A eutanásia no ordenamento jurídico brasileiro

Resumo: Com a intenção de analisar a aplicabilidade do procedimento da eutanásia no ordenamento jurídico brasileiro, foi elaborado o presente estudo desenvolvido em três capítulos, com emprego de pesquisa bibliográfica. Do mesmo modo, o trabalho possui a finalidade de ponderar sobre a eutanásia propriamente dita, seus tipos, suas atribuições, sua utilização durante a história da humanidade. Avaliar igualmente as implicações jurídicas e sociais decorrentes da sua presumível utilização como dispositivo do ordenamento jurídico brasileiro, a fim de abreviar o sofrimento do indivíduo que comprovadamente não é mais capaz de usufruir a vida com a dignidade necessária, devido à presença de doença crônica ou incapacidade física permanente. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, a autodeterminação e ponderações sobre a Bioética baseiam também a teoria defendida para a aplicação do instrumento da eutanásia em nosso país.[1]

Palavras-chave: Eutanásia. Ordenamento jurídico brasileiro. Direitos Fundamentais. Autodeterminação. Bioética.

Abstract: With the intention to examine the applicability of the procedure of euthanasia in the Brazilian legal system it was developed a three chapters study with the use of literature. Similarly, the work has the purpose on pondering the euthanasia itself, it’s types, duties, and use during the history of mankind. Also assess the legal implications and social arising of its alleged use on the Brazilian legal system in order to shorten the suffering of individuals that are no longer able to enjoy life with dignity necessary due to the presence of chronic disease or permanent physical disability. The constitutional principle of human dignity, self-determination and weightings based on Bioethics also defend the theory on the application of the euthanasia in our country.

Keywords: Euthanasia. Brazilian legal system. Fundamental Rights. Self-determination. Bioethics.

INTRODUÇÃO

Desde os primórdios da humanidade a morte causa temor, fascinação e curiosidade. É o receio natural do desconhecido, o medo do fim. 

O tema do estudo me é bastante familiar, posso atestar o que é ver uma pessoa muito próxima sofrendo as agruras de uma doença terrível, ou perceber como as leis podem interferir de forma direta em decisões que cabem somente ao indivíduo, ou a seus entes mais próximos.

A proposta apresentada para a implementação do procedimento da eutanásia em nosso ordenamento jurídico é polêmica, porém, julgo ser procedente que a questão seja debatida de forma pragmática.

Exemplificando de forma sucinta o estudo apresentado, o trabalho será desenvolvido em três capítulos, com emprego de pesquisa bibliográfica, sendo que o desenvolvimento está esquematizado de tal forma:

No primeiro capítulo, intitulado “Princípio da dignidade humana e bioética”, faremos uma abordagem sobre questões preliminares, que baseiam a proposta do tema exposto. Entre estas questões preliminares mencionadas, encontram-se os direitos fundamentais, que são o alicerce de todos os direitos intrínsecos do homem. No mesmo capítulo, ponderaremos sobre o direito do indivíduo a uma vida digna e a autodeterminação, que são as bases principais da tese defendida, pois é por estes princípios que defenderemos a possibilidade do individuo decidir sobre sua vida, pois só ele tem a capacidade de avaliar se seu estágio vital atual é pleno de dignidade ou não. Ainda faremos uma abordagem sobre os aspectos da bioética interligados com a eutanásia e suas consequências.

No segundo capítulo, analisaremos a eutanásia de forma conceitual, falaremos sobre sua existência na história da humanidade, sobre sua aplicação em diversos países e sobre sua classificação.

No terceiro e último capítulo, discutiremos sobre a eutanásia e sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. Como é entendida a eutanásia e a ortotanásia em um sistema penal e qual a aplicação prática dos institutos na legislação pátria. Trataremos também sobre suas consequências jurídicas na sociedade brasileira, e a relação do tema com o Direito Constitucional e o Direito Penal.

Por fim, defenderemos a aplicação do procedimento da eutanásia em nosso ordenamento jurídico baseado nos princípios já expostos, pois entendemos que ao principio da autodeterminação devemos conferir especial relevância, só ao indivíduo cabendo decidir sobre sua existência.

1. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E A BIOÉTICA

1.1 Direitos Fundamentais

Podemos definir Direitos Fundamentais ou Direitos Humanos como um conjunto de direitos e garantias do ser humano, que possui como desígnio fundamental o respeito a sua dignidade, com amparo ao poder estatal e a garantia das condições mínimas de vida e desenvolvimento do ser humano. Propõe-se a garantir ao ser humano o respeito à vida, à liberdade, à igualdade e a dignidade, para o completo desenvolvimento de sua personalidade. Esta proteção necessita ser reconhecida pelos conjuntos normativos jurídicos nacionais e internacionais de forma positiva.

Sobre o tronco original que serviu de alicerce para a concepção dos Direitos Fundamentais, afirma Acquaviva[2]:

“Essa idéia da existência de um direito universal, revelado ao homem pela razão, imbuído de um sentimento natural do justo e do injusto, eticamente superior ao direito positivo, já vem de Sócrates (470-399 a.C.) e de Aristóteles (384 –322 a.C.). Cícero (106 – 43 a.C.) opôs uma lei eterna e universal à lei humana. As Institutas de Justiniano distinguem três espécies de direito: o natural, que a natureza ensinou a todos os animais, como a procriação, o casamento e a educação dos infantes, o das gentes, que é o direito estabelecido pela razão natural entre todos os homens, vale dizer, todos os povos e, finalmente, o direito civil, peculiar a cada povo. Tais noções, que se mantiveram durante a Idade Média, somente viriam a ser sistematizadas e enriquecidas, formando um corpo de doutrina, nos sécs. XVII e XVIII, originando a Escola de Direito Natural. Esta escola teve seu grande inspirador no holandês Huig Van Der Groot (1583 –1645), cujo nome foi alatinado para Grotius. Opondo-se às doutrinas teológicas do feudalismo, Grotius afirmava que o fundamento do direito reside na própria natureza humana. Para além da legislação positiva há um direito ideal, formado por princípios imutáveis e verdadeiros em qualquer lugar, e que o homem descobre graças à sua razão”.

Os direitos e garantias fundamentais são alvitrados pela Constituição Federal, por conseguinte, não são ilimitados, porquanto se deparam com seus limites nos outros direitos também consagrados pela Carta Magna. Consequentemente, se ocorrerem conflitos dentre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o legislador necessita valer-se do princípio da concordância prática ou da harmonização a fim de relativizar os bens jurídicos em litígio, impedindo o perecimento de alguns em relação aos outros, efetivando uma diminuição adequada do domínio de abrangência de cada direito sobre o outro. Necessita-se ininterruptamente procurar a correta acepção do preceito e da consonância do ordenamento constitucional brasileiro com seu desígnio precípuo, assinalando a relatividade dos direitos fundamentais.

Para adentrar especificamente no tema proposto por este trabalho, é necessário, primeiramente, abranger questões que servem como base essencial para a elaboração da proposta perpetrada.

O elemento primitivo da questão Eutanásia é o direto à vida digna, e todo significado que a expressão trás consigo, por isso, é de suma importância adentrar em questões primárias, como o princípio da dignidade humana e os direitos fundamentais.

Neste início de proposta, vamos discorrer sobre os Direitos Fundamentais como núcleo elementar do tema proposto. Têm-se como Direitos Fundamentais um conjunto de normas, prerrogativas e instituições que em momentos históricos asseguram os ideais de liberdade, igualdade e dignidade entre os seres humanos.

Em nossa constituição, os direitos fundamentais possuem um lugar de destaque, o artigo 5º que versa sobre os direitos e garantias fundamentais está colocado em forma topográfica especial, o que evidencia a preocupação do legislador com a questão, reconhecendo que os direitos fundamentais são base integrante da identidade da constituição brasileira.

Os direitos fundamentais cumprem um papel de resguardar as garantias individuais dos cidadãos, como assevera Canotilho[3]:

“a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)

Com a finalidade de limitar o poder político e a ingerência do Estado nos direitos individuais, sabe-se que o estabelecimento das constituições escritas pelo mundo afora se baseou na elaboração de declarações de direitos do homem, que influenciou tais ordenamentos jurídicos com a introdução de direitos subjetivos do cidadão.

Na esfera doutrinária, tais direitos fundamentais constituem-se da mesma maneira, em direitos subjetivos e elementos fundamentais da normatização constitucional objetiva. Ainda que direitos subjetivos, os direitos fundamentais concedem aos titulares a probabilidade de constituir os seus interesses em face dos órgãos obrigados. Na sua extensão como componente basilar da ordem constitucional objetiva, os direitos fundamentais formam a base do ordenamento jurídico de um Estado.

O legislador constituinte classificou em cinco espécies os direitos fundamentais em nossa constituição, são elas: direitos e garantias individuais e coletivos; direitos sociais; direitos de nacionalidade; direitos políticos; e direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos.

Contemporaneamente, a doutrina majoritária dispõe a classificação dos direitos fundamentais em primeira, segunda e terceira gerações, fundamentando-se na sequencia cronológica em que foram constitucionalmente adotados.

Sobre a classificação dos direitos fundamentais, assevera Celso de Mello[4]:

“Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.”

Direitos de 1ª geração, estes abrangem as liberdades negativas clássicas, que enfatizam o princípio da liberdade. São os direitos civis e políticos. Podemos citar como exemplo o direito à vida. Neste sentido, citam-se os direitos humanos de primeira geração, oriundos do pretexto da Revolução Francesa, classificados como os direitos individuais, em resposta ao avanço dos ideais liberalistas que preenchiam o pensamento político daquela época. Buscava-se aqui uma reação em face ao Estado Absolutista do século XVIII, baseando-se no modelo de um Estado Liberal, composto pelos princípios da legalidade e da separação dos poderes.

Conforme destaca Walber de Moura Angra[5], “Para a realização dos direitos de 1º dimensão, bastou o surgimento do Estado de Direito, em que a atuação dos entes estatais deveria ser feita mediante lei, suprimindo a vontade despótica do rei”.

Surgia, então, uma manifestação com fito do positivismo jurídico no sentido da proteção ao direito à vida, à igualdade, à liberdade e a propriedade, marco para posterior avanço dos direitos sociais.

Já os direitos de 2ª geração são as liberdades positivas, reais ou concretas, onde sobressai o princípio da igualdade entre os homens. São os direitos econômicos, sociais e culturais. Citamos como exemplo o direito à saúde. Nesse diapasão, alicerçadas na filosofia de Karl Marx, surge o movimento liderado pela classe dos trabalhadores, formando assim os direitos sociais, com o intuito de atingir a igualdade material, não mais importando a igualdade formal tendo em vista que a elaboração das leis era restrita a burguesia.

 Cumpre trazer à baila o conceito caracterizando os direitos sociais do ilustre doutrinador José Afonso Da Silva[6]:

“Prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.”

Aos Direitos de 3ª geração se aplicam os princípios da solidariedade e da fraternidade. São conferidos de forma genérica a todas as formações sociais, resguardando interesses de titularidade coletiva ou difusa. Podemos citar como exemplo o direito à defesa do consumidor.

São conhecidos também como direitos difusos, destinados à coletividade, tendo como principal objetivo o direito à solidariedade, à fraternidade, decorrentes da iminente capacidade de autodestruição do homem.

Não se pode ter como estanques os diversos direitos antes elencados. Para o real entendimento dos direitos sociais faz-se indispensável a compreensão e, mesmo a utilização, de instrumentos relacionados com os direitos individuais. Destacam-se o processo de cumulação e de expansão dos direitos humanos, onde os direitos se desenvolvem, e consequentemente os novos direitos surgem com o propósito de enriquecer os direitos anteriores.

Nessa ótica, saliente-se a percepção à época do ilustre doutrinador Norberto Bobbio[7], ao analisar o desenvolvimento contínuo da sociedade:

 “O campo dos direitos sociais, finalmente, está em contínuo movimento: assim como as demandas de proteção social nasceram com a revolução industrial, é provável que o rápido desenvolvimento técnico e econômico traga consigo novas demandas que até hoje não somos capazes de prever.”

Adiante, então, surgem os direitos da quarta geração, tendo como vetor o campo da genética, biotecnologia, entranhado na bioética. Importante frisar que não há consonância entre os doutrinadores sobre os direitos de quarta geração, já que alguns questionam e conceituam estes como produto dos direitos de terceira geração.

Insta mencionar que Paulo Bonavides[8], foi um dos primeiros doutrinadores a tratar especificamente do assunto:

“Os direitos de quarta geração não somente culminam a objetividade dos direitos das duas gerações antecedentes como absorvem – sem, todavia, removê-la – a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os direitos de primeira geração. Tais direitos sobrevivem, e não apenas sobrevivem, senão que ficam opulentos em sua dimensão principal, objetiva e axiológica, podendo, doravante, irradiar-se com a mais subida eficácia normativa a todos os direitos da sociedade e do ordenamento jurídico.”

As características destacadas dos direitos fundamentais são exemplificadas da seguinte forma:

a) Historicidade: os direitos são cunhados em um contexto histórico, e quando constitucionalizados tornam-se Direitos Fundamentais;

b) Imprescritibilidade: os Direitos Fundamentais são imprescritíveis, não se perdem com o transcurso do tempo;

c) Irrenunciabilidade: os Direitos Fundamentais não são renunciados de modo algum;

d) Inviolabilidade: não é permitido que sejam desrespeitados por nenhuma autoridade ou lei infraconstitucional,os direitos do indivíduo, sob pena de responsabilização civil, penal ou administrativa;

e) Universalidade: os Direitos Fundamentais são inerentes a todos seres  humanos, independente de raça, credo, nacionalidade ou ideologia política;

f) Concorrência: os Direitos Fundamentais podem ser exercidos de forma concorrente, sem objeções;

g) Efetividade: Cabe ao Poder Público garantir a execução dos Direitos e Garantias Fundamentais, empregando quando imperioso elementos coercitivos;

h) Interdependência: os Direitos Fundamentais não se colidem com as previsões constitucionais e infraconstitucionais, necessitando se arrolarem para impenderem suas finalidades;

i) Complementaridade: os Direitos Fundamentais necessitam ser decodificados de forma conjugada, com o desígnio de seu cumprimento irrestrito.

Alguns doutrinadores asseveram que o Estado tem o dever de garantir que cada indivíduo tenha seu direito intrínseco respeitado, deste modo, afirma Herkenhoff[9],

“Por direitos humanos ou direitos do homem são, modernamente, entendidos aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir.”

Os Direitos Fundamentais, presentemente, são apontados internacionalmente, por meio de acordos, tratados, declarações e outros órgãos de caráter universal. Estes Direitos fundamentais surgem com o indivíduo. E por este motivo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU-1948), profere que os direitos são proclamados, portanto, preexistem a todas as instituições políticas e sociais, não podendo ser retirados ou diminuídos pelas instituições governamentais, que ao contrário, devem resguardar tais direitos de qualquer afronta.    

1.2 Direito à vida digna e a autodeterminação

A dignidade é fundamentalmente um predicado da pessoa humana, independentemente de sua procedência, raça, sexo, idade, estado civil ou condição social e econômica, merece ser respeitada por sua condição de ser humana.

O conceito de dignidade humana, que segue o indivíduo no decorrer de toda vida, igualmente deve ser decisivo na hora da sua morte? De tal modo que exista direito a uma vida digna, haveria também direito a uma morte digna? Estas questões devem ser enfrentadas com sobriedade pela sociedade brasileira.

 Qualquer ser humano não possui domínio sob o princípio de sua vida. Seu surgimento nesse mundo acontece por vontade de outros indivíduos. Todos possuem o direito de usufruir de uma vida digna, e esta condição é o principal motivo da humanidade, a basal força que movimenta o processo civilizatório.

Para definir dignidade, é necessário analisar um amplo conjunto de fatores, que agem intrinsecamente sobre cada indivíduo. Segundo Sarlet[10], a dignidade representa o valor absoluto de cada ser humano, que, não sendo indispensável e insubstituível, “não afasta a possibilidade de cunho crítico e não inviabiliza, ao menos por si só, eventual relativização da dignidade, notadamente na sua condição jurídico-normativa e em algumas facetas”.

Ainda assim, segue o ilustre autor, aduzindo que a dignidade independe de circunstâncias concretas, já que inerente a todo e qualquer indivíduo, visto que, em princípio, todos, mesmo o maior dos criminosos, são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas, ainda que não se portem de forma igualmente digna nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmo.

Também podemos citar o que discorre Silva[11] sobre o conceito de dignidade humana,

“[…] um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida, concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes, Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da Dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos dos direitos sociais, ou invocá-la para construir teoria do núcleo da personalidade individual, ignorando a quando se trate de garantir as bases da existência humana. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 270), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 250) etc, não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.”

Percebe-se que a dignidade, na qualidade de valor inerente do ser humano, determina para o individuo o direito de deliberar de forma independente sobre suas concepções existenciais e, ainda que esta independência lhe falsear ou não puder ser presente, ainda sim ser considerado e respeitado pela sua condição humana.

Nesse sentido, dignidade da pessoa humana, para Sarlet[12] é:

“qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.

Cada indivíduo possui sua própria definição para dignidade, o que pode ser considerado digno para um, pode não ser digno para outro, é uma questão inerente, intrínseca a cada sujeito.   Em questões cabais, que atuam sobre o valor maior que um ser humano possui, deve ser respeitado o princípio da autonomia e da autodeterminação de cada um.

 A autodeterminação é própria a todos, cabe a ele, e somente a ele o direito inseparável de decidir os rumos da sua própria vida e desenvolver a sua personalidade da forma que achar mais conveniente. Só ele tem o poder de assumir as responsabilidades que derivem de suas atitudes.

Não podemos desconhecer que existem atitudes que o Estado pode e deve tomar com a finalidade de preservar o direito da coletividade, mas em relação à vida do indivíduo, esse bem inseparável, o próprio sujeito tem a aptidão para sobre ela dispor.

Indivíduos são mantidos vivos contra sua vontade, quando não querem mais para si o sofrimento advindo de limitações, dores e dependência impostos por doenças ou acidentes que ceifaram o prazer de viver.

Ninguém pode decidir por outrem o que fazer com seu bem maior, é intrínseco a cada um o direito de querer viver ou ceifar sua vida com a argumentação de que não aguenta mais o sofrimento e as suas limitações – fator este que deve, aliás, ser considerado pela legislação pátria.

O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, a autodeterminação e o fim do sofrimento de indivíduos enfermos, formam a base da teoria defendida para a aplicação do instrumento da eutanásia no ordenamento jurídico brasileiro. A autonomia do paciente é um direito assegurado pela Constituição Federal, e que, portanto, deverá ser respeitado.

 Em Estado Democrático constituído, o conceito de vida humana deve se basear no Constituição, que reafirma o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos seus preceitos essenciais.

Conceitua Carvalho[13]:

“[…] o próprio conceito legal de morte vem a corroborar a qualificação da vida humana como dependente de critérios valorativos, uma vez que ainda que conservadas funções biológicas (respiração e circulação), já não mais existe vida digna de proteção quando verificada a morte encefálica, de modo que a vida humana se afirma como algo mais que um processo puramente biológico”.

Qual a dignidade existente em uma vida vegetativa?  Onde o indivíduo não é capaz de usufruir minimamente dos prazeres advindos de uma vida plena? Cabe apenas a ele decidir pôr fim a tal sofrimento? A prática da eutanásia pode ser entendido como um ato de solidariedade e compaixão. O princípio da autodeterminação da pessoa deve ser invocado em casos onde pacientes mantenham suas faculdades mentais intactas e possuam a capacidade de decidir. Em outros casos, onde o ser humano em sua plenitude vital e plena consciência já não existe, a família deve ser consultada e chamada a refletir sobre a melhor possibilidade para proteger o ente do sofrimento brutal e desnecessário.

Nesse diapasão, segue o entendimento do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

“CONSTITUCIONAL. MANTENÇA ARTIFICIAL DE VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PACIENTE, ATUALMENTE, SEM CONDIÇÕES DE MANIFESTAR SUA VONTADE. RESPEITO AO DESEJO ANTES MANIFESTADO.

Há de se dar valor ao enunciado constitucional da dignidade humana, que, aliás, sobrepõe-se, até, aos textos normativos, seja qual for sua hierarquia.

O desejo de ter a “morte no seu tempo certo”, evitados sofrimentos inúteis, não pode ser ignorado, notadamente em face de meros interesses econômicos atrelados a eventual responsabilidade indenizatória.

No caso dos autos, a vontade da paciente em não se submeter à hemodiálise, de resultados altamente duvidosos, afora o sofrimento que impõe, traduzida na declaração do filho, há de ser respeitada, notadamente quando a ela se contrapõe a já referida preocupação patrimonial da entidade hospitalar que, assim se colocando, não dispõe nem de legitimação, muito menos de interesse de agir.” (Apelação Cível Nº 70042509562, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator Des. Arminio José Abreu Lima da Rosa, julgado em 01 de junho de 2011)

A partir de uma reflexão jurídico-social, deve-se pertinentemente propor uma séria discussão sobre a possibilidade de utilização do procedimento da eutanásia em nosso país, visto que são numerosos os exemplos de indivíduos que são mantidos vivos contra a sua vontade, sujeitos que não são mais capazes de desfrutar plenamente de suas vidas, e que devido às normas jurídicas vigentes no Brasil, não possuem o direito de decidir sobre a continuidade ou não de sua existência e de seu sofrimento.

1.3 Ponderações acerca da bioética

O Direito à Vida é avaliado como o mais essencial de todos os direitos; é o principal dentre eles, pondera-se como um o marco inicial para o surgimento dos demais. O direito a vida precisa ser conceituado como o elemento inicial da moral médica.

A Bioética pode ser considerada uma especialidade relativamente jovem na área da filosofia. A mesma nasceu em função da imperiosa necessidade de se debater moralmente e eticamente as decorrências do progresso tecnológico das ciências da área da saúde.

A Bioética, como parte da ética, não obstante, configura-se como um ramo da Filosofia, podendo ser entendida por múltiplas formas. De maneira prática, porém, podemos definir bioética como uma ética aplicada, que propende examinar os conflitos e polêmicas morais aludidos pelo exercício de profissionais no campo das Ciências da Vida e da Saúde. Estes conflitos nascem das interações de indivíduos que atuam em áreas essenciais para o desenvolvimento das sociedades. Deste modo, podemos aduzir que a bioética possui funções fundamentais na formação das sociedades contemporâneas, estas descritas como descritiva, normativa e protetora.

Engel[14], define Bioética da seguinte forma,

“Bioética como a reflexão ética sobre os seres vivos, incluído o ser humano, tais como esses seres vivos se apresentam nas relações cotidianas do mundo vivido e nos contextos teóricos bem como práticos da ciência e da pesquisa.”

A Bioética se desenvolve em função da ética, e por isso, cabe fazer uma breve análise sobre ética para melhor embasamento.

Para Durant[15], a ética é a ciência da moral e a ciência do bem e do mal – sendo importante diferenciar ética de moral. Sobre esta diferenciação também versa o autor:

“Como a moral dominante no ocidente tem sido frequentemente apresentada como um sistema de princípios imutáveis e aparentemente definidos, a palavra tomou com freqüência um sentido conservador e fechado. Muitos têm também tomado a palavra 'ética' para expressar uma pesquisa moral nova, aberta e atenta à evolução do mundo moderno.”

Entende-se presentemente a eutanásia como a utilização ou abstenção de artifícios que admitem acelerar ou provocar o óbito de um indivíduo que possui alguma enfermidade incurável, com o objetivo de preservá-lo das extraordinárias aflições que normalmente acometem a quem está em situação tão degradante. O caráter voluntário é imprescindível no agente da eutanásia é determinado, nem que seja de modo tácito, pelo indivíduo que sofre o procedimento.

Tristram Engelhardt[16] sugeriu uma alteração da sua acepção do princípio da autonomia, redefinindo como Princípio do Consentimento, o qual é condição imperiosa para aplicação do processo proposto,

“rebatizei o "princípio da autonomia" como o "princípio do consentimento" para indicar melhor que o que está em jogo não é algum valor possuído pela autonomia ou pela liberdade, mas o reconhecimento de que a autoridade moral secular deriva do consentimento dos envolvidos em um empreendimento comum. O princípio do consentimento coloca em destaque a circunstância de que, quando Deus não é ouvido por todos do mesmo modo (ou não é de maneira alguma ouvido por ninguém), e quando nem todos pertencem a uma comunidade perfeitamente integrada e definida, e desde que a razão não descubra uma moralidade canônica concreta, então a autorização ou autoridade moral secularmente justificável não vem de Deus, nem da visão moral de uma comunidade particular, nem da razão, mas do consentimento dos indivíduos. Nessa surdez a Deus e no fracasso da razão os estranhos morais encontram-se como indivíduos.”

Com recentes propostas em torno da discussão do tema, percebe-se que eventuais barreiras e velhas balizas da ética que assinalavam declaradamente a diferenciação dentre o bem e mal baseadas em crenças religiosas e limites impostos pela própria medicina remota, estão deteriorando-se em face do surgimento de correntes que defendem a discussão do assunto pela sociedade brasileira.

Refletindo acerca das situações controversas que o procedimento da eutanásia opõe à ética e à bioética, Teixeira e Gomes[17] asseveram que:

“[…] assim como os médicos sensibilizam-se ante a urgência de romper com o atual paradigma de cura em favor do paradigma do cuidado, também os juristas devem buscar o abandono dos dogmas e tabus em torno da vida como direito absoluto. O direito à vida não pode obstar o direito à dignidade ou à integridade física, psíquica e moral do ser, revestindo-se então em um direito fundamental, porém não absoluto.”

A concepção de ética é mutável de acordo com o tempo histórico em que se encontra. Atitudes e ações que eram consideradas éticas em sociedades remotas podem ser consideradas fora das normas éticas propostas para o modelo atual de sociedade. Assim como a ética, a bioética deve acompanhar as mudanças que a evolução humana desencadeia nas mais diversas áreas de atuação dos seres humanos.

É salutar que discussões anteriormente renegadas por fatores morais e éticos sejam apresentadas novamente para uma melhor apreciação, pois conceitos são modificados com o transcorrer do tempo, e isto acarreta a abertura de novos horizontes em relação a questões tão importantes como a Eutanásia e tantas outras.

2. EUTANÁSIA

2.1 Conceito

A prática da eutanásia ou algum procedimento semelhante pode ser percebida em vários períodos da humanidade.

No decorrer da história, conforme leciona Goldim[18], encontramos exemplos em que determinados povos executam práticas semelhantes á eutanásia, alguns continham por tradição que os filhos matassem os seus pais quando estes estivessem idosos ou doentes. Já na Índia os indivíduos enfermos com gravidade eram atirados no rio Ganges, para que seu sofrimento fosse findado.

Ainda nos ensina Goldim que na Grécia Antiga, Platão, Sócrates e Epicuro já defendiam o conceito de que a agonia sobrevinda de uma enfermidade impiedosa justificava o suicídio.

No Egito, Cleópatra também ponderou acerca do tema, visto que designou a criação de um grupo de sábios com a finalidade de analisar procedimentos de morte menos agressivos.

Várias personalidades marcantes da história da humanidade já se debruçaram sobre o tema, como por exemplo, Karl Marx, Lutero e Schopenhauer.

Na Europa, por diversas vezes, o tema eutanásia foi relacionado com a eugenia nazista de Hitler, prática que através de métodos científicos, visava a “pureza racial”, ou seja, o melhoramento físico e moral das próximas gerações e a eliminação de deficientes, doentes e indivíduos considerados inferiores por sua origem.

Vários países, no decorrer do tempo, aventaram a possibilidade de prever a eutanásia em seus ordenamentos jurídicos, na Inglaterra, no ano de 1931, foi proposta uma lei para a aplicação de previsão legal da Eutanásia Voluntária, porém a Câmara inglesa não acatou.

No ano de 1934, em seu Código Penal, o Uruguai introduziu a eutanásia por meio da possibilidade do instrumento jurídico chamado “homicídio piedoso”.

Esta atitude dos legisladores uruguaios, talvez tenha permitido que o país tenha sido o primeiro a regulamentar o procedimento eutanásico em seu ordenamento jurídico.

Atualmente, alguns países já preveem a eutanásia em sua legislação como, por exemplo, a Holanda e a Bélgica. Já a Suíça, preferiu admitir prática semelhada, o suicídio assistido.

Ao passo de uma análise conceitual da palavra Eutanásia, gize-se a importância dos significados das duas palavras gregas que compõem o termo referido, onde “eu” assume o significado de bem ou bom e “thanatos” representa morte. Desse modo, temos como conceituação, diante de todo um contexto medicinal, a precipitação propositada da morte de uma pessoa, diante de casos apresentados como de grave enfermidade ou de sofrimento.

Saliente-se que a eutanásia é geralmente apresentada como uma morte “suave”, onde se busca um alívio imediato com o fito de por fim a realidade desumana vivenciada por determinados pacientes. Desde já, insta frisar que a mesma não agride a probidade e saúde do paciente, tampouco atenta contra a integridade da dignidade da pessoa humana, tendo em vista o infortúnio vivenciado, não só pelo doente, como também pelas pessoas que estão em sua volta numa condição assistencial inerte.

Diante disso, não se consagra o medicamento aos indivíduos sadios ou desprovidos de alguma capacidade física limitadora, pelo contrário, aplica-se aos casos em que o sofrimento é atroz, incurável e, acima de tudo, a morte acaba por significar como um alívio imediato, ou seja, descanso eterno. 

Insta salientar que sob aspecto jurídico, conforme leciona Nucci[19], podemos encontrar até três conceitos diversos para o mesmo fenômeno. A eutanásia propriamente dita já restou conceituada nos parágrafos supracitados, diante disso, passamos para análise dos conceitos da ortotanásia e da distanásia.

A ortotanásia, chamada também de eutanásia omissiva, caracteriza-se pela omissão de tratamentos considerados fúteis, tendo em vista que não possuem mais capacidade de salvar a vida do paciente. Nesse caso, o médico ao atestar que o enfermo se encontra totalmente desenganado pela medicina, deixa de aplicar os medicamentos que prolongariam artificialmente a vida da vítima, portadora de moléstia incurável, em estado terminal e irremediável.

Sob o ponto de vista legal, tanto a eutanásia como a ortotanásia são consideradas como atitudes criminosas. Em que pese a Resolução[20] n°. 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina (CFM), não tratar a ortotanásia como ilícito penal, não se pode olvidar que tal procedimento está insculpido no Decreto-Lei n°2.848, de 7 de dezembro de 1940, mais precisamente no seu art.121 sendo tratado como homicídio privilegiado, com base no relevante valor moral, conforme aduz o que segue:

“Homicídio simples

Art 121. Matar alguem:

Pena – reclusão, de seis a vinte anos.

Caso de diminuição de pena

§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.”

Saliente-se, no entanto, que na ótica médica, conforme dispõe o art. 41 do Código de Ética Médica (aprovado pela Resolução 1.931/2009, do Conselho Federal de Medicina) caracteriza-se a ortotanásia como procedimento ético.

É vedado ao médico:

“Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.”

Em momento oportuno, tratarei essa discussão baseada na previsão da ortotanásia, como excludente de ilicitude, fundada no consentimento do ofendido, conforme propõe o projeto de reforma do Código Penal.

Quanto a última conceituação, temos a distanásia, ou seja, o prolongamento artificial da vida ocasionando uma morte lenta e sofrida, amparada nos recursos que a medicina oferece. Tem-se aqui, consoante o pensamento de Roxana Cardoso Borges[21] a chamada obstinação terapêutica, onde se busca o tratamento incondicional amparado nos avanços tecnológicos sem ao menos considerar outros aspectos além do biológico.

Segundo Débora Gozzo e Wilson Ligiera[22]:

“A obstinação terapêutica e o tratamento fútil estão associados a distanásia. Alguns autores tratam-nos, inclusive, como sinônimos. A primeira consiste no comportamento médico de combater a morte de todas as formas, como se fosse possível curar o paciente, em uma luta desenfreada e irracional, sem que se tenha em conta os padecimentos e os custos humanos gerados. O segundo refere-se ao emprego de técnicas e métodos extraordinários e desproporcionais de tratamento, incapazes de ensejar a melhora ou a cura, mas hábeis a prolongar a vida, ainda que agravando sofrimentos, de forma tal que os benefícios previsíveis são muito inferiores aos danos causados.”  

Tal obstinação enseja uma morte vagarosa e com intenso sofrimento sem nenhuma perspectiva de cura, tendo em vista que as ações médicas não possuem mais o condão de modificar o quadro clínico, a não ser prolongar a consternação.

2.2 Classificação

Superada a fase conceitual discorremos agora acerca de algumas classificações atinentes a eutanásia.

Num primeiro instante insta salientar que existem dois procedimentos atinentes a eutanásia, ou seja, a eutanásia natural e a eutanásia provocada. No primeiro caso temos a morte natural sem sofrimento ou interferências externas, já no segundo há a voluntariedade, a presença da interferência humana, muitas vezes praticada pelo próprio paciente ou, até mesmo, por outras pessoas.

Gize-se que na eutanásia provocada pela própria pessoa estamos diante de um caso de suicídio, em que não há previsão legal, salvo nos casos perfectibilizados no art. 122 do Código Penal[23], o que para alguns autores caracteriza-se como o suicídio assistido, entretanto por mais que se aproxime da eutanásia com ela não se deve confundir.

Ao passo de um crivo mais detalhado da eutanásia provocada encontramos diversas classificações, entre elas a que analisa a atitude acerca do curso vital do doente, definindo-se como solutiva e resolutiva. Na primeira o agente tem o condão de eliminar o sofrimento do enfermo com ajuda física, psicológica, espiritual ou moral. Na segunda a atuação do agente acaba por interferir na duração do prazo vital, reduzido baseado na vontade do paciente, assim sendo, é necessária a manifestação de seu consentimento ou de seu representante legal. Ademais, frise-se que o causador da eutanásia resolutiva age com o fito da solidariedade humana em face ao sofrimento apresentado pelo enfermo.

Outrossim, importante mencionar que existem algumas classificações decorrentes da eutanásia resolutiva, assim sendo, temos a terapêutica, eugênica e econômica.

 A eutanásia terapêutica ou libertadora o sentimento primordial é o da solidariedade, da compaixão, na tentativa de libertar o doente da cruel agonia.

Na eugênica ou selecionadora, temos a tentativa de extinguir, de forma indolor, a vida de algumas pessoas como, por exemplo, aquelas que possuem doenças contagiosas, incuráveis, indivíduos portadores de doenças mentais, doenças degenerativas, objetivando, portanto, o melhoramento da espécie. Saliente-se aqui um total afrontamento aos princípios éticos e a dignidade da pessoa humana, tendo em vista que a seletividade da espécie humana não se dá em fase das diferenças genéticas. Atrelar-se ao pensamento de que determinada pessoa seja merecedora da atividade eutanásica pelo simples fato de ser uma ameaça às futuras gerações ou por ser um incômodo a sociedade é algo inadmissível e em nada condiz com o princípio da autodeterminação, tendo em vista a ausência do elemento morte, assim como a experimentação de constantes e inacabáveis sofrimentos.

Por derradeiro, a eutanásia econômica, baseado num pensamento mercantilista onde se tenta eliminar todo e qualquer enfermo com o condão de aliviar gastos excessivos com a manutenção do tratamento. Mesmo que se saiba da dificuldade de alguma resposta satisfatória, aplicar métodos eutanásicos pelo simples fato de diminuir os custos com a saúde ou pelo fato de livrar a sociedade do ônus que representam pessoas economicamente ativas é também, no mínimo, atitude totalmente desumana e inadmissível. Desse modo, importante salientar que somente a eutanásia libertadora é que configura hipótese legítima de eutanásia, pois é a única que se baseia na boa morte ao doente em estado terminal, com o fito de aliviar sua dor. Nesse diapasão, pode-se articular que as demais espécies supracitadas identificam-se como condutas homicidas qualificadas por motivo torpe.

Adiante, saliente-se a classificação quanto às espécies de eutanásia como ativa ou por comissão e passiva ou por omissão. A eutanásia ativa caracteriza-se quando determinada pessoa age diretamente na eliminação do sofrimento do paciente, objetivando suprimir a amargura do prolongamento que a vida lhe causa.

Nessa ótica, podemos dividir ainda a eutanásia ativa como direta e indireta. Assim sendo, na direta o agente opera de modo positivo com o fito de eliminar o lapso de tempo em que o paciente vive em total agonia. Já na eutanásia indireta tem-se o condão de abolir o sofrimento mediante a extinção da vida do enfermo, entretanto, mantendo sempre o aspecto humanista. Ademais, gize-se que nessas situações o objetivo primordial é quanto ao conforto disponibilizado ao paciente, mesmo que, posteriormente, tais procedimentos sejam ocasionadores da morte, como, por exemplo, a liberação de morfina para enfermos em estado terminais, mesmo que tal procedimento resulte diretamente no óbito do paciente.

Quanto à eutanásia passiva, ocorre nos casos em que há a supressão de tratamentos médicos que de certa forma poderiam prolongar a vida ou sofrimento das pessoas. Nesse caso, tal método acaba antecipando a morte do paciente que já não conta com reais expectativas de vida. Na seara médica a eutanásia passiva é comumente realizada pelos médicos, ainda que encontre aversão na divulgação desses procedimentos, tendo em vista as divergências quanto ao assunto. 

3. A EUTANÁSIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

3.1 O direito à eutanásia, o direito constitucional e o direito penal

É de se referir que a extensão do tema Eutanásia – e talvez, justamente, pelo bem jurídico que intimamente se atrela – abarca uma carta de princípios constitucionais e supra-sistêmicos que ultrapassam a noção lege lata de direito.

O direito a vida não pode ser entendido como absoluto; assim como nenhum direito o é. Tal entendimento, aliado às mais diversas razões de direito, torna possível a fortificação de princípios eminentes, tais como o da dignidade da pessoa humana, com a valorização da ideia de dignidade kantiana, sendo o sujeito o fim em si mesmo.

A vida é bem transcendente ao próprio direito, não cabe somente aos penalistas, mas à sociedade como um todo, com o envolvimento de filósofos, médicos, religiosos, etc., a discussão de sua proteção e valorização, nos mais diversos ramos sociais.

E a eutanásia, que é, em última análise, o ceifar da vida, deve ser considerada como meio lenitivo, apto a dignificar – apesar do aparente contra sensu o próprio existir, interpretando-se o direito do enfermo em conjugação com valores e princípios maiores.

Eutanásia, etimologicamente falando, é a morte boa. Se analisada frente ao direito penal, nada mais é que o aperfeiçoamento de excludente, consubstanciada no estado de necessidade exculpante ou na inexigibilidade de conduta diversa. O agente que pratica a eutanásia, a pedido do paciente, por sentimento de piedade, não pratica injusto em sua acepção de real desvalor de conduta, sem necessidade de interferência do direito penal ao fato, não só pelo princípio da intervenção mínima, mas também pela lógica de adequação de Welzel.

Apesar de lege ferenda, no projeto de novo código, estar a eutanásia prevista em tipo próprio, como preceito secundário penalizador, mas com pena reduzida (e isto já se revela ingente avanço do diploma repressor), ainda se considera de melhor grado o entendimento da eutanásia como fato não merecedor de incriminação. E, se não for pela inexigibilidade de conduta diversa, ou pelo estado de necessidade exculpante, que se considere como sendo materialmente atípico o fato.

A prática já é legalizada na Holanda, e é regulamentada, vale dizer, por diversos países como Estados Unidos, Luxembrugo e Bélgica. Na Suécia é autorizada a assistência médica ao suicídio. Na Suíça o médico ministra dose de medicamento letal e o próprio paciente ingere. Na Alemanha e Áustria considera-se legal a eutanásia passiva. E no Uruguai, segundo seu Código Penal de 1933, o agente com antecedentes honráveis, depois de reiteradas súplicas da vítima, que comete o fato por piedade, é livre de penalização:

“Los Jueces tiene la facultad de exonerar de castigo al sujeto de antecedentes honorables, autor de un homicidio, efectuado por móviles de piedad, mediante súplicas reiteradas de la víctima”[24].

Além da capacidade de autodeterminação da vítima, calcado no princípio da razoabilidade, ainda diminuindo o custo em saúde do Estado e, inclusive, o sofrimento da família, parece ser a solução mais lógica aquela que permite a morte digna, sem qualquer responsabilização do agente que, por piedade, auxilia neste fim.

Marcos Aurélio, ex-ministro do STF, referia que viver é um direito e não uma obrigação, e que não há dignidade em uma vida vegetativa. Os pacientes terminais, nas palavras de Leo Pessini (especialista em bioética) não passam de “cadáveres humanos”.

Se aqui se externa argumento favorável à eutanásia, o que se dirá da ortotanásia. Aliás, não se vê sentido na proibição da eutanásia e eventual permissão da ortotanásia – a diferença se encontra no agir. O sujeito ativo, em um ato comissivo, na eutanásia, ceifa a vida do paciente, por piedade, enquanto que, na ortotanásia, se faz exatamente o mesmo, mas por omissão.

O argumento favorável à punição nada mais é do que um direito repressor egoístico, que em nada se equipara com um direito penal mínimo, atrelado às noções de dignidade da pessoa humana. O sentimento de manter a vida, a qualquer custo, mesmo com o suplício da vítima e a impossibilidade atestada de melhoria, parece atender a interesses individualistas de proteção absoluta à vida, sem se considerar, para tanto, a vontade particular e o anseio do paciente.

Os desejos particulares constituem, aliás, o foco do testemunho vital Espanhol, pela lei das vontades antecipadas. À religião, ainda, vale dizer, não cabe a discussão penal da tutela, sobretudo a atual concepção de estado laico.

Prolongar a vida é, em alguns casos, justamente desrespeitá-la; isso porque a vida não é completa sem sua dignidade, que abarca, entre outros fatores, o do viver saudável.

Desta forma, resta claro que, mormente em um paralelo com o direito comparado, nossa legislação ainda deve evoluir, no sentido de permitir – com as devidas cautelas legais, é claro – o cometimento da eutanásia e da ortotanásia.

Hodiernamente, não há regulação no diploma repressivo para os casos em que efetivada a eutanásia. Aliás, eutanásia nada mais é que homicídio. Para os casos em que o réu é denunciado como incurso nas sanções do artigo 121 do Código Penal, todavia, é comum que se aplique a excludente da ilicitude do estado de necessidade de terceiro, a privilegiadora do parágrafo primeiro ou a exculpante da culpabilidade, que se coaduna com a inexigibilidade de conduta diversa.

Quanto a esta última exculpante, não se pode esperar de um parente que, ao ver seu familiar padecendo, nada faça para atenuar o sofrimento do ente querido, nem que para isso (como medida última) tenha que cometer atos extremos – quando não mais restam opções razoáveis ou atiladas.

Remeter ao estado de necessidade de terceiro, por ilicitude (tendo em vista que esta excludente é fator de exclusão deste elemento do tipo) entende-se a relação de contrariedade entre o fato típico e o ordenamento jurídico como um todo, inexistindo qualquer norma permitindo, fomentando ou determinando a conduta típica. Não se lista aqui o consentimento do ofendido como uma das causas aptas a justificar a eutanásia, vez que, apesar de causa supralegal justificante, trata dos bens jurídicos disponíveis.

O Estado de Necessidade vem legislado no artigo 24 do Código Penal brasileiro de 1940:

“Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.”

É, porém, a subsunção que mais se adequa ao fato concreto, e que se alterna mais adequadamente ao caso, aquela da utilização do parágrafo primeiro do artigo 121 do diploma repressor de 1940. Tal previlegiadora vem assim definida:

“§1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.”

Aqui, o relevante valor moral – que se opõe ao relevante valor social, atrelado à um interesse da comunidade –, que é de índole individual, remetendo ao sentimento de piedade, misericórdia e compaixão, goza de privilégio na prática do injusto, que se consubstancia na eutanásia.

Vale ressaltar os apontamentos de Cunha[25], que relembra:

“O §1º traz circunstâncias, isto é, dados eventuais, interferindo apenas na quantidade de pena e não na qualidade do crime, que permanece o mesmo (homicídio). Por esta razão, na hipótese de concurso de pessoas, tais circunstâncias minorantes – subjetivas – são incomunicáveis entre os concorrentes (art. 30 CP).”

Nesse sentido, denote-se ainda que é possível, hodiernamente, a existência conjunta de privilegiadora e qualificadora no homicídio (desde que a qualificadora que concorre com o privilégio seja objetiva. Quando assim o for, o crime privilegiado-qualificado não é hediondo, segundo corrente amplamente majoritária da doutrina. Isto significa que, em caso de homicídio privilegiado, praticado por eutanásia (pelo sentimento de piedade), ainda que consumado mediante o uso de veneno, por exemplo, não será o crime dotado de hediondez.

Importante ressaltar, ainda, que apesar de minoritária, há corrente afirmando a obrigatoriedade do reconhecimento, pelo juiz, de eventual privilegiadora.

Sobre o parágrafo primeiro do artigo 121 Mirabete[26] afirma:

“O segundo caso é o homicídio praticado por relevante valor moral, que diz respeito aos interesses individuais, particulares, do agente, entre eles os sentimentos de piedade e compaixão. Assim, o autor do homicídio praticado com o intuito de livrar um doente, irremediavelmente perdido, dos sofrimentos que o atormentam (eutanásia) goza do privilégio da atenuação da pena. O Código Penal Brasileiro não reconhece a impunibilidade do homicídio eutanásico, haja ou não o consentimento do ofendido, mas, em consideração ao motivo, de relevante valor moral, permite a minoração da pena. É punível a eutanásia propriamente dita (ação ou omissão do sujeito ativo que, por sua natureza ou intenção, causa a morte, por ação ou omissão, com a finalidade de evitar a dor) e mesmo a ortotanásia (emprego de remédios paliativos, acompanhamento médico sem procedimento de cura etc.), mas discute-se a possibilidade de não se falar em homicídio quando se interrompe uma vida mantida artificialmente por meio de aparelhos. Já no anteprojeto da parte especial do Código, de 1984, no §3º do art. 121, pela primeira vez no país se previa a isenção de pena à conduta eutanásica do ‘médico que, com o consentimento da vítima, ou, na impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão, para eliminar-lhe o sofrimento, antecipa morte iminente e inevitável, atestada por outro médico’. O projeto foi abandonado e, em comissões posteriores, formadas para reformar a Parte Especial, não se chegou a um consenso a respeito do assunto. Em muito países, aliás, discute-se a legalização da eutanásia, tendo ela sido aprovada na Holanda.”

O Conselho Federal de Medicina, deliberando sobre pacientes em fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, diz que é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal. Neste sentido, publicou a resolução nº 1.805 de 2006, que dispõe:

“Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.

§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica. 

Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.”

E é nesse sentido que se busca uma atualização legislativa, mormente no que se relaciona com um direito constitucionalizado e que prima pela dignidade da pessoa humana e um sopesamento de direitos fundamentais. Desta forma é que se projeta um novo Código Penal, mais bem adequado aos anseios de uma sociedade desenvolvida, aberta a ideais sociais e liberais.

Destarte, traslada-se aqui excerto do projeto de lei número 236 de 2012, anteprojeto do novo Código Penal do Senado Federal, que trata da eutanásia e da ortotanásia, em seu §2º:

“Eutanásia

Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave:

Pena – prisão, de dois a quatro anos.

§ 1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.

Exclusão de ilicitude

§ 2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.”

E é importante que ocorra esta gradativa mudança, que melhor adequa a necessidade ou não de tutela de um bem jurídico, mormente quando em confronto com outro bem fundamental, em uma hierarquização de valores e axiologias, desvelando o caráter deôntico que se apresenta na criminalização de condutas; é dizer que a eutanásia, que envolve os axiomas vida e dignidade da pessoa humana, também comporta, frente ao caso concreto, um balanceamento de mandamentos legais, frente a um mandamento de abstenção constitucional.

É esse sopesamento fundamentado que dita, mediante a colisão de direitos fundamentais, qual a solução que mais se adequa a determinado caso, a partir de um necessário equilíbrio ente principiologia e regramento constitucionais.

Ainda, a eutanásia passiva, ou ortotanásia, hoje em dia é, em verdade, tratada como apta a tipificar o artigo 135 do Código Penal, que é a omissão de socorro. Refere o artigo:

“Art. 135. Deixar de prestar assistência, quando possível faze-lo sem risco, à criança abandonada ou extraviada, ou a pessoa inválida ou ferida, ao desamparado ou em grave e eminente perigo; ou não pedir, nesses casos socorro da autoridade pública:

 Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.

 Parágrafo único. A pena é aumentada da metade, se da omissão resultar lesão corporal de natureza grave, e triplica, se resulta a morte”. (grifo nosso)

Como visto, no segundo o parágrafo segundo do anteprojeto do novo Código Penal, no entanto, poderá tal prática ser entendida como apta a isentar o agente de pena.

Famigerada é a solução que envolve o direito penal na discussão da eutanásia. Não se tratam de despiciendos os princípios da fragmentariedade, ultima ratio, direito penal mínimo, para que sejam simplesmente preteridos e, em seu lugar, adotado um direito penal absolutista e do autor, que em nada reflete um estado democrático e social de direito.

Preliminarmente, é de se salientar que nem todo o medicamento utilizado pode retirar por completo a dor e sofrimento de um paciente que, muitas vezes, detém doença – o que reforça o argumento favorável – incurável; doenças em estágio terminal, que não comportam possibilidade de cura.

Deve ser levada em conta, ainda, a vontade do paciente que solicita a morte, baseada em uma autodeterminação e talante próprios. O ônus econômico sustentado por vítimas de doenças incuráveis e graves enfermidades, no carpir de seus tormentos, que retiram (em uma visão utilitarista) o espaço e oportunidade daqueles que tem possibilidade de cura é esforço em vão.

Uma das razões invocadas por aqueles que são contrários à eutanásia é a moral religiosa. Tirar a vida de outro ser é ato que atenta contra o homem e que, por isso, é pecado; seria uma intromissão nas leis de Deus. Preliminarmente, é de se referir que o Estado é laico e, portanto, não deve sofrer ingerências gnosiológicas que não estritamente racionais – não pode a religião, portanto, influenciar decisões jurídicas. Ademais, quem diz o que são as leis de deus? Deus confiou-a diretamente a quem? É a bíblia que diz o que é a lei de deus? Ora, talvez a bíblia proclame a superioridade da dignidade da pessoa humana. Talvez o homem interprete deus a seu bel prazer, como melhor o aprouver. Argumento dos mais falhos é aquele que invoca a crença.

Talvez a melhor das lições seja a de Pintos[27]:

“Si algun dia em corazon humano llegase a extinguirse totalmente toda llama de amor y solidariedad social, y en la mente del hombre no pudiese ya florecer el más menguado penacho de idealismo, para pensar en tales matanzas, maldigamos desde ya ese dia porque entonces si que la sociedad, no obstante su exuberancia de valores vitales e sociales, no estaria compuesta más que por muertos espirituales. Y esta sociedad así compuesta significaria el triunfo del más crudo materialismo, em que solo habria lugar para la moral científica que, al decir de Saligrú, es la moral de las hienas. Y aquella sentencia de Sêneca que afirma que el hombre ha de ser una cosa sagrada para el hombre, 'homo res homini sacra', quedaria suplantada por el selvático apotegma de Hobbes – 'homo homini lupus', el hombre es un lobo para el hombre.”

Já em 1996, com o projeto de lei nº 125/96, de relatoria do então ministro Gilvam Borges, tramitava no Congresso a possibilidade de legalização da eutanásia. A ideia era permitir a eutanásia, desde que uma junta de cinco médicos atestasse a inutilidade do sofrimento físico e psíquico do doente. O próprio paciente – ou, na impossibilidade, os parentes próximos –, teria que requisitar a eutanásia.

No mesmo sentido, o anteprojeto de Código Penal de 1998 (que acabou não saindo do papel) evolui muito nesta questão. A redação proposta, que incluía a eutanásia e a ortotanásia no artigo 121 do Código Penal, se dava da seguinte forma:

“Eutanásia

 § 3º – Se o autor do crime agiu por compaixão, a pedido da vítima, imputável e maior, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave:

 Pena – Reclusão, de três a seis anos.

Exclusão de ilicitude

§ 4º – Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.”

Punir-se-ia a eutanásia com pena de reclusão de três a seis anos (e, portanto, mais brandamente) e tornava a ortotanásia lícita, isenta de penalidade. Conforme já demonstrado, é ao que se propõe o anteprojeto do novo Código Penal, que, apesar de prever tipo próprio à eutanásia (e não incluí-la na estrutura do homicídio), busca um abrandamento da pena. Além disso, isenta o agente de pena quando praticada a ortotanásia, desde que nos moldes da lei.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisamos no presente estudo a implementação da eutanásia no ordenamento jurídico brasileiro a fim de normatizar sua prática e excluir as penalidades previstas em lei, adequando assim a legislação brasileira à necessidade de indivíduos que dela necessitam para acabar com sua árdua luta contra o sofrimento e as limitações.

Diante do exposto, fica evidenciado que é necessário debater de forma ingente a temática sugerida.  A possível implementação da eutanásia no ordenamento jurídico brasileiro é questão complexa que deve ser averiguada em suas consequências jurídicas e sociais. Deve-se levar em conta o sofrimento que muitos indivíduos enfrentam de forma desnecessária, pois não encontram amparo legal para tomar a decisão que lhes poupem da aflição. Questões morais e éticas e devem ser consideradas, porém, a autonomia da pessoa, o princípio constitucional da autodeterminação e o fim do sofrimento inútil são questões hierarquicamente superiores no interesse inerente do ser humano. A proposta apresentada deve ser analisada de forma pragmática, para que a situação em que muitos indivíduos se encontram, seja definida dignamente.

Ninguém pode decidir por outrem o que fazer com seu bem maior, e é intrínseco a cada um o direito de optar viver ou ceifar sua vida com a argumentação de que não suporta mais o sofrimento e as limitações advindas de eventual doença terminal.

Discutimos a implementação da eutanásia como instrumento normatizado em nosso sistema jurídico, examinamos as consequências de tal prática e elencamos argumentos para determinar sua utilização em casos específicos, com o devido amparo legal.

A partir da reflexão jurídico-social, julgo pertinente a discussão da utilização do procedimento da eutanásia em nosso país, visto que são numerosos os exemplos de indivíduos que são mantidos vivos contra a sua vontade, sujeitos que não são mais capazes de desfrutar plenamente de suas vidas, e que devido às normas jurídicas vigentes no Brasil, não possuem o direito de decidir sobre a continuidade ou não de sua existência e de seu sofrimento.

O ordenamento jurídico brasileiro já prevê a autonomia do paciente como um direito assegurado. Acredito que a evolução da sociedade caminha para que esta autonomia seja ampliada, pois devemos compreender que a vida é um direito, e não uma obrigação.

 

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WELZEL, Hans. Introducción a la Filosofia Del Derecho. Buenos Aires: Julio César Faira – Editor 2005.
 
Notas:
[1] Trabalho orientado pelo Prof. MsC. Prof. Msc. Péricles Antônio Fernandes Gonçalves, Professor do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande – FURG
[2] ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário acadêmico de direito. 1999, p. 329-330.
[3] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 1993, p. 318.
[4] STF – Pleno – MS nº 22.164/SP – Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I,17 nov. 1995,
p. 39.206
[5] ANGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 2006, p. 110.
[6] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 1999, p.289-90.
[7] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 1992, p.34.
[8] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 2005, p. 572.
[9] HERKENHOFF, João Batista. Curso de direitos humanos – gênese dos direitos humanos. 1994, p.256.
[10] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 2001, p.43.
[11] SILVA. José Afonso.  Aplicabilidade das normas constitucionais. 2000, p.109.
[12] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 2001, p. 62.
 
[13] CARVALHO, Gisele Mendes de. Aspectos jurídico-penais da eutanásia. 2001, p. 107-108.
[14] ENGEL, Eve-Marie. O desafio das biotécnicas para a ética e a Antropologia. 2004, p.221.
[15] DURANT, Guy. A bioética: natureza, princípios, objetivos. 1995, p. 13-14.
[16] ENGELHARDT JR, H. Tristam. Fundamentos da Bioética. 1998, p. 48.
[17] GOMES, Renata Raupp. TEIXEIRA, Larissa Solek. Eutanásia: o direito de morrer como um dilema bioético. 1998, p. 147.
[18] GOLDIM, José Roberto. Breve Histórico da Eutanásia. 2000.
[19] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 2009, p. 589.
[20]Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.
§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.
§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.
§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.
[21]BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos de personalidade e autonomia privada. 2005, p. 235.
[22]GOZZO, Débora. LIGIERA, Wilson Ricardo. Bioética e direitos fundamentais. 2012, p. 25.
[23] Art. 122 – Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:
Pena – reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.
Parágrafo único – A pena é duplicada:
I – se o crime é praticado por motivo egoístico;
II – se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.
[24] Código Penal do Uruguai de 1933, Capítulo III, artigo 37.
[25] CUNHA, Rogério Sanches. Direito penal: parte especial. 2012, p. 215.
[26] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 2010, p. 34.
[27] Apud HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 1958, p. 126.


Informações Sobre o Autor

André Luis Fernandes Marins

Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Rio Grande – FURG


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