A epistemologia de Hans Kelsen e a explanação do ordenamento jurídico kelseniano visando a explicação da norma fundamental


Resumo: Hans Kelsen, filósofo jurídico do século XX foi criador de uma teoria que perpetua até hoje na investigação da ciência – jurídica. Tendo uma hermenêutica baseada em um princípio metodológico fundamental criado por ele mesmo, Kelsen, ao investigar o direito, cria a Teoria Pura do Direito e consegue excluir da ciência jurídica todos os aspectos externos. Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo principal a interpretação das proposições jurídicas realizadas por Kelsen com o intuito de desvendar o seu método científico e ainda explicar a norma fundamental. Explanando o ordenamento jurídico, o presente trabalho ainda responderá se Constituição e Norma Fundamental coexistem no ordenamento jurídico ou se apenas possuem nomenclaturas diferentes.


Palavras-Chave: Hans Kelsen; Teoria Pura do Direito; Direito; Norma Fundamental; Constituição.


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Abstract: Hans Kelsen, legal philosopher of century XX was creative of a theory that perpetuates until today in the inquiry of science – legal. Having a hermeneutics based on a basic methodology principle created by him self, Kelsen, when investigating the right, creates the Pure Theory of the Right and obtains to exclude from legal science all the external aspects. Of this form, the present work has as objective main the interpretation of the legal proposals carried through by Kelsen with intention to unmask its scientific method and still to explain the basic norm. Explaining the legal system, the present work still will answer if Constitution and Basic Norm coexist in the legal system or if they only possess different nomenclatures.


Keywords: Hans Kelsen; Pure Theory of the Right; Right; Basic Norm; Constitution.


Sumário: INTRODUÇÃO. 1.  TEORIA PURA DO DIREITO: UMA PURIFICAÇÃO KELSENIANA. 1.1. Ciência Jurídica e Ciências Naturais: Imputação e Causalidade 2. DIREITO E MORAL: CIÊNCIAS NORMATIVAS. 2.1. Proposição Jurídica e Norma Jurídica. 2.2. Normas Gerais e Normas Individuais. 2.3. O Destinatário da Norma Jurídica. 2.4. Vigência, Validade e Eficácia da Norma. 3. ESTRUTURA ESCALONADA DAS NORMAS JURÍDICAS E FUNDAMENTO DE VALIDADE A PARTIR DA NORMA FUNDAMENTAL. 3.1. Sistema Normativo: Constituição. 3.2. Sistema Normativo: Norma Fundamental. 3.3. Norma Fundamental: Sistema Estático e Sistema Dinâmico. 3.4. È possível haver lacunas no Ordenamento Jurídico? 4. CONSTITUIÇÃO E NORMA FUNDAMENTAL COEXISTEM NO ORDENAMENTO JURÍDICO? CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.





INTRODUÇÃO[1]


A Teoria Pura do Direito torna-se a principal obra de Hans Kelsen por tratar de assuntos extremamente jurídicos, ou seja, ao investigar o Direito, Kelsen utiliza apenas aspectos jurídicos e exclui tudo o que é externo ao direito.


De acordo como o autor:Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir desse conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito.” (Kelsen, 1998, p. 1). Assim, percebe-se que sua teoria recebe essa nomenclatura por não aceitar a existência de aspectos políticos, históricos, sociais ou qualquer outro que não seja do meio jurídico.


A importância de realizar um trabalho desse tipo funda-se na constatação de um aprendizado mais amplo sobre o direito. Partindo da Teoria Pura e depois adentrando nas normas jurídicas, esse trabalho transmite ao leitor a estrutura do direito enquanto normas jurídicas e ainda distingue a ciência jurídica das ciências naturais pelo modo que elas explicam os fatos. Enquanto a primeira utiliza a lei da imputabilidade, a segunda faz uso da lei da causalidade.


Em seu desenvolvimento surge a necessidade de distinguir três conceitos: vigência, validade e eficácia da norma que se definem e atuam de diferentes formas no ordenamento jurídico. Assim, essa pesquisa é composta por vários temas necessários na interpretação do direito além de subscrever as principais idéias de Hans Kelsen.


Em função disso, todo o trabalho é baseado em Kelsen e conta com a interpretação de vários outros autores, como Ulhoa, que também interpreta a Teoria Pura. Sendo assim, o conteúdo desse trabalho mostra-se com enorme valor científico e ainda trabalha com a questão da Norma fundamental.


Ao final, torna-se imperioso conhecer e sistematizar o ordenamento jurídico tendo como meta a descoberta da hierarquia das normas bem como, responder se a Norma Fundamental e Constituição coexistem no ordenamento jurídico ou se apenas possuem nomenclaturas diferentes.


1. TEORIA PURA DO DIREITO: UMA PURIFICAÇÃO KELSENIANA


Na obra Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen[2] observa-se que o autor faz uso de uma metodologia própria e ainda mostra uma visão diferenciada do Direito. A Teoria Pura é criada por Kelsen, não apenas para interpretar normas jurídicas, mas para interpretar o direito como um todo. Segundo Kelsen “Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito.” (Kelsen, 1998, p. 1). Assim, caracteriza-se como pura, a teoria Kelseniana, pelo fato de retirar do Direito todos os aspectos políticos, históricos, sociais e qualquer outro que lhe seja externo. O direito é interpretado por Kelsen através de um método próprio, no qual, caracteriza-o como princípio metodológico fundamental. Sem fazer uso de nenhuma metafísica, Kelsen cria uma teoria livre de contradições e ainda consegue não indagar as origens do direito.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      


A Teoria Pura do Direito, publicada quatro vezes em diferentes línguas teve sua última edição em 1960 em Viena. A cada edição e tradução, o jurista Kelsen fazia transformações e ainda acrescentava detalhes em sua teoria.


Assim como toda ciência tem um objeto de estudo, a Teoria Pura do Direito não é diferente e através das perguntas do tipo o que é e como é, o Direito, Kelsen passa a desvendar a ciência jurídica através do principio metodológico fundamental. Excluindo todos os aspectos externos como a sociologia, a política, a moral, a economia e a história, kelsen começa estudar o direito como um conjunto de normas, abrangendo desde normas fundamentais até contratos e sentenças. 


“A norma funciona como esquema de interpretação.” (Kelsen, 1998, p.4). A norma é o meio utilizado por Kelsen para dizer o direito, ou seja, a norma jurídica é o meio de transformar um fato em um objeto jurídico, logo, funciona como esquema de interpretação, dependendo da conduta realizada por certo indivíduo, haverá uma norma referente aquele ato e assim, o conhecimento jurídico estará destinado à norma.


Kelsen distingue a interpretação do direito feita pelos legisladores, que estuda o conteúdo da norma jurídica enquanto um dever-ser de prescrição normativa elaborada por uma autoridade (legislador), da ciência jurídica, que faz proposição jurídica, destinada ao dever-ser da norma. De acordo com Ulhoa “A norma jurídica, editada pela autoridade, tem caráter prescritivo, enquanto a proposição jurídica, emanada da doutrina, tem natureza descritiva” (Ulhoa, 2001 p. 8). Uma proposição jurídica é o mesmo que descrever uma norma ao contrário da prescrição que é feita pelo legislador para prescrever condutas, logo, as normas são prescrições e quem as interpretam fazem proposições jurídicas.


Ulhoa ainda diz que ”As normas, como derivações de ato de vontade, não são verdadeiras ou falsas, mas válidas ou inválidas” (Ulhoa, 2001, p. 8). As normas derivadas do ato de vontade são aquelas produzidas pelo órgão Legislador, nas quais são caracterizadas como prescritivas. Elas são interpretadas como válidas ou inválidas, logo, num ordenamento jurídico, não basta existir uma norma verdadeira e não ser válida, a verdadeira importância da norma é sua veracidade, pouco importa se ela é ou não verdadeira.


Sabendo que o direito é um sistema normativo percebe-se que a epistemologia de Kelsen é baseada justamente no direito positivo, onde, através de uma ordem normativa imposta pelo legislador (prescrição) faz-se proposições jurídicas para interpretar o direito como uma ciência pura, independente de qualquer outra ciência e principalmente com lógica interna.


1.1 Ciência Jurídica e Ciências Naturais: Imputação e Causalidade


Ao investigar Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, é possível perceber que há uma distinção entre as ciências naturais e a ciência jurídica classificada como ciência normativa. Kelsen afirma: “Se designa como “imputação” a ligação de pressuposto e conseqüência expressa na proposição jurídica com a palavra “dever ser”, de modo algum se introduz, com isso, uma nova palavra numa disciplina que já opera com o conceito de “imputabilidade””. (Kelsen, 1998, p.91). Enquanto a ciência jurídica trata de normas jurídicas através da imputação, a segunda utiliza a lei da causalidade para estudar seu objeto. “A ciência jurídica, com efeito, não pretende, com as proposições jurídicas por ela formuladas, mostrar a conexão causal, mas a conexão de imputação, entre os elementos do seu objeto”. (Kelsen, 1998, p. 100)


Diferente da causalidade (causa e efeito), que é utilizada pela ciência da Psicologia, da Etnologia, da História e da Sociologia para estudar a conduta humana; Kelsen faz uso da imputabilidade (causa e conseqüência) para estudar o direito através de um sistema de normas direcionado à conduta humana. Segundo o autor: “A distinção entre causalidade e imputação reside em que – como já notamos – a relação entre pressuposto, como causa, e a conseqüência, como efeito, que é expressa na lei natural, não produzida, tal como a relação entre pressuposto e a conseqüência que se estabelece numa lei moral ou jurídica, através de uma norma posta pelos homens, mas é independente de toda intervenção desta espécie”. (Kelsen, 1998, p. 100).  Kelsen refere-se a lei moral porque assim como a lei jurídica ela também é uma ciência normativa e faz uso da imputação (cauda e conseqüência).


Sendo assim, as ciências naturais classificam-se como uma ciência que analisa os fatos como causa e efeito e a origem do seu conhecimento é empírica, enquanto a ciência jurídica faz uso das normas jurídicas (voltadas para a conduta humana) para estudar o direito.  De acordo com Torres: “Pretende-se demonstrar que a própria teoria elaborada por Kelsen mitiga sua opção epistemológica, pois sua argumentação adentra o espaço virtual, admitindo pressupostos não-advindos da experiência” (Torres, 2006, p. 73). A argumentação de Kelsen adentra o espaço virtual porque sua teoria é deôntica, ou seja, define o direito como deve ser e não através de fatos. A Teoria Pura do Direito não é uma ciência que faz uso de um conhecimento acumulado de fatos (empírica), ela é composta de proposições, nas quais, interpretam as normas jurídicas criadas pelos legisladores.


A norma jurídica designa como o homem deve-se conduzir ou como algo deve acontecer, ao contrário do princípio da causalidade, aplicada pelas ciências naturais para dizer que algo é. Um exemplo bem clássico e muito utilizado na obra Teoria Pura para diferenciar imputabilidade de causalidade é que o primeiro refere-se ao dever-ser, logo, se A é, B deve-ser, enquanto o segundo refere-se ao ser, de modo que, se A é, B é também. “A forma verbal em que são apresentados tanto o princípio da causalidade como o da imputação é um juízo hipotético em que um determinado pressuposto é ligado com uma determinada conseqüência. O sentido da ligação porém é – como já vimos – diferente nos dois casos. O princípio da causalidade afirma que, quando é A, B também é (ou será). O princípio da imputação afirma que, quando A é, B deve ser”. (Kelsen, 1998, p. 100)


Diante de tal diferenciação é válido afirmar que o dever-ser da norma jurídica significa uma relação entre uma determinada conduta humana (condição) e a sanção (conseqüência), que é produzida por um ato de vontade enquanto a causalidade possui uma relação causa e efeito descrita numa lei da natureza e é independente de qualquer vontade. “A distinção entre causalidade e imputação reside em que – como já notamos – a relação entre o pressuposto, como causa, e a conseqüência, como efeito, que é expressa na lei natural, não é produzida, tal como a relação entre pressuposto e conseqüência que se estabelece numa lei moral ou jurídica, através de uma norma posta pelos homens, mas é independente de toda a intervenção desta espécie” (Kelsen, 1998, p. 100)


Além de tal diferenciação nota-se ainda que a imputação consiste em um fim e a causalidade não possui um ponto terminal, assim, uma causa possui como efeito outra causa e todo efeito considerado como causa de outro efeito. “O número de elos de uma série imputativa não é como o número de elos de uma série causal, ilimitado, mas limitado”. (Kelsen, 1998, p. 101)


É assim que Kelsen distingue a causalidade de acordo como número de elos, já que a imputabilidade, segundo o autor, possui um ponto terminal, que pode corresponder tanto ao mérito quanto a sanção. 


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2. DIREITO E MORAL: CIÊNCIAS NORMATIVAS


Sabendo que as normas são prescrições de dever-ser direcionadas a conduta humana afirma-se que a diferença entre as normas jurídicas e as demais normas (sociais e morais) encontra-se exatamente no ato de coação. “O Direito é essencialmente ordem de coação. Prescreve uma certa conduta de modo que, como conseqüência, liga um ato de coação à conduta contrária do ser-devido”. (Kelsen, 1986, p. 30)


O sistema de normas jurídicas é formado por normas que permitem ou obrigam determinadas condutas, o ato de coação apenas é exercido dentro do campo jurídico quando uma determinada conduta é contrária ao direito, logo, para essa conduta ilícita ser impedida faz-se uso da força física quando necessário.


Tanto o direito quanto a moral são ordens normativas positivas que prescrevem condutas humanas, mas ao contrário do que se imagina, a diferença entre ambos está na forma em que essas condutas são prescritas e não no que prescrevem, pois a moral, apesar de prescrever sanções, não faz uso delas como ato de coação como o Direito que utiliza a força física. “A norma Moral: “Não se deve mentir” nem é verdadeira nem falsa; mas o juízo de valor: “Mentir é moralmente mau” ou “mentir é incorreto”, é verdadeiro; e o juízo de valor: “Mentir é moralmente bom” ou “mentir é correto”, é falso se vale a norma da Moral: “Não se deve mentir”. “Bom” e “correto”, qualidades de uma conduta que é o contrário da conduta fixada como devida na norma”. (Kelsen, 1986, p. 209)


Tanto a normas morais quanto as normas jurídicas expressão sentido do ato de vontade. “Objeto da norma é aquilo que está prescrito numa norma, fixado como devido, é a conduta de um ser dotado de razão e de vontade – segundo nossa concepção de hoje – é a conduta de uma pessoa”. (Kelsen, 1986, p. 113) Para que uma norma seja cumprida é necessário que seu destinatário entenda o seu conteúdo, para então, cumpri-la ou não. 


2.1 Proposição Jurídica e Norma Jurídica


As normas jurídicas são objetos de estudo da ciência jurídica e recebe o nome de direito positivo, já que estas são criadas pelo legislador para impor o direito. Pois, o termo norma é designado como mandamento, prescrição e ordem, além de conferir poderes, permitir e derrogar.


Diante de tal definição, Kelsen afirma que quem prescreve a norma, ordena algo e assim, tudo aquilo que é prescrito, surge de um ato de vontade. Logo, o dever-se da norma possui o sentido de ato de vontade dirigido a outra pessoa. [3]


As proposições jurídicas são bem diferentes das normas jurídicas, já que as primeiras são formuladas por pesquisadores, cientistas que querem formular estudos. Elas surgem através da ciência do Direito e não do legislador ou de algum outro órgão competente de poder. Vejamos a definição de proposições jurídicas de Hans Kelsen: “As proposições formuladas pela ciência pela ciência do Direito não são, pois, simples repetição das normas jurídicas postas pela autoridade jurídica.” (Kelsen, 1998, p.83). Diferente da prescrição, as proposições jurídicas não formulam normas e muito menos as repetem, pois a função das proposições jurídicas é interpretar as normas.


Entre as normas jurídicas e as proposições jurídicas há diferença de funções. Enquanto a função da primeira é impor algo através da comunidade jurídica, a segunda possui função de conhecimento jurídico.


Dentre todos os temas elaborados por Kelsen na purificação do direito pode-se dizer que a distinção entre norma jurídica e proposição jurídica é primordial, desde que bem interpretada. Segundo Luz: “Com efeito, utilizando a Teoria da Proposição Jurídica, Kelsen, além de construir um discurso baseado no padrão verificacionista de ciência, mantém intacto outro alicerce filosófico do seu sistema: a radical dicotomia entre ser e dever-ser” (Luz, 2003, p. 28). Toda teoria Kelseniana está baseada na proposição, na elaboração de uma epistemologia jurídica e não na criação da lei. O objetivo de Kelsen, de forma alguma é criar normas, ele apenas utiliza-as para entender o direito que é composto por normas jurídicas. Desse modo, Kelsen verifica, analisa a ciência jurídica através de uma Teoria Pura e ainda faz uso da filosofia do direito. Um dos pontos mais importante na sua teoria é a distinção de ser do dever-ser. Pode-se dizer ainda que Kelsen utiliza a proposição jurídica como veículo lingüístico para descrever o direito (Luz, 2003).


2.2 Normas Gerais e Normas Individuais


As normas podem ter caráter individual ou geral. Individual, quando se tem uma conduta única e é individualmente obrigatória. Geral, quando determinada conduta universal é posta como devida. Observando que tanto o caráter individual da norma quanto o geral são independentes do número de pessoas a que estão sendo aplicadas. [4]


Assim, pode se dizer que, a norma terá caráter individual, mas ela poderá ser aplicada em um conjunto de pessoas e não apenas para um único indivíduo. Tudo dependerá se ela é obrigatória ou não. Se determinada norma diz que qualquer tipo de furto tem como pena retenção de um ano, então, ela será geral e poderá ser aplicada a um ou mais indivíduos. Se essa mesma norma determina o tipo de furto e tem como sanção um prazo variado (de um a três anos de prisão) então ela terá caráter individual e também poderá ser aplicada tanto a um como a vários indivíduos.


2.2.1 O Destinatário da Norma Jurídica


A norma, criada pelo órgão legislativo, não é direcionada ao indivíduo como pessoa, mas as suas condutas em geral. Assim, não existem leis para seres inanimados, plantas, animais irracionais ou qualquer outra coisa que não seja a conduta humana. “Que a norma é “dirigida” a uma pessoa, de modo algum significa outra coisa senão que a conduta de um indivíduo, uma conduta humana, é devida. Não é o ser humano como tal, na totalidade de sua existência, e sim uma certa conduta humana, à qual a norma se refere”. (Kelsen, 1986, p.12)


A norma não estabelece um fim desejado, ou seja, o dever ser da norma nada se refere ao fim de uma conduta, quem determina um fim desejado é o próprio ser humano, responsável pela sua conduta.


Cada vez que uma norma é elaborada, ela pressupõe duas pessoas e assim, verifica-se novamente o sentido do dever ser. O órgão legislativo, o instituidor de normas, ordena na primeira parte da norma o que ele deseja do outro e aquele indivíduo a que algo foi imposto, deve algo.


Segundo Kelsen, a norma é formada de dois preceitos: um que prevê a conduta e outro que determina a sanção. (Silva, 2001). Dessa forma, Kelsen diz que o primeiro preceito é denominado de norma secundária e o segundo preceito, o que determina uma sanção é chamado norma primária.


2.3 Vigência, Validade e Eficácia da Norma


A validade e a eficácia da norma são aspectos que precisam ser distinguidos. A primeira refere-se ao fato de dever ser aplicada ou não cumprimento, a segunda refere-se ao efetivo cumprimento da norma, ou seja, do cumprimento ou não cumprimento ou não com a conseqüente aplicação. “Dizer que uma norma que se refere à conduta de um indivíduo “vale” (é “vigente”), significa que ela é vinculativa, que o indivíduo se deve conduzir de modo prescrito pela norma”. (Kelsen, 1998, p. 215)


A eficácia é muito parecida com a validade, mas estas precisam ser bem definidas para não haver confusão. Se no Brasil, por exemplo, tivesse pena de morte para crimes hediondos, essa norma seria válida se fosse aplicada pela sociedade jurídica, mas poderia não ter eficácia se as pessoas criminosas não se importassem como esse tipo de pena. Logo, morreria várias pessoas e a norma seria ineficaz.


Uma lei passa ser válida apenas quando entra em vigor, geralmente, quando uma norma é criada, ela tem sua vigência quarenta e cinco dias após a sua publicação, mas, caso tenha restrições o seu legislador poderá publicar a data em que ela passará ser vigente.


Segundo Kelsen, uma norma perde sua validade tanto pela falta de aplicabilidade quanto pelo descumprimento, quando não mais é utilizada no campo jurídico, neste caso, ela pode se derrogada.


Como veremos mais a frente, a validade de uma norma sempre está fundada na validade de outra hierarquicamente superior.


3. ESTRUTURA ESCALONADA DAS NORMAS JURÍDICAS E FUNDAMENTO DE VALIDADE A PARTIR DA NORMA FUNDAMENTAL


3.1 Sistema Normativo: Constituição


Como foi dito no capítulo acima, a validade de uma norma está condicionada pela validade de outra hierarquicamente superior, isso quer dizer que dentro de um sistema normativo (Direito) existem várias normas, mas para serem válidas, sempre terá de haver uma superior aquela existente.


Segundo Kelsen, a Constituição pode ser tanto um documento, ou seja, material (escrita), como também consuetudinária, originária do costume de indivíduos. A Constituição escrita surge do ato do legislador, que faz da consuetudinária uma Constituição material, na qual produzirá normas materiais. As normas que não são materiais e fazem parte da Constituição consuetudinária são codificadas pelo órgão legislador e assim, transformam-se em Constituição escrita (1998, p. 247).


Sabendo que as normas são constituídas e organizadas de forma hierarquizada afirma-se que a validade de qualquer norma repousa na Constituição, na qual possui a função de criação de normas inferiores.


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De acordo com Kelsen (1986, p.330), a Constituição necessita de interpretação por ser a fonte de todo o ordenamento jurídico, logo, dizer que a validade de uma norma inferior está fundada na validade de uma norma superior significa dizer que a norma inferior prescreve condutas que estão expressas na norma superior (Constituição).


Uma norma inferior apenas terá validade se seu conteúdo estiver condizendo com o conteúdo de uma norma superior a ela. Nesse caso, a relação entre a criação de normas inferiores a partir de normas superiores encontra-se o fundamento último de validade entre as normas.


3.2 Sistema Normativo: Norma Fundamental


A norma fundamental de Kelsen é uma norma pressuposta, ou seja, é ela quem coordena e gerencia as outras normas inferiores a ela de forma imaginária. Hans Kelsen considera a norma fundamental como uma norma superior a qualquer outra e a classifica como uma norma transcendental.


O conteúdo de cada norma do ordenamento jurídico é independente do conteúdo da norma fundamental, mas a validade das normas desse mesmo ordenamento está intimamente ligado a validade da norma fundamental. Pois, a interpretação do conteúdo da norma fundamental é subjetiva (legislador) enquanto as normas materiais possuem sentido objetivo.[5]  Quanto a importância da norma fundamental em relação a validade do ordenamento jurídico, Kelsen ainda afirma: “A norma fundamental, determinada pela Teoria Pura do Direito como condição de validade jurídica objetiva, fundamenta, porém, a validade de qualquer outra ordem jurídica positiva, quer dizer, de toda ordem coercitiva globalmente por atos humanos. De acordo com a Teoria Pura do Direito, como teoria jurídica positivista, nenhuma ordem jurídica positiva pode ser considerada como não conforme a sua norma fundamental, e portanto, como não válida.” (Kelsen, 1998, p. 242)


Mesmo se tratando de uma norma pensada, a norma fundamental é classificada como a mais elevada de todo o sistema normativo e não pode ser materializada por nenhum legislador pelo fato de não haver nenhuma outra que a fundamente. [6] Logo, a materialização da norma fundamental provocaria um desencadeamento de sucessão interminável de normas de competência.


A validade da norma fundamental (Grundnorm) jamais pode ser duvidada, já que a relação entre a sua validade e a validade das normas positivas possui uma relação lógica.


3.2.1 Norma fundamental: Sistema Estático e Sistema Dinâmico


O Sistema estático é aquele pelo qual a conduta humana por ele determinada é considerada como devida (devendo ser). Segundo Kelsen: “Um sistema de normas cujo fundamento de validade e conteúdo de validade são deduzidos de uma norma pressuposta como norma fundamental é um sistema estático de normas”. (Kelsen, 1998, p.218). Nesse trecho Kelsen se refere a validade das normas e por essa razão cita a norma fundamental (fundamento último de validade normativa), logo, é possível perceber que Kelsen cita a norma fundamental como um sistema estático do direito por ser fundamental mas não materializada, apenas fictícia.


As normas de caráter estático possuem como objeto normativo, a conduta humana, enquanto as normas do sistema dinâmico operam a partir da produção e aplicação. Segundo Ulhoa, os temas abordados pelo sistema estático são: a sanção, o ilícito, o dever ser, etc.; e o sistema dinâmico trata de temas: validade, fundamento último de direito, as lacunas, etc.


Logo, entende-se que a norma fundamental (fundamento de validade das normas) é um princípio dinâmico do Direito.


3.3 É possível haver lacunas no Ordenamento Jurídico?


As lacunas são interpretadas pela comunidade jurídica como uma falha, uma imprevisão de condutas, ou seja, a falta de normas que coordene a conduta humana.


Quanto às lacunas, Kelsen as considera inadmissíveis. Ele afirma que quando não há uma norma que proíba ou regule determinada conduta significa que tal ato é permitido.


“Esta teoria é errônea, pois funda-se na ignorância do fato de que, quando a ordem jurídica não estatui qualquer dever de um indivíduo de realizar determinada conduta, permite esta conduta”. (Kelsen, 1998, p. 273). Desse modo, Kelsen afirma ser inadmissível a existência de lacunas no ordenamento jurídico, mas porque isso acontece? Porque não pode haver lacunas no direito?


Observando tais questões é possível perceber que se houver falhas no direito toda a teoria Kelseniana não terá fundamento, já que o próprio autor afirma construir uma teoria totalmente livre de aspectos não jurídicos. Se houver lacunas, os cientistas do direito terão que buscar fundamento fora do direito, destruindo toda lógica existente na teoria de Kelsen.


Quando um juiz concorda com uma lacuna, certamente ela busca recursos nos princípios gerais, ou seja, nos costumes, mas a falta de uma norma no ordenamento jurídico é interpretado por Kelsen como uma imprevisão legislativa e jamais como uma lacuna. O legislador não possui o poder de prever todas as ações futuras do ser humano e pode deixar de formular normas que regulem a conduta humana, porém, tudo dependerá do juiz que estiver aplicando o direito. Não havendo uma norma geral nem específica para determinada conduta, o juiz deverá ocupar o lugar do legislador. Desse modo, Kelsen afirma: “A suposição do Tribunal de que um caso não foi previsto pelo legislador teria formulado o Direito de diferente modo se estivesse previsto o caso, funda-se quase sempre numa presunção não demonstrável. A intenção do legislador somente é apreensível com suficiente segurança quando adquira expressão no Direito por ele criado. Por isso, o legislador, para limitar a atribuição deste poder aos tribunais, atribuição essa considerada por ele como inevitável, recorre à ficção de que a ordem jurídica vigente, em certos casos, não pode ser aplicada – não por razão ético-política subjetiva, mas por razão lógica-objetiva – , de que o juiz somente pode se fazer de legislador quando o Direito apresente uma lacuna”.(kelsen, 1998, p. 276) 


4. CONSTITUIÇÃO E NORMA FUNDAMENTAL COEXISTEM NO ORDENAMENTO JURÍDICO?


Partindo do estudo realizado no capítulo anterior e sabendo as definições de Constituição e Norma Fundamental surge a seguinte questão: Se tanto a Norma Fundamental quanto a Constituição são fundamentos últimos de validade das normas positivas, então elas coexistem?


Segundo Kelsen, a norma fundamental é uma norma fictícia, ou seja, ela é apenas pensada e não materializada, ou ainda, não é estabelecida, apenas pressuposta. Essa norma, por não ser positiva, está implícita na Constituição Histórica, ou seja, naquela que também não é positivada, mas é existente de forma imaginária e oriunda dos costumes da nação para que o órgão legislativo a transforme em uma Constituição material. 


Essa Constituição Histórica é também chamada por Kelsen de Primeira Constituição, que foi constituída por via do Costume “Historicamente, a primeira Constituição foi estabelecida pela resolução de uma Assembléia; nasceu a primeira Constituição, historicamente pela via do Costume, é esse Costume, mais corretamente: são as pessoas, cuja conduta institui, historicamente, o Costume producente da primeira Constituição que são autorizadas pela norma fundamental. É na norma fundamental – da, historicamente, primeira Constituição – no mais profundo sentido, em que se baseia o ordenamento jurídico” (Kelsen, 1986, p. 327). Ao fazer tal afirmação, Kelsen diz que a Constituição Consuetudinária (costume) é oriunda da própria sociedade, ou seja, das pessoas.


Logo, presume-se que a Constituição está fundada na norma fundamental (fictícia) e que por ser oriunda de uma norma anterior a ela, mas não materializada (norma fundamental), a Constituição prescrita pelo órgão legislador, dará validade a outras normas inferiores.


Assim, entende-se que todo o ordenamento jurídico baseia-se na norma fundamental e que esta tem por função validar todas as outras normas inferiores que estejam condizendo com a Constituição. Segundo Kelsen “O fim do pensamento da norma fundamental é: o fundamento de validade das normas instituintes de uma ordem jurídica ou moral positiva, é a interpretação do sentido subjetivo dos atos ponentes dessas normas como sentido objetivo, isto significa, porém, como normas válidas, e dos respectivos atos como atos ponentes de norma” (Kelsen, 1986, p. 329). Além de dar validade às outras normas inferiores, a norma fundamental ainda tem o dever de implantar o sentido objetivo a interpretação subjetiva do direito posto (positivo), ou seja, a norma fundamental surge para validar a aplicabilidade de uma norma em determinado fato.


A coexistência da norma fundamental e da Constituição firma-se no momento em que se pergunta pela validade da última. Logo, é através da norma fundamental que se fundamenta a validade da Constituição e de qualquer outra norma.


A norma fundamental não pode ser positivada pelo motivo de ser fundamento ultimo de todas as outras normas. Se ela for materializada pelo órgão legislador haverá de ter uma outra norma superior a ela que a fundamente.


CONCLUSÃO


Diante da pesquisa elaborada, conclui-se que a epistemologia de Hans Kelsen é de extrema importância para interpretar o direito. Através de um princípio metodológico kelseniano, o autor da Teoria Pura do Direito utiliza apenas aspectos jurídicos para estudar seu objeto.


Utilizando as normas como forma de interpretação do sistema jurídico, Kelsen mostrar uma teoria sem nenhuma metafísica e ainda fundamenta a hierarquia das normas através de uma Norma Fundamental.


Sem entrar em contradições, a teoria de Kelsen mostra-se clara porém detalhista. Ao leitor interessado nessa obra, exige-se um mínimo de dedicação e atenção, pois ao interpretar Kelsen, o leitor deve estar atento aos detalhes e pormenores.


 


Referências

COELHO, F. U. Para entender Kelsen. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

KELSEN, H. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

______. Teoria Geral das Normas. Tradução José Florentino Duarte. Porto Alegre: Fabris, 1986.

LUZ, V. C. Neopositivismo e Teoria Pura do Direito: Notas sobre a influência do verificacionismo lógico no pensamento de Hans Kelsen. Revista Seqüência, n. 47, p. 11-31, dez. 2003.

REALE, M. Filosofia do Direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

SILVA, S. S. A Obsessão Cientifica – Direito e Estado em Kelsen. Revista da Procuradoria – Geral do Estado, Porto Alegre, v. 24, n. 53, p. 73-89, 2001.

TORRES, A. P. R. Filosofia do direito: Uma Análise Epistemológica da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 72-77, abr./jun. 2006.

 

Notas:



[1] Projeto de pesquisa apresentado na disciplina de metodologia da pesquisa aplicada ao direito, como exigência parcial para o semestre letivo, sob a orientação do professor Dr. Elieser Donizete Spereta e orientação técnica da professora M.Sc Thalita Leme Franco

[2] Hans Kelsen, jurista austríaco de origem Judaica, nasceu em Praga em 11 de outubro de 1881 e morreu em Berkeley, Califórnia, EUA, em 11 de abril de 1973. Praticamente toda sua formação profissional se deu em Viena, Áustria, onde se doutorou em Direito (no ano de 1906, na Universidade de Viena), e começou a lecionar, primeiro na Academia de Exportação do Real e Imperial Museu de Comércio de Viena em 1909 e, posteriormente, como professor em direito constitucional e filosofia do direito, na Faculdade de Direito de Viena.

[3] Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas (Allgemeine Theorie Der Normen), 1986, p. 2.

[4] Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas (Allgemeine Theorie Der Normen), 1986, p. 10.

Kelsen exemplifica a norma geral e a individual da seguinte forma:

Geral: a norma de todos os ladrões devem ser condenados à prisão.

Individual: a decisão judicial de que o ladrão Schulze deve ser posto na cadeia por um ano.  

[5] Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 1998, p. 242

[6] Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 1998, p. 217


Informações Sobre o Autor

Lays Fernanda Ansanelli da Silva


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