A ética nas relações dialógicas: o justo a partir da pluralidade de instâncias sociais

Resumo: O justo a partir do pensamento de Paul Ricoeur como espaço ético-político. Nas relações dialógicas que conduz à cidadania. Para além de corporativismo, utilitarismo diz respeito à pluralidade de instâncias e atores na pólis. Trata-se de mudança estrutural que rompe com o moralismo e a cultura do ‘homem cordial’ (espaço tradicional da simbiose público-privado calcada na tradição, família e propriedade privada dos meios de produção). Ética como instrumento de combate à corrupção sistêmica, mediante a democracia participativa. Mas que assegure dignidade na singularidade pelo respeito às diversidades.

Palavras-chave: Ética; Política; Democracia; Equidade; Justiça.

Abstract: The just from the thought of Paul Ricoeur as ethical-political space. In dialogic relations that leads to citizenship. Beyond corporatism, utilitarianism respect the plurality of bodies and actors in the polis. It is structural change that breaks with the morality and culture of 'man friendly' (traditional space of public-private symbiosis grounded in tradition, family and private ownership of the means of production). Ethics as a tool for combating systemic corruption through participatory democracy. But the uniqueness that ensures dignity by respecting diversity.

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Keywords: Ethics, Politics, Democracy, Equality, Justice.

Sumário: Introdução.  1 Dilemas existenciais do “justo” na contemporaneidade: entre o "ter" e o "ser". 2 Paul Ricoeur e a concepção da justiça com equidade. Considerações finais. Referências.

Introdução

A justiça entendida em sua complexidade na relação dialógica entre o sujeito e a alteridade em instituições justas e legítimas, portanto ético-jurídico-políticas, eis o grande desafio que Ricoeur[1] (2008) apresenta. Como ponto de partida, situamos o pensamento aristotélico da ideia de justiça com equidade. Nesse sentido, ao intérprete na busca da ratio legis exige-se um distanciamento necessário pelo juízo prudencial, deontológico e reflexivo exercido pelo terceiro, representado pelo Estado enquanto instituição social. O justo numa perspectiva cíclica visa o bem da vida que se traduz na felicidade do corpo social pelo pensamento plural do bem comum.

Ricoeur (2008) traz dois eixos centrais voltados à ideia de justiça: (i) como regra moral e instituição e (ii) como justo, adjetivo usado na força do neutro grego: dikain (Em "Justiça e Verdade" e outros ensaios). Tendo como referência a “pequena ética” da obra "Soi-Même comme um Autre" ("O Si-Mesmo como um Outro",) a ideia de justo perpassa pelo sujeito e sua relação com a pluralidade de instâncias:

1) A prioridade da ética sobre a moral, isto é, a prioridade da visada da vida boa, com e para os outros, em instituições justas, sobre a norma moral;

2) A necessidade, no entanto, para a visada ética de passar pelo crivo da norma moral: essa passagem da ética à moral, com seus imperativos e suas interdições, é por assim dizer exigida pela própria ética, na medida em que o desejo da vida boa encontra a violência sob todas as suas formas; e

3) A legitimidade de um recurso da norma moral à visada ética, quando a norma conduz a conflitos para os quais não há outra saída a não ser a de uma sabedoria prática, à criação de decisões novas frente a casos difíceis: os hard cases do direito, da medicina ou da vida cotidiana.

[…] Nesta distinção entre visada da vida boa (visada ética) e obediência às normas (à norma moral), podemos facilmente reconhecer ‘a distinção entre duas heranças’: a herança aristotélica [‘a ética é caracterizada pela sua perspectiva teleológica (de telos, que significa fim)’]; e a herança kantiana [‘a moral é definida pelo caráter de obrigação da norma e, portanto, por um ponto de vista deontológico (deontológico significando precisamente ‘dever’)].” (MAGALHÃES, 2002, p. 104).

Paul Ricoeur, (2008) apresenta a ideia de justiça como regra moral e a de justiça como instituição. Em “O Justo 1”, retoma seu pensamento de "Soi-Même comme um Autre" para situar a intersecção dos dois eixos ortogonais e dos seus percursos: (i) eixo ‘horizontal’ (constituição dialógica do Si) – o si só constitui sua identidade numa estrutura relacional em que prevalece a dimensão dialógica sobre a monológica, pois o outro é o das relações interpessoais: a virtude da amizade é o tu, a virtude da justiça, “é o a cada um, conforme indica o adágio latino: suum cuique tribuere, a cada um o que é seu”, em relação mediada pela instituição social; (ii) eixo ‘vertical’ – constituição hierárquica dos predicados qualificadores da ação humana em termos de moralidade (RICOEUR, 2008, p. 7-9).

Nessa trajetória do justo há três níveis do predicado "bom": (i) o nível teleológico (busca do coroamento feliz, desejo da vida boa mediada pela instituição social justa); (ii) o nível deontológico (referência ao que é obrigatório, nível da norma, do dever, da proibição, campo da violência institucional, voltando ao universal); e (iii) o nível da sabedoria prática[2] (a estrutura do juízo moral em situação singular, numa situação de conflito e de incerteza).

O terceiro nível propõe que o justo já não é o bom relativo ao outro (teleológico), nem o legal (deontológico), mas o equitativo, assumido pela ideia de justo, em especial nos casos difíceis. As trocas, as partilhas, as retribuições geram prejuízo a outrem, porém é no “juízo reflexivo” que é possível a libertação do desejo de vingança, de da justiça com as próprias mãos. Assim, portanto, o ato de julgar envolve imparcialidade e independência do julgador sob a validade universal da lei. Ocorre, porém, a reivindicação da universalidade remete, por um lado, à ideia de bem e, de outro, ao formalismo procedimental das operações da prática legal (RICOEUR, 2008, p. 9-13):

“O juízo moral sobre a ação deve, então, acrescentar ao predicado bom o predicado obrigatório, geralmente sob a figura negativa do proibido (por exemplo: ‘Não matarás’).

Assim, é a violência — e é essa a tese de Ricoeur — que torna inevitável a passagem da ética à moral; não é o desejo, mas é a violência que nos força a conferir à moralidade o caráter da obrigação, seja sob a forma negativa da proibição, seja sob a forma positiva do mandamento. O que Ricoeur já tinha dito antes sobre a indignação encontra aqui uma confirmação e legitimação: o que afinal causa nossa indignação, no caso de divisões, de trocas, ou de retribuições, a não ser o mal (o dano) que os homens causam uns aos outros por ocasião do poder-sobre que uma vontade exerce em relação a uma outra vontade? […]” (MAGALHÃES, 2002, p. 109).

No estudo do tema da justiça num diálogo com o pensamento de Ricoeur (2008), direcionamos o presente artigo em três capítulos. O primeiro trata dos dilemas da justiça na contemporaneidade. O segundo trata da ideia do justo com equidade. O terceiro discute a dialogicidade como marco ético-jurídico-político balizador do ideal de justiça a partir da noção de democracia nas mutações existenciais que conduzam a dignidade humana pela emancipação. Por fim concluímos com a abordagem dos desafios apresentados por Paul Ricoeur à luz das mutações do presente com vistas à construção de um mundo plural e, portanto, “justo”, equânime.  

1 Dilemas existenciais do “justo” na contemporaneidade: entre o "ter" e o "ser"

A justiça, na contemporaneidade, enquanto campo de debate moral, descamba para a justiça como vingança (estatal), tornando-se diké mais que a proporcionalidade da justitia, tornando-se punição que condena e não ressocializa o sujeito, excluindo-o, via de regra, do convívio social. Essa exclusão, por sua vez, favorece o contato do apenado com o submundo do “crime” nas prisões superlotadas pelo país afora.

O próprio ideal de justiça como vingança institucional é difundido pela mídia. Forjam-se, então, novas configurações de “comunidades” para a ação das forças policiais, com o aumento do número de registros (autos) de resistência seguida de morte. Criam-se espaços de atuação de grupos de extermínio pela negação à pluralidade cultural, social e da própria dignidade humana. Acerca do afastamento do campo filosófico, o tema do justo assume, no caos urbano e social, ares de privatização de espaços e de segregação de pessoas, num olhar etnocêntrico e desumano.

Telles (2010), em contribuições recentes acerca do tema, já menciona “A cidade entre o legal e o ilegal”, e, a partir do estudo dos “dispositivos gestionários”[3] e das “comunidades”[4], atenta, inclusive, para as novas configurações espaço-temporais da “violência como instrumento de poder”, em especial pelos veículos de comunicação, que, aos consumidores vendem o medo, a insegurança, o caos. Trata-se de produto mal acabado e que mantém desigualdades e estimula mais divisões.

Entre os mecanismos de controle, Telles (2010) identifica os “dispositivos gestionários” a partir da administração das “populações de risco”, os mecanismos de controle social a partir dos chamados dispositivos de exceção e a configuração de ações que ferem a liberdade individual e exercem controle sobre o corpo. Apresenta-os como mecanismos antidemocráticos e que estariam acima da lei e do direito. Um exemplo dos dispositivos de exceção seriam os “autos de resistência seguida de morte”, que há muito tipificam a violência policial.

Podem-se ampliar os mecanismos da sociedade de controle apontados por Telles (2010). Numa interpretação sociológica, o controle deve abarcar a gestão da vida, de riscos, dos fluxos, condutas, deslocamentos, movimentos de pessoas, inclusive mediante a colaboração da “comunidade” por meio das denúncias sem provas dos indivíduos considerados “suspeitos” a partir de critérios subjetivos (como antecedentes criminais). Questão relevante no tocante à sociedade de controle é o ‘princípio gestionário’ como forma de administrar a partir da ‘comunidade’, como acentua Telles (2010):

“Formas de gestão social regidas pelo primado de gestão dos riscos, administração das urgências: clivagens entre indivíduos governáveis, governamentalizados, de um lado, e, de outro, os que não se ajustam, se recusam ou são incapazes de se integrarem às ‘comunidades’ […]”. (TELLES, 2010, p. 159).

Voltando ao campo filosófico, identificamos nessas práticas a justiça próxima da vingança público-privada. Essa justiça se institucionaliza pela falência do Estado em mediar as relações humanas e a falta de efetividade nas políticas públicas de promoção da convivência pacífica entre comunidades pobres e ricas.

Como salienta o célebre Professor Tércio Sampaio Ferraz Jr. (2003), na prática da retribuição da justiça dois modelos se implicam mutuamente:

“Ora, o modelo vertical, a timoria (e a kolasis) parece prolongar um modelo pré-humano que pressupõe hierarquia e retribui agressivamente uma ameaça agressiva. Ao contrário, o modelo horizontal, a poine, parece pertencer exclusivamente ao gênero humano à medida que se liga à língua e a um mundo objetivamente construído. As grandes emoções vinculam-se ao modelo vertical (timoria), não, porém, ao estabelecimento da poine que ocorre por meio de negociações (modelo horizontal). Neste último, uma vinculação da emoção à  poine até parece rebaixar o homem, significando sua regressão ao animalesco […]” (FERRAZ  JR, 2003, p. 217).

Identificamos, porém, uma guinada de 360° quando institucionalmente a balança está quebrada e pende para um lado, ao mesmo tempo em que a espada assume o controle das ações no campo prático da justiça. Prevalece o desequilíbrio ao invés da temperança.

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Modernamente esse ideal do justo se assenta na ideia de “dar a cada um o que é seu às avessas”, quando as exigências sociais entre querer (vontade) e poder significam a negação da felicidade para todos por causa da exclusão (social e econômica) dos mais vulneráveis quando da distribuição dos bens partilháveis e pela participação política na pólis. Mesmo num Estado representado por Executivo, Legislativo e Judiciário nas diferentes instâncias de poder e em sintonia com os instrumentos de democracia direta e indireta para assegurar legitimidade na tomada de decisões do terceiro, o direito se revela pela linguagem em instrumento de poder a serviço das elites. Nesse sentido, retoma-se o pensamento de Ricoeur (2008), em "O Justo", no “si-mesmo como um outro”, pela ideia de solidariedade e de aceitação da pluralidade nas relações interpessoais mediadas pela instituição social.

Mais que repressão social e condenação no espaço ético-político-jurídico, ao Estado caberia garantir, em princípio, ao sujeito, na relação com a alteridade, condições de vida digna mediante políticas públicas que elevem a existência ao grau de felicidade para todos. Nos “casos difíceis” (mesmo na hipótese da pena máxima), o legislador e ou intérprete na aplicação do direito, mediante individualização, poderia, por critérios subjetivos, permitir ao réu por meio de trabalho social (comunitário), a cooperação/conciliação do sujeito com a alteridade. Essa cooperação/conciliação poderia ser intermediada por instituições justas e capazes de fazer reparar o dano causado e de fazer reverter o custeio em benefício social, mantendo o sujeito próximo de sua família. A esse propósito, atualmente a tecnologia está aí disponível para uma fiscalização individual, desde que utilizada, para além do fator disciplina, como instrumento de ressocialização do apenado. O Estado pode se valer de recursos que permitam o controle periódico para verificar o apenado, seu comportamento e a possível progressão do regime. Também pode o Estado exigir do apenado uma ocupação laborativa que garanta a continuidade da função social do direito antes e durante o cumprimento da pena.

O justo caminha no sentido da garantia da vida digna como um bem individual, coletivo e difuso. Mesmo nas situações de alta complexidade, como o regime disciplinar diferenciado, a pena, portanto, deveria ser instrumento que liberta, não que oprime na prisão. Se, para o cristianismo, “Jesus é a verdade que liberta”, o Estado, enquanto terceiro, deveria buscar, em princípio, ao apenado o resgate da sua dignidade não a negação trancafiando-o numa prisão.

Em princípio, deveria o Estado, desde cedo, garantir, aos condenados da periferia, antes de lançá-los atrás das grades, a oportunidade de acesso ao capital humano e social que lhes permitisse uma vida digna, ou seja, uma vida com saúde, educação, alimentação, moradia, entre outros direitos individuais, como a liberdade, a igualdade e a fraternidade.  

Nesse aspecto, fator primordial diz respeito ao reconhecimento da diversidade nas relações interpessoais e institucionais dos sujeitos que cumprem pena e daqueles que clamam por justiça para os entes próximos que se foram e que não há como indenizá-los (devido à não possibilidade de mensuração de um bem precioso e único). No caso, o que é possível é o papel simbólico do Estado, de buscar corrigir as assimetrias sociais. Sem ele voltaríamos à barbárie, porém o endurecimento das penas e das prisões não parece a melhor solução, isso porque mesmo os sujeitos delituosos portam, como seres humanos, plena capacidade física, intelectual, laborativa, de criação e de existência como ser social. A vida só faz sentido se vivida com dignidade para todos, vale dizer, inclusive para os apenados.

Sob outro prisma, porém, discute-se em que medida a violência simbólica institucional em relação aos sujeitos sentenciados possa ressocializá-los, em especial nos chamados “casos difíceis”. Mais que condenar o Estado cabe à iniciativa popular fazer com que o Executivo adote políticas públicas de amparo aos mais vulneráveis, em especial a eles, provendo-os com os bens necessários à existência de uma vida boa. Essa postura cabe também, nas audiências civis e criminais, aos ordenadores da Justiça, nas sentenças e penalizações. De outro modo, o ente institucional acaba por se transformar, como de fato tem ocorrido ao longo da história, num dos responsáveis pela violência simbólica contra a vida, em especial nas execuções subliminares pela ausência ética como “sabedoria prática”.

Consideramos que, para Ricoeur, uma moral da obrigação gera situações conflituais, e Antígona, embora seja uma ficção, é nesse sentido um exemplo visível trazendo consequências na efetuação real do sentido de justiça em que a falta de uma sabedoria prática dificulta a sensatez para poder deliberar bem em um julgamento moral em situação. Ricoeur considera que nesse tipo de situação é preciso levar em conta que na lei existe uma máxima geral vinculando-a como obrigação para todos; porém, na prática afim de aplicação da lei, existem procedimentos em que as máximas sofrem interpretações para se adequarem às ocasiões ou circunstâncias de aplicação em determinada situação de julgamento.

Parece-nos que, segundo Ricoeur, em relação ao julgamento moral em situação há uma máxima geral da ação que precisa ser efetuada como singularidade. Nesse aspecto, há algo nela que se apóia em princípios de justiça tidos como universais e considerados um dever ou uma obrigação para todos. Entretanto, para fins de aplicação, a máxima teria que se deixar singularizar a fim de ser adaptada conforme a particularidade do conflito em situação de julgamento. Nesse nível, há uma passagem em que a formalização do sentido de justiça enquanto máxima geral precisaria de um agente que pudesse interpretá-la adequando-a à singularidade da situação de julgamento. Nessa passagem do geral para o particular, em que seria necessária a interpretação, a sabedoria prática serviria de sugestão ou alternativa para que se pudesse ter uma compreensão reflexiva e mais equilibrada ou ponderada em virtude da ocasião da justiça. Ricoeur denomina essa sabedoria de um saber prático consagrado à dimensão ética.” (MUNOZ, 2011, p. 62).

Seja no cotidiano policial (nos casos de resistência seguida de morte) ou no tribunal do júri, em que a “boca torta” do Parquet clama pela Dura lex, sed lex, todos atendem aos apelos midiáticos, atuando no sentido unívoco pela condenação, e o juiz, com um “gesto simbólico”, apena o sujeito eternamente, após votação pelo conselho de sentença. Discute-se hoje a própria legitimidade do tribunal do júri como instrumento da democracia. Para além de julgar (condenar ou absolver), poderia ser instituição conciliatória, mediadora, transacional de conflitos e não apenas definidora da “verdade última” sobre a vida. Ou seja, para além de julgar, poderia exercer função educadora e transformadora de pessoas e conferir-lhes  oportunidade de reintegração social de fato e de direito, em especial nos chamados casos difíceis:

Art. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) Plenitude de defesa;
b) Sigilo das votações;
c) Soberania dos veredictos;
d) Competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida
”. (BRASIL, 2003, p. 12-16)

Na atualidade, essa questão do ato de julgar distante da equidade se transforma num dilema humano, em especial no contexto das mutações do século XXI. A justiça, no plano filosófico do direito (ideal), não se coaduna com a realidade do justo traduzido muitas vezes na violência estatal por seus agentes, que tentam responder aos reclames generalizados por justiça e em nome da “pacificação social” (quase sempre com pressão absurda dos grandes veículos de comunicação, ávidos por aumentar a audiência e por condenar sumariamente, sem direito à defesa, o acusado) acaba por se afastar da ética que vislumbra instituições justas e equânimes.

A superação das assimetrias sociais traduzida em campo da legitimidade das decisões enquanto política judiciária pode ser instrumento que implique valorações que rompam com o mero direito posto, observada a axiologia principiológica, os valores sociais e existenciais do homem nas relações interpessoais e estatais que visem, mais que o imediato e utilitário, a ética do humano. Pretende-se, assim, a ruptura com o mero individualismo (ideologia liberal e neoliberal) e orientação do comportamento humano à luz da solidariedade.

2 Paul Ricoeur e a concepção da justiça com equidade

A concepção aristotélica de justiça é aquela relacionada com a justa medida (equilíbrio e proporção). Nessa concepção, a equidade se revela primordial no caso concreto, porém a linha tênue que separa o justo do injusto por uma decisão desproporcional pode se revelar em instrumento, não da verdade que liberta, mas da falsidade e da mentira que condena.

Aristóteles, em "Ética a Nicômacos", no livro V, analisa a questão da justiça e da injustiça.

Com vistas à justiça e à injustiça, devemos indagar quais são as espécies de ações com as quais elas se relacionam, que espécie de meio termo é a justiça, e entre que extremos o ato justo é o meio termo […].

[…] Ora: ‘justiça’ e ‘injustiça’ parecem termos ambíguos, mas, como seus diferentes significados se aproximam uns dos outros, a ambigüidade não é notada, enquanto no caso de coisas muito diferentes designadas por uma expressão comum, a ambigüidade é comparativamente óbvia […].

[…] O termo ‘injusto’ se aplica tanto às pessoas que infringem a lei quanto às pessoas ambiciosas (no sentido de que quererem mais do que aquilo a que têm direito) e iníquas, de tal forma obviamente as pessoas cumpridoras da lei e as pessoas corretas serão justas. O justo, então, é aquilo que é conforme a lei e correto, o injusto é o ilegal e iníquo”. (ARISTÓTELES, 2001, p.91-92).

Ricoeur (2008), no estudo do justo, enfatiza a regra moral e a necessidade de instituições justas para além da complexidade do ato de julgar e seus reflexos no intuito da busca do bem e da vida boa, embora a violência estatal e a singularidade das relações interpessoais dos sujeitos revelem, muitas vezes, o sofrimento humano, a dor para além da virtude da justiça, e digam respeito à interpretação da ação nas suas múltiplas relações interpessoais e cotidianas: reconhecimento, legitimidade dos sujeitos, procedimentos utilitaristas. Por sua vez, faz-se relevante um distanciamento necessário pelo juízo reflexivo no ato de julgar pela “sabedoria prática”. Eis o grande desafio na compreensão do “si-mesmo como um outro”, em Ricoeur (2008), especialmente em se estabelecer uma relação de confiança e compromissos assim como a que existe entre médico e paciente. Fazendo um paralelo entre a busca da cura na relação médico-paciente, o ato de julgar pelo judiciário visaria restabelecer a vida – não a morte, a ética – não a vingança, portanto um pacto de confiança entre o sujeito e a sociedade mediado pelo Estado.

A partir de comparação dos níveis do ato médico na relação de tratamento com o paciente e o judiciário, podemos identificar elementos centrais da nossa discussão:

“O primeiro pode ser chamado prudencial (constituindo o termo prudentia o equivalente latino do grego phronesis): a faculdade de julgar (para utilizar a terminologia kantiana) é aplicada em situações singulares nas quais um paciente individual é colocado numa relação interpessoal com um médico individual. Os juízos emitidos nesta ocasião exemplificam uma sabedoria prática de natureza mais ou menos intuitiva resultante do ensino e do exercício. O segundo nível merece ser chamado deontológico na medida em que os juízos revestem a função de normas que transcendem de diferentes formas a singularidade da relação entre um certo paciente e um certo médico, tal como aparecem nos ‘códigos deontológicos de Medicina’ que vigoram em numerosos países. Num terceiro nível, a bioética tem de se haver com juízos de tipo reflexivo aplicados à tentativa de legitimação de juízos prudenciais e deontológicos do primeiro e segundo níveis”. (RICOEUR, 2010, p. 4).

Na prática, porém, o ato de julgar pelo Estado se revela por vias tortuosas, direcionadas numa tendência à condenação como mecanismo de vingança institucional, mormente por procedimentos reprodutores de preconceitos sociais e culturais, em especial contra pobres e negros. Confirma-se, assim, a sentença final enquanto procedimento que já se havia iniciado com o nascimento nas periferias das médias e grandes cidades, negando-lhes o mínimo existencial pelas políticas públicas e conferindo-lhes a condição de vida miserável e de excluído. Um exemplo concreto dessa afirmação diz respeito ao caso recente no Estado de São Paulo, caso denominado “Pinheirinho” (região de São José dos Campos), em janeiro de 2012, em que o intérprete, em nome do positivismo, ignorou a realidade social de cerca de oito mil pessoas vivendo numa área ocupada e optou-se pela reintegração de posse e decorrido um ano ninguém tem casa (CARDOSO, O Estado de S. Paulo, 20/01/2013), quando poderia ter ido além do procedimentalismo estatal normativo e observado a dignidade humana como valor humano fundamental de primeira grandeza e aplicado a função social da propriedade. Por sua vez, o governo local ordenou que suas tropas retirassem as famílias à força, numa dupla sinergia dos órgãos repressivos, e foi ignorado o dilema existencial dos mais pobres. Poderiam, mas não o fizeram, as instâncias executiva e judiciária ter suspendido a execução e determinado o cumprimento da garantia ao mínimo existencial via políticas públicas que assegurassem a manutenção das famílias no “território” até a efetivação do cumprimento do direito social à moradia digna, conforme previsto na Constituição Federal, artigo 6º, caput, nesse caso autoaplicável por envolver a dignidade humana como princípio basilar do Estado de Direito.

Faz-se mister que o campo da filosofia do direito aponte a direção do juízo reflexivo nas decisões enquanto justo, isso pela relevância da percepção do dever-ser no caminho em direção ao ser.

Considerações finais

A justiça enquanto ética do humano é um campo aberto à filosofia do direito, desmistificando o moralismo (simbiose da moral pública com a moral privada), em especial na contribuição para o conhecimento pelo juízo reflexivo, porém uma justiça legal não representa, pela distância entre a norma e o caso concreto, o direito justo. Em especial sob o aspecto judicial, sob esse prisma a justiça não se realiza.

Quanto a esse aspecto judicial, existe a tendência à absolvição, pelos tribunais, de policiais acusados da prática de crimes (contra supostos criminosos), e que, portanto, são contemplados até mesmo com o perdão social para continuarem impunemente praticando novos crimes. Isso ocorreu no emblemático caso do Carandiru, em São Paulo, em que 111 presos foram mortos, estando no banco dos réus agentes do próprio Estado (que devem sempre proteger a vida da população e impedir que alguém a retire à força). Há uma tendência da justiça por apenar os pobres. A superlotação do sistema penitenciário e as condições desumanas dos presos formam espaço propício para a formação de infratores mais perigosos. 

Por outro lado, como restituir a cidadania ao sujeito após passar 20 anos preso, em especial se for pobre? Ele carrega a distinção de ser “ex-presidiário” (em vez da de “cidadão de bem”, e, na primeira suspeita de crime, a polícia vai bater à sua porta, sem respeitar-lhe os direitos).

A perspectiva a ética do justo envolve a necessidade de mudanças por fóruns de instâncias democráticas que rediscutam e alterem a legislação penal e o papel do próprio Estado pelo resgate da dignidade do apenado. O que é mais relevante, afinal, manter alguém preso durante anos com alto custo com segurança e recursos públicos ou mantê-lo em liberdade realizando atividades revertidas em benefício das suas potencialidades e do trabalho social? As liberdades civis devem ser a regra não a exceção no Estado Democrático de Direito. Faz-se necessário o resgate dos direitos fundamentais pela pluralidade étnica e cultural e pela inclusão social em suas múltiplas formas a partir de um novo paradigma constitucional que atente para as mutações do presente. Um sistema legal punitivo parece não resolver os dilemas existenciais do novo milênio e ao intérprete das leis cabe à missão do juízo reflexivo, em especial nos “casos difíceis”, pela ética que conduza à “sabedoria prática”.

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Em caso recente do STF, no julgamento da Ação Penal 470 (do chamado “mensalão”), abriu-se um campo para a construção da cidadania, enquanto criação de precedente que pode se confirmar para outros casos no futuro, quanto ao possível apenamento de agentes públicos que utilizam das suas funções para desviar dinheiro em prejuízo da população. Haja vista que, na história republicana, a cultura do “homem cordial” tem levado danos incalculáveis ao erário público. Espera-se que a Ação Penal 470 tenha desfecho do “justo” para todos os envolvidos em corrupção e não seja a exceção apenas, mas uma regra em decisões futuras pela pluralidade de instâncias e julgadores.

 

Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego, introdução e notas Mário da Gama Kury. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 2001.
BRASIL, Constituição Federal da República Federativa do Brasil. 14. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2003.
CARDOSO, William. Pinheirinho: após 1 ano ninguém ainda tem casa. O Estado de S. Paulo, Caderno Cidades/Metrópole, C4. São Paulo. 20/01/2013.
FERRAZ Jr. Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito (reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito). 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 5. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
MAGALHÃES, Theresa Calvet de. A Reflexão de Ricoeur sobre o Justo. Síntese – Revista de Filosofia. FAFICH/UFMG. Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002: 103-115
MUNOZ, Felicidade Aparecida Gouvea. A justiça e a sabedoria prática em Paul Ricoeur. Dissertação de Mestrado. Universidade São Judas Tadeu. São Paulo: 2011.
RICOEUR, Paul. O Justo 1. A justiça como regra moral e como instituição. Trad.: Ivone C. Benedetti. 1. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
________. O Justo 2. Justiça e verdade e outros estudos. Trad.: Ivone C. Benedetti. 1. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
________. Os três níveis do juízo médico. Trad.: José Maria Silva Rosa. Colecção: Textos Clássicos LUSOSOFIA. Universidade da Beira Interior. Covilhã, 2010.
TELLES, Vera da Silva. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Coleção Sociedade & Cultura. Belo Horizonte, MG: Argumentum, 2010.
 
Notas:
 
[1] “RICOEUR, Paul (1913-2005). O francês (nascido em Valence) Paul Ricoeur, decano honorário da Universidade de Paris X (Nanterre) e presidente do Instituto Internacional de Filosofia, é um dos mais fecundos filósofos de nossa época. Preocupado em atingir e formular uma teoria da interpretação do ser, toma como seu problema próprio o da hermenêutica, vale dizer, o da extração e da interpretação do sentido. Convencido de que todo o pensamento moderno tornou-se interpretação, elabora uma grande simbólica da consciência, que se encontra na raiz mesma de todas as determinações históricas e espirituais do homem. Ao revisar a problemática hermenêutica, passa a entendê-la como a teoria das operações de compreensão em sua relação com a interpretação dos textos. Para ele, é o símbolo que exprime nossa experiência fundamental e nossa situação no ser. É ele que nos reintroduz no estado nascente da linguagem. Por isso, elabora uma filosofia da linguagem capaz de elucidar as múltiplas funções do significado humano.” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2008, p. 241).

[2] “A sabedoria prática é um aprendizado adquirido das lembranças históricas e culturalmente em virtude do trágico e do sofrimento vivido e provocado. A sabedoria aparece quando já estamos cansados ou esgotados de tanto sofrer ou de fazer o outro sofrer; quando tomamos consciência de nossas ações injustas; então só nos resta procurarmos transcender essa fase optando de boa vontade por uma vida melhor.
A ‘sabedoria prática’, portanto, é o recurso ético que permite à instituição conduzir as próprias ações de modo mais justo para tentar amenizar os conflitos interpessoais. As ações da justiça que são atravessadas por esse recurso ético merecem, para Ricoeur, o título de equidade. Este elemento ético possibilita, por exemplo, na ocasião do conflito se tentar elaborar algum tipo de diálogo que sirva para se construir um caminho para um consenso-conflitual. A sabedoria prática é um aprendizado que estabelece uma perspectiva ética para o sujeito da ação. Essa perspectiva consiste em uma aspiração ou desejo de querer para si, uma vida boa com e para os outros em instituições justas. Essa teoria ética não implica em um dever obrigando a pessoa a agir bem e somente é válido, para Ricoeur, se puder servir-se da phronesis como orientação para o bem viver. Esta visão teleológica que tem a sabedoria prática por elemento orientador das ações; tem em sua finalidade um propósito calcado no esforço para se tentar alcançar esse tipo ideal de vida ética”. (MUNOZ, 2011, p. 99-101).

[3] “[…] dispositivos variados que mobilizam recursos institucionais, jurídicos, sociais (e também a pesquisa acadêmica) para identificar os problemas específicos de cada grupo, definir ‘públicos-alvo’, propor medidas para corrigir o que não funciona direito, valorizar a ‘comunidade’ e promover o dito ‘capital social como anteparo às derivas da exclusão e suas supostas patologias violentas […]”. (TELLES, 2010, p. 155).

[4] “[…] não se trata simplesmente de um campo semântico da cidadania, o ‘governo através da comunidade’ mobiliza (e faz agir) o indivíduo empreendedor e comprometido com suas lealdades locais. É também um modo de subjetivação diferente do ‘cidadão’, cujas lealdades e compromissos o remetiam para a esfera do Estado pela mediação dos direitos sociais, dos serviços públicos e das políticas sociais […]". (TELLES, 2010, p. 156).


Informações Sobre o Autor

Afonso Soares de Oliveira Sobrinho

Doutor em Direito – FADISP. Mestre em Políticas Sociais – UNICSUL. Advogado


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