A estrutura da Organização das Nações Unidas e seus desafios contemporâneos: reforma institucional e proteção de direitos humanos

Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar a estrutura e a lógica regente da Organização das Nações Unidas para responder a dois desafios contemporâneos: sua reforma institucional e sua atuação na proteção de direitos humanos. Sob uma perspectiva crítica, o enfoque dado estará voltado para correntes teóricas do Direito e das Relações Internacionais. Para organizar o estudo, foi feita a divisão didática que engloba, em primeiro lugar, a inserção da organização internacional na política e no direito internacional, apontando seu contexto de criação; em segundo lugar, seu funcionamento de acordo com a Carta de São Francisco; em terceiro lugar, a estrutura do sistema onusiano, com enfoque nos órgãos; e, por fim, uma conclusão focada nos desafios contemporâneos que suscita as perspectivas de reforma institucional e sua baixíssima probabilidade, mediante a aventada compreensão realista das relações internacionais, bem como a crítica sobre a prática discriminatória e seletiva e sobre o viés militar que é dado pela ONU ao tratamento das violações de direitos humanos perpetrados no mundo.

Palavras-chave: Organização das Nações Unidas; Direito Internacional; Política Internacional; Conselho de Segurança; Direitos Humanos.

Abstract: The current article aims at introducing the structure and the dynamics of United Nations Organization in order to pose two contemporary challenges: its institutional reform and its human rights protection. Under a critique perspective, International Law and International Relations theories will be in the limelight. Such a study was divided in four parts. In the first one, it deals with the United Nations’ context of elaboration and role in international politics and international law. In the second one, it addresses its functioning due to San Francisco Charter. In the third one, the UNO system and its organs will be debated. Finally, in the fourth one, this text will be concluded according to an analysis about institutional reform perspectives and its low likelihood, facing a realist approach of international relations, as well as, the critique of discriminatory and selective practice of protecting human rights besides its military treatment of UNO.

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Keywords: United Nations Organization; International Law; International Politics; Security Council; Human Rights.

Sumário: I- Introdução; II-  A Carta e o Funcionamento da ONU; III- A Estrutura da ONU; IV- Conclusões: Desafios contemporâneos (reforma institucional e proteção de direitos humanos).

I. Introdução: contexto histórico e teórico da formação das Nações Unidas

Entender a formação da ordem contemporânea perpassa a história política e normativa do sistema interestatal. Alain Pellet aponta a Reforma como precursor das ideias westfalianas (PELLET, 2003: p. 50): “O vínculo religioso quebrado pela Reforma é substituída por uma nova comunidade internacional alargada, fundada no humanismo do Renascimento.”. A transição entre Idade Média e Idade Moderna é marcada pelo fim da influência da Igreja nas monarquias. Em meio à lógica feudal, desenvolvia-se o poder da burguesia, cujos interesses se contrapunham àqueles dos proprietários de terras. A concepção católica de mundo, que embasava o modo de produção feudal, já não atendia plenamente aos interesses comerciais da nova classe. Com isso, os Estados modernos foram sendo constituídos a partir da visão jurídica de mundo da burguesia, que secularizava a perspectiva teológica, libertando a monarquia da tutela do Papa. Engels e Kautsky ilustram a transformação (ENGELS e KAUTSKY, 2012: p.18):

“O dogma e o direito divino eram substituídos pelo direito humano, e a Igreja pelo Estado. As relações econômicas e sociais, anteriormente representadas como criações do dogma e da Igreja, porque esta as sancionava, agora se representam fundadas no direito e criadas pelo Estado.”

O suporte jurídico deste movimento de enfraquecimento do direito divino e de fortalecimento do poder político foi o postulado da soberania do Estado, que, segundo Jean Bodin, deveria ser uma prerrogativa uma e indivisível, perpétua e suprema, monopolizada pela monarca, e de reflexos internos (dentro das fronteiras territoriais) e externos (sem questionamentos por outros monarcas).

Inicialmente difundida na França, para resolver o conflito interno em torno da centralização, o postulado da soberania veio a constituir o pilar das relações internacionais após a Guerra dos Trinta Anos. Conflitos de cunho político e religioso que devastaram os reinos germânicos da parte central da Europa e que envolveram as grandes potências da época, ao final, foram marcados pela vitória dos países protestantes e pelo enfraquecimento da Igreja Católica. Os tratados que celebraram a paz expressaram os valores que passariam a nortear a ordem jurídica interestatal.

O postulado da soberania seria a premissa maior da qual irradiariam dois princípios básicos, o da igualdade (jurídica, formal) entre os Estados e o da inexistência de um poder central que detivesse o monopólio do uso da força, a conhecida anarquia sistêmica. De acordo com este sistema, apenas os Estados seriam os detentores de direitos e de deveres, cujas fontes seriam oriunda do direito positivo (tratados internacionais) e do direito natural (costumes e princípios gerais de direito), devendo ter sua integridade respeitada por seus pares (não intervenção), a não ser em caso de conflito, no qual a guerra poderia ser considerada um meio legítimo de solução de controvérsias.

Portanto, a ordem westfaliana foi paulatinamente se consolidando, caracterizada por ser secular (laica, sem hierarquia religiosa), coordenada (em contraposição à ordem regida por subordinação dentro das fronteiras do Estado) e horizontal (como a relação entre particulares dentro de um Estado). O sistema internacional contemporâneo organiza-se tanto para o Direito Internacional quanto para as Relações Internacionais sob uma mesma lógica desde a Paz de Westfália. Ainda que por composições distintas, o consagrado valor da soberania estatal prevaleceu em todos os momentos de reestruturação da ordem de poder. Estas etapas de inflexão ocorreram sempre após um conflito central (leia-se, no coração histórico do sistema interestatal capitalista, a Europa) e sistêmico (envolvendo as potências da época).

Como o valor da soberania não é estritamente jurídico, mas também político, sua emergência assinalou a decadência da Áustria, cujos vínculos com o Vaticano eram íntimos, enquanto potência hegemônica para a ascensão gradativa de França e Grã-Bretanha[1], que passaram a rivalizar pelo controle do continente europeu e pelo espraiamento de suas colônias pelo mundo. Esta organização eminentemente europeia foi alterada após a Era Napoleônica[2].

A França, por meio das conquistas territoriais, abalou as estruturas do absolutismo europeu. A partir de sua derrota, tentou-se acordar um pacto europeu para a reversão da influência napoleônica, que fundamentava o pleito das burguesias liberais. Pelo Congresso de Viena articulou-se a restauração das monarquias absolutas com o fundamento jurídico do princípio da legitimidade. O conservadorismo foi difundido pelo concerto entre as grandes potências da época Áustria, Prússia e Rússia, impérios ainda atrasados em termos políticos e industriais, que se aliaram à Inglaterra, cujo objetivo era impor sua preponderância no continente, grupo que mais tarde foi aderido pela própria França, recém-retornada ao absolutismo monárquico. Este concerto calcado no equilíbrio realista de poder, reconhecendo as grandes potências naquele momento, baseou-se na balança de interesses de cada um no continente, deixando de viger fora dos domínios europeus. Apesar de seus limites lindeiros e de sua informalidade (não havia um documento positivado que consagrasse aquela ordem), a Ordem de Viena foi bastante duradoura[3]. Amalgamada no valor da soberania estatal e na tomada de decisões por um condomínio de Estados poderosos, evitou guerras sistêmicas no ponto cardial europeu durante quase um século. Suas estruturas passaram a ruir a partir da unificação tardia de Estados centrais, como Alemanha e Itália, cuja ascensão já no patamar elevado das potências alterou a balança de poder e acirrou as rivalidades dentro e fora do continente.

O nível das tensões chegou ao auge e eclipsou o Concerto de Viena com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, conflito sistêmico que começou a minar a força europeia. Imbuído por sentimentos imperialistas e nacionalistas, o confronto durou muito além do esperado. Com isso, a destruição material e humana alavancou grandes transformações políticas. Internamente, nos países beligerantes, a insatisfação popular crescia e o apelo pelo pacifismo foi o motor propulsor da ruína do autoritarismo imperial ainda apegado à lógica dezenovesca[4].  A Rússia foi a primeira a sair do conflito após a convulsão interna que marcou a chegada dos socialistas ao poder. Em seguida, a população civil forçou a rendição alemã e a queda do Império Hohenzollern[5], com a proclamação da República de Weimar. Externamente, o enfraquecimento europeu ressaltou ainda mais a emergência econômica dos Estados Unidos da América, cujo apoio logístico foi fundamental para o desgaste alemão. Ainda que neste não obtivesse o consenso geral sobre sua superioridade (possuíam de acordo com a noção gramsciana[6] o domínio econômico e militar, mas não a hegemonia), influenciaram decisivamente na reorganização internacional pós-Grande Guerra. O presidente estadunidense foi o responsável pela materialização do ideal liberal[7], no sentido de encontrar uma vontade comum dentro do respeito ao interesse de cada Estado. Para esta inspiração, a devastação gerada pelas guerras seria irracional, e a paz somente poderia ser atingida por meio de um acordo coletivo, o qual seria estabelecido em um foro comum de debates e de tomada de decisões. Neste diapasão, surge na primeira parte do Tratado de Versailles[8] a primeira organização internacional cujo escopo seria garantir a paz e a segurança internacional, a Sociedade das Nações. Sua existência marcou uma tentativa de conciliação coletiva mais ampla que o Concerto de Viena, mas foi, contudo, marcada por contradições inconciliáveis. Em primeiro lugar, o país de origem de seu idealizador, Woodrow Wilson[9], os Estados Unidos da América, potência econômica ascendente, não ratificaram o documento, abdicando da participação no foro coletivo, o que o enfraqueceu politicamente[10]. Em segundo lugar, não condenou totalmente a violência como forma de solução de controvérsias[11], o que garantiu legitimidade a invasões de países imperialistas. Em terceiro lugar, apesar da lógica idealista, seu procedimento de tomada de decisão sobre assuntos de paz e segurança era excludente e discriminatório, feito por um Conselho Executivo, composto por 4 membros permanentes (Grã-Bretanha, Itália, França e Japão, ou seja, eminentemente europeu) e 4 não permanentes (rotativos), cujo quórum era a unanimidade[12]. Em quarto lugar, o contexto do período entre guerras não foi favorável à eficiência de uma organização deste porte. As tensões que resultaram na Grande Guerra foram ainda mais acirradas com o arranjo imposto aos derrotados. As outras partes do Pacto de Versailles previam pesadas penalizações à derrota Alemanha, a qual assumiu a culpa pelo conflito sistêmico. Além das pesadas indenizações em dinheiro, perdas territoriais e invasão estrangeira atiçaram um revanchismo alemão, o qual constituiu um cenário instável de paz armada[13].

A mescla destes fatores foi refletida na impotência da Liga das Nações em evitar conflitos da mesma proporção da Grande Guerra. O resultado foi a eclosão da Segunda Grande Guerra Mundial, de efeitos ainda mais nefastos para a humanidade, sobretudo, para os europeus e asiáticos[14]. Mais uma vez um confronto de grandes proporções alterou as estruturas do sistema internacional. A guerra marcou a transição da hegemonia britânica para a estadunidense[15]. Os Estados Unidos da América tiveram participação decisiva na frente ocidental do conflito e emergiram dos escombros com o consenso de todos que seu poder era inquestionável. Antes até do fim da Segunda Guerra, acordos já eram firmados neste sentido. O primeiro foi a Carta do Atlântico, em julho de 1941, documento sem nenhum valor jurídico, apenas um acordo formal entre dois estadistas[16], Franklin Roosevelt e Winston Churchill, o qual constituía as bases da entrada estadunidense no conflito, haja a precariedade da situação bélica britânica naquele momento[17]. Posteriormente, o debate foi ampliado, e conferências passaram a ser realizadas entre os aliados, ou seja, além dos representantes anglo-saxões, com a presença do soviético. As Conferências de Moscou[18], Teerã[19], Bretton Woods[20], Yalta[21], São Francisco[22] e Potsdam[23] foram se tornando cada vez mais relevantes, à medida que a vitória aliada se aproximava. Os rumos da nova ordem internacional, que deveria refletir os moldes do poder americano, passaram a ficar delineados. O panorama estabelecido neste período é o vigente até os dias atuais. A lógica do direito westfaliano foi mantida, e a hodierna configuração da política internacional passou a gravitar em torno de dois pilares: um econômico, garantido por órgãos, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, cujo núcleo é o dólar como moeda internacional, e um político, cujo epicentro é a Organização das Nações Unidas, ambos constituídos pela dinâmica da hegemonia estadunidense. Pensou-se uma nova organização de escopo mundial, voltada à paz e à segurança internacional, que viesse substituir e aperfeiçoar a malfadada Sociedade das Nações. A lógica do grande foro democrático de debate agregada a um órgão executivo responsável pela tomada das decisões mais importantes foi mantida, com o devido incremento. A política institucionalizada opera em função de um condomínio que reúne as potências vencedoras do conflito mundial (Estados Unidos, China, Rússia, França e Grã-Bretanha), conhecido como o Conselho de Segurança da ONU, único órgão detentor da prerrogativa excepcional de autorização do uso da força na seara internacional, em nome de uma pretensa segurança coletiva, a qual serve aos desígnios daqueles cinco países permanentes possuidores do poder de veto.

É esta organização internacional, datada do contexto do pós-1945, que ainda rege e coordena as complexas questões contemporâneas. Em virtude disto, a importância de compreender a estrutura das Nações Unidas para discutir sua atuação perante os desafios da atualidade.

II- A Carta e o Funcionamento da ONU

Fruto da tentativa de reorganizar a sociedade mundial após os traumas gerados pela Segunda Guerra Mundial, a Carta da ONU, elaborada durante a Conferência de São Francisco, em 26 de junho de 1945, revela um grande avanço na concertação entre os países.  Originariamente contou com a assinatura de 51 membros, como o fez o Brasil, que estava junto aos aliados na guerra. Com a aquisição da quantidade necessária de ratificações (prevista no artigo 110 da Carta[24]), o tratado internacional entrou em vigor em 24 de outubro de 1945. Já em seu preâmbulo o documento demonstra os valores que guiarão sua constituição e sua atuação desta organização, como a fé nos direitos fundamentais do homem, a dignidade humana, a igualdade entre gêneros e de Estados, o rechaço à solução armada de conflitos e a cooperação para o progresso econômico e social. Ainda que esta parte preliminar não detenha valor jurídico, é relevante por explicitar os norteadores que conduziram os legisladores.

Estas premissas tornam-se evidentes quando ressaltadas como objetivos e princípios das Nações Unidas, nos artigos 1° e 2°. Seguindo os princípios da instrumentalidade e da especialidade que regem a teoria das organizações internacionais, a ONU, enquanto ficção jurídica, resultado independente da agregação de vontades dos Estados, ou seja, possui personalidade própria (é sujeito de direito internacional, cuja vontade não reflete necessariamente a soma da vontade de seus membros), porém, derivada (decorre de outros sujeitos de direito internacional), tem sua existência condicionada ao alcance de um fim específico. O objetivo imediato é a garantia da paz e da segurança internacional, ideal compreensível ante os acontecimentos pretéritos que abalaram a primeira metade do século XX. Frente à complexidade desta tarefa, verificam-se outros objetivos mediatos, correlacionados com o escopo principal, como o fomento às relações amistosas entre as nações, o incentivo à cooperação internacional e viabilização de um foro para a harmonização dos diferentes interesses nacionais. A consecução destas metas será pautada por princípios, como os estabelecidos no artigo seguinte ao dos propósitos. O primeiro é princípio decorrente do postulado maior do direito internacional westfaliano (a soberania estatal), a igualdade jurídica entre os Estados, do qual se deduz o preceito da não intervenção nos assuntos internos dos Estados, a não ser em uma hipótese excepcionalíssima, relacionadas com seu objeto principal. O segundo é o da boa-fé no cumprimento dos compromissos pactuados. O terceiro prioriza o pacifismo ao enfatizar os meios pacíficos de solução de controvérsias, proscrevendo de forma geral e abrangente o uso da força, o qual será utilizado somente em hipóteses excepcionais e justas, legitimadas para garantia da segurança coletiva.

A importância da proteção da coletividade e da irradiação de valores coletivos está relacionada com a larga abrangência da organização. Desde sua criação já contava com um número considerável de signatários, haja vista o restrito universo de Estados nacionais independentes à época. Ainda hoje a ONU mantém este caráter universal, ou seja, de agregar a grande maioria dos países, presentes em todas as regiões geográficas do mundo. Muito em função desta peculiaridade e da difusão de seu objeto primordial, entende-se que seus princípios norteadores e determinadas imposições relativas à segurança abrangem todos os membros da sociedade internacional, inclusive aqueles que não sejam signatários da Carta da ONU. São considerados membros da organização todos os signatários originais (de acordo com o artigo 3° são os fundadores são os que assinaram a Declaração de Moscou de 1942-contra os países do Eixo- ou a Carta de São Francisco de 1945) e os aderentes (aderiram posteriormente à Carta). Para ser atingir o estatuto de membro é necessário preencher o pressuposto de ser um Estado amante da paz (previsto no artigo 4°). O procedimento de entrada (artigo 4°) passa pela aprovação de dois órgãos próprios, a Assembleia Geral, cujo quórum de decisão é de 2/3 e pela recomendação do Conselho de Segurança, cujo quórum de aprovação é de 9 votos afirmativos entre seus 15 membros, desde que não haja veto dos países detentores deste poder. Uma vez deliberado favoravelmente ao pleito de entrada, o Estado torna-se membro pleno. Não há, todavia, uma previsão expressa de saída, ou seja, a cláusula de denúncia do tratado internacional não está presente. Há apenas a previsão de sanções particulares da organização, como a suspensão de direitos e privilégios (artigo 5°), que ocorre quando o país violar as disposições da Carta (sendo aprovada pela Assembleia Geral mediante recomendação do Conselho de Segurança), e como a saída compulsória ou expulsão (art. 6°), que se concretizará por aprovação da Assembleia Geral mediante recomendação do Conselho de Segurança quando um Estado violar reiteradamente os princípios contidos na Carta.

Além destas disposições gerais, outras peculiaridades da organização contribuem para sua análise. Estas particularidades situam-se nas previsões finais, mas não deixam de ser fundamentais para a compreensão do modus operandi da ONU. O artigo 102 determina o fim de uma prática muito comum antes da Primeira Guerra Mundial, a diplomacia secreta, por meio da exigência do depósito dos tratados internacionais celebrados pelos Estados-parte junto à Secretaria Geral da Organização. No artigo seguinte, a Carta da ONU autoproclama-se superior hierarquicamente a outros tratados internacionais, quando com estes conflitar, a despeito de ser consagrada na doutrina a não hierarquia entre as fontes primárias do direito internacional. Por isto, esta previsão gera controvérsias doutrinárias quanto à sua aplicação. Já o artigo 105 trata dos privilégios e imunidades que a organização internacional gozará dentro do território do Estado que a receberá. Inclusive seus representantes ou funcionários terão estas prerrogativas no que tange aos atos relativos à função, ou seja, para atos do ofício. A Carta da ONU traz disposições gerais sobre as imunidades, fundamentais à realização de seus propósitos, o que não exclui que entre o Estado receptor e a organização sejam celebrados tratados que prescrevam regras específicas, como ocorre nos Acordos de Sede. Mais à frente, nos artigos 108 e 109, a Carta estipula os rígidos procedimentos de reforma e de revisão respectivamente. Destaca-se a reforma, para a qual é exigida a aprovação de 2/3 da Assembleia Geral além da ratificação dentro dos procedimentos constitucionais de 2/3 dos Estados-membros, incluindo necessariamente a ratificação nos 5 membros permanentes do Conselho de Segurança. Por fim, é imperioso mencionar que o funcionamento da organização é regido por seis idiomas oficias, conforme o artigo 111, o inglês, francês, espanhol, árabe, mandarim e russo.

Tendo visto as peculiaridades que cercam a Carta e o funcionamento da instituição[25], é imprescindível analisar sua estrutura, nomeadamente seus órgãos, cujas previsões se iniciam no artigo 7° e os seguintes do corpo do tratado constitutivo.

III- Estrutura da ONU

Apesar da estrutura do sistema onusiano ser complexa e difusa[26], ou seja, de haver diversas organizações, programas, fundos e agências, orbitando a seu redor, é preciso apontar que o rol de órgãos da ONU é bem mais restrito, composto somente de 6 órgãos, quais sejam, o Conselho de Segurança, a Assembleia Geral, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o Conselho de Tutela, Secretariado Geral e a Corte Internacional de Justiça. Estes perfazem o centro do direito e da política internacional, dos quais se irradiam as diretrizes principais da coletividade internacional. Uma vez que são cardiais, cabe uma explicação mais detalhada sobre cada um.

O primeiro, mais importante e hierarquicamente superior é o Conselho de Segurança. Este órgão executivo foi criado sob a inspiração realista das relações internacionais, pautada embrionariamente pelo conceito de equilíbrio de poder pelas Grandes Potências, difundido após o Congresso de Viena e que vigorou pelo século XIX, e pelo Conselho Executivo da Sociedade das Nações. O Conselho de Segurança da ONU reflete uma estrutura aperfeiçoada deste seu congênere. Sua composição (dada pela reforma da Carta de ONU de 1963)[27] é de 15 membros: 10 não permanentes (mandato de 2 anos não prorrogável subsequentemente, cuja eleição é feita pela Assembleia Geral respeitado o critério de distribuição geográfica, ou seja, cinco oriundos da África e da Ásia, um da Europa Oriental, dois da América e dois da Europa Ocidental) e 5 membros permanentes com direito a veto nas decisões sobre assuntos substanciais (as grandes potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos da América, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, França, Reino Unido e China).

As competências do órgão estão positivas explicitamente nos capítulos VI e VII da Carta, sendo admitidas, segundo a teoria dos poderes implícitos, competências não escritas desde que relacionadas com seu objetivo final. Em outras palavras, todas estão relacionadas à paz e à segurança internacional, assunto de tratamento privativo deste órgão. O Capítulo VI trata das soluções pacíficas de controvérsias. Por meio de seu artigo 33 elenca os meios pertinentes, como os diplomáticos, o que envolve inquérito (meio preliminar comum, mas não necessário, a todas as formas de composição), negociações diretas, bons ofícios, mediação e conciliação, os políticos, o que abarca o foro das organizações internacionais, com destaque para a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança[28] da ONU, e os meios jurisdicionais, como arbitragem e tribunais (ad hoc ou permanentes). Estes meios diferenciam-se dos diplomáticos e políticos por serem suas decisões obrigatórias às partes litigantes, enquanto que os pareceres não jurisdicionais são meramente opinativos, sem obrigatoriedade jurídica de cumprimento. Qualquer país, parte ou não parte, poderá levar quaisquer casos que envolvam a ruptura da ordem e a violência generalizada dos princípios consagrados internacionalmente, podendo o Conselho atuar mesmo sem provocação.

Se a resolução pacífica não for suficiente ou se o caso for considerado demasiadamente grave e urgente para uma solução conciliada, será aplicado o Capítulo VII, responsável por regular ações relativa a ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão. De acordo com o artigo 41, antes de qualquer medida beligerante, pode o Conselho implementar ou convidar os países a realizar ações coercitivas à revelia da vontade do atingido, como retorsões (atos lícitos que coagem, como o rompimento de relações diplomáticas) ou contramedidas (atos ilícitos, mas toleráveis pelo direito internacional quando necessários, como interrupção de relações econômicas contratuais, dos serviços de comunicação, de transporte ou de fronteiras). Se ainda assim estas medidas se mostrarem inadequadas, o artigo 42 explicita a competência exclusiva e excepcional que garante ao Conselho de Segurança uma posição ímpar no cenário internacional, a aprovação do uso da força para a solução de controvérsias graves que ameacem a segurança coletiva. São aprovadas ações militares interventivas que impõem a paz a qualquer custo. Estas missões não precisam da concordância do Estado que a sofrerá, relativizando o princípio da não intervenção, podendo seu comando ser delegado a coalizões militares de diversas nações, a organizações internacionais regionais de cunho militar[29] ou mesmo a tropas que representem a ONU. Seu caráter intervencionista e bélico proporciona sua classificação doutrinária como missão peace-enforcement, a qual força a paz independentemente da vontade alheia. Neste momento, tem-se a violação da paz e da segurança e para que haja uma resposta coletiva é imprescindível a aprovação prévia. Já no artigo 51 aparece a segunda hipótese excepcional do emprego da força, a qual se difere consideravelmente da primeira. Na legítima defesa, haverá a iminência ou a ruptura efetiva da paz, agindo o Estado afetado imediatamente e proporcionalmente, sendo sua ação avaliada em um juízo posterior às hostilidades bilaterais pelo Conselho de Segurança, que se a considerar válida, referendará a reação belicosa.

Além da autorização do uso da força e da legítima defesa, existe mais uma hipótese em que episodicamente a violência poderá ser utilizada na solução de imbróglios, no caso das missões de paz. Estas não foram previstas pelo legislador originário, ou seja, não estão expressas na Carta da ONU. São admitidas com base na corrente doutrinária que defende a aplicação da teoria dos poderes implícitos, como forma de dinamizar e adequar a atuação das organizações internacionais às complexas e constantes mudanças da sociedade internacional. Desde que vinculada à finalidade primordial e por esta limitada, a competência do órgão poderá ser ampliada sob o argumento de aperfeiçoar suas funções. Logo nos primeiros anos de funcionamento da ONU já foi constatada a necessidade de missões de paz, cuja finalidade seria a cessação das hostilidades em um conflito mediante concordância das partes beligerantes, ou seja, seria mais incisiva que os diversos meios pacíficos de controvérsias e menos agressiva que uma intervenção militar do artigo 42. A violência seria empregada apenas defensivamente, quando estritamente necessário para a proteção de sua existência. Em virtude deste caráter misto e por lidar com o escopo da paz e segurança internacional, entende-se que a autorização das missões de paz seria de competência do Conselho de Segurança, como se existisse um Capítulo VI/2[30]. Com o passar do tempo e com as alterações nas relações internacionais, a interpretação sobre o objetivo destas missões foi sendo modificado. Inicialmente, verificadas como peace-keeping, preocupadas em somente como cessar-fogo, passaram a peace-making, ter como escopo fazer a paz, chegando a peace-building, buscando não mais exclusivamente paz, mas criar um ambiente de desenvolvimento econômico e social que propicie uma estabilidade pacífica e duradoura. Em outras palavras, percebe-se que as missões de paz são uma ferramenta cada vez mais frequente e intervencionista nos assuntos internos dos Estados, ainda que se justifiquem por motivos nobres e legítimos.

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O quórum para a aprovação das missões de paz é o mesmo que para o emprego da intervenção militar e para legalizar a legítima defesa, conforme o artigo 27: por se tratarem de questões substanciais é necessário o voto afirmativo de 9 membros, desde que não haja veto dos detentores deste poder; para assuntos meramente procedimentos se requer 9 votos afirmativos, sem a aplicação do poder de veto. As resoluções aprovadas são juridicamente obrigatórias (artigo 25), estendendo-se seus efeitos até para Estado que não sejam signatários da Carta de São Francisco.

Para todos os casos que envolverem a paz e a segurança internacional, os quais não forem objeto de deliberação pelo Conselho de Segurança, caberá à Assembleia Geral fazê-lo, ou seja, possui competência residual em relação à finalidade primordial da organização (artigo 12), além de poder ser um meio político de solução de controvérsias (artigo 14). Fará ainda o controle dos relatórios de atividades emitidos pelo Conselho de Segurança e pelos outros órgãos onusianos (artigo 15). Ademais, caberá a ela planejar e aprovar o orçamento da entidade, procedimento que é feito por biênio.  A contribuição por país varia entre 22% e 0,01%, de acordo com sua capacidade contributiva, sob pena de após 2 anos de inadimplência perder o direito ao voto na Assembleia Geral.

Organiza-se por meio de sessões que podem ser ordinárias (anuais) ou especiais, (convocadas pelo Secretario Geral a pedido do Conselho de Segurança ou da maioria dos países membros). As Sessões Especiais foram dividas depois de 1950 (pela Resolução n° 377, a Uniting for Peace)[31] em sessões especiais comemorativas e emergenciais (convocada em até 24 horas). O presidente do órgão é eleito a cada sessão ordinária anual[32]. Esta entidade colegiada é o maior e mais democrático foro da instituição. Atualmente é composto por 193 membros, ou seja, por representantes de todos os Estados signatários. Seu sistema decisório segue o histórico princípio da igualdade soberana: um Estado, um voto. Para questões consideradas relevantes é exigido um quórum de 2/3 dos membros presentes e votantes; para outros assuntos, a maioria simples dos presentes e votantes. Apesar de sua importância enquanto espaço de debate e formulação de ideias e de acordos, falta às decisões da Assembleia Geral força jurídica vinculante, ou seja, suas deliberações são meras recomendações, sem obrigatoriedade de cumprimento[33].

Assembleia Geral e Conselho de Segurança são os dois órgãos executivos mais importantes da organização internacional, justamente por lidarem com sua finalidade imediata. Outros órgãos tratam dos temas correlatos aos objetivos mediatos, como o Conselho Econômico e Social, o ECOSOC. Composto por 54 membros eleitos pela Assembleia Geral para um mandato de 3 anos, admitida a reeleição para igual período subsequente, a ele compete, conforme estabelecido no artigo 62 da Carta, elaborar ou iniciar estudos e relatórios de monitoramento a respeito de assuntos no âmbito internacional de caráter econômico, social, cultural, educacional, sanitários, direitos humanos e conexos. Suas deliberações são tomadas pelo quórum de maioria relativa, não tendo qualquer efeito jurídico obrigatório aos envolvidos. Pela sua atuação multidisciplinar possui ampla gama de vínculos com agências especializadas, fundos e programas relacionados com a ONU.

Além do ECOSOC, existe previsão na Carta da ONU de um Sistema Internacional de Tutela, justificável pelo contexto do pós-guerra, no qual começavam a ganhar força as demandas por independências das outrora colônias asiáticas e africanas. Montou-se uma autoridade teoricamente neutra responsável por tutelar a transição para a autonomia dos territórios considerados incapazes de empreender diretamente uma administração autônoma. Para regular o funcionamento e a condução dos mandatos, criou-se o Conselho de Tutela, órgão de composição variável, a depender do caso concreto (artigo 86), de competência própria para viabilizar as condições de independência e cujo quórum prezava pela maioria relativa dos membros presentes e votantes. Funcionou de forma pontual e lenta, sem abarcar muitos casos e sem conseguir evitar sangrentas e duradouras guerras de libertação entre metrópoles e colônias ao longo do século XX. Com o fim da Guerra Fria e o arrefecimento da onda de descolonização, o sistema de tutela começou a perder o sentido, ficando decido em 1994 que o Conselho estaria suspenso por tempo indeterminado em razão da perda de seu objeto. Apesar de suspenso, ainda consta na Carta da ONU como órgão.

Diferentemente do Conselho de Tutela, o quinto, o Secretariado Geral é um órgão bem atuante hodiernamente. É composto por um Secretário Geral, indicado pela Assembleia Geral mediante recomendação do Conselho de Segurança (cabe utilizar o veto), e pelo pessoal de assessoramento exigido pela organização (escolhidos por nomeação pelo Secretário). Sua competência restringe-se a questões meramente administrativas. Possui cadeira e voz em todos os foros da instituição, bem como detém a prerrogativa de elaboração de relatórios anuais sobre o andamento da ONU. Externamente atua como porta-voz, bom oficiante, praticante de diplomacia preventiva, fomento à assistência humanitária e participa dos debates sobre os desafios globais. Seu mandato é de 5 anos renováveis por igual período. A trajetória do cargo indica que deveria existir um rodízio, que respeitasse a distribuição geográfica.  De 1946 a 1952 foi exercido pelo noruguês Trygve Lie; de 1953 a 1961 por Dag Hammarskjöld, da Suécia; de 1961 a 1971 por U Thant, de Miamar; de 1972 a 1981 pelo austríaco Kurt Waldheim; de 1982 a 1991 pelo peruano Javier Pérez de Cuéllar; de 1992 a 1996 por Boutros-Boutros Ghali, egípcio que não teve seu mandato prorrogado por desavenças com os países permanentes do Conselho de Segurança; de 1997 a 2006 por Kofi Annan, de Gana; e 2006 até 2015 pelo sul-coreano Ban Ki-moon.

O caráter eminentemente executivo da ONU não impede que ela também tenha um órgão jurisdicional, a Corte Internacional de Justiça, cujas disposições gerais se encontram no corpo da Carta, mas as específicas constam em um Estatuto anexo ao tratado constitutivo. Este tribunal permanente tem como antecessor a Corte Permanente de Justiça Internacional, criada no bojo do Tratado de Versailles e da Sociedade das Nações, funcionando de 1922 a 1940, tendo suas atividades interrompidas pela invasão alemã à cidade de Haia, na Holanda. Possui como membros todos os Estados signatários da Carta da ONU, sendo acessível até para Estados que não forem membros, desde com a aprovação pela Assembleia Geral mediante recomendação do Conselho de Segurança.

Ainda assim, respeitando o postulado maior do direito internacional, a soberania dos Estados, sua jurisdição não é obrigatória (mesmo para seus membros), mas facultativa, podendo se tornar mandatória, desde que os Estados envolvidos concordem com isto. Para que ocorra a aceitação é fundamental que haja uma manifestação unilateral de vontade estatal; alguma disposição presente em tratado bi ou multilateral sobre a jurisdição específica para determinado assunto; ou o Estado opte por assinar a cláusula Raul Fernandes, que transforma a jurisdição que é inicialmente facultativa em obrigatória a partir daquele momento para os casos que envolvam o Estado signatário.

A Corte é composta por 15 juízes, cujo mandato é de 9 anos prorrogáveis uma vez por igual período, não podendo entre eles figurar dois nacionais do mesmo Estado. As indicações dos juízes serão feita pela Corte Permanente de Arbitragem (criada em 1899, em Haia, e aperfeiçoada em 1907) ou por grupos nacionais para o Secretário Geral que elaborará uma lista em ordem alfabética. Sua escolha ocorre por meio da aprovação em votações apartadas do Conselho de Segurança (na qual não cabe o uso do veto) e da AG (maioria absoluta).  Apesar de não estar escrito, há uma regra implícita na prática: é eleito sistematicamente sempre um juiz da nacionalidade de cada um dos membros permanentes do Conselho de Segurança. Como a tradição jurídica adotada mescla elementos do direito romano-germânico e do anglo-saxão, com forte influência deste, a composição da corte pode ser variável. Os juízes da mesma nacionalidade de qualquer das partes conservam o direito de atuar em questões julgadas pela Corte. Aqueles Estados que não tiverem um nacional presente poderão indicar um juiz de sua preferência ou nacionalidade. Ainda quando as duas partes não tiverem juízes, poderá cada uma indicar um juiz.

A atuação do tribunal será restrita a uma competência dupla: a contenciosa, que julgará violações do direito internacional ou litígios entre ou que envolvam somente Estados (únicos legitimados ativos e passivos); e a consultiva, sobre eventuais dúvidas acerca da interpretação e aplicação do direito internacional, quando requisitada pelo Conselho de Segurança ou pela Assembleia Geral. Abrange os Estados membros e não membros das Nações Unidas, os quais poderão ser submetidos perante a jurisdição da CIJ, desde que tenham a autorização da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança e arquem com alguns custos das despesas judiciais do caso.

Sua jurisdição é inicialmente facultativa, quando aceita, todavia, se transforma em obrigatória, ou seja, suas decisões, as sentenças pretorianas são definitivas, inapeláveis e juridicamente obrigatórias. Seu não cumprimento por uma das partes pode ser invocado perante o Conselho de Segurança para que este decida qual medida tomar para efetivar a decisão (artigo 94). É imperioso ressaltar que a Corte Internacional de Justiça é órgão jurisdicional, logo, não é órgão de revisão das decisões dos órgãos políticos Conselho de Segurança e da Assembleia Geral. A atuação do tribunal, apesar de pouco frequente, é de grande importância para o aperfeiçoamento do direito internacional. Sua jurisprudência, enquanto meio auxiliar às fontes do direito internacional, contribui historicamente para aclarar e colmatar lacunas sobre assuntos complexos e relevantes da seara mundial, como sobre a personalidade jurídica das organizações internacional e sua responsabilidade, sobre proteção diplomática, asilo político diplomático, legalidade da ameaça e do uso de armas nucleares (permitidas desde que em legítima defesa), imunidade estatal, sucessão de Estados, fronteiras e disputas marítimas.

Desta forma, esgota-se análise dos órgãos da ONU. Em que pese a exaustividade do rol orgânico, o sistema onusiano é mais amplo, haja vista a complexidade de seu escopo e os assuntos correlatos que este suscita. Por isto, cabe, ao menos a citação nominal e a vinculação que importantes sub-órgãos, fundos, programas e agências desempenham.

Os sub-órgãos ou organismos subsidiários são foros dentro da estrutura dos órgãos da ONU e a eles subordinados. Dentro da Assembleia Geral localiza-se o Conselho de Direitos Humanos desde sua reforma e consequente deslocamento institucional em 2006. Antes era chamado de Comissão de Direitos Humanos, existente desde 1946 e vinculado ao ECOSOC. O organismo atual teve sua competência ampliada e sua composição reformada. Compete ao sub-órgão elaborar anteprojetos de tratados e declarações de direitos humanos; iniciar ex officio inquéritos sobre situações de flagrantes e reiteradas violações de direitos humanos; elaborar mecanismo de revisão periódica universal, ao contrário do que acontecia antes, nenhum país poderá escapar dessa revisão, que atinge todos os 193 Estados-membros da ONU; e pôr em funcionamento um mecanismo ad hoc de vigilância e informação sobre um país ou um tema específico de direitos humanos. A escolha de sua composição não é mais regional. Para ser eleito, o Estado deve ser escolhido por maioria simples na Assembleia Geral. Outra inovação foi a possibilidade de suspensão do membro eventualmente monitorado. Suas decisões são, contudo, relatórios, sem qualquer força jurídica vinculante.

Dentro do Conselho de Segurança encontra-se como os organismos subsidiários o Comitê do Estado Maior, o Comitê contra o Terrorismo, Tribunais ad hoc, como o Tribunal Penal Internacional para Ruanda e o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (ambos criados pelo próprio Conselho de Segurança como meio de solução jurídico para estas controvérsias específicas), e as Missões de Paz.

No ECOSOC existem organismos subsidiários constituídos em comissões técnicas e regionais. As específicas tratam de assuntos que tocam sua competência, como a Comissão para o Desenvolvimento Social, sobre Drogas Narcóticas, sobre Prevenção do Crime e Justiça Criminal, de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento, para o Desenvolvimento Sustentável, para o Status da Mulher e para a População e Desenvolvimento. As regionais assumem importantes papeis locais para a promoção do desenvolvimento econômico de áreas menos favorecidas e para a formação de um pensamento autóctone voltado às particularidades nativas, como a CEPAL, a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe.

O Secretariado Geral possui como organismos subsidiários de assessoramento os escritórios. Destacam-se o Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos (ACNUDH), formado por uma comissão nomeada de notáveis sobre o assunto, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNDOC) e o Departamento de Informação Pública, no qual se localiza a UNIC (Centro de Informações das Nações Unidas), responsável por difundir os dados e os conhecimentos sobre a organização pelo mundo.

Os organismos subsidiários estão subordinados aos órgãos, diferentemente do que ocorre com as agências, programas e fundos, que são organismos autônomos, com orçamento, objetivos e funcionários próprios. Possuem vinculação com a ONU por meio de tratados internacionais, haja vista a coincidência de escopo. Há, inclusive, organizações anteriores à criação da ONU, como a Organização Internacional do Trabalho, criada em 1919 e a União Postal Universal, de 1875, que guardam relação de complementaridade com o sistema onusiano. Os programas e fundos desenvolvem parcerias em maior medida com a Assembleia Geral e em menor, com ECOSOC, enquanto as Agências, exclusivamente com o ECOSOC.

São programas iniciativas cujo vínculo é estreito com a Assembleia Geral, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PUND), o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA) e a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). São Fundos o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o Fundo das Nações Unidas para a Democracia (UNDEF) e o Fundo para a População das Nações Unidas (UNFPA) também estão próximos à Assembleia Geral. São agências especializadas vinculadas com o ECOSOC: a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), o Fundo Monetário Internacional (FMI), a União Postal Universal (UPU), a Organização Marítima Internacional (IMO), dentre outras para assuntos específicos. Vale ressaltar, por fim, que além destas há organizações, exceções à tendência, que estão relacionadas mais com a Assembleia Geral do que com o ECOSOC, como a Organização das Nações Unidas para Proibição de Armas Químicas (OPAQ), a Agência Internacional para Energia Atômica (AIEA) e a Organização Mundial do Comércio (OMC).

Desta forma, verifica-se a amplitude de temas abarcados pelo sistema onusiano, o qual extrapola a estrutura interna da organização internacional, englobando outras entidades com personalidade jurídica autônoma, haja vista a complexidade e a necessidade de discutir na esfera multilateral questões que afetam a todos os países. Nisto reside a importância em conhecer o funcionamento e a estrutura da ONU, com enfoque especial em seus órgãos mais relevantes para entender e criticar sua atuação. É fundamental salientar que seu eixo central é composto por seus órgãos e sub-órgãos, cujo núcleo é ocupado pelo Conselho de Segurança, em torno do quais gravitam agências, fundos e programas, cada qual cumprindo sua instrumentalidade temática. Com o fim da Guerra Fria, os foros internacionais ganharam ainda mais força e tornaram-se os principais palcos de debate e concertação, havendo a consequente expansão do direito internacional, no sentido de sua especialização para áreas que antes não eram discutidas mundialmente. Em virtude disto, aumentam a atuação do sistema da ONU e as críticas sobre seu modus operandi, haja vista a dificuldade do tratamento das questões globais hodiernas.

IV- Conclusões: Desafios contemporâneos (reforma institucional e proteção de direitos humanos)

Diante da definição estrutural das Nações Unidas e de seu organograma sistêmico, cabe concluir o artigo mediante a discussão de seu papel no enfrentamento dos desafios contemporâneos. Este debate abarcará dois temas bem amplos, o pleito pela reforma institucional e a forma utilizada pela organização para remediar as reiteras e generalizadas violações de direitos humanos pelo mundo.

A principal demanda por mudanças gira em torno de uma alteração tanto em aspectos jurídicos quanto em políticos da Carta, documento datado de 1945, que ainda reflete a configuração daquele contexto. A discussão mais produtiva concentra-se nos poderes excessivos atribuídos ao seu órgão de cúpula.

Em relação ao vetor político, muito se discute sobre a hierarquia liderada pelo Conselho de Segurança e a impotência de outros órgãos mais democráticos, como a Assembleia Geral (que engloba como membros todos os signatários da Carta) ou mesmo o Secretariado Geral (cujo Secretário é eleito pelos membros). Temas de maior capilaridade e relevância como direitos humanos, meio ambiente e desenvolvimento econômico e social são preteridos em favor da ênfase desproporcional dada à segurança militar coletiva. As decisões mais determinantes são tomadas por um órgão executivo, altamente discriminatório e pouco representativo. A distinção interna do Conselho de Segurança entre membros permanentes e rotativos aflora o condomínio segregacionista de poder, pois reflete a dominância dos países vencedores da Segunda Guerra Mundial, composição que não representa mais a atual balança de poder no cenário internacional.

No tocante ao prisma jurídico, verifica-se a desigual distribuição de competências e poderes dentro da organização. Os assuntos mais relevantes relativos ao escopo principal, a garantia da paz e da segurança internacional, são exclusivos de um órgão executivo, sobre cujas decisões não há qualquer controle de legalidade. As resoluções do Conselho de Segurança são obrigatórias e vinculam as nações independentemente de sua vontade em cumpri-la ou aceitá-la. Esse procedimento de deliberação é viciado por um poder jurídico exclusivo que os membros permanentes detêm no quórum de aprovação, o veto jurídico[34] (previsto no artigo 27.3, da Carta da ONU), que garante a imposição da vontade de Estados Unidos, Reino Unido, França, China e Rússia nos assuntos considerados de maior relevância para a segurança coletiva. Esta prerrogativa é frequentemente utilizada de forma abusiva, pois seu exercício reflete a predominância do interesse nacional de cada Estado detentor na discussão.

Teóricos voltados à defesa dos valores democráticos e os outros Estados, prejudicados por esta configuração seletiva do poder, identificam e, obviamente, criticam esta discrepância, propondo reformas à instituição, sobretudo, no topo de sua estrutura piramidal. O principal argumento é a função pública internacional exercida pela ONU, a qual deveria ser pautada por princípios oriundos do constitucionalismo liberal. Neste sentido, diversas alternativas já foram levantadas. Desde a década de 1990, as propostas começaram a ganhar força. Inicialmente, aumentou-se o direito de voz dos países não membros nas sessões. Em 1997, o projeto pioneiro conhecido como Razali previa a ampliação do Conselho de Segurança para 24 assentos, sendo cinco dos nove novos membros eleitos pela Assembleia Geral para ocupar novas cinco cadeiras permanentes, sem mencionar a ampliação do direito de veto. Em 2003, um Grupo de Notáveis foi convocado para repensar a ordem internacional, ante a celebração dos 60 anos da organização em 2005. Deste trabalho surgiram duas alternativas que continuavam a não tocar na polêmica ampliação do poder de veto dos membros atualmente detentores: a primeira, a proposta A sugeriu o aumento de seis novos assentos permanentes, totalizando 11, enquanto que haveria a inclusão de mais três assentos não permanentes, totalizando 13, cuja soma daria os 24 da anterior Proposta Razali; a segunda, a proposta B, prezava pelo surgimento de 8 membros semi-permanentes (com mandato de 4 anos) e a inclusão de uma cadeira de membro não permanente, totalizando 11, cuja soma dos assentos permanentes, semi-permanentes e não permanentes também seria igual a 24. Estas iniciativas polarizaram o debate em torno de grandes grupos de interesses. O Brasil juntou-se a Índia, Japão e Alemanha para formar o Grupo dos Quatro (G-4), o qual propunha em 2005 o aumento de 6 cadeiras permanentes para além das 5 já existentes (para os quatro e mais dois países africanos) e de 4 não permanentes, para além das 10 ocupadas. Este pleito apesar de plural e abrangente geograficamente, não obteve muito apoio por defender a ampliação do poder de veto a todos os novos membros permanentes, ou seja, para os desejados 11. Para angariar maior adesão sugeriu um prazo experimental de 15 anos, findo o qual estaria extinto o direito de veto aos seis novos membros permanentes. A União Africana apresentou a sua visão, de acordo com a qual deveria haver o acréscimo de 11 cadeiras, sendo seis permanentes com poder de veto, o que ratificava a proposta do G-4, e cinco não permanentes. Para contrapor os projetos anteriores, o grupo Unidos pelo Consenso agregou os países, como Itália e Argentina, favoráveis à expansão das cadeiras do Conselho de Segurança (em 10 novos membros permanentes) sem a ampliação do direito de veto. Os Estados Unidos admitiam apenas a inclusão de dois novos assentos permanentes para Japão e Alemanha com fulcro na capacidade econômica de ambos e em sua considerável contribuição para o orçamento da ONU.

Independentemente da particularidade de cada proposta, todas esbarram no rígido procedimento de emenda e de reforma previsto na própria Carta, os quais, além da maioria qualificada de 2/3 de votos afirmativos dos membros da Assembleia Geral, exigem a necessária ratificação interna em cada um dos cinco Estados detentores do poder de veto, o que, na prática, inviabiliza quaisquer alterações substanciais. Partindo do pressuposto realista de que o poder é um jogo de soma zero, ou seja, relativo, se uns ganham significa que outros perdem, logo, tendo em vista que os Estados defendem seus interesses nacionais, não abdicarão de parcela de sua prerrogativa de decidir ou de impor sua vontade em última instância sobre a solução das questões internacionais mais sensíveis para favorecer a organização ou a coletividade internacional. A convivência entre Estados é explicada por meio dos interesses nacionais e das relações de força e de poder. O Estado é colocado no centro das discussões, sempre atuando em favor do interesse nacional, que imediatamente é o de sobreviver e impor sua vontade em um ambiente descentralizado e horizontal por meio do acúmulo de poder. Não há como pensar a sociedade internacional fora de um sistema de equilíbrio de poder, que coordena o ambiente anárquico (sem um poder hierarquicamente superior) dos Estados. Essa aparente ordenação não segue a semântica convencional. Não há ordem na acepção clássica do termo, mas uma disposição dos Estados, ao mesmo tempo rígida e precária, que necessita da desordem, para que continue se fortalecendo e se perpetuando (FIORI, 2007).

Além do comportamento egoístico, uma ampliação da prerrogativa do veto dificultaria ainda mais a obtenção do quórum necessário e a célere tomada de decisões em situações emergenciais. A reforma da década de 1960 que aumento o número de cadeiras não permanentes de 6 para 10, totalizando os atuais 15 membros do Conselho de Segurança foi a única substancial em quase setenta anos, somada a pontuais modificações procedimentais, menos relevantes. Logo, ainda que emerjam propostas, as mudanças substanciais necessárias parecem cada vez mais irreais dentro da lógica onusiana, a qual se insere no projeto hegemônico de poder estadunidense. A política institucionalizada opera em função de um condomínio que reúne as potências vencedoras do conflito mundial, conhecido como o Conselho de Segurança da ONU, único órgão detentor da prerrogativa excepcional de autorização do uso da força na seara internacional, em nome da segurança coletiva, conceito amplo e de difícil determinação, a qual é dada, na prática, pelos países detentores do poder de veto.

Com a ínfima probabilidade de alterações jurídicas, cabe discutir eventuais modificações na forma de agir da organização, sobretudo, em relação à proteção dos direitos humanos. Desde sua entrada em vigor, a ONU desempenha um papel relevante para a consolidação do direito internacional dos direitos humanos. A partir do pós-guerra, entendeu-se pela consolidação de um sistema geral de proteção do indivíduo que regularia as garantias do ser humano, sem defini-las, contudo. Em seu âmbito foram celebrados documentos importantes como a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966, além de viabilizar e incentivar acordos regionais neste sentido. A prioridade internacional no contexto de conflito ideológico era dada, entretanto, para a segurança, obscurecendo o debate sobre outros temas. O panorama da Guerra Fria polarizou os direitos entre capitalistas e socialistas e, consequentemente, engessou um diálogo internacional mais amplo e produtivo, que só foi retomado com a dissolução da União Soviética. O fim do embate ideológico abriu espaço para a discussão de temas de interesse de toda sociedade internacional, o que se transformou em uma falsa euforia e um horizonte exageradamente e oportunamente otimista, no qual o fim das ideologias traria um dogma indiscutível, o de proteger o ser humano. O discurso consensual que envolve a necessidade de proteção dos valores humanos leva Koskenniemi a afirmar o caráter ideológico que os cerca, como se fossem a nova religião da modernidade agnóstica (KOSKENIEMMI, 2004: p.15): “Human rights, it is often said, are the religion of (an agnostic) modernity.”.

Como os direitos humanos são um conceito de conteúdo variável no tempo e no espaço, existem diversas formas de interpretá-los. Esta tarefa no sistema internacional hodierna cabe em última instância ao Conselho de Segurança, o qual atuará em situações extremadas. Como a ONU é uma organização eminentemente ocidental, na qual prevalece a vontade de cinco grandes potências, atuará de acordo com estes interesses, utilizando a manipulação do discurso para a imposição de valores ou legitimação de intervenção externa, distorcendo o argumento da resistência e da conquista das garantias do indivíduo (DOUZINAS, 2009: p.13):

“Quando os apologistas do pragmatismo decretam o fim da ideologia, da história ou da utopia, eles não assinalam o triunfo dos direitos chega quando eles perdem seu fim utópico (…). Os direitos humanos perdem seu fim, argumentava-se, quando deixam de ser o discurso e a prática da resistência contra a dominação e a opressão públicas e privadas para se transformar em instrumentos de política externa das grandes potências do momento, a ética de uma missão civilizatória contemporânea que espalha o capitalismo e a democracia nos rincões mais escuros do planeta.”

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Apesar do inédito desenvolvimento normativo e teórico alcançado pelo tema, sua prática no cenário internacional continua paradoxalmente seletiva e discriminatória (DOUZINAS, 2009: p. 17): “Permitam-me repetir: os direitos humanos têm apenas paradoxos a oferecer.”. Com fulcro numa perspectiva que mescla elementos do realismo com outros do marxismo, Fiori escancara a contradição entre teoria e prática, ao explicar a proeminência que valores ditos universais, como os direitos humanos, ganharam no contexto hodierno, como garantias amplas e vagas, passíveis de distorção pelos Estados em prol da efetivação de seus interesses nacionais, que são, na grande maioria das vezes, determinados pelas elites que controlam os governos internos (FIORI, 2011):

“Em última instância, este também é o motivo pelo qual a discussão sobre Direitos Humanos, no campo internacional, se transformou – depois do fim da Guerra Fria – num terreno cercado de boas intenções, mas minado pelo oportunismo e pela hipocrisia. Porque existe, de fato, uma fronteira muito tênue e imprecisa entre a defesa do princípio geral, como projeto e como utopia, e a arrogância de alguns estados e governos que se autoatribuem o “direito natural” de arbitrar e difundir, pela força, a taboa ocidental dos direitos humanos.”.

O autor complementa o pensamento, destacando a política por trás do argumenta da universalidade na aplicação das normas protetoras de direitos humanos (FIORI, 2011):

“Independentemente do que se pense sobre o fundamento e a universalidade dos direitos humanos, não há a menor dúvida que, do ponto de vista das relações entre os Estados dentro do sistema mundial, eles sempre são esgrimidos e utilizados como instrumento de legitimação das decisões geopolíticas e geoeconômicas das grandes potencias. Por isto, as decisões sobre este assunto nos foros internacionais são sempre políticas e instrumentais e variam segundo a vontade e segundo os interesses estratégicos destas grandes potências.”

Ainda que haja perspectiva de transformação deste panorama, é possível tentar alterar os efeitos ou a direção da atuação. A ONU enfrenta uma encruzilhada na tomada de soluções mais incisivas na proteção do ser humano. Se por um lado, existe a pressão internacional para que aja rapidamente nos momentos de convulsão, por outro, o remédio por ela adotado é a via militar, a qual pode até surtir efeitos na instabilidade inicial, porém, por meio de mais ou da deterioração da violência, como demonstram os recentes casos de intervenção armada e de missões de paz. A tendência atual é catastrófica. Cada vez mais são aprovadas intervenções militares pelo Conselho de Segurança com a justificativa humanitária, enquanto que as missões de paz autorizadas ganha um caráter mais e mais intervencionista nos assuntos internos dos Estados receptores. Ambas as vias promotoras da paz, que são completamente distintas, estão se confundindo, pois cometem o mesmo erro: utilizam a via militar para remediar o combate da violação de direitos humanos, visto que agrava a violência. A força, quando necessária, deve ser utilizada de forma pontual, sendo um apêndice de uma ampla cooperação internacional seja mais abrangente, envolvendo outras áreas das ciências.

Mesmo ante as críticas que podem ser levantadas tanto em relação à sua atuação para a proteção de direitos humanos quanto em pouca margem de reforma institucional, entender o funcionamento e a estrutura da ONU é fundamental para que esta não seja nem subestimada nem supervalorizada. É uma tentativa de proporcionar o concerto e a cooperação entre os países, na qual prevalece a vontade das grandes potências que a criaram sob a lógica hegemônica que marca a configuração internacional hodiernamente. Além da política dos Estados, a organização internacional é pelo direito internacional, ramo jurídico que se constitui sobre o postulado da soberania estatal. Em outras palavras, um contexto de elevada complexidade, bem diferente do que acontece no direito interno de cada Estado. Logo, esta (des) ordem imperfeita é melhor do que não se ter nenhuma ou uma forma imposta de organização (ZOLO, 2002: p. 443): “In situations of high complexity and turbulence of environmental variables, it is more functional to live with a certain degree of disorder than to seek to impose a perfect order.”.

 

Referências
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ZOLO, Danilo. “A Cosmopolitan Philosophy of International Law? A Realist Approach”. Ratio Juris, vol. 12, number 4, December 1999 , pp. 429-444. 
 
Notas:
[1] A Grã-Bretanha não participou diretamente da Guerra dos Trinta Anos por estar envolvida em um conflito interno, a guerra civil travada entre o Rei Carlos I e Oliver Cromwell, líder do Parlamento, a qual durou de 1641 até 1649. A partir da vitória dos defensores do Parlamento, o Rei teve seus poderes limitados, iniciando o período de monarquia constitucional ou parlamentarista, em cujo sistema o Reio reina, mas não governa.

[2] A Era Napoleônica pode ser definida entre o período de 1799 até 1815, quando Napoleão assumiu as rédeas do governo francês e empreendeu uma expansão territorial e ideológica pela Europa na defesa dos valores burgueses em detrimento dos ideais absolutistas. Suas conquistas alteraram o panorama político de diversos Estados, interrompendo várias dinastias hereditárias e colocando no poder seus aliados. Após sua derrota definitiva, os defensores do absolutismo monárquico buscaram reverter as mudanças, restaurando as antigas famílias dinásticas ao poder com base no princípio da legitimidade e da continuidade.

[3] Esta organização condominial, baseada no equilíbrio de poder liderado por poucas e importantes potências, gerou uma estabilidade no continente europeu no sentido de impedir as guerras sistêmicas entre elas. Considera-se que a balança foi desequilibrada inicialmente com a Guerra Franco-Prussiana, que ainda não foi uma guerra multilateral, e foi definitivamente destruída com a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Em outras palavras, a paz arquitetada pelos britânicos no Congresso de Viena, em 1815, pode ter durado quase um século.

[4] Os países envolvidos não estavam preparados materialmente para encarar um conflito de grandes proporções e de longa duração. Os efeitos nefastos da guerra começaram a afetar as sociedades e a desfazer a ilusão do progresso infindável europeu, difundida no final do século XIX e no início do XX. As perdas materiais e humanas abalaram tão profundamente os cidadãos que a euforia gerada pelo nacionalismo foi desfeita, gerando grande insatisfação com os governos, sobretudo, os imperiais e autoritários, o que refletiu em duas importantes revoluções no continente europeu. Contribuiu para os rumos da Revolução Bolchevique na Rússia e para a Revolução de Novembro na Alemanha, com a consequente rendição e a derrubada do regime imperial prussiano.

[5] Dinastia prussiana que comandou a unificação do país e o liderou até a Revolução de Novembro, em 1918.

[6] Para Gramsci, a hegemonia é conquista a partir do reconhecimento de superioridade de um país por seus pares. Quando há superioridade econômica e bélica, sem o devido reconhecimento, configura-se dominação.

[7] Materializado no documento conhecido como os 14 Pontos de Wilson.

[8] Este Tratado Internacional é relativo à rendição da Alemanha à Entente Cordial.

[9] Wilson já não era mais o presidente quando a Carta da Sociedade das Nações foi submetida ao crivo congressual.

[10] O Congresso Estadunidense considerava o acordo por demais intervencionista em sua soberania, por isto, o rechaçou.

[11] Não estava explícita em seu texto uma condenação expressa à guerra justa enquanto meio de solução de controvérsias. Esta proscrição só veio com o Pacto Briand-Kellog, acordo bilateral entre França e Estados Unidos que obteve grande adesão dos países ocidentais. Uma vedação mais geral só foi consentida com a Carta das Nações Unidas, em 1945.

[12] Ou seja, não havia a figura do veto jurídico, mas, na prática, todos os 8 membros detinham este poder, pois a abstenção gerava veto, o que inviabilizou ações emergenciais e condenações ao abuso das grandes potências.

[13] John Maynard Keynes disseca as consequências desastrosas para a economia e para o alcance da paz geradas por este arranjo revanchista orquestrado por franceses e britânicos em relação à Alemanha IN: KEYNES, John Maynard. As Consequências Econômicas da Paz. Coleção Clássicos das Relações Internacionais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.

[14] Europa e Ásia foram os continentes majoritariamente afetados.

[15] A literatura especializada chama esta transição de sorpasso (FIORI, 2007).

[16] Este acordo é conhecido pela literatura especializada como um acordo de cavalheiros ou gentlemen´s agreement, o qual compõe uma das fontes do soft law, as quais não possuem valor jurídico imediato, ou seja, seus compromissos estabelecidos não obrigam legalmente as partes envolvidas, não podendo o seu descumprimento ser aventado perante tribunais internacionais. É um pacto com a vigência condicionada à permanência de seus signatários no poder.

[17] Além de pavimentar o caminho para a entrada estadunidense no conflito, o acordo significou o reconhecimento expresso da transição hegemônica, bem como resultou no imediato programa bélico e logístico de apoio à resistência britânica, o qual, posteriormente, foi estendido a outros países, o Lend and Lease, que visava o reaparelhamento militar sob condições favoráveis aos necessitados.

[18] Em Moscou foram realizadas três conferências, sendo uma em 1941, outra em 1942, da qual emergiu a declaração de apoio aos aliados e contra os países do Eixo, e a última em 1943. Destas reuniões saíram as primeiras bases da ONU.

[19] Realizada em dezembro de 1943, quando o Eixo perdia o controle do Norte da África.

[20] Realizada ainda em 1944, esta conferência foi fundamental para definir o eixo econômico da hegemonia estadunidense com a criação de duas organizações internacional de apoio, o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, o BIRD, e o Fundo Monetário Internacional, o FMI. Ambos girariam em torno do centro gravitacional, o dólar, que seria a moeda de referência do sistema internacional, a única conversível em ouro.

[21] Realizada em fevereiro de 1945, reuniu Roosevelt, Churchill e Stalin, foi a responsável por discutir a composição do Conselho de Segurança e a atribuição do poder de veto aos membros permanentes.

[22] Realizada em junho de 1945, serviu para a elaboração do texto da Carta da ONU.

[23] Realizada em agosto de 1945, após o fim da guerra na Europa, definiu informalmente a ocupação no continente e a divisão da Alemanha.

[24] Artigo 110.3: A presente Carta entrará em vigor depois de depósito de ratificações pela República da China, França, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e Estados Unidos da América, e pela maioria dos outros Estados signatários.

[25] Ainda que os dispositivos tenham perdido o sentido após as transformações internacionais, não há como deixar de ressaltar que esta lógica onusiana está eivada de expressões e do ideário do pós- 2° Guerra Mundial. A referência a Estados inimigos é recorrente, presente expressamente nos artigos 53 e 107 da Carta. O contexto de criação não pode ficar de fora da análise desta entidade.

[26] Entende-se como sistema onusiano a composição que envolve a Organização das Nações Unidas e todas as agências, fundos e programas que com ela se relacionam, mediante vínculos estreitos, em prol da cooperação internacional em áreas temáticas específicas, inter-relacionadas com o escopo da paz e da segurança internacional.

[27] Dos iniciais 11, o CS passou para atuais 15 membros.

[28] No exercício desta competência, meio político de solução pacífica de controvérsias, seus pareceres não serão vinculantes (de acordo com o artigo 37 da presente Carta), ou seja, não serão obrigatórios, nem caberá o exercício do veto jurídico pelos Estados permanentes.

[29] Cabe a ressalva que o único órgão no sistema internacional que detém o monopólio da autorização do uso da força é o Conselho de Segurança. O artigo 52 desfaz dúvidas sobre os acordos regionais, alegando que estes são possíveis e compatíveis com o sistema onusiano, as ações locais que necessitarem do emprego da força devem, todavia, necessariamente ser aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU, ainda que a organização internacional detenha seu próprio conselho executivo.

[30] Termo consagrado pela doutrina sobre o assunto.

[31] A Resolução n° 377, conhecida também como Resolução Acheson ou Unidos pela Paz (Uniting for Peace) foi articulada em 1950, quando, sob a alegação de paralisia do Conselho de Segurança, tendo em vista a política de cadeira vazia praticada pela União Soviética em protesto ao reconhecimento de Taiwan como China, a partir de 1949, A Assembleia Geral autoproclamou-se competente para tratar do assunto. À época a interpretação que predominava entendia que a abstenção de voto dos membros permanentes do Conselho de Segurança significava veto. Em virtude disso, as ausências reiteradas da União Soviética travavam quaisquer deliberações. Na Assembleia Geral a resolução foi votada e aprovada pelo quórum qualificado de 2/3, autorizando o envio de tropas em missão de paz para a Coreia. Na prática, esta medida inviabilizava o poder de veto da União Soviética que, depois do ocorrido, voltou a participar das reuniões com a promessa de que a Resolução n° 377 não seria mais aplicada e em contrapartida a abstenção deixaria de significar veto.

[32] Existe atualmente o uso tradicional de o representante brasileiro proferir o discurso inaugural da sessão ordinária anual, devido a Oswaldo Aranha discursado, enquanto presidente da Assembleia Geral, na primeira Sessão Especial, realizada em 1947.

[33] Um exemplo de decisão da Assembleia Geral, documento que é uma recomendação, sem valor jurídico é a consagrada Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

[34] De acordo com o artigo 27.3, as decisões do Conselho de Segurança, em todos os assuntos que não forem procedimentais, a decisão será tomada pelo voto afirmativo de nove membros, inclusive os votos afirmativos de todos os membros permanentes. Com esta redação, houve polêmicas acerca da interpretação do dispositivo. Inicialmente, entedia-se que abstenção implicava veto, até 1950, após a Resolução n° 377, quando a  União Soviética retornou ao Conselho de Segurança, com a mudança de entendimento, não significando a abstenção mais veto às deliberações.


Informações Sobre o Autor

Luiz Felipe Brandão Osorio

Professor de Direito Internacional dos Cursos de Graduação em Defesa e Gestão Estratégica Internacional e em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social. Mestre e Doutorando em Economia Política Internacional


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