Resumo: este artigo critica o processo de formação da teoria federalista nacional, de autoria de Rui Barbosa. Busca-se analisar alguns dos argumentos empregados pelo autor em sua obra Queda do Império para defender a federação como melhor forma de Estado para o Brasil. Dessa análise, utilizando-se como critério metodológico para avaliação o pragmatismo político e jurídico de John Dewey, passa-se à crítica específica acerca do modelo teórico do federalismo nacional, concluindo-se pelo formalismo e pelo idealismo da teoria de Rui Barbosa.
Palavras-chave: Retórica. Crítica Pragmatista. John Dewey. Federalismo. Rui Barbosa.
Abstract: This article criticizes the process of forming the national federalist theory, written by Rui Barbosa. It seeks to analyze some of the arguments, used by the author in his book Queda do Império, to defend the federation as the best form to organize the brazilian State. From this analysis, using as methodological criterion for evaluation the political and legal pragmatism of John Dewey, the work makes the specific criticism about the theoretical model of the national federalism, concluding that the federal theory of Rui Barbosa is formalist and idealist.
Keywords: Rhetoric. Pragmatistic Criticism. John Dewey. Federalism. Rui Barbosa.
Sumário: Introdução. 1. John Dewey e seu método de investigação das noções de democracia e de Estado. O pragmatismo como forma de superação da dicotomia “indivíduo-sociedade”. 2. A construção do Estado liberal federalista brasileiro por meio do projeto juridicista[1] de Rui Barbosa: uma democracia produzida de cima para baixo. Conclusão. Referências.
Introdução: o método pragmático de John Dewey enquanto marco balizador do caminho para uma análise crítica do projeto democrático de Rui Barbosa.
A segunda metade do séc. XIX no Brasil marca um período de busca por uma identidade nacional no que concerne à formação político-jurídica de um Estado realmente brasileiro, autônomo em relação às ainda marcantes influências portuguesas. Nesse contexto, vivenciando-se um forte impulso econômico proporcionado pela cultura do café, o ritmo de vida no País transforma-se: as posturas solenes e as atitudes contraídas vão sendo paulatinamente eliminadas do tecido social. Isso porque, a liturgia típica da sociedade estamental tornava-se incompatível com o paradigma de velocidade imprimido pela incipiente industrialização[2], o qual irá caracterizar a passagem para a sociedade de classes que começa a se esboçar. Inicia-se, então, a quebra do sistema de mobilidade praticamente inexistente e de hierarquização rígida entre os diversos setores sociais. A elite brasileira torna-se mais diversificada, e o País, ansiando também a descolonização intelectual, liberta-se progressivamente das amarras que ainda o prendiam ao antigo colonizador. Além disso, problemas sociais como a questão dos escravos e o debate acerca das eleições direitas foram temas cuja discussão ultrapassou as barreiras do que até então se entendia como espaço público e atingiu diversos setores da sociedade. Pode-se, enfim, dizer que esse é o momento do nascimento da política moderna no Brasil[3].
Uma das figuras de maior destaque nesse momento histórico nacional foi Rui Barbosa, parlamentar, jurista e jornalista que se engajou nas principais questões sociais de sua época e cujo pensamento é marcado pela influência liberal-democrática inglesa e, posteriormente, norte-americana. Tendo participado ativamente dos processos de derrubada do Império e de constituição da República e sido o revisor do projeto da Constituição de 1891 e senador constituinte eleito pelo Estado da Bahia[4], Rui Barbosa conseguiu tornar vitorioso, por meio da positivação, seu projeto político embasado na noção de que a racionalidade e a estabilidade do novo Estado seriam garantidas pelo direito e de que as liberdades individuais e a democracia seriam um produto natural da submissão de todos à lei. Percebe-se, então, a relevância do estudo de tal proposta democrática para o melhor conhecimento do passado político-jurídico nacional, cujos reflexos se fazem presentes até hoje na sociedade brasileira[5]. Também se justifica a eleição de Rui Barbosa como marco teórico desse período.
Por outro lado, a análise do projeto político normativista de Rui Barbosa será realizada com base na concepção de democracia formulada por John Dewey. Tal autor, vinculado ao pragmatismo norte-americano, tem sua obra fortemente marcada por investigações em torno de questões políticas e sociais. Esse engajamento político-social confere ao pragmatismo de Dewey contornos mais ético-humanistas sem, porém, o desviar das preocupações eminentemente práticas típicas dessa corrente de pensamento. Enquanto método investigativo voltado para a ação, o pragmatismo caracteriza-se pela superação das perspectivas racionalista e empirista tradicionais, ou seja, pela rejeição aos dualismos[6]. É justamente esse método pragmático engajado de Dewey que servirá como caminho, em virtude da proximidade temática com o objeto deste artigo, para a apreciação crítica o projeto democrático de Rui Barbosa.
O objetivo do artigo é, assim, poder melhor avaliar o processo de democratização do Brasil ocorrido na segunda metade do séc. XIX, partindo-se das consequências práticas geradas no tecido social brasileiro de então pela adoção da proposta ruiana de Estado Democrático Federal. Nessa empreitada, toma-se o método deweyano como guia. Inicialmente, apresentar-se-á a concepção de democracia formulada por John Dewey, momento no qual serão destacados os pontos de seu método de investigação pragmática fundamentais para as análises posteriores. Em seguida, o modelo democrático de Rui Barbosa e seus reflexos na sociedade brasileira desse período serão examinados para, ao final, apresentar-se uma análise crítica do projeto ruiano.
1. John Dewey e seu método de investigação das noções de democracia e de Estado. O pragmatismo como forma de superação da dicotomia “indivíduo-sociedade”.
Perseguindo esse objetivo de poder melhor avaliar o resultado da positivação do projeto político-democrático normativista de Rui Barbosa, torna-se necessário analisar as bases de sustentação do método pragmático proposto por John Dewey para a formulação de uma teoria sobre a democracia que fosse vinculada à realidade prática da sociedade, afastando-se de uma simples teorização geral e abstrata. Destaque-se primeiramente, porém, que a proposta democrática deweyana não é aqui tomada como verdade inconteste, modelo universalmente válido ou padrão para aferição da “coerência” de outras teorias acerca da democracia. Muito pelo contrário, partindo-se do pressuposto de que a discussão crítica do tema “democracia” faz sentido somente quando realizada dentro do contexto histórico, cultural e geográfico próprio de uma sociedade específica[7], percebe-se que muitas das ideais defendidas pelo autor nas obras Freedom and Culture e The Public and its Problems, as quais embasam os argumentos desenvolvidos no presente artigo, não são aplicáveis aos contextos político, econômico, social e cultural do Brasil do final do séc. XIX. Entretanto, o método de investigação desenvolvido por Dewey, ao propor análises próximas da realidade prática e livres de concepções teóricas monistas, as quais levam à desconsideração de diversos outros fatores que interagem para a produção da democracia, apresenta-se bastante adequado para o fim aqui proposto, qual seja: realizar uma análise crítica do projeto democrático de Rui Barbosa de modo o mais neutral possível. Isso porque, tal método permite ao pesquisador observar as reais consequências geradas pela teoria na prática, desvinculando-se de preconceitos teóricos os quais predeterminariam o caminho a ser perseguido. Daí a maior neutralidade.
Por outro lado, Dewey não nega a importância da teorização e da construção de ideias: sem elas e, sobretudo, sem sua pluralidade as pesquisas empíricas não podem trabalhar com hipóteses, as quais são a chave para o desenvolvimento criativo de abduções[8]. Assim, o método deweyano se apresenta mais uma vez bastante vantajoso, visto que concilia investigação prática e teórica. Passe-se, então, ao exame dos elementos constitutivos do método pragmático deweyano.
Dewey destaca em ambas as obras já mencionadas três pontos em comum, os quais são apresentados como pressupostos metodológicos para uma análise mais profunda da democracia dentro do contexto cultural de uma comunidade específica. O método por ele apresentado preocupa-se em evitar como caminho qualquer perspectiva dicotômica, visto que ela elimina da observação diversos fatores importantes, na medida em que foca suas análises de maneira absoluta ora num ponto, ora em outro (monismo).
O primeiro passo metodológico destaca a necessidade de superação do abismo entre teoria e prática, entre as doutrinas e os fatos a serem analisados. Ao ressaltar a importância de se conhecer os resultados empiricamente perceptíveis do processo analisado, Dewey defende que qualquer investigação, sobretudo a relacionada ao fenômeno social de formação de uma comunidade e de consequente desenvolvimento da democracia, deve buscar interagir com a prática. Isso, para que as conclusões não sejam meras abstrações desconectadas da realidade, o que torna a teorização estéril. Também para se evitar a busca por uma causa originária do fenômeno investigado, perdendo-se o foco do estudo, o qual termina resvalando numa procura, sem sentido, por justificativas últimas, localizadas fora da experiência sensível. O método deweyano foge, então, do causalismo e, consequentemente, da metafísica. Como imunização metodológica contra esses dois reducionismos teóricos, propõe-se o emprego de um método crítico, por meio do qual se desenvolva uma teoria preocupada em examinar as consequências dos fatos analisados, descrevendo-os como são, e não tentando fixar um ponto de partida ideal e genérico, a partir do qual a realidade deve ser prescrita e, pior, constrangida até adequar-se ao modelo previamente estabelecido no plano das teorizações abstratas. Propõe-se, enfim, um estudo pelo qual se parta do que é, e não do que deve ser, tornando-se a teorização adequada às contingências de cada caso concreto analisado, único e irrepetível, e evitando-se a construção de “fórmulas mágicas”, as quais cegam o pesquisador[9]. Consequentemente, ao se querer avaliar propriamente a questão da democracia e da liberdade em sociedade, deve-se partir de outros tipos de questionamento, que não os somente abstratos. Supera-se, assim, a falácia de que condições democráticas seriam mantidas automaticamente, como que por uma força intrínseca à natureza do ser humano, e de que elas poderiam, pois, ser garantidas por meio da simples positivação de prescrições nas constituições dos Estados[10].
Como decorrência dessas observações, chega-se ao segundo pressuposto metodológico para uma análise pragmática da democracia: a rejeição a universalismos. Ao libertar-se de preocupações teóricas estéreis e metafísicas, o pesquisador evitar cair no erro das generalizações em termos absolutos. O risco dessas universalizações é que a teoria passa a ser construída sem considerar a realidade nem os resultados práticos que tal construção abstrata pode gerar no “plano dos fatos”: elege-se um fator como “O” elemento-chave do estudo e ignora-se a historicidade, os contextos cultural e social dentro dos quais esse fator é gerado. Por conseguinte, produz-se uma análise simplista, monista (one-sided simplification), a qual pretende apresentar de forma imutável algo contingente, mutável. São os absolutismos românticos e idealistas rejeitados pelo autor, que constituem muito mais um slogan de uma classe específica e são frequentemente opiniões pessoais travestidas em linguagem intelectual[11].
Nesse sentido, especificamente com relação à democracia, Dewey propõe que se vá buscar, na história de cada sociedade, a melhor forma para construção de uma organização política livre. Rejeita-se, consequentemente, a noção de que formas políticas abstratas incorporem um bem inquestionável, o qual se verificará na realidade como decorrência natural da mera aplicação do aparato teórico a elas vinculado. A formação de uma comunidade democrática, então, é vista como produto de um processo experimental, de tentativa e erro. Busca-se sempre rever os fins sociais que o grupo almeja e, a partir deles, readaptar as instituições políticas positivadas: não há formas prontas e acabadas, universais[12].
Como terceiro ponto metodológico, específico para a análise de questões sociais e diretamente decorrente do outros dois, tem-se a busca pela superação da dicotomia indivíduo-sociedade. Conforme já salientado, John Dewey rejeita qualquer visão monista, por ser reducionista, o que vai levá-lo a concluir que tanto a perspectiva teórica puramente individualista, percebendo a sociedade como entrave para o desenvolvimento do sujeito, quanto a socialista, a qual associa indivíduo ao egoísmo, problema a ser superado pela coletividade, levam o observador a cair nos erros metodológicos já mencionados: investigação metafísica, causalismo, universalismo e idealismo.
Assim, Dewey afirma que sujeito e coletividade não são obstáculos um ao outro: eles são formados e se formam reciprocamente, de maneira complementar, já que a sociedade não é um ente alheio aos indivíduos, pairando sobre eles, nem as relações entre sujeitos podem ser proporcionadas sem a construção de uma comunidade[13]. Nesse contexto de análise das interdependências entre indivíduo e sociedade, Dewey destaca a noção de interação, elemento-chave tanto de sua proposta democrática, quando da formação de uma comunidade, para além da mera associação. Para o autor, a natureza humana leva os homens a interagir, de uma forma ou de outra, entre si e com as condições do meio ambiente e a produzir uma cultura típica de um grupo em determinado contexto histórico. Essa noção de interação põe em xeque o individualismo, na medida em que o comportamento de cada um seria modificado por meio das conexões com o dos demais sujeitos, formando-se uma comunidade, que além da associação física, compartilha uma cultura e se organiza politicamente[14]. As questões da liberdade e da democracia são, assim, problemáticas ligadas à cooperação de individualidades e devem, pois, ser analisadas metodologicamente dentro do contexto cultural em que são experimentadas, âmbito no qual os diversos fatores em questão interagem. Supera-se a defesa da pura racionalidade como forma de garantia prévia e absoluta da liberdade do sujeito: a liberdade se forma de diferentes formas, conforme a estrutura social e cultural de uma comunidade[15].
Consequentemente, sendo a democracia baseada na interação, as relações linguísticas entre os seres humanos são indispensáveis para configuração de uma comunidade livre e organizada. Destacada, então, a importância da persuasão como método democrático de formação da opinião dentro da comunidade, o autor conclui que somente por meio do debate publicamente controlado podem os sujeitos determinar os fins sociais almejados, questionando-se sobre o tipo de sociedade que desejam construir, e, então, determinando os meios que serão utilizados para atingir tais fins[16]. Essa formação de uma opinião pública consciente de si mesma, capaz de identificar-se e, então, de organizar-se, é o pilar para a manutenção da utilidade e da integridade de um Estado democrático, na medida em que os resultados práticos que devem ser atingidos pelo agir estatal são sempre rediscutidos, reavaliados, criticados. É o processo de formação e fortalecimento do Público[17].
A partir desses três elementos metodológicos, percebe-se que a análise crítico-pragmática de um projeto democrático pressupõe a percepção da democracia como modo de vida[18], não devendo ser confundida com instituições, teorias, formas gerais e abstratas, normas ou qualquer outra maneira de análise que elimine suas contingências culturais e históricas e afaste-a da realidade prática na qual deve atuar para produzir os fins sociais publicamente debatidos pelo grupo. É a partir dessa tríade metodológica que se pretende analisar a proposta liberal-democrática de Rui Barbosa, objetivando-se criticá-la sob um ponto de vista pragmático.
2. A construção do Estado liberal federalista brasileiro por meio do projeto juridicista[19] de Rui Barbosa: uma democracia produzida de cima para baixo.
Antes de se analisar mais detidamente o projeto político-democrático ruiano, faz-se mister esclarecer o corte epistemológico realizado neste artigo. A atuação de Rui Barbosa no final do séc. XIX foi bastante intensa. O autor se engajou na reforma eleitoral, no processo de abolição da escravatura, na construção e defesa da teoria federalista nacional, e na defesa da República. Em todos esses momentos de seu agir politicamente estratégico, enquanto discurso minoritário em busca de positivação, fez-se presente uma característica comum: a perspectiva universalista normativista. Concebe-se o direito como ponto de partida para a discussão política e considera-se a existência de uma constituição liberal-democrática conferir por si só a legitimidade e a estabilidade que o Estado e a sociedade brasileiros precisavam[20]. É o projeto político-democrático juridicista. Entretanto, neste artigo, as investigações teóricas estarão voltadas para a atuação de Rui Barbosa somente no que diz respeito à federação. Isso porque, em torno da teoria federalista de Rui Barbosa, construída de maneira fragmentária, sobretudo, na obra Queda do Império, gravita o modelo de Estado liberal-democrático proposto pelo autor como forma de modernização política da Nação.
Seguindo a metodologia pragmática de Dewey, para a melhor compreensão da teoria de Rui Barbosa enquanto proposta político-democrática produzida em um contexto histórico-cultural, torna-se indispensável uma análise do momento econômico, social e político vivido no Brasil na segunda metade do séc. XIX. Isso, para que se possa posteriormente entender as eventuais interações entre a teoria ruiana e a realidade social na qual ele pretendia interferir.
O Brasil da segunda metade do séc. XIX apresenta-se como um país de grande desenvolvimento econômico proporcionado pela cultura do café. Essa prosperidade financeira, atrelada ao intenso intercâmbio econômico com a Inglaterra, gera a inserção do capitalismo moderno no contexto social do País e a racionalização do sistema de produção[21]. A fazenda adquire ares de empresa e, por conseguinte, o modo de produção escravocrata torna-se um entrave à maximização dos lucros.
Obviamente, tais transformações econômicas influiriam diretamente na estruturação das relações intersubjetivas. Como resultado desse processo de elevação do nível de vida no País, surgem tensões sociais e novas necessidades. Aumenta o interesse pela vida intelectual, por tecnologia e por capital, o que reflete no dinamismo da sociedade que começa a se formar. Surge uma nova classe, a dos profissionais liberais, a qual busca afirmar-se na cena nacional por meio de representação política. A modernização dos meios de comunicação permite que mais setores da sociedade tenham acesso à informação e tomem conhecimento dos principais acontecimentos do Império. A cidade começa a suplantar o campo. O mercado de trabalho incipiente proporciona o progressivo abandono dos padrões estritamente patrimoniais de organização da sociedade. Imprimi-se um novo paradigma de relações sociais, mais dinâmico, típico das sociedades de classes capitalistas, que vai paulatinamente desfazendo o sistema de mobilidade social praticamente inexistente característico do período colonial. É o já mencionado processo de busca pela identidade nacional: a nação brasileira quer agora descolonizar-se intelectualmente.
Nesse contexto, as novas elites, juntamente com as oligarquias provinciais tradicionais, as quais se mostram especialmente insatisfeitas com o governo após o processo de libertação do elemento servil, passam a exigir menor interferência nos domínios econômicos. A potencialização dos lucros e a detenção de autonomia suficiente para que cada província possa evoluir conforme seu ritmo próprio tornam-se os fins ambicionados. Isso porque uma administração centralizadora era incapaz de responder prontamente aos interesses tão heterogêneos de cada região. O governo imperial, porém, apresenta-se indiferente às modificações exigidas pela sociedade. Mostrando-se inerte, burocrática e esfacelada politicamente, a Coroa ignorava os anseios sociais e agia, ainda, pautado nos padrões estamentais do Brasil Colônia.
Entretanto, a mesma sociedade que exigia maior flexibilização administrativa ainda era marcada pela força do discurso centralizador, baseado nos antigos argumentos[22] de ser a federalização das províncias um risco à unidade política da nação e de estar o federalismo intrinsecamente vinculado à república, forma de governo tida como radical, posto ser associada ao governo popular. Assim, a linguagem de comando[23], ou seja, o discurso emitido pela elite governante e tido como verdade no seio social, consagrada pela política nacional e produzida pela aristocracia cafeicultora, ainda comunicava sobre a inconveniência da federação[24].
É influenciado por esse contexto sócio-cultural que Rui Barbosa vai produzir sua teoria federalista-democrática, marcada pela convicção de ser o direito capaz de constranger a política e a sociedade. A constituição de um novo Estado brasileiro, assim, seria a forma de atualizar o cenário político nacional, democratizando-o conforme os ditames do primado da lei e do respeito às liberdades individuais. Ao construir sua teoria federalista, Rui Barbosa defende a tese de ser a federação um sistema teórico adaptável a toda e qualquer forma de Estado. A federação, assim, seria uma forma ideal universalmente válida, capaz de constranger a realidade na qual ela seria inserida de forma a dinamizar o modelo estatal e torná-lo democrático e liberal. Isso porque, embasando-se na defesa intransigente dos direitos individuais e da democracia, o autor argumenta que o respeito à Constituição e aos direitos civis são o pressuposto fundamental de qualquer Estado, independentemente da forma de governo vigente e das contingências sociais. Ora, a federação justamente ao garantir ao povo, por meio da estrita repartição constitucional de competências, maior vinculação do governo à Constituição, produziria quase que automaticamente mais liberdade para os governados, democratizando o Estado. Seria ela, então, plenamente adaptável ao regime monarquista brasileiro, caracterizando-se como o mecanismo hábil para atualizar nosso governo, permitindo a sadia perpetuação dele e sua inserção na era moderna, democrática e liberal. A monarquia federativa era, portanto, a única forma de arrefecer as correntes dissidentes que se faziam presentes no séc. XIX. Assim:
“Sob o domínio dessa persuasão profunda, não tenho cessas de mostrar, no Diário de Notícias, a necessidade suprema de federação, como a única solução possível dos problemas na aliança entre a monarquia e a liberdade”.[25]
Consequentemente, percebe-se que nesse primeiro momento de defesa do federalismo, Rui Barbosa utilizou o argumento da neutralidade praticamente científica da forma abstrata “federação” para desmistificar a associação entre essa forma de Estado e a revolução popular, a desordem e a instabilidade política. Mostrou-se ser a federação um bem em si mesmo, capaz de modernizar até a monarquia, sem que fosse preciso haver alterações sociais profundas, rupturas no status quo favorável às elites.
Num segundo momento de sua estratégia em prol da positivação de um Estado liberal democrático e federalista, Rui Barbosa, ao perceber que a Coroa não iria se submeter à federação nem à perda do poder moderador que lhe garantia pleno controle político, passa a destacar a importância do partido republicano no País. Único naquele momento que tinha a forma federativa de Estado como principal plataforma política, o partido republicano passa a ser apresentado pelo autor como sinônimo de atualização, de adequação política do Brasil aos novos tempos liberais e democráticos. O debate proposto pelos republicanos seria o único capaz de arejar a política nacional de então. Isso porque os dois partidos até então existentes, conservador e liberal, eram incapazes de realizar as mudanças democráticas que se faziam necessárias. De fato, ambos tiveram a oportunidade de concretizar reformas liberais, mas resistiram fortemente até quando, enfim, elas ocorreram por meio da pressão popular. Assim ocorrera com os conservadores, quando do gabinete 10 de março, momento em que a abolição era a questão de ordem, mas foi tratada em segundo plano. Assim estava acontecendo em 1889 com o gabinete liberal de 07 de junho, que poderia ter instaurado a federalização das províncias, mas optou por não realizá-la. Essa negação do federalismo por parte do partido liberal passou a ser o ponto mais atacado por Rui Barbosa no intuito de mostrar à população que os partidos existentes no Brasil estavam todos falidos, vendidos aos interesses reais.
Essa vinculação momentânea de Rui Barbosa ao partido republicano coincide com a paulatina adesão dos grandes cafeicultores e da aristocracia conservadora aos ideais republicanos: foi o momento de insatisfação das oligarquias provinciais contra a pressão exercida pelo governo nacional e a favor de uma maior autonomia política e administrativa, contestando-se a centralização da Coroa[26]. Nesse sentido, para defender a “pureza teórica” de seu projeto político e afastar críticas de ser essa mudança partidária uma ferramenta oportunista em busca da perpetuação do poder político das elites econômicas, Rui Barbosa justifica a vinculação ao partido republicano como uma troca em nome da inabalável filiação a princípios morais “verdadeiramente” liberais e democráticos, defendendo-se, então, a adesão das elites conservadoras a esse partido:
“Se quiserdes o mais chapado conservador, é agarrardes qualquer liberal no poder, disse um condensador sutil da nossa experiência política. Nunca se verificou tão insignemente a veracidade dêste axioma, como nos tempos atuais.[27]
Tudo tem sido resistência; e de tal resistência, pela reação das aspirações comprimidas, nasceu a abolição, nasceu a preamar republicana, a revolução que cresce para nós. Como falar em moderação, em prudência gradativa, se a urgência, pelo contrário, está em acelerar, em abrir de par em par as janelas ao ar livre, em franquear o mais amplo escoadoiro às águas acumuladas na represa?[28]
As revelações sucessivas dos partidos atirados à oposição pelo arbítrio imperial, a absorção progressiva da autoridade ministerial no elemento pessoal do poder moderador, a ingerência inconstitucional da coroa em tôdas as esferas da vida governativa, a corrupção exercida pelo trono sobre o caráter dos estadistas, a tenacidade singular das alianças, a ação contínua dos déficits, que enfraquecem a confiança popular na capacidade reparadora das instituições, operavam, havia longo tempo, um trabalho de demolição revolucionária nos sentimentos populares. […] Considerar, porém, desnaturada, inquinada, poluída a opinião republicana, só porque recebeu no seio as águas desse confluente útil, é risível. Não descobrindo outra mácula que irrogar a essa agitação, seus inimigos o que fazem, é confessar a própria impotência e a seriedade daquele movimento. Pois há partido algum nesse mundo, haveria aí alguma idéias na mais pura região das idéias, que, em sacrifício a frases como essas, recusasse alianças ativas, deliberadas e tenazes? […] Por terem possuído escravos, os fazendeiros não ficaram sendo réus. Seu êrro já não pode existir, nem sequer na memória dos abolicionistas.”[29]
Rui Barbosa, assim, consegue forjar a legitimidade da participação das elites, elemento conservador, numa revolução republicana, que, ao menos em tese, pressupor-se-ia popular e democrática. É a nação brasileira dividida em dois mundos[30]: o dos senhores e patrões, que monopolizavam a esfera pública; e o dos ex-escravos e dos demais excluídos, dependentes das elites, alheios ao debate político, inconscientes de sua força e incapazes de se reconhecerem como grupo. Sem opinião pública forte, organizada e engajada pretendeu-se formar no Brasil do final do séc. XIX uma “revolução social e política”. É a democracia produzindo-se de cima para baixo, de maneira somente teórica, formalista, juridicista, afastando-se da comunidade e unindo as forças políticas oligárquicas simplesmente em torno do desejo de destruir o antigo regime. Não houve a defesa de um conjunto de fins sociais estruturantes de uma nova sociedade e ambicionados pela comunidade, não houve participação popular, não houve, enfim, revolução no sentido popular da expressão[31].
Por fim, como terceiro elemento de sua teoria federalista, Rui Barbosa apresenta estrategicamente a federação como única solução capaz de solucionar satisfatoriamente os problemas sociais brasileiros. A federação daria origem a um novo Estado, renovado e modernizado e não seria um efeito da nova sociedade que viria a nascer, mas sim a sua causa originária:
“Enquanto a nação não estiver federalizada, a organização do govêrno local será forçosamente matéria da competência parlamentar. À legislatura nacional incumbirá sempre, sob a monarquia unitária, a prerrogativa de dar às localidade o seu código administrativo. Da centralidade dessa atribuição, exercida pelas câmaras legislativas, resultará forçosamente a subordinação de tôdas as variedades particulares a um regímen geral, cuja uniformidade esmagará, escravizando-as, as modalidades infinitas que os interêsses municipais naturalmente revestem na imensidade de um país como êste.[32]
Objeções congruentes contra ela, não as vemos senão entre os inimigos da descentralização administrativa; porque a federação é a mais ampla fórmula desta. (…) A centralização política é tão essencial nas repúblicas, quanto nas monarquias; e precisamente por não contrariá-la, é que a forma federativa se acomoda indiferentemente a umas e a outras. Erra parlamente o pressuposto, com que entre nós se tem argumentado, de que centralização política e regímen federal são têrmos incompossíveis. Tal antinomia não existe. Pelo contrário: tão adaptáveis são entre si essas duas idéias, que a mais perfeita de todas as federações antigas e modernas, a mais sólida, a mais livre e a mais forte, os Estados Unidos, é, ao mesmo tempo, o tipo de centralização política levada ao seu mais alto grau de intensidade”.[33]
Ao apresentar a federação como solução para a “necessidade” de reformas estruturais no governo brasileiro, Rui Barbosa foi induzindo ideias que desembocam na regra geral de que o federalismo sintetizava todas as respostas para os problemas nacionais. É a conjetura retórica, que, enquanto arte de criar hipóteses[34], foi utilizada por Rui Barbosa como ferramenta construtiva de uma argumentação baseada em suposições, mas estrategicamente apresentada como produto de raciocínio demonstrativo. Assim, ao derivar causas para os atos da Coroa, Rui Barbosa apresenta a descentralização administrativa do federalismo como único meio capaz de eliminar essas “causas” da disfunção do sistema político nacional.
Enfim, associando a federação ao oposto da monarquia absolutista, Rui Barbosa construiu a aceitação social dos ideais federalistas e também da república já que o federalismo no Brasil estava diretamente relacionado a esse partido. A democracia, a vinculação à constituição e o liberalismo seriam, em tese, implantados no Brasil por meio da federação, que se caracterizava mais ou menos como uma “mão invisível da política”, permitindo a cada ente federativo governar-se conforme seus interesses e prioridades, mantendo-se, porém, o “mercado político” sempre estável. Assumindo a postura de pai da nova Constituição, Rui Barbosa tornou-se o defensor solitário de uma República ideal, utópica, que deveria superar a monarquia em tudo, mas que, por isso mesmo, tornou-se completamente alheia a uma república real, empírica, cotidiana[35].
3. Conclusão: o agir político juridicista de Rui Barbosa sob um olhar crítico pragmatista – erros metodológicos que levaram à produção de um projeto romântico-idealista.
A adoção, por parte de Rui Barbosa, de uma postura formalista, normativista e teórica de democracia fez com que seu projeto político reformador se tornasse estéril, alheio à realidade, impondo “a melhor” forma de Estado e de governo à população, sem que houvesse debate amplo sobre os fins sociais que a nova nação, ambicionando independência de fato do antigo colonizador, almejava. Nesse sentido, seguindo-se o método pragmático de John Dewey, pode-se criticar o projeto democrático juridicista de Rui Barbosa sob três aspectos básicos, os quais, segundo um olhar pragmatista, tornam as propostas ruianas em mero idealismo romântico, monista e, justamente por estar distante da realidade fática, incapazes de se tornarem efetivas.
Primeiramente, o apego excessivo de Rui Barbosa a “fórmulas puras”, à “correta” teoria federalista norte-americana e o sua aversão à experimentação, à tentativa de adaptação de formas políticas às contingências sociais nacionais, fizeram com que seu projeto político, conforme já destacado, tornasse-se hermético. Esse abismo entre teoria e prática cegou o olhar investigativo de Rui Barbosa para questionamentos em torno das consequências práticas do seu agir político, dos resultados almejados pela comunidade brasileira de então. Consequentemente, seu projeto assemelhou-se a um paraíso de conceitos jurídicos distante das demandas sociais realmente existentes. Isso faz com que sua teoria político-democrática caracterizasse-se como causalista, normativista: as instituições políticas passaram a ser vista como a causa, e não o efeito, da sociedade, devendo prescrever a estruturação desta. Ou seja, Rui Barbosa defende claramente a noção de que a simples adoção de um projeto político bem estruturado formal e teoricamente seria capaz de gerar necessariamente uma sociedade livre e democrática[36]. Isso, segundo uma perspectiva pragmatista deweyana, é uma ilusão teórica provinda do erro metodológico de desconsiderar-se a prática no momento de investigação teórica.
Tal ilusão leva o projeto ruiano a ser marcado por generalizações em termos absolutos: a federação torna-se um padrão universal de excelência na organização de um Estado. Assim, desta vez por meio recurso ao universalismo, Rui Barbosa afasta-se novamente da realidade fática na qual e para a qual produz seu projeto político, na medida em que ignora o fato de as construções democráticas serem produto da constante alternância de objetivos da comunidade, da cultura e da organização típicas de uma sociedade. O autor comete, então, mais um erro metodológico que aproxima sua proposta democrática cada vez mais de uma utopia: ignoram-se os contextos histórico e geográfico da sociedade, desconsiderando-se o fato de não existir uma forma única e invariável de estruturação de Estado para todo e qualquer tipo de comunidade[37]. Consequentemente, incapaz de realizar experimentações políticas e de checar e rever continuamente os fins gerais realmente almejados pela sociedade, a teoria federalista ruiana caracteriza-se como um mero truísmo, uma simples opinião desvinculada do fundamento concreto e firme que encontraria na realidade.
Por fim, como último erro metodológico de Rui Barbosa tem-se a adoção de uma visão monista: opõe-se indivíduo e sociedade, dando-se destaque àquele. Na estruturação de sua teoria federal-liberal Rui Barbosa, por firmar-se na defesa das liberdades individuais e da minimização do Estado, afasta-se mais uma vez da coletividade na tentativa de proteger a individualidade, ignorando o contexto histórico-cultural em que vivia. Consequentemente, o sentido crítico da discussão democrática se perde[38], servindo a teorização somente para legitimar a perpetuação no poder das elites oligárquicas de então. A construção da democracia brasileira levada a cabo por Rui Barbosa não passou pelo processo de formação de uma opinião pública sólida, consciente de si e dos problemas sociais, não havendo a criação de um ambiente democrático de interação entre os sujeitos para a formação de uma comunidade[39]. Houve, assim, uma inversão de valores, que caracterizou a já mencionada inserção da democracia de cima para baixo: primeiro formaram-se as instituições político-jurídicas para depois tentar-se formar o público, a comunidade integrada e engajada. A proposta política de democracia federalista tão bem estruturada teoricamente fez-se, porém, utopia, por ignorar as contingências típicas da sociedade para a qual ela era criada.
Enfim, não se ignorando aqui a importância da atuação política de Rui Barbosa no final do séc. XIX no Brasil, também não se pode deixar de perceber as falhas existentes nessa teoria, que, por se afastar demais da realidade, tornou-se inerte, hermética, não sendo capaz de interagir com a massa da população brasileira. Sendo um conjunto de ideias utópicas, inadequadas ao contexto social brasileiro, o projeto juridicista de Rui Barbosa, sob um olhar metodológico crítico-pragmatico, caracteriza-se muito mais como uma teoria idealista romântica, utilizada estrategicamente como ferramenta em prol da positivação de uma nova forma de Estado que atendia aos interesses da elite econômica de então.
Informações Sobre o Autor
Laila Iafah Goes Barreto
Graduada no Curso de Direito da Faculdade de Direito do Recife– CCJ – Universidade Federal de Pernambuco, mestranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista Capes