A filosofia natural e a busca da felicidade: Epicurismo e Estoicismo e sua relação com o Ser

Resumo: Um objetivo intrínseco é humanidade é o questionar acerca das coisas com a qual convive e interage visando obter um conhecimento mais acertado sobre as origens de todos os elementos e as regras que os regem. É com fundamento em tal premissa que emergiu ainda na antiguidade clássica a chamada Filosofia Natural objetivando obter um conhecimento aprofundado sobre as causas primevas e os princípios que regem o mundo material em especial no que tange á essência dos entes o ser de todas as coisas corpóreas especialmente as animadas com destaque para o homem.

1 INTRODUÇÃO – Filosofia Natural

Um objetivo intrínseco à humanidade, é o questionar acerca das coisas com a qual convive e interage, visando obter um conhecimento mais acertado sobre as origens de todos os elementos, e as regras que os regem. É com fundamento em tal premissa, que emergiu, ainda na antiguidade clássica, a chamada Filosofia Natural, objetivando obter um conhecimento aprofundado sobre as causas primevas e os princípios que regem o mundo material, em especial no que tange à essência dos entes – o ‘ser’ – de todas as coisas corpóreas, especialmente as animadas, com destaque para o homem.

A Filosofia da Natureza, diferentemente das Ciências Naturais, não almejava a percepção, descrição, conhecimento e explicação acerca dos fenômenos da natureza; mas, em contrário, busca a percepção da essência dos seres, dos objetos e dos entes; tendo obtido diversas denominações em função do seu objeto de estudo, motivo pelo qual muitas vezes se vê confundida com a ciência, posto que foi chamada de ‘física’ por Aristóteles, por voltar seu estudo para os seres físicos; e Christian Wolff a chamou de ‘cosmologia’ por estudar o aspecto físico do cosmo; sendo que a Filosofia Natural é a pedra angular da Metafísica, da Teologia Natural e da Antropologia Filosófica, posto que estas fundamentam-se nas premissas da Filosofia Natural, de modo tal que partem do ‘objeto’, do ‘ser visível’, do ‘ente material’, para depois permearem no conceito de ‘ser’ propriamente dito, no conhecimento do homem, em sua anima – alma –, no pensamento humano, e na própria existência – ou não – da divindade. Faz-se friso que a separação da Filosofia Natural da Ciência Natural presentemente conhecida se deu muito posteriormente da realidade da história helênica, sendo que teve notável influência de Roger Bacon (1214 – 1294), que foi o precursor do rumo que tomaria a Filosofia Natural séculos mais tarde, ao se adotar uma vertente experimentalista-científico, se destacou do tronco filosófico ao qual se vinculava, e tornando-se uma ciência autônoma e regida por preceitos científicos e não mais filosóficos ou cogitatórios, ao que Manuel Morente (Apud MORENTE, 1980) disse “[…] uma ciência se desprendeu do velho tronco da filosofia quando conseguiu cirscunscrever um pedaço no imenso âmbito da realidade, defini-lo perfeitamente e dedicar exclusivamente sua atenção a essa parte, a esse aspecto da realidade”.

As origens da Filosofia Natural remontam à Grécia antiga, na filosofia pré-socrática adotada pelos filósofos pluralistas, tendo seu consolidar com o atomismo de Leucipo e Demócrito de Abdera; muito embora seus esboços já se revelassem muito antes com Empédocles de Agrigento – que inovou a filosofia jônica com a identificação do arké[1] –Parmênides, Heráclito, e Anaxágoras.

Com o atomismo de Demócrito, nota-se que a constituição do ‘ser’ é definida como sendo os ‘átomos’, que, embora sejam partículas materiais, somente poderiam ser perceptíveis mediante o emprego da razão, e detinham uma diferença quantitativa e não qualitativa, variando por sua dimensão, peso e forma, e característicos por se encontrar em um moto continuo no vácuo, o que possibilita choques e agrupamentos que, por sua vez, geram os mais diversos corpos, sendo que o vácuo, o ‘não-ser’, é tão imprescindível quanto os átomos o ‘ser’, para a constituição deste, posto que é ele que possibilita a mobilidade destes, que, por sua vez, ocasiona nas combinações que geram os corpos, que eram tidos como o requisito para o ‘ser’ que era o elemento capaz de ‘pensar’. O pensamento de Demócrito leva a um questionar de um princípio ordenador do universo, posto que sua teoria atomicista inaugura o modelo mecanicista da natureza, ao afirmar que o universo não obedece a uma força organizadora inteligente, como apregoado pelos seus predecessores, com especial enlevo para Anaxágoras de Clazomena; sendo que o existir seria, portanto, algo randômico, casual, e sem um propósito prévio ou uma ordenança de alguma força superior, mas sendo pura e simplesmente uma série de ‘acidentes’.

A busca do homem pelo conhecimento e pelo saber, ocasionaram na busca pela origem do ‘ser’, tanto no que tange a sua existência material e corpórea, quando ao seu pensamento e ao seu ‘ser interior’; sendo que o conhecimento, segundo a Filosofia Natural de Demócrito, também encontra lastro nos átomos, sua combinação e movimento, uma vez que a imagem e o contato com os átomos produz nas pessoas sensações diversas, cuja percepção se dá por meio dos sentidos. Neste diapasão, Marx (1988, p. 44) afirma que “esse modo cético, inseguro e eternamente contraditório do próprio Demócrito, só se desenvolve mais amplamente no modo como se determina a relação do átomo e mundo que aparece aos sentidos”.

Todavia, deixando de lado as considerações acerca do ser material apregoado pela Filosofia Natural, tem-se que a busca pelo conhecimento permeia em elementos que transcendem o campo físico, mas que dele dependem, ao menos em princípio. Assim, nota-se, por exemplo, que o conhecimento ainda é limitado, e depende das circunstâncias das interações, e das pré-compreensões que compõe o horizonte histórico da pessoa/intérprete, sendo que tais elementos constituem o substrato para o conhecimento, que, por sua vez, não consubstancia-se em um critério incontestável para que se possa definir e precisar a verdade ou a falsidade. Neste diapasão, tem-se que a mera observação e experimentação dos fenômenos físicos não configura elemento capaz de se traçar a realidade das coisas, devendo haver um trabalho a nível mental, que permeia o mundo inteligível (eidos) proposto por Platão, bem como o emprego de uma lógica aristotélica, a fim de se traçar os esboços do mundo inteligível com base nas experiências do mundo sensível, para que se possa definir, in facto, a verdade e a falsidade das coisas, pensamentos e ações[2]. Nesta feita, pode-se chegar a um conhecimento  mais aprofundado da realidade mediante o emprego do conhecimento racional que constitui a ferramenta mais sensível do ser humano na interação com os demais elementos, possibilitando distinguir a aparência da realidade.

Deixando de lado as considerações acerca do ser material, o próprio Demócrito permeia na essência do ser, ao analisar o que vem a ser a ética, afirmando que esta não se vincula com concepções físicas, mas, em essência se correlaciona com a nobreza que o homem pode manifestar, sendo que, em seu evoluir, o mais nobre bem que o homem pode obter é a felicidade. É nesse espectro que se deve inquirir sobre a felicidade, devendo se obter uma compreensão desta a um nível aprofundado e de aplicação prática; posto que conforme o próprio Demócrito, a felicidade não está no possuir de coisas, ou na riqueza – sobretudo na material –, mas, em contrário, encontra abrigo apenas na alma. No mesmo feudo, Demócrito aborda ainda, o papel da Justiça e da Razão como elementos essenciais à obtenção da felicidade, posto que é através destes elementos que se supera o medo da morte, que se rechaçam os excessos que perturbam a alma humana.

Assim, é imperioso se enveredar pelas sendas mais brumosas que se prestam ao estudo da felicidade, percorrendo as veredas do epicurismo e do estoicismo.

Ao se lançar entendimento sobre a doutrina de Demócrito, nota-se que o mesmo afirma, também, que a felicidade não se atrela ao prazer, posto que esse é temporário e mutável, sendo essencialmente passageiro, enquanto que a felicidade é duradoura e mais profunda; sendo que se atrela à alma e essência humana.

2 O EPICURISMO E O ESTOICISMO E SUA RELAÇÃO COM O SER

O epicurismo é uma escola filosófica fundada por Epicuro (341 – 271 a.C.), sendo que defendia a busca do prazer moderado como de forma de se atingir um estado de tranquilidade (ataraxia) e de libertação do medo, assim como a ausência de sofrimento (aponia) – sofrimento este tanto corporal quanto psicológico –; sendo que é através do conhecimento do funcionamento do mundo e da limitação dos desejos que se constitui a felicidade na sua forma mais elevada.

Mister salientar que o epicurismo não se confunde com o hedonismo, posto que deste se difere não apenas por visar a felicidade e o prazer duradouro – como a boa conversa, a música e a contemplação das artes – em detrimento dos prazeres imediatos – advindo da explosão das paixões e que resultam em dor e sofrimento –, mas também por almejar a ausência de dor – física, emocional e psicológica – como o maior de todos os prazeres, além de apregoar que a forma mais acertada de se obter a felicidade é mediante uma vida simples; enquanto que o hedonismo tem no prazer ‘lato senso’, como único valor intrínseco.

Assim sendo, observa-se que, segundo o epicurismo, para que se possa obter a felicidade é necessário que se viva com prazer, de forma tal que a premissa do ser humano deve ser obter o prazer sempre que possível; sendo que tal prazer deve ser sempre – ou quase sempre –, os prazeres duradouros; e, para se obter tais prazeres e a felicidade que deles advém deve-se dominar os ditos prazeres exagerados das paixões, como, e.g., os medos, os apegos, a cobiça, e a inveja. Com tal domínio, obtém-se a tão almejada ataraxia, que é o sublime estado de ausência de dor, da quietude, serenidade e imperturbabilidade da alma, sendo que a felicidade se dá ao passo que não se tem dor, que é a expressão última do prazer, sendo que felicidade é sentir prazer, e prazer duradouro, que permeia a essência humana, e transmuta o homem de seu interior para o exterior – e não os prazeres efêmeros que se dão do exterior tentando alcançar o interior, onde chegam apenas como uma brisa que não causa alento, mas que desperta maior dor e sofrimento –. Deve-se, também, para se obter a felicidade e o prazer, proceder ao exercício de outras virtudes humanas como a coragem, a generosidade, a cortesia, e, sobretudo, a justiça.

Nesta feita, face à filosofia epicurista, nota-se que o prazer tem sua expressão final com a ‘ausência de dor’, e esta pode ser obtida pelo desfrute dos prazeres mais esplêndidos. Contudo, para se obter o pleno gozo de tais prazeres a fim de se vivenciar a ataraxia, deve-se eliminar as causas de angustias e preocupações, como as superstições, ao temor religioso – uma vez que a felicidade é incompatível com o pavor de que forças metafísicas, espirituais ou divinas interferisse na vida das pessoas –. Assim, Epicuro defende que o sofrimento pode ser evitado com a compreensão de que o universo é inteiramente constituído de matéria – átomos –, inclusive a alma humana, e que todo e qualquer fenômeno pode ser explicado e/ou provocado pelo movimento aleatório dos átomos, cujas forças são indiferentes ao destino humano; ponto em que a filosofia de Epicuro de adequa às proposições filosóficas de Demócrito quanto às teorias atomistas e mecanicistas. Assim, o homem se afastaria de sua maior causa de inquietação, infelicidade e medo, o medo da morte. Neste sentido, extrai-se da Carta Sobre a Felicidade (a Meneceu) ( EPICURO, 2002, p. 27-32):

“Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo o bem e todo o mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer-lhe acrescentar tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade. Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado. Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males da vida. O sábio porém não desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele viver não é um fardo e não-viver não é um mal.”

Dentre os prazeres, Epicuro (2002) os classifica em naturais e inúteis; sendo que aqueles se subdividem, ainda, em necessários, e meramente naturais. Os desejos necessários se manifestam por serem fundamentais para a felicidade, e/ou para o bem-estar corporal, e/ou para a própria vida. Assim, o conhecimento seguro dos desejos permite direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, uma vez que esta é a razão de se ter uma vida feliz e de se praticar toda e qualquer ação, afastar-se da dor e do medo. Sendo, portanto, o prazer, o princípio, o objetivo e o fim de uma vida feliz.

Assim, nota-se que as ações humanas são imprescindíveis para a obtenção de uma prudência racional, que se aproxima da eticidade almejada, e que se relaciona com o ser, uma vez que possibilita a obtenção da felicidade que é a premissa máxima do ser humano, e sua razão de existir. Deste modo, deve-se sempre buscar a felicidade, mediante a satisfação dos desejos inerentes à condição humana, com especial atenção para o resultado daquela satisfação, que não deve ser hedônica, transitória e superficial, devendo, as ações e condutas humanas visar sempre a satisfação dos desejos mais íntimos e profundos, cuja satisfação há de interagir com o âmago do ser, aprimorando este e lhe concedendo a derradeira felicidade ante a concessão/obtenção da ausência de dor.

Em outra vertente tem-se o estoicismo proposto por Zenão de Cício (335 – 264 a.C), sendo que para esta escola, a felicidade advém da aceitação, ou seja, do amor ao destino. Para os estoicistas, a existência era composta da matéria, que seria o princípio passivo, e do logos, o princípio ativo, racional e inteligente; sendo que este último permeia, anima, conecta e coordena todas as partes, sendo chamado de ‘Providência’, podendo ser considerado como um arquétipo da divindade. O logos é imanente, permeando a matéria e com ela se confundindo, não tendo um caráter transcendental, mas sendo integrante íntimo e indissociável da matéria.

Nesta visão, tudo que existe e acontece tem uma razão de ser, sendo que integra a ‘inteligência divina’, sendo necessário e justificável, estando, todos e quaisquer eventos organicamente predeterminados – destino –; de tal forma que tudo o que ocorre é bom, por atender a um propósito maior que contribui para a ordem do todo, e que mantém os desígnios cósmicos de todos os seres, sendo que o bem sempre é alcançado com o que ocorre. Deste modo, o estoicismo apregoa que a felicidade reside em aceitar todos os fatos, não lhe opondo resistência ou menosprezo, uma vez que eles são naturalmente bons – ainda que individualmente este bem não se constate – pois já estão determinados, e visam o bem da universalidade (cosmo).

Tendo por parâmetro este horizonte, nota-se que segundo o estoicismo ‘felicidade’ não pode ser compreendida como a satisfação dos desejos e vontades, uma vez que bastaria que um desejo ou vontade não fosse satisfeito para que se tivesse a infelicidade. Assim, interpõe-se um dividir de todo e qualquer ato/fenômeno em ‘dependentes’ e ‘não-dependentes’. Os atos ou fenômenos ‘dependentes’ são aqueles que dependem do indivíduo para ocorrerem, como, por exemplo, o realizar de um bom trabalho, a generosidade, a liberalidade, etc. Já os atos ‘não-dependentes’ são aqueles que independem da vontade e/ou da atuação do indivíduo, como, por exemplo, agradar ou não uma pessoa, ganhar ou não um prêmio, conquistar ou não alguém.

Assim, uma vez que existe uma ordem cósmica a reger as coisas, sendo que a ocorrência de determinado resultado independe da ação e/ou vontade das pessoas, não devem, tais atos e resultados serem motivo de aflição, dor ou infelicidade, devendo, as pessoas, aceitarem os acontecimentos, e aproveitarem a nesga de liberdade que lhes é facultada para se garantir a felicidade, mediante o construir desta por meio do uso da vontade. Neste espectro, as coisas se dividem, para os estóicos em: boas – aquelas cuja ocorrência depende da atuação das pessoas, e que se deve buscar para ser feliz, como, v.g., a prudência, coragem e justiça–; más – aquelas que dependem da atuação das pessoas para acontecerem, mas que devem ser evitadas, posto que acarretam em dor e sofrimento, como os vícios e paixões –; e, ainda, as indiferentes, que são aquelas que independem da atuação ou vontade das pessoas para ocorrerem, e, portanto, não devem ser objeto de preocupação, como, por exemplo, a morte, a riqueza ou pobreza, e a saúde ou doença.

Desta forma, a infelicidade nada mas é que a revolta e preocupação quanto às coisas indiferentes, e/ou o não evitar das coisas más; uma vez que tais condutas levam a juízos errôneos e opiniões equivocadas que culminam por despertarem paixões como a injustiça, a covardia, a raiva, a libertinagem, a avareza, etc. Portanto, para ser feliz, deve-se aceitar o que não se pode mudar, e se abster das coisas más, ante um controle dos pensamentos e ações da vontade. Neste sentido, anotam-se as palavras de Manuel Epiteto (Apud COTRIN; FERNANDES, 2010, p. 23):

“Lembra-te que não é nem aquele que te diz injúrias nem aquele que te bate, quem te ultraja, mas sim a opinião que tens deles, e que te faz olhá-los como gente por quem és ultrajado. Quando alguém te magoa ou te irrita, saiba que não é aquele homem que te irrita, mas sim a tua opinião. Esforça-te, portanto, acima de tudo, para não te deixar levar por tua imaginação.”

Ora, em uma análise superficial, pode-se ser direcionado ao equívoco de que ora uma, ora outra corrente filosófica se encontra acertada em sua proposição. Contudo, ao se proceder a uma análise mais acurada, o que se evidencia é que cada uma delas têm seus pontos de exatidão e de equívoco. Logo, a fim de se traçar um preceito de felicidade, deve-se atrelar elementos de ambas as escolas filosóficas, de forma harmônica.

Neste contexto, deve-se sempre buscar a felicidade naquilo que é possível, visando a ataraxia e a aponia epicurista, ao se desfrutar e satisfazer dos desejos que podem ser objeto de satisfação. Por outro lado, naquilo que a vontade e as ações não podem alterar a realidade fática, não se deve se martirizar com isso, devendo imperar uma apatia estóica, com a aceitação do fato. Assim, deve-se buscar a felicidade, e aceitar aquilo que não pode ser mudado, devendo, contudo, sempre se ter uma filtragem ético-moral e racional em tal distinção, para se instituir o que pode ou não ser alterado pela pessoa na busca de sua felicidade, e o que deve, de fato, ser aceito. Daí emerge parte da crítica de Marx (1988, p. 40), ao afirmar que “os momentos da autoconsciência são absolutos, que cada momento representa uma existência particular e que esses sistemas tomados em seu conjunto configuram a construção completa da autoconsciência”[3].

A RAZÃO E O ‘SER’

O ‘ser’, contudo, nota-se como mais complexo que a visão de Demócrito, para quem o ‘ser’ é unicamente material; uma vez que o mesmo, apresenta muitas divisões, conforme proposto por Georg Wilhelm Friedrich Hegel, em sua consideração sobre a Filosofia da Natureza, a Filosofia do Espírito e da Ciência Lógica, ao instituir os elementos do Espírito Subjetivo, do Espírito Objetivo, e do Espírito Absoluto, com a propositura do ‘Sein’ e do ‘Dasein’.

O Espírito Subjetivo se compõe de Alma, Consciência e Mente. A Alma, por sua vez, apresenta três naturezas distintas, a Natural, onde imperam as qualidades físicas, as alienações e as sensações; a Sentimental, que é onde reside o sentimento de imediaticidade, e o hábito; e a Atual. A Consciência, se classifica em Particular, onde há o senso de consciência, a percepção, e a compreensão; De Si, onde existe o apetite, o desejo, a busca, a recognição, e a consciência universal de si; e a Razão. Já a Mente se classifica em Teorética, onde atêm-se a intuição e os pensamentos; Prática, de onde advém o impulso, a escolha, e o sentimento prático; e Livre, que é onde se manifesta a autorreflexidade prática, que é a eticidade consubstanciada na ‘vontade livre que se quer livre a si mesma’.

O Espírito Objetivo prima pelo ideal de Justiça e Direito, sendo que se divide em: Lei Abstrata, onde se manifesta a noção de certo e errado; a Moralidade da Consciência, onde vigora o propósito e a intenção; e a Ética Social.

Já o Espírito Absoluto se divide em Arte, Religião Revelada e Filosofia.

Assim, o ‘Ser’ apresenta complexidade ímpar, sendo que não pode ser simplificado a uma afirmação existencial meramente material, uma vez que transcende a sua própria natureza, motivo pelo qual o ‘Ser’ deve se vincular sempre à Regra Moral Fundamental Nº 7, qual seja, O Imperativo Categórico, que afirma:

“Age de tal modo que a máxima da tua vontade vontade possa valer sempre, e ao mesmo tempo, como princípio de uma legislação universal, pois mesmo que se a determinação das coisas, por meio das leis, constitui uma natureza, agir como se a máxima do nosso ato devesse tornar-se primacial no domínio da vontade representa lei universal da natureza.” (KANT, 2004, p. 33).

Assim, o ser, se completa ante a passagem do Espírito Subjetivo para o Espírito Objetivo, sendo que se tem um fim particular, qual seja, a preocupação com o Ser e com o Ser-Ai (Vir-a-Ser); que não é o ‘deixar de ser quem se é’, mas, ao mesmo tempo, é o preocupar com o ‘ser que se demonstra’ (Ser-Ai). Nota-se que o fim particular não se confunde com uma finalidade egoística, pois o fim particular busca uma meta, enquanto que o fim egoísta se volta apenas para a ipseidade[4] (aquilo que se é e que sempre se será).

Nota-se, portanto, que a existência pressupõe a vida, e esta a liberdade, que é empregada na busca da felicidade do ser. Desta forma, é preciso primeiramente se formar compreensão sobre o que vem a ser a Vida, para que se possa estabelecer uma compreensão sobre os demais elementos do ser.

Kant (2004) apresenta uma indefectível noção de vida no que tange ao pensamento filosófico que permeia o ‘Ser’, qual seja:

“Vida é a faculdade que possui um ser de agir segunda as leis da faculdade de desejar. A faculdade de desejar é a faculdade desse mesmo ser, de ser, por meio de suas representações, causa da realidade dos objetos dessas representações. Prazer é a representação da coincidência do objeto ou da ação com as condições subjetivas da vida, isto é, com a faculdade da causalidade de uma representação em consideração da realidade do seu objeto (ou da determinação das forças do sujeito para a ação de produzi-lo).”

Frente a uma análise prática, nota-se que a vida gera e traz liberdade, sendo que esta não é escolha, mas elemento natural e essencial da vida, sendo indissociável desta. Logo, a liberdade constitui um fardo, que é a necessidade; sendo que a liberdade gera a liberalidade que se tem para se escolher toda e qualquer coisa, tendo por função precípua o zelo e manutenção da vida, e modo tal que a liberdade não é livre, uma vez que se vincula à vida pelo gozo da vontade para satisfazer as necessidades que a vida e o ‘ser’ impõem; sendo que o arbítrio nada mais é que uma circunstância contingencial que proíbe ou libera a necessidade natural contingencial.

Observa-se, portanto, que o ‘Ser’ depende da razão para existir de pleno, tendo, portanto, uma superação de seu caráter meramente material, ainda que se lhe apliquem as regras estóicas e epicuristas para a obtenção da felicidade almejada. Assim, da mesma forma que o átomo se desvincula da linha reta proposta por Demócrito, também o epicurismo e o estoicismo se desviam de sua noção formal para se adequarem ao imperativo categórico do ‘ser’, como salienta Marx (1988, p. 59):

“da mesma maneira que o átomo se libera de sua existência relativa (a linha reta) abstraindo-se e desviando-se dela, assim também se desvia toda a filosofia epicurista em geral da existência limitadora, onde o conceito de singularidade abstrata, a substância e a negação de toda relação de respeito do outro deve ser apresentada em sua existência. A finalidade da ação é o abstrair-se, o desviar-se da dor e do erro: a ataraxia. […] A singularidade imediata só é realizada quando ela se reporta apenas a outra coisa que não a ela mesma, mesmo se essa outra coisa se apresente sob a forma de uma existência imediata. O homem só deixa de ser um produto da natureza no momento em que a outra coisa à qual ele se reporta não tem uma existência, mas é ela própria um homem singular, ainda que ele não seja ainda espírito. Mas, pelo fato de que o homem enquanto tal torna-se o seu próprio e único objeto real, ele deve ter rompido, em si mesmo, com a sua existência relativa, a potência do desejo e da pura natureza.”

Lucrécio (Apud Collin, s.d.) afirma, ainda, refutando o estoicismo:

“Se os movimentos são sempre solidários, se um pensamento novo nasce sempre de um mais antigo segundo uma ordem inflexível e se, para a sua declinação, os átomos não tomam a iniciativa de um movimento que rompe com as leis do destino para impedir a sucessão infinita das causas, de onde vem esta liberdade concedida sobre a terra a tudo aquilo que respira, de onde vem esta vontade que se opõe aos destinos?”

CONCLUSÃO

O pensamento de Epicuro e de Demócrito constituíram as bases da tese doutoral de Marx, e se manifestam, na seara filosófica em geral, sobretudo, em razão de inteporem uma colocação acerca do ‘Ser’, e dos objetivos prementes deste, em especial no que tange à obtenção da felicidade tão cobiçada por todas as criaturas. Além disto há um imperativo de análise sobre a atuação da vontade, e do prazer nas ações do ‘Ser’ e a influência da razão neste processo.

É fato certo que o ‘Ser’ apresenta complexidade maior que a proposta por Demócrito, e que a felicidade almejada não é obtida tão somente com o adotar do epicurismo ou de seu ‘concorrente’, o estoicismo, mas talvez por um engajamento dinâmico e suplementar de ambos, alicerçado em um emprego da razão e da lógica na persecução dos objetivos pretendidos.

O ideal hegeliano proposto por Marx se revela acertado para se analisar as proposições da filosofia natural, posto que possibilita uma exegese fundada na razão kantiana, além de um direcionismo fundamental e complexo da interação humana com seus semelhantes e com o ambiente, na atuação e moldagem do ‘Ser’.

 

Referências
Epicuro. Carta da Felicidade (a Meneceu). São Paulo: UNESP, 2002.
COLLIN, Denis. Marx et Epicure: La thèse de doctorat dans la formation de la pensée de Karl Marx. Trad.: Rita de Cássia Mendes Pereira. s.l. s.d.
COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Saraiva, 2010.
KANT. Immanuel. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Edições e Publicações Brasil. Editora S.A., 1959. Versão digitalizada da obra, 2004.
MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Manual esquemático de filosofia. 3ª ed., São Paulo: LTr., 2006.
MARX, Karl. Diferenças entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. São Paulo: Bases, 1988.
MECA, Diego Sánchez. Teoría del Conocimiento. s.l.: Dykinson, s.d.
MORENTE, G. Garcia; Fundamentos de Filosofia. Editora Mestre Jou; 8a Edição; São Paulo, SP, 1980, p. 30.
SPINELLI, Miguel. Filósofos Pré-Socráticos. Primeiros mestres da filosofia e da ciência grega. 2ª ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2003;
______. A Noção de Archê no Contexto da Filosofia dos Pré-Socráticos. In: Revista Hypnos, PUC/São Paulo, v. 07, n. 08, 2002, pp. 72-92.
 
Notas:
[1] Neste sentido, arké, também chamada de arché (ἀρχή) pode ser entendida como uma pluralidade de princípios consubstanciados em um princípios primordial que deve estar presente em todos os momentos da existência de todas as coisas; no início, no desenvolvimento e no fim de tudo, sendo o princípio por meio do qual tudo vem a ser o que é. Diógenes de Apolônia explica sobre este princípio primevo que “[..] Todas as coisas são diferenciações de uma mesma coisa e são a mesma coisa. E isto é evidente. Porque se as coisas que são agora neste mundo – terra, água, ar e fogo e as outras coisas que se manifestam neste mundo -, se alguma destas coisas fosse diferente de qualquer outra, diferente em sua natureza própria e se não permanecesse a mesma coisa em suas muitas mudanças e diferenciações, então não poderiam as coisas, de nenhuma maneira, misturar-se umas as outras, nem fazer bem ou mal umas as outras, nem a planta poderia brotar da terra, nem um animal ou qualquer outra coisa vir a existência, se todas as coisas não fossem compostas de modo a serem as mesmas. Todas as coisas nascem, através de diferenciações, de uma mesma coisa, ora em uma forma, ora em outra, retomando sempre a mesma coisa”. A arché era diferente para as mais diversas escolas filosóficas, sendo que era o ‘número’ para os seguidores de Pitágoras de Samos “[…] o princípio das matemáticas é o princípio de todas as coisas […]”; o ‘apeíron’ – o ‘infinito’ como o princípio das coisas post que consideravam que o limitado não poderia ser a origem das coisas limitadas, devendo as coisas surgirem do infinito através de um processo de separação dos contrários – para os seguidores de Anaximandro de Mileto; era as ‘homeomerias’ – infinidade de partículas minúsculas, invisíveis a olho nu, que faziam com que ‘em tudo existisse um pouco de tudo’, sendo que, conforme Jostein Gaarder (1995),”se retiro uma célula da pele de meu dedo, o núcleo desta célula contém não apenas a descrição da minha pele [mas] em cada uma das células existe uma descrição detalhada da estrutura de todas as outras células do meu corpo [sendo que]  em cada uma das células existe, portanto, ‘um pouco de tudo’”, de modo que o todo está também na menor das partes, sendo que as homeomerias, ou ‘sementes invisíveis’, se diferiam entre si nas qualidades, sendo que delas surgem todas as coisas a depender das combinações diferentes das mais diversas homeomerias, com destaque para o fato de que as homeomerias preexistem na unidade originária do ser, sendo que seu processo de união ou separação se rege por um princípio ‘inteligente’, ‘puro’ e ‘autônomo’ que haveria de conhecer e dominar tudo, sendo o ‘intelecto’ (nous) que é o princípio ordenador do caos originário (noção predecessora do instituto do ‘deus’ aristotélico e do ‘demiurgo’ platônico), emergindo, daí, a noção de ‘ser’ e ‘devir’, sendo o ‘devir’o produto da união ou dispersão das homeomerias –para os adeptos do pensamento de Anaxágoras de Clazomena; e o ‘átomo’ – partículas eternas, imutáveis e indivisíveis que compunham todas as coisas, e eram a essência das coisas, sendo que estes existiam no vazio, sendo que tais ‘átomos’ eram irregulares e podiam ser combinados para dar origem aos corpos mais diversos –.

[2] Neste sentido tem-se como certos os dizeres: “Cada objeto del mundo sensible es una sustancia compuesta de materia (hyle) conformada por una forma (eidos). El entendimiento abstrae esa forma o eidos inherente a una determinada clase o conjunto de seres. De modo que las formas no existen separadas del mundo sensible, sino que es sólo el entendimiento el que hace de ellas una consideración separada. […] El gran esfuerzo metafísico de Aristóteles está, pues, en volver a unir lo universal e inmutable, desde el punto de vista metafísico, con lo concreto y cambiante del mundo fenoménico. Su solución consiste en afirmar que, siendo lo universal real, sólo existe en lo concreto, y que, a su vez, lo concreto existe como tal porque realiza una esencia absoluta.” (MECA, s.d., p. 86).

[3] Salienta-se que o termo ‘autoconsciência’ foi proposto por Descartes, e se baseia na ideia de um sujeito autônomo que, baseado única e exclusivamente na própria racionalidade reconhece a si mesmo como ser cognoscente; o que vincula-se ao pensamento de Hegel ao transcender para a Fenomologia do Espírito (Arte, Religião e Espírito Absoluto).

[4] ‘Parte de mim que permanece imutável, malgrado o tempo’.


Informações Sobre o Autor

Guilherme Fortes Monteiro de Castro

Graduação em Direito pela Fundação Universidade de Itaúna, FUIT, Brasil; Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires, UBA, Argentina. Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-Minas; Pós-Graduado em Direito do Trabalho pela Fundação Getúlio Vargas – FGV; Advogado


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