácia subjetiva inter partes, não abarcando outros sujeitos, ainda que se encontrem em situação jurídica semelhante, ou mesmo idêntica. Vejamos o exemplo de um consumidor que adquire um veículo com defeito e propõe uma ação individual contra a montadora. É bem provável que o autor da ação saia vitorioso, obtendo a devolução dos valores pagos ou o conserto gratuito do veículo. Ocorre que, outros consumidores que adquiriram o mesmo modelo de veículo, que possui o mesmo problema, não poderão se beneficiar da sentença prolatada na ação individual.

Portanto, a eficácia da sentença coletiva, ultra partes ou erga omnes, é uma das principais características diferenciadoras da tutela individual que justifica a existência da própria tutela coletiva e as suas finalidades essenciais, como por exemplo a segurança jurídica (uma mesma decisão judicial vale para os sujeitos em igual situação jurídica) e economia processual (tendo em vista que uma ação coletiva substitui inúmeras ações individuais).

É necessário reconhecer, entretanto, em que pese a diferença entre eficácia da sentença e coisa julgada, como previsto no Código de Defesa do Consumidor em seu art. 103, que nas ações coletivas a sentença fará coisa julgada erga omnes nas ações que tutelam direitos difusos e individuais homogêneos, bem como ultra partes em relação as ações que tutelam direitos coletivos stricto sensu. Na realidade, interpretando a norma, é forçoso reconhecer que referido artigo não trata da eficácia da sentença coletiva, mas sim que os efeitos da coisa julgada, ou seja, a imutabilidade e indiscutibilidade, alcançam a todos os legitimados coletivos, exceto se a ação que envolve direitos difusos ou coletivos stricto sensu seja julgada improcedente por falta provas, hipótese em que qualquer outro legitimado coletivo poderá propor nova ação valendo-se de prova nova, como veremos a seguir. Já em relação aos direitos individuais homogêneos, a imutabilidade e indiscutibilidade (efeitos da coisa julgada) alcançam a todos os legitimados coletivos em caso de procedência do pedido, nos termos do art. 103, inciso III do Código de Defesa do Consumidor, bem como em caso de improcedência do pedido, ainda que por falta de provas, nos termos do art. 103, §2º do Código de Defesa do Consumidor e da jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça (STJ. 2º Seção. Resp 1.302.596-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 9/12/2015 – info. 575).

Por outro lado, a eficácia da sentença coletiva procedente vai além das partes que litigam  (eficácia da sentença não limitada aos sujeitos da lide). Entretanto, há uma exceção prevista no art. 104 do Código de Defesa do Consumidor, vejamos o texto da lei:

“Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva”. (sublinhei).

Há de se reconhecer, entretanto, a existência de uma impropriedade na norma, pois não se trata dos efeitos da coisa julgada erga omnes eu ultra partes, ou seja, da imutabilidade e indiscutibilidade, mas da própria eficácia da sentença, o seu efeito prático ou o bem da vida almejado que não alcançará àqueles que não requererem a suspensão de suas ações individuais.

Demonstrada a exceção supra, nos demais casos a sentença coletiva procedente alcançará a todos que se encontram em igual situação jurídica. Entretanto, essa eficácia não alcançará o autor da ação individual que tenha como fundamento direito coletivo stricto sensu ou individual homogêneo se não requerer a suspensão da sua ação no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva, nos exatos termos do art. 104 do Código de Defesa do Consumidor.

 

  1. Coisa Julgada nas ações coletivas

Como a eficácia da sentença em ações coletivas possui peculiaridades se comparada à ação individual, também a coisa julgada nessas espécies de ações possui características diferenciadoras a fim de resguardar o direito da coletividade.

Inicialmente, a coisa julgada na demanda individual se forma independentemente do pronunciamento judicial favorável ou não, ou seja, ainda que a demanda seja julgada procedente ou improcedente, desde de que analisado o mérito. É a chamada coisa julgada pro et contra. Diferentemente ocorre na demanda coletiva, em que a improcedência da ação, em alguns casos, não alcançará os demais legitimados coletivos, ou mesmo as pessoas que optarem pela demanda individual, conforme veremos a seguir.

  • Coisa Julgada secundum eventum probationis

Na hipótese de julgamento de improcedência do pedido por falta de provas, a coisa julgada (indiscutibilidade e imutabilidade) na ação coletiva não alcançará os legitimados coletivos, que poderão propor nova ação, com as mesmas partes, pedidos e causa de pedir, valendo-se de prova nova. Basicamente, essa é a coisa julgada secundum eventum probationis.

Cabe ressaltar que referida coisa julgada secundum eventum probationis é uma garantia aos demais indivíduos titulares do direito, conforme explica com maestria Daniel Amorim Assumpção Neves (2016, p. 356): “ademais, a coisa julgada secundum eventum probationis serve como medida de segurança dos titulares do direito que não participam como partes no processo contra qualquer espécie de desvio de conduta do autor. A insuficiência ou a inexistência de provas poderá decorrer, logicamente, de uma inaptidão técnica dos que propuseram a demanda judicial, mas também não se poderá afastar, de antemão, algum ajuste entre as partes para que a prova necessária não seja produzida e com isso a sentença seja de improcedência.”

Cabe ressaltar que prova nova não é, necessariamente, aquela surgida após o trânsito em julgado da ação coletiva, mas poderá ser, também, aquela existente a época da demanda coletiva, mas não trazida aos autos por desconhecimento ou mesmo negligência da parte ativa.

Ressalta-se, por fim, que essa espécie de coisa julgada se aplica somente nas demandas que tutelam direitos difusos e coletivos strito sensu. No caso de direitos individuais homogêneos, por serem direitos individuais, mas tratados como coletivos pelo legislador, os efeitos da coisa julgada alcançam todos os legitimados coletivos em caso de improcedência do pedido, ainda que por falta de provas, nos termos do art. 103, §2º do Código de Defesa do Consumidor e da jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça (STJ. 2º Seção. Resp 1.302.596-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 9/12/2015 – info. 575).

  • Coisa julgada secundum eventum litis

Vejamos o que diz o art. 103, §§1º e 2º do Código de Defesa do Consumidor, que trazem as balizas da coisa julgada secudum eventum litis:

Art. 103…

[…]

  • 1° Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe.
  • 2° Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual.

Os incisos I e II do artigo 103 diz respeito aos direitos difusos e coletivos stricto sensu, respectivamente. Já o inciso III do artigo 103 diz respeito aos direitos individuais homogêneos.

É fácil perceber que a coisa julgada nas demandas que tratam de direitos difusos e coletivos stricto sensu ocorrerá de acordo com o resultado da demanda. Assim, se a demanda for julgada procedente, a eficácia da procedência alcançará a todos, bastando que o indivíduo promova a liquidação e execução da sentença, sem necessidade de discutir o mérito já solucionado na ação coletiva. Por outro lado, se a sentença na demanda coletiva for improcedente, os efeitos da coisa julgada (indiscutibilidade e imutabilidade) não alcançará, ou seja, não prejudicará os interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade (nos direitos difusos), grupo, categoria ou classe (nos direitos coletivos stricto sensu), que poderão propor ações individuais, discutindo o mérito da demanda coletiva e buscando uma sentença favorável. Esses efeitos também se aplicam as demandas que discutam direitos individuais homogêneos, com a exceção a seguir exposta.

Nos casos de demandas que tratam de direitos individuais homogêneos, novamente, por se tratarem de direitos individuais que recebem tratamento legislativo de direitos coletivos, o indivíduo lesado poderá se habilitar como litisconsorte do autor da demanda coletiva (litisconsorte do legitimado coletivo). Neste caso, o indivíduo que se habilitar como litisconsorte na demanda coletiva, estará sujeito ao julgamento de improcedência de referida ação, não podendo propor outra demanda, ainda que individualmente, pois, agora sim, os efeitos da coisa julgada alcançar-lhe-ão.

Há uma outra exceção prevista no art. 104 do Código de Defesa do Consumidor que merece destaque, vejamos o texto da lei:

Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.

Como dito alhures,  há uma impropriedade na norma, pois não se trata de efeitos da coisa julgada, mas eficácia da sentença, e que ainda que procedente não beneficiará os indivíduos que propuseram demandas individuais e não requereram a suspensão de seus processos no prazo de 30 dias, contados a partir da informação, na ação individual, da propositura ou existência da ação coletiva com a mesma causa de pedir.

 

  1. Limitação territorial da eficácia da sentença prolatada em ação civil pública

Feita uma análise geral da eficácia da sentença prolatada na ação coletiva, bem como os efeitos da coisa julgada neste tipo de ação, passemos a análise da tentativa de limitar territorialmente os efeitos da sentença prolatada em ação civil pública, ainda que discuta direitos essencialmente coletivos. Vejamos o art. 16, da lei nº 7.347/85:

Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. 

Novamente, há uma confusão entre efeito ou eficácia da sentença e efeitos da coisa julgada, conforme já relatado quando da análise do art. 104 do Código de Defesa do Consumidor.

Entretanto, o art. 16 da Lei da Ação Civil Pública tenta impor que a eficácia da sentença seja limitada pela competência territorial do órgão prolator. Assim, por exemplo, uma sentença prolatada por um juiz da Comarca de Campinas/SP em ação civil pública coletiva que conceda indenização para os indivíduos que sofreram algum dano com a poluição causada por uma fábrica, só beneficiará e só poderá ser executada por indivíduos que residam na cidade de Campinas/SP, ainda que outras pessoas, residentes em comarcas contíguas, tenham sofrido os mesmos danos provocados pela mesma fábrica.

A doutrina aponta para a possível inconstitucionalidade de referido artigo, conforme sustenta Ricardo de Barros Leonel (2013, p. 306): “em primeiro lugar, a norma demonstra retrocesso por militar contra economia processual, impossibilitando o equacionamento do litígio numa única demanda e dando ensejo ao conflito lógico e prático julgados. Em segundo lugar, a previsão legislativa implica em violação ao princípio constitucional da igualdade, ao estabelecer distinção do tratamento entre brasileiros em decorrência da possibilidade de diversas soluções dos julgados com relação ao mesmo caso. Insista-se: não se trata de hipóteses semelhantes, mas sim do mesmo caso.”

A situação que a norma tenta impor pode acarretar casos absurdos e teratológicos, como por exemplo uma sentença em ação civil pública determinando que uma empresa cesse o desmatamento de uma floresta que se prolonga por mais de um município. Ora, somente a parte da floresta que corresponde a comarca de competência do juiz prolator da decisão será protegida? E o restante da mesma floresta que alcança outra comarca? O desmatamento poderá continuar? É evidente que não, pois do contrário haveria grave afronta aos princípios da razoabilidade, economia processual e segurança jurídica.

No mais, há verdadeira confusão de institutos no artigo em destaque, pois competência territorial diz respeito ao limite da jurisdição e não o limite da eficácia da sentença. E ainda, eficácia com coisa julgada, que é qualidade agregada a sentença que a torna imutável e indiscutível.

Em relação aos princípios da economia processual e segurança jurídica, irrepreensível o posicionamento de Daniel Amorim Assumpção Neves (2016, p. 362): “Por um lado, as previsões legais são claras afrontas a todas tentativas legislativas voltadas à diminuição no número de processos, o que e última análise geraria uma maior celeridade naqueles que estiverem em trâmite, afrontando, inclusive, o próprio espírito da tutela coletiva. Por outro lado, a exigência de diversas ações coletivas a respeito da mesma circunstância fático-jurídica poderá gerar decisões contraditórias, o que abalará a convicção da unidade da jurisdição, ferindo de morte o ideal de harmonização de julgados. E, uma vez existindo várias decisões de diferente teor, também restará maculado o princípio da isonomia, com um tratamento jurisdicional distinto para sujeitos pela simples razão de serem domiciliadas em diferentes localidades.”

Portanto, notável que a aplicação prática da regra ferirá princípios constitucionais básicos, em uma ofensa clara, manifesta e injustificada aos princípios da economia processual e a harmonização dos julgados.

Cabe recordar também, que os direitos coletivos, em regra, são indivisíveis e transindividuais, o que demonstra mais uma vez a incompatibilidade lógica da limitação territorial. Como restringir um direito que é indivisível e alcança outros legitimados que não apenas aqueles que propuseram a ação? Como uma propaganda enganosa será assim considerada em uma comarca, mas em outra não? Como um fato pode ser considerado um dano ambiental em uma comarca e em outra não? Esses exemplos provam que a norma não é apenas inconstitucional, mas também ilógica e irrazoável.

Também essa é a doutrina de Ricardo de Barros Leonel (2013, p. 307): “que tais normas são inoportunas, inconstitucionais, e revelam o desconhecimento de premissas sem as quais não se pode auferir adequado aproveito do processo coletivo.”

Por fim, conclui com maestria Teori Albino Zavascki, citado por Rodolfo de Camargo Mancuso (2009, p. 320) “não há como cindir territorialmente a qualidade da sentença ou da relação jurídica nela certificada. Observe-se que, tratando-se de direitos transindividuais, a relação jurídica litigiosa, embora com pluralidade indeterminada de sujeitos no polo ativo, é única e incindível (indivisível). Como tal, a limitação territorial da coisa julgada é, na prática, ineficaz em relação a ela. Não se pode circunscrever territorialmente (circunstância do mundo físico) o juízo de certeza sobre a existência ou a inexistência ou o modo de ser de relação jurídica (que é fenômeno do mundo dos pensamentos).”

 

  1. Microssistema Coletivo

Antes de adentrarmos na solução proposta para corrigir a atecnia do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, e até para conhecermos de antemão os seus fundamentos jurídicos, vale recordar que Lei da Ação Civil Pública faz parte do que a doutrina e a jurisprudência convencionaram chamar de Microssistema Coletivo, que nada mais é do que as leis que regem os procedimentos que buscam tutelar, ou fazer valer, os direitos materiais coletivos. Vale ressaltar que não há em nosso ordenamento jurídico um único código ou lei que rege de maneira completa o processo coletivo, mas na realidade um conjunto de leis que dialogam entre si, formando, aí sim, o microssistema processual coletivo, sendo as principais a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor.

Por óbvio, como se trata de várias leis, como por exemplo a Lei da Ação Popular, ECA, Lei do Mandado de Segurança, Lei de Improbidade Administrativa, dentre outras, ocorre por vezes, conflitos entre umas e outras no momento da aplicação no caso concreto. Nesse caso, sem aprofundar na questão, vale a pena trazer o posicionamento de Daniel Amorim Assumpção Neves (2016, p. 44): “dentro do microssistema coletivo, deve ser sempre aplicável a norma mais benéfica à tutela do direito material discutido no processo, sendo irrelevante se determinada por norma específica ou geral, anterior ou posterior ou qualquer outra forma de interpretação de normas. Esse entendimento tem como mérito uma proteção mais efetiva ao direito material coletivo lato sensu, independentemente da espécie de direito e do diploma legal criado pelo legislador para tutelá-lo, porém gera relativa insegurança jurídica por não criar bases objetivas para a aferição da norma aplicável ao caso concreto, dependendo sempre da casuística”.

Esse também é o posicionamento da jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça,  vejamos:

“É inegável que, com a nova interpretação, este Superior Tribunal de Justiça também se aproxima da doutrina mais abalizada acerca do tema. Com raras exceções, a melhor doutrina aponta que, apesar das referencias contidas no art. 90 do CDC e no art. 21 da LACP, o microssistema das ações coletivas criado pelo CDC ainda é vigente” (Embargos de Divergência em Resp No 1.134.957 – SP (2013/0051952-7) Relatora: Ministra Laurita Vaz).

E ainda: “Com efeito, como se disse anteriormente, por forca do art. 21 da Lei nº 7.347/85, o Capítulo II do Título III do CDC e a Lei das Ações Civis Publicas formam, em conjunto, um microssistema próprio do processo coletivo, seja qual for a sua natureza, consumerista, ambiental ou administrativa.”  (Recurso Especial No 1.243.887 – Pr (2011/0053415-5). Relator: Min. Luis Filipe Salomão).

Assim sendo, temos duas posições bem definidas na doutrina e na jurisprudência, a primeira é que, de fato, existe um microssistema de ações coletivas, no qual as leis que fazem parte dialogam entre si, podendo, por exemplo, uma norma da Lei da Ação Popular ser aplicada no procedimento da Lei da Ação Civil Pública, bem como, em caso de conflito, deve prevalecer a norma mais benéfica à tutela do direito material coletivo.

Portanto, é possível encontrarmos normas neste microssistema capazes de solucionar a tentativa de limitação da eficácia da sentença coletiva pelo art. 16 da Lei da Ação Civil Pública.

Desta forma, se considerarmos inconstitucional, ou mesmo inaplicável o art. 16 da LACP, haverá, de fato, uma lacuna legal que poderá ser preenchida, repita-se, por normas do microssistema das ações coletivas.

Partindo dessas premissas, analisaremos com mais facilidade a solução encontrada pela doutrina e pela jurisprudência, para sanar a impropriedade técnico-processual do art. 16 da LACP.

5.1 Aplicação do art. 103 do Código de Defesa do Consumidor nas Ações Civis Públicas

De início, vale recordar que o art. 21 da Lei da Ação Civil Pública prevê, expressamente, a aplicação subsidiária do Código de Defesa do Consumidor, vejamos:

“Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor”.

Como já analisado, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Civil Pública, formam um microssistema processual coletivo, portanto haveria um conflito de normas entre o art. 16 da LACP e o art. 103 do CDC, tendo em vista que ambos tratam da eficácia, ou seja, o alcance subjetivo (quem?) e objetivo (o que?) da sentença, sendo que o primeiro limita essa eficácia ao território que o juízo possui jurisdição e o segundo trata da eficácia subjetiva (erga omnes ou ultra partes), nada dizendo a respeito de limitações territoriais.

De antemão, já se percebe a confusão do art. 16 da LACP, tendo em vista que os limites da eficácia da sentença necessariamente são relacionados com o que se decidiu (eficácia objetiva) e contra ou a favor de quem se decidiu (eficácia subjetiva), não existindo na ação coletiva, e nem mesmo na ação que demanda interesses individuais, limites territoriais à eficácia da sentença.

Entretanto, o art. 16 da LACP existe e não pode ser simplesmente ignorado, sob pena desconsiderar o trabalho do legislador, e não cabe ao judiciário revogar as leis, ainda que tacitamente, mas no máximo declara-las inconstitucionais, ou ainda reconhecer que uma lei especial revogou uma lei geral, ou uma posterior revogou uma anterior.

Assim, a primeira corrente que se forma defende a declaração de inconstitucionalidade do art. 16 da LACP, ainda que por via incidental, devendo aplicar, em seu lugar, o art. 103 do Código de Defesa do Consumidor. Como analisado alhures, é clarividente que a norma do art. 16 da LACP fere princípios constitucionais como da proporcionalidade, economia processual e segurança jurídica.

É possível falar ainda em interpretação restritiva do art. 16 da LACP, retirando-lhe uma interpretação (norma) que dê a devida eficácia as sentenças em ações civis públicas coletivas.

Interessante, também, o posicionamento de Daniel Amorim Assumpção Neves (2016, p. 364): “a partir do momento em que o CDC passou a regulamentar de forma exaustiva o tema da coisa julgada na tutela coletiva por meio do art. 103 do diploma legal, o art. 16 da LACP teria sido tacitamente revogado. Como o CDC é de 1990 e a mudança do art. 16 para a atual redação deu-se em 1997, a modificação teria sido ineficaz e, portanto, inaplicável.”

Data vênia, cabe ressaltar que não se trata de coisa julgada, mas sim de eficácia ou efeito da sentença, como outrora analisado. O que o festejado autor quis dizer é que a norma do art. 16 da LACP, que em sua redação original datada de 24 de julho 1985, foi tacitamente revogada pelo CDC, norma posterior, tendo em vista sua publicação em 11 de setembro de 1990. Nada mais senão a aplicação da regra do art. art. 2º, §1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, vejamos:

“Art. 2º…

  • 1oA lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.”

É, ainda, apresentada outra solução por Hugo Nigro Mazzilli (2002, p. 293): “Também no plano da ineficácia da modificação trazida ao art. 16 da LACP pela Lei 9.494/1997, pode-se afirmar que ela é inócua, considerando-se que o CDC não foi alterado nesse particular, e a disciplina dos arts. 93 e 103 é de aplicação integrada e subsidiária as ações civis públicas de que cuida a Lei 7.347/1985 (art. 21 desta). O mesmo raciocínio é aplicado à ação popular, tendo em conta não ter sido alterado o sistema criado do art. 18 da Lei de Ação Popular, o que afasta essa espécie de ação coletiva qualquer limitação territorial da coisa julgada.”

De fato, o art. 16 da LACP foi alterado pela Lei nº 9.494/1997, entretanto, referido artigo, segundo os respeitáveis doutrinadores, já havia sido revogado em 1990 pelo Código de Defesa do Consumidor, que tratou da matéria de forma exaustiva, conforme narrado, sendo, portanto, referida alteração inócua.

A jurisprudência majoritária do C. Superior Tribunal de Justiça acompanha a melhor doutrina e aplica o art. 103 do CDC na sentença proferida em Ação Civil Pública, vejamos:

“Nessa linha, o alcance da sentença proferida em ação civil pública deve levar em consideração o que dispõe o Código de Defesa do Consumidor acerca da extensão do dano e da qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo. O norte, portanto, deve ser o que dispõem os arts. 93 e 103 do CDC” (Recurso Especial Nº 1.243.887 – PR (2011/0053415-5), Relator Min. Luis Felipe Salomão).

E ainda:

“Dessa forma, o art. 103 do CDC prevalece sobre o art. 16 da Lei 7.347/85 (Nesse sentido: GRINOVER, Ada Pellegrini, et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 6a edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Anotado e Legislação Extravagante. 2a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003). Essa mesma doutrina é ainda acompanhada por HUGO NIGRO MAZZILLI (A defesa dos interesses difusos em juízo. 13a edição. São Paulo: Saraiva, 2001) ao afirmar que, mesmo que o art. 16 da LACP trate da abrangência da coisa julgada, ele foi silente quanto aos efeitos da decisão judicial e, assim, nenhuma limitação poderia ser imposta às decisões judiciais em ações coletivas. “(Embargos de Divergência em Resp Nº 1.134.957 – SP (2013/0051952-7). Rel. Min. Laurita Vaz).”

Portanto, independentemente da tese adotada, a melhor opção encontrada pela jurisprudência e doutrina majoritárias é a aplicação do art. 103 do Código de Defesa do Consumidor, no que diz respeito a eficácia ou efeito da sentença prolatada em ação civil pública.

 

Conclusão

Conclui-se, inicialmente, que o art. 16 da Lei da Ação Civil Pública confunde conceitos absolutamente distintos. O primeiro deles, amplamente explanado neste trabalho, é a confusão entre coisa julgada e eficácia ou efeito da sentença. Coisa julgada é qualidade que se dá à sentença, tornando-a imutável e indiscutível, enquanto eficácia ou efeito da sentença é a sua aptidão para gerar efeitos modificativos no mundo jurídico.

Confunde, ainda, efeitos ou eficácia com limitação territorial. Ora, os limites territoriais dizem respeito aos limites da jurisdição, enquanto eficácia da sentença é ligado aos limites objetivos (o que se decide) e subjetivos (contra ou a favor de quem se decide) da lide. Assim, a eficácia da sentença pode ser restringida em relação a pessoas físicas ou jurídicas, bem como restringida pelas questões fático-jurídicas principais, e eventualmente incidentais, discutidas no processo, mas não há o que se falar em limitação territorial da eficácia da sentença, nem mesmo em ações individuais, pois do contrário duas pessoas divorciadas em um estado da federação poderiam ser consideradas casadas em outra estado, ou ainda, uma rede de cinemas condenada em uma ação coletiva por um juiz da comarca de São Paulo/SP em obrigação de não fazer, consistente em não cobrar determinada taxa, poderia cobrar a mesma taxa de clientes em Belo Horizonte/MG, todas essas situações, obviamente, são teratológicas. Do contrário, haveria uma divisão de um mesmo direito coletivo, conferindo-o a alguns e restringindo-o a outros, criando uma espécie de direito local, já que a sentença tem força de lei para as partes.

No mais, a referida limitação territorial da coisa julgada, ou da eficácia da sentença em ação civil pública, é absolutamente inconstitucional, tendo em vista que fere princípios constitucionais basilares como segurança jurídica, igualdade e economia processual. Fere, ainda, a própria ideia de processos coletivos, que visa abarcar o maior número de pessoas lesadas pelo mesmo evento fático-jurídico. Possível, ainda, conforme a melhor doutrina supra colecionada, considerar o art. 16 da LACP revogado pelo Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista tratar-se de lei posterior, que trata do tema de maneira exaustiva, sendo inócua as alterações posteriores.

Por fim, conclui-se que a eficácia da sentença prolatada em Ação Civil Pública deve ser regida pelo Código de Defesa do Consumidor, especialmente pelo seu art. 103, que prevê eficácia erga omnes ou ultra partes (com algumas poucas exceções), sendo que, referida lei, em momento algum prevê limitação territorial dos efeitos da sentença prolatada em ação civil pública.

 

REFERÊNCIAS                        

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini Grinover, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 11 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Processo Coletivo. 3º ed. Salvador: Juspudvm, 2016.

STJ – EDcl nos EREsp: 1134957 SP 2013/0051952-7, Relator: Ministro FRANCISCO FALCÃO, Data de Julgamento: 17/05/2017, CE – CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 06/06/2017.

STJ – REsp: 1243887 PR 2011/0053415-5, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 19/10/2011, CE – CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 12/12/2011.

STJ. 2º Seção. Resp 1.302.596-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 9/12/2015 – info. 575.

 

*Fernando Gabriel de Carvalho e Silva é formado em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Escola Paulista da Magistratura e possui extensão em Estratégias de Negociações pela University of Michigan. Advogado militante nas áreas civil e criminal.

 

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